Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1386/13.2TBALQ.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º do CPC, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito.
2. A convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) do CPC visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa, pelo que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º do CPC, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:

A A intentou contra a R, acção declarativa, através de processo comum, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe as quantias de: a) € 50.000,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos; b) € 700,00, pelas despesas de lavandaria em que incorreu; e c) € 20.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos com a falta de assistência física e moral.

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:

A A., com 69 anos de idade, vive sozinha num apartamento arrendado sito na Praceta ....
Em Janeiro de 2013, teve uma inundação na cave da casa onde habita, tendo a água atingido 1 m de altura, submergindo todos os bens que ali se encontravam, os quais ficaram podres, com um cheiro nauseabundo e completamente inutilizados, todos num valor superior a 60.000€.

A inundação deveu-se a uma ruptura da canalização propriedade das Águas de Alenquer, que se responsabilizou pelos danos provocados, sendo que a respectiva responsabilidade se encontrava transferida para a R..

A R. liquidou à A. a quantia de 10.000€ pelos danos sofridos e solicitou-lhe a assinatura de um documento em como prescindia de outras quaisquer quantias.

Sucede, porém, que, quando se apercebeu da inundação e da perda dos bens, a A. ficou em estado de choque, tendo sofrido uma real e visível incapacidade de reacção e resolução da questão, tendo sofrido amnésia temporária, durante 2 ou 3 meses, não tendo tido consciência ou percepção de que recebera da R. apenas a quantia de 10.000€ e de que prescindira de receber outros montantes.

Decorridos meses a A. começou a recuperar da depressão que o episódio lhe causou e tomou consciência do que recebeu e assinou, sem ter consciência ou capacidade de compreensão para o efeito.
Dos prejuízos sofridos (60 mil euros), apenas lhe foram liquidados 10.000€.

A A. despendeu na lavandaria onde colocou a lavar alguma roupa, a quantia de 700€.

A A. é pessoa muito doente e ao aperceber-se da inundação e das suas consequências destruidoras, entrou em estado de choque, sofreu ansiedade e entrou em depressão, o que foi agravado pelo facto de se manter no imóvel, incumbindo à R. dar-lhe uma assistência efectiva, o que não fez.

Citada, a R. contestou, por excepção, invocando ser parte ilegítima na acção, por preterição de litisconsórcio necessário, estar a A. já ressarcida, por acordo, sendo a pretensão deduzida em manifesto abuso de direito, propugnando pela sua absolvição da instância, ou do pedido.

A A. respondeu, deduzindo incidente de intervenção principal de AA, S.A., e propugnando pela improcedência das restantes excepções deduzidas.

Foi proferido despacho a admitir o incidente e citada a interveniente, que deduziu contestação, propugnando pela improcedência da acção.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, no qual se conheceu do mérito da acção, julgando-se a mesma totalmente improcedente e absolveu-se a R. e a interveniente dos pedidos formulados.

Não se conformando com a decisão, apresentou a A. requerimento requerendo que lhe fosse concedida a faculdade de se pronunciar sobre a questão apreciada na sentença e que constituiu decisão-surpresa, bem como requereu, desde logo, a ampliação do pedido peticionando de forma expressa e inequívoca a anulação da declaração negocial assinada pelas partes, implícito no pedido formulado inicialmente;

Bem como apelou, tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:

A) Na sentença em crise, após ter sido dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido Saneador Sentença onde a acção foi julgada totalmente improcedente e a Ré e a Interveniente Principal absolvidas dos pedidos formulados pela Autora, com fundamento, segundo o Juiz a quo, na necessidade da Autora para colher provimento ter de “pedir apenas danos posteriores à assinatura do documento; ou ter de necessariamente pedir a anulação daquela declaração negocial, como pressuposto para pedir a totalidade dos danos que agora entende ter sofrido”.
B) Foi proferida sentença sem que as partes fossem notificadas para Audiência Prévia, pelo que, foram confrontadas com um despacho saneador-sentença, relativamente ao qual nem tiveram
oportunidade processual de se pronunciarem.
C) O código de processo civil determina que, não constituindo a decisão convocatória das partes para a audiência preliminar, caso julgado que vincule o juiz a tal apreciação, o juiz só estará
habilitado processualmente a conhecer do mérito da causa, se convocar as partes, obrigatoriamente, para a audiência preliminar em despacho que expressamente contenha o objectivo e/ou finalidade previsto no art. 592.º e 593.º do C.P.C., sob pena de o não fazendo, violar o disposto no art. 3º nº 3 do mesmo código.
D) Existe uma nulidade processual, quando as partes não tenham sido convocadas com essa específica finalidade, tendo a decisão recorrida violado o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C. e de modo geral, o princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa que é atentatória do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do citado art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
E) Conforme decidiu o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 09-10-2014:
“ I. Se, em acção contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito.

II. A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objecto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC).

III. A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.”
F) Desta forma, ou seja, com a prolação do Saneador Sentença de fls. … o Exmo. Senhor Dr. Juiz, de forma inesperada, optou por uma solução jurídica que a Autora, pela posição assumida no processo, não poderia prever, tendo violado o princípio da proibição das decisões-surpresa estabelecido no art. 3.º, n.º 3 do CPC.
G) Pelo exposto, deveria ter sido realizada Audiência Prévia ou pelo menos ter sido facultada a oportunidade de se pronunciar sobre a referida questão que a poderia afetar.
H) Se não tivesse sido dispensada a realização de Audiência Prévia e tivesse sido dado oportunidade à Apelante a mesma poderia e teria certamente, em sede própria, ou seja, em primeira instância, clarificado o pedido efectuado, ou caso, tal clarificação nos fosse suficiente, requerido a ampliação do pedido, peticionando de forma expressa e inequívoca a anulação da declaração negocial assinada pelas partes.
I) Pois, nos termos do artigo 265.º, n.º 2 do CPC o Autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
J) Nestes termos e salvo melhor opinião, impunha-se ao Tribunal de 1ª Instância conceder à Autora a possibilidade de clarificar o pedido ou de o ampliar, antes de julgar totalmente improcedente a acção. Ainda que assim não se entenda, o que somente se admite por hipótese de raciocínio, a Apelante refere ainda que tal sentido já se encontrava expresso quer na Petição Inicial, quer nos articulados subsequentes, uma vez que,
K) A Apelante no pedido da Acção Principal pretende e peticiona a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de €60.000,00 (€10.000,00 dos quais já liquidados) pelos danos patrimoniais sofridos. Para que tal pedido pudesse ser concedido e apreciado, obviamente deveria ser previamente declarada a anulação da declaração negocial, pressuposto de que a condenação no pagamento de €60.000,00 (€10.000,00 dos quais já liquidados) pressupunha. Nessa medida, o pedido de anulação da declaração negocial está implícito no pedido de pagamento de €60.000,00 (€10.000,00 dos quais já liquidados) efectuado pela Autora. Pelo que, também por este motivo, não poderia ter sido proferido Despacho Saneador a julgar totalmente improcedente a acção.

Termina pedindo que se dê provimento ao recurso.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Mmo Juiz recorrido proferiu despacho indeferindo o requerimento apresentado previamente ao recurso.

QUESTÕES A DECIDIR:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) as questões a decidir são:
a) da verificação de nulidade processual;
b) da possibilidade de clarificação ou ampliação do pedido;
c) do pedido implícito no pedido principal.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação:
i.) A autora residia na Praceta ...;
ii.) Em 16 de Janeiro de 2013, foi detectada uma inundação nas caves desse prédio;
iii.) Tal inundação deveu-se a uma rotura da canalização, propriedade da “AA, S.A.”;
iv.) A água subiu a, pelo menos, 30 cm de altura, destruindo diversos objectos que a autora tinha na cave;
v.) Após comunicação da mencionada ocorrência a “AA, S.A.” deslocou-se ao local, tendo efectuado a reparação da canalização;
vi.) A autora começou por reclamar a quantia de € 60.000,00, a título de indemnização relativamente aos bens existentes na sua cave;
vii.) Em 31-01-2013, a autora assinou um documento, do qual consta que «…ficou acordado que o primeiro signatário [a aqui autora] ao receber da R a indemnização de EUR 10.000,00 (dez mil euros) referente aos prejuízos resultantes do sinistro de rotura de conduta ocorrido/detectado no dia 16 de Janeiro de 2013 em morada acima [Praceta ...], considerará o sinistro completamente liquidado, nada mais reclamando desta Seguradora.»
viii.) Em 27-02-2013, a ré “Allianz” procedeu à transferência bancária da importância de € 10.000,00 acordada com a autora e para a conta por esta indicada;
ix.) A ré “Allianz” celebrou com a “AA, S.A.”, um acordo titulado pela Apólice n.º 201303021, através do qual esta transferiu, com início em 01-01-2013, o risco de responsabilidade civil extracontratual em que incorresse na atividade de “exploração e gestão de sistemas municipais de captação, tratamento e distribuição de águas e recolha, tratamento e rejeição de efluentes, sendo que os produtos seguros são exclusivamente a água pública”, com uma franquia ou parte primeira da indemnização a cargo da segurada, no valor de € 1.250,00 (Doc. fls. 28 a 50 – Condições Particulares, Especiais e Gerais do Seguros de Responsabilidade Civil).

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

Na sentença recorrida entendeu-se que a A. não podia vir pedir um montante indemnizatório a que renunciou, por acordo, a não ser que os danos peticionados fossem imprevisíveis e posteriores ao momento em que subscreveu a quitação e renúncia, o que não alegou.

Por outro lado, não obstante tenha alegado factos tendentes a demonstrar que, quando produziu a referida declaração negocial, estava acidentalmente incapacitada para entender o seu sentido, não tirou daí as devidas consequências, ou seja, não pediu a anulação de tal declaração negocial (arts.257º e 287º do CC), como lhe competia, o que a impede de prevalecer-se de um direito a que renunciou, pois a renúncia mantém-se válida.

Concluiu-se, assim, pela inevitável improcedência da acção, com desnecessidade de produzir prova sobre os factos controvertidos (relativos à incapacidade acidental), porque indiferente àquele resultado.

Sustenta a apelante a “nulidade da decisão final”, não por a sentença estar ferida de nulidade nos termos do disposto no nº 1 do art. 615º do CPC, mas por ter sido violado o princípio da proibição das decisões-surpresa estabelecido no art. 3º, nº 3 do CPC, o que é atentatório do princípio do processo justo e equitativo garantido no nº 4 do art. 20 da CRP.

E isto porque o tribunal recorrido dispensou a realização de audiência prévia - o que consubstancia nulidade processual -, não tendo facultado à A. a oportunidade de se pronunciar sobre a questão analisada no saneador/sentença (da improcedência da acção por não ter sido formulado pedido de anulação da declaração de quitação prestada pela A., pressuposto do pedido formulado), sendo certo que, se tivesse sido convocada tal diligência, ou lhe tivesse sido dada oportunidade para se pronunciar sobre a questão, sempre teria a A. tido oportunidade de clarificar o pedido efectuado, ou, caso tal clarificação não fosse suficiente, requerido a sua ampliação, peticionando de forma expressa e inequívoca a anulação da declaração negocial assinada pelas partes.

Apreciemos.
Recorde-se que, previamente à interposição de recurso, a A. apresentou nos autos requerimento requerendo que lhe fosse concedida a faculdade de se pronunciar sobre a questão apreciada na sentença e que constituiu decisão-surpresa, bem como requereu, desde logo, a ampliação do pedido, peticionando de forma expressa e inequívoca a anulação da declaração negocial assinada pelas partes, implícito no pedido formulado inicialmente.

O tribunal recorrido indeferiu o requerido com o fundamento de não ter existido qualquer decisão-surpresa, porquanto a decisão foi de mérito, tendo a A. tido oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos jurídicos dos factos alegados na PI, o que não fez porque não quis, redundando eventual audiência prévia num acto inútil, uma vez que o pedido não podia ser unilateralmente alterado (por não se verificar nenhuma das situações previstas no art. 265º, nº 2 do CPC), nem o juiz podia convidar ao “aperfeiçoamento do pedido”, sendo certo ainda que “a interpretação de que havendo apenas Direito a discutir, quando já deveria ter sido discutido nos articulados (art. 552º, nº 1, al. d) do CPC), mesmo assim, o Juiz tem o dever de convocar uma audiência prévia, …, contraria frontal e expressamente a letra da lei: arts 593º, nº 2, al. a) e 595º, nº 1, al. b) do CPC”.

Será assim ou, pelo contrário, ao proferir despacho saneador-sentença a julgar improcedente a acção, o tribunal recorrido proferiu decisão-surpresa, assente em nulidade processual, por ter dispensado a realização de audiência prévia?
A presente acção deu entrada em juízo em 22.10.2013 (cfr. fls. 13), em plena vigência do NCPC, aprovado pela L. 41/2013 de 26.06 [1].

Dispõe o nº 2 do art. 590º que, findos os articulados, o juiz profere despacho pré-saneador para algum dos fins previstos nas a) a c) do referido normativo legal.

Não havendo lugar a tal despacho ou concluídas as diligências do mesmo resultantes, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas várias alíneas do nº 1 do art. 591º, nomeadamente, facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa (al. b)), ou proferir despacho saneador, nos termos do nº 1 do art. 595º (al. d)).

Não se realiza audiência prévia nas acções não contestadas que tenham de prosseguir em obediência ao disposto nas als. b) a d) do art. 568º, ou quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados (art. 592º, nº 1).

Nas acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a audiência prévia, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas als. d), e) e f) do nº 1 do art. 591º - ou seja, quando se destine, apenas, a proferir despacho saneador, a determinar adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (art. 593º, nº 1) -, caso em que, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, profere despacho sobre aquelas matérias, bem como programa os actos a realizar na audiência final (art. 593º, nº 2), podendo as partes requerer a realização da audiência prévia se pretenderem reclamar do despacho na parte em que determinou adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova (593º, nº 3).

O art. 595º versa sobre o despacho saneador, dispondo o seu nº 1 que o mesmo se destina a: a) conhecer das excepções dilatórias ou nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou, que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

O art. 597º regula os termos posteriores aos articulados nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, conferindo ao juiz um amplo poder de gestão e adequação processual, norteado pela necessidade e a adequação do acto ao fim do processo.

Da ponderação conjugada destas disposições legais teremos de concluir que, nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação (como é o caso), a realização de audiência prévia não é obrigatória, mas é a regra, não se realizando, apenas, nos casos previstos no art. 592º, ou quando seja dispensada pelo juiz, nas acções que hajam de prosseguir.

Da Exposição de Motivos do PL-CPC consta que “a audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados. … Numa perspectiva de flexibilidade, prevê-se que o juiz, em certos casos, possa dispensar a realização da audiência prévia. Nessa hipótese, o juiz proferirá despacho saneador, proferirá despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, programando e agendando ainda os actos a realizar na audiência final, …. Notificadas as partes, se algumas delas pretenderem reclamar do que foi decretado pelo juiz (excepção feita ao despacho saneador, cuja impugnação haverá de ser feita por via de recurso, nos termos gerais), o meio próprio é requerer a realização da audiência prévia destinada a tratar dos pontos sob reclamação”.

Não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art. 591º, nº 1, al. b)).

A convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa (art. 3º, nº 3), pelo que se nos afigura que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados [2].

Neste sentido parece apontar, também, a referida Exposição de Motivos, da qual consta, no que aos fins da audiência prévia respeita, que a mesma tem como objecto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando excepções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova”.

Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum à Luz do CPC de 2013, 3ª ed., pág. 172, vai mais longe, escrevendo, a propósito da al. b) do nº 1 do art. 591º, que “Quando se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzido(s) (art. 595-1-b), o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim.
No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, exceptuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No Novo código esta excepção desaparece: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes” (sublinhado nosso), excepcionando, porém, 2 situações que, aqui, não relevam.

No caso sub judice, a questão apreciada e decidida no saneador-sentença não foi pelas partes discutida nos articulados, nem o juiz dispensou a audiência prévia à luz do art. 547º, antes o tendo feito à luz dos arts. 591º, nº 1, al. d), 593º, nº 1 e 595º, nº 1, al. b).

Afigura-se-nos, assim, incontornável concluir que, ao assim proceder, cometeu irregularidade/nulidade processual, por não ser admissível a dispensa da audiência prévia à luz dos preceitos indicados, tendo-se violado o disposto no art. 591º, nº 1, al. b).

Dispõe o nº 1 do art. 195º que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

A prolação de decisão final a conhecer de mérito, com dispensa de audiência prévia, que, no caso, é imposta por lei, consubstancia nulidade susceptível de influir no exame e decisão da causa, a invocar, no caso, em sede de recurso da sentença, por estar aquela a coberto desta [3].

Procede, pois, a apelação, a implicar a anulação da decisão recorrida.

DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, devendo, em substituição, ser proferido despacho a convocar audiência prévia, nos termos do art. 591º do CPC.
Custas pela apelada.

*

Lisboa, 2015.05.05

(Cristina Coelho)
(Roque Nogueira)
(Pimentel Marcos)


[1] Diploma de que serão todos os artigos referidos, sem menção expressa a outro diploma legal.
[2] Sustentando Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao NCPC, Os Artigos da Reforma, 2014, 2ª ed., pág. 536, que, mesmo neste caso, a decisão de dispensa de audiência prévia “deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art. 3º, nº 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.
[3] Neste sentido, cfr. o Ac. da RL de 9.10.2014, P. 2164/12.1TVLSB.L1-2, rel. Desemb. Jorge Leal, in www.dgsi.pt, que analisa situação semelhante.