Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1477/20.3T8CSC.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO DESCUIDADA
DANO BIOLÓGICO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Efectua uma condução descuidada aquele que não se certifica que pode realizar a manobra de transposição de um veículo parado sem perigo para os demais utentes da via, reduzindo, para tal evitar, a velocidade respectiva, e parando mesmo, se preciso, de modo a poder retomar a sua via de transito em segurança.
II. Tal actuação desconforme às regras estradais ocorre quando o condutor de um veículo avistando o veículo parado num local de estacionamento e na intenção de o contornar, não previsse que tal imobilização pudesse visar o estacionamento do veículo, pelo que era previsível para um condutor atento que um veículo pretendesse sair do estacionamento, deixando assim vago um lugar para o veículo parado.
III. Haverá ainda que considerar que o veículo que se encontrava parado era um veículo ligeiro de mercadorias, o qual incluía uma caixa de transporte de mercadorias que impedia a visão dos veículos que seguissem atrás.
IV. Porém, a esse descuido da condutora do veículo que ultrapassa tal obstáculo haverá que considerar o descuido da condutora do veículo que saía do local de estacionamento, pois não cuidou a mesma aferir se o podia fazer com toda a segurança.
V. Não obstante as críticas e o afastamento que tem vindo a jurisprudência a considerar quanto à aplicação das tabelas que foram aprovadas pelas Portarias n.º 377/2008, de 26-05 e n.º 679/2009, de 25-06, haverá, ao invés, que explorar as suas virtualidades, começando pela circunstância de fazer assentar a indemnização do dano biológico em dois critérios objectivos – a idade do lesado e o número de pontos do respectivo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica- em detrimento de outros factos, como a carreira profissional do lesado, para evitar injustificadas disparidades.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
C… e H…, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma comum, contra S…, S.A..
Pediram a condenação da ré: a) a pagar à autora a quantia de €66.887,85, acrescida de juros de mora, em dobro, contados desde a citação até integral e efectivo pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de acidente de viação; b) a pagar à autora a quantia a remeter para liquidação a título de danos futuros, despesas, tratamentos, intervenções, medicamentos, consultas, exames, perdas salariais não contemplados no primeiro pedido; c) a pagar ao autor a quantia de €2.530,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de custas, procuradoria condigna e juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Decompuseram a quantia total peticionada respeitante à autora em: i) €2.185,00 a título de perdas salariais; ii) €485,61 a dias de férias que se viu forçada a colocar; iii) €15.694,00, a título de danos patrimoniais futuros; iv) €2.560,00 a título de ajudas médicas futuras; v) €213,00 de despesas com consultas de neurologia e oftalmologia; vi) €750,00 de despesas com óculos novos; vii) €20.000,00 de dano biológico; vii) €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, e; viii) €5.000,00 a título de dano estético. Em relação ao autor refere-se a quantia total peticionada a: i) €250,00 à franquia do seguro e; ii) €2.280,00 correspondente ao dano da privação de uso do veículo.
Alegaram, em síntese, ter no dia 11-09-2019, pelas 13:00 horas, na Estrada Consiglieri Pedroso, em Queluz de Baixo, ocorrido um acidente de viação, entre os veículos ligeiros de passageiros de matrícula RG e de matrícula ZN,  encontrando-se o primeiro a efectuar a manobra de marcha atrás para sair do estacionamento, accionando o pisca direito e em marcha lenta, quando foi embatido pelo segundo que se encontrava a efectuar uma manobra de ultrapassagem de um outro veículo que se encontrava parado a aguardar o lugar de estacionamento, sem que tivesse travado por forma a evitar o embate.
Mais alegaram pertencer o veículo de matrícula RG ao autor e, na altura do acidente, ser este conduzido pela sua filha B…, encontrando-se os autores a ser transportados no veículo, tendo a autora, em consequência do acidente, sofrido danos na zona ocular em virtude de ter embatido com a face no vidro (e não no volante, como inicialmente alegado, cfr. rectificação de 27-05-2021), enquanto o veículo de matrícula ZN era conduzido por J...que se encontrava muito nervosa e que declarou ter acelerado em vez de travar afirmando que necessitava dos seus comprimidos por sofrer de transtorno obsessivo compulsivo. Em consequência do acidente, a autora teve de ser transportada de urgência ao hospital por ter sofrido politraumatismos na cabeça, com hematoma frontal e periorbitário direito, tendo ocorrido o deslocamento parcial da base do vítreo do olho direito. No seguimento do acompanhamento médico que implicou repouso ocular e físico, foi atingida a estabilização, mas com risco vitalício de aparecimento de rasgaduras periféricas da retina e glaucoma de ângulo fechado, devendo manter acompanhamento em oftalmologia. As lesões em causa implicam um défice funcional permanente da integridade física de 3 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro, sendo previsível a necessidade e acompanhamento vitalício em consultas de oftalmologia. No mais, alegaram ter a autora estado sem trabalhar durante 45 dias, deixando de auferir a respectiva de remuneração, e tido de colocar 10 dias de férias o que implicou uma perda salarial, nos termos acima discriminados. Acresce, ter a autora incorrido em despesas diversas, com consultas e substituição da armação, bem como sofrido danos não patrimoniais decorrentes das dores físicas e psicológicas, a que deve acrescer a indemnização pelo dano estético sofrido.
Para além disso, peticionam, em favor do autor o valor da franquia do seguro e uma indemnização decorrente da privação de uso do veículo durante 76 dias, à taxa diária de €30,00, por o veículo ter ficado impossibilitado de circular. Finalmente, alegaram encontrar-se a responsabilidade civil automóvel de ambos os veículos transferidos para a ré seguradora, através das apólices que identificaram, pelo que deve esta responder pelos danos causados por culpa que imputam à condutora do veículo ZN, por violação dos art.ºs 11º, n.º 2, e 35.º, n.º 1, do Código da Estrada ou, ainda que assim não fosse, ao abrigo do seguro relativo ao veículo RG no que se refere aos danos sofridos pelos ocupantes.
A ré veio apresentar contestação na qual aceitou parte dos factos alegados relativos ao acidente, bem como a transferência de responsabilidade decorrente das apólices de seguro. Defendeu, contudo, ter o embate ocorrido devido à conduta da condutora do veículo RG que retirou a traseira do veículo do estacionamento em sentido oposto ao da via em que circulava o veículo ZN, tendo este já concluído a manobra de ultrapassagem e retomado a sua mão de trânsito, sendo o acidente culpa da condutora do veículo RG que deveria ter parado a manobra e permitido a passagem do veículo ZN. Sustentou, no mais, com referência à versão inicial da p.i., que a autora apenas poderia ter sofrido os danos corporais invocados por não ter colocado o cinto de segurança, impugnando, nomeadamente por desconhecimento, a existência dos demais danos invocados, nomeadamente, a privação do uso por a reparação dever ter ocorrido no período de 14 dias e a necessidade de consultas futuras por a autora ser já anteriormente seguida em oftalmologia. Finalmente, pugnou pela exclusão da garantia do seguro referente ao veículo RG de quaisquer danos materiais causados aos autores por força do disposto no art.º 14.º, n.º 2, als. a) e b) do regime do contrato de seguro automóvel, bem como encontrar-se a condutora deste veículo numa relação de comissão com o proprietário, no caso o seu pai, ora autor, casado com a autora lesada presumindo-se a compropriedade do veículo, pelo que coincidindo a qualidade de lesante e lesado também deve se encontra excluída a responsabilidade pelos danos corporais sofridos pela ocupante.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 1.º do DL n.º 59/89, de 22-02, sem que o Instituto da Segurança Social tenha vindo deduzir qualquer pretensão.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:  «(…) julgo a presente acção intentada por C… e H… contra S…, S.A., parcialmente procedente e, consequentemente, condeno a ré: a) a pagar à autora o montante total de €16.713,00, sendo:
- €213,00 a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até integral pagamento;
- €7.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais; - €9.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico.
b) a pagar à autora os montantes que a mesma vier a despender com a realização anual de uma consulta de oftalmologia;
c) a pagar ao autor a quantia de €125,00, a título de dano patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até integral pagamento.».
A Autora inconformada recorreu e pugnou pela revogação da sentença proferida e substituída por Acórdão que fixe em 20.000,00€ (vinte mil euros) a compensação a título de dano biológico, em 20.000,00€ (vinte mil euros) a indemnização a título de danos não patrimoniais e em 15.694,00€ (quinze mil seiscentos e noventa e quatro euros) a compensação a título de dano patrimonial futuro, mantendo o demais decidido. Concluindo da seguinte forma:
«I. O âmago da divergência face à decisão recorrida reside no quantum indemnizatório fixado de 9.000,00€ a título de dano biológico e 7.500,00€ a título de danos não patrimoniais, bem como na ausência de compensação a título de dano patrimonial futuro (dano biológico na vertente patrimonial).
II. Entende a recorrente que da gravidade da matéria de facto provada (lesada com risco vitalício de rasgadura da retina!), bem como das decisões superiores de casos análogos, impunha-se fixar as competentes compensações em valor não inferior a 20.000,00€ a título de dano biológico, 20.000,00€ a título de danos não patrimoniais e 15.694,00€ a título de dano patrimonial futuro.
III. O tribunal a quo não fundamentou a improcedência do pedido da A. a título de dano patrimonial futuro.
IV. No caso concreto o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica tem consequências patrimoniais e não patrimoniais.
V. As sequelas de que a recorrente padece, com perturbação da visão por flutuação da estrutura membranosa da base do vítreo, têm reflexo na sua vida profissional, tanto que ficou provado que necessita de esforços suplementares para o exercício da profissão habitual.
VI. Se a força do Homem/Mulher porque lhe proporciona rendimentos é fonte destes e se a mesma fica diminuída, tal consubstancia um dano patrimonial.
VII. Por conseguinte recorrendo à tabela preconizada pelo Ac. do STJ de 04.04.95, perfeitamente actual quanto a todos os seus critérios, designadamente considerando a idade da lesada, a esperança média de vida, a retribuição anual, a taxa de juros líquida de aplicações financeiras (antecipação do capital) e a actualização da remuneração anual, temos uma compensação de 15.694,00€a título de dano patrimonial futuro.
VIII. O dano biológico na vertente não patrimonial materializa-se na afectação psicossomática da pessoa e encontra tutela nos artigos 70º n.º 1 do C.C e 25º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
IX. Daí que existindo sequelas o dano originado pelo défice funcional permanente de integridade físico-psíquica deva ser sempre compensado, exista ou não também afectação da capacidade de gerar rendimentos futuros.
X. Os valores fixados pelo tribunal a quo de 9.000,00€ a título de dano biológico e 7.500,00€a título de danos não patrimoniais encontram-se desconformes com a gravidade dos factos provados e com as decisões superiores de casos análogos.
XI. Realça-se que a sequela da lesada configura uma perturbação da visão por flutuação da estrutura membranosa da base do vítreo, com risco vitalício de aparecimento de rasgaduras periféricas da retina e glaucoma de ângulo fechado (Factos Provados n.ºs 27 e 30).
XII. A rasgadura da retina pode levar a cegueira!
XIII. Conforme Facto Provado n.º 30, é de perspectivar a existência de dano futuro, com referência ao aparecimento de rasgaduras periféricas na retina e de glaucoma de ângulo fechado e a recorrente necessitará de uma consulta anual de oftalmologia para vigilância do aparecimento de rasgaduras periféricas na retina e de glaucoma de ângulo fechado.
XIV. Com o devido respeito, uma sequela de perturbação de visão com perspectiva de dano futuro por possível aparecimento de rasgadura da retina e glaucoma de ângulo fechado que pode inclusivamente levar a cegueira, com necessidade de acompanhamento vitalício, justifica apenas uma compensação de 9.000,00€ a título de dano biológico e 7.500,00€ a título de danos não patrimoniais?
XV. Será que a vida humana e a saúde, o direito a viver bem na sua integridade física vale tão pouco?
XVI. Se atendermos a casos análogos verificamos que situações idênticas mereceram tratamento diferente, designadamente com compensações superiores a título de dano biológico e a título de danos não patrimoniais.
XVII. Nos Acórdão da Relação de Lisboa de 13-09-2018, 19-05-2020 e 21-05-2021, bem como no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017, situações idênticas à dos autos tiveram um resultado consideravelmente distinto com compensações superiores à dos autos.
XVIII. Nesta sede releva especialmente a actualização dos capitais mínimos do seguro obrigatório, através de um processo faseado que, atenta a realidade nacional, se pretendeu suave e progressivo, quer seja por um período de transição de cinco anos, quer pelos limites máximos de capital por sinistro. “(Preâmbulo do Dec. Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto)”;
XIX. Assim convém relembrar, que a actualização dos capitais mínimos obrigatórios de responsabilidade civil no seguro automóvel em Portugal, têm vindo a ocorrer desde 20.10.2007 , sendo que actualmente e desde 01.06.2017 , em virtude do disposto no art.º 12º do Dec. Lei 291/ 2007 de 21 de agosto que estabelece a respectiva revisão de cinco em cinco anos a partir de 01.06.2012, sob proposta da Comissão Europeia , em função do índice europeu de preços no consumidor, é de 6 450 000,00€ para acidentes com Danos Corporais e 1.300.000 para Danos Materiais.
XX. Sendo que a última actualização ocorreu precisamente no dia 01-06-2022 e os prémios que todos ajudamos a pagar estão correspondentemente a aumentar.
XXI. Posto isto e considerando que os pagamentos dos prémios de seguro devem (presumivelmente) acautelar o pagamento do risco inerente à circulação rodoviária e responder pelos sinistros que possam ocorrer, está na altura de utilizar a favor dos lesados, os capitais seguros que todos ajudamos a pagar.
XXII. Estamos no século XXI e na altura de prover condignamente pelos direitos dos lesados, motivo da natureza obrigatória do seguro e dos limites mínimos. Numa sociedade em mudança vertiginosa, em que os paradigmas, nomeadamente do mercado de emprego são hoje altamente competitivos, incertos e efémeros.
XXIII. Os anos de 2020 e 2021 ficarão marcados historicamente pela Pandemia do COVID 19 e o ano de 2022 pela guerra na Europa, que vieram acrescentar e acelerar factores de incerteza enormes a nível de saúde, emprego, económico e financeiro, quer a nível nacional, quer a nível mundial, reforçando o medo e profundo receio em relação ao futuro que legitimamente se sente;
XXIV. Se assim é para todos nós, mais ainda, para quem se viu antecipadamente coarctado nas suas aptidões e capacidades físicas, emocionais e psicológicas;
XXV. Como escreveu o Venerando Desembargador Eurico dos Reis no Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 14-7-2018 – Processo 1463/13.9TVLSB.L1:" E já começa a ser tempo de abandonar de vez posturas miserabilistas no ressarcimento dos danos e natureza corporal das vítimas de acidentes que não foram causados pelos próprios… "
" Deste modo, o que surpreende é a tão diminuta valoração que é feita da saúde mental e até da auto-estima dos seres humanos e até da sua vaidade pessoal - o direito que cada um tem a sentir-se bem na sua própria pele e a gostar de ter de si próprio uma boa imagem e de transmitir para os outros uma boa imagem pública - que só é inaceitável quando ultrapassa os limites do tolerável e se torna insuportável para um/a normal e diligente bom pai/boa mãe de família que com essa pessoa conviva socialmente ou no seio familiar.
Será que o equilíbrio psíquico e emocional das pessoas e o seu direito a ter uma boa imagem (pública e privada) vale tão pouco como parece pensar o Mm Juiz a quo? Seguramente que não porque, e não fazendo sequer apelo a ideias religiosas (o que é ética e legalmente impossível para - e impensável que possa ser feito por - um alto representante institucional de um Estado laico, como os Juízes são), cada ser humano é, insofismavelmente e sem margem para qualquer dúvida, uma criatura única e irrepetível.
E essa realidade indesmentível tem que ter concretização na vida de todos os dias em Sociedade. Logo tem de o ter nas decisões judiciais."
XXVI. Não podemos ainda olvidar que durante cerca de 2 anos de pandemia a indústria seguradora arrecadou os prémios de seguro automóvel sem o correspondente risco e uma vez que a circulação automóvel reduziu drasticamente!
XXVII. Assim, conforme a matéria de facto provada, as decisões superiores de casos análogos, bem como o aumento dos prémios de seguro, deve ser fixada à A. uma indemnização a título de dano biológico em quantia não inferior a 20.000,00€, uma indemnização a título de danos não patrimoniais em valor não inferior a 20.000,00€ e uma indemnização a título de dano patrimonial futuro (dano biológico na vertente patrimonial) em 15.694,00€ por isso significar verdadeiramente JUSTIÇA!».

No que concerne à ré, veio a mesma igualmente recorrer, requerendo a revogação da sentença, com a sua absolvição de todos os pedidos formulados, apresentado as seguintes conclusões:
«I. Na fundamentação de facto da sentença ora em crise, entendeu o Meritíssimo Tribunal a quo, para o que releva à presente apelação, julgar por provados os factos seguintes:(…)
4. O veículo de matrícula RG era propriedade do autor e, nesse momento, era conduzido por B… que transportava os autores, seus pais, no interior do veículo, encontrando-se a autora sentada no lugar ao lado do condutor e o autor no banco de trás.(…)
9. O veículo de matrícula RG encontrava-se estacionado em frente ao BBVA, num dos lugares de estacionamento referidos em 7., tendo a condutora ligado o carro com o propósito de sair do lugar de estacionamento, tendo acionado a mudança de marcha-atrás e acendendo-se a respectiva luz traseira, e aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás.
10. Atrás dela, um pouco mais atrás na Estrada Consiglieri Pedroso, no sentido sul/norte, encontrava-se parado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula … (“XG”), conduzido por R…, pretendendo estacionar onde o RG se encontrava.
11. Estando o veículo de matrícula XG parado à espera que o veículo de matrícula RG saísse do estacionamento e com espaço suficiente para tanto, a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste, com o propósito de seguir em sentido contrário, ou seja, no sentido norte/sul transpondo o eixo daquela via de trânsito.
12. Nesse momento, a condutora do veículo de matrícula ZN, que circulava na mesma via do XG e atrás deste, no sentido sul/norte encontrava-se a efectuar a manobra de ultrapassagem ao XG pela esquerda, sem que tivesse visibilidade dos veículos à frente do XG por este incluir uma caixa de transporte de mercadorias que impedia a visão.
13. O embate entre os veículos referidos em 2., deu-se quando a condutora do veículo RG estava a fazer a manobra de marcha atrás, já com a traseira a ocupar a via no sentido sul/norte mas sem transpor o eixo da via, e tendo a condutora do veículo de matrícula ZN ultrapassado já pela esquerda o veículo de matrícula XG que estava parado, e entrado, de novo, à direita na sua mão e sentido de marcha.
46. Na altura do acidente, o autor, seu proprietário, entregou a condução do veículo à filha para que o conduzisse num percurso curto e praticasse a condução, pois esta tinha gosto nisso. …” (Apenas se reproduzem os assinalados no recurso, dado os factos constarem da decisão, sem necessidade de os indicar de novo).
II. Ainda, na fundamentação de facto da sentença ora em crise, entendeu o Tribunal a quo julgar por não provados, para o que aqui releva, os factos seguintes:
“(…) D. No momento do embate, a traseira do veículo de matrícula RG é colocada, na horizontal, dentro da mesma via e em sentido contrário ao ali imposto. (…)N. O veículo de matrícula RG é compropriedade da autora ou integra o património comum do casal composto pelos autores.”
III. Mais afirma o Meritíssimo Tribunal a quo, no intuito de fundamentar a matéria de facto julgada por provada e não provada, que a sua motivação para conclusões incidiu no facto de ter reputado por credível o depoimento de parte da Autora e, quanto à “a prova testemunhal, produzida em diversas sessões, foi valorada com alguma reserva no que se refere à dinâmica do acidente por ter sido, nomeadamente, os depoimentos das intervenientes no acidente B...e J…, e o relato das testemunhas oculares, como a própria autora, o condutor do veículo de mercadorias R… e da transeunte S…, em diversos aspectos contraditória e incompatível nas diversas versões apresentadas, baseando-se mais o tribunal nos elementos objectivos e nos factos que não se mostraram controvertidos.” (cfr. 10.ª e 11.ª páginas da sentença, sem destaque no original).
IV. “Em concreto, e começando pela dinâmica do acidente (v.g. factos provados n.º 1, 2, 4 a 17 e factos não provados A a E e M), atendeu o tribunal, para lá da já mencionada confissão parcial pela ré no seu articulado, à participação de acidente elaborada pela PSP (sem prejuízo de se ter apurado não ser o croqui totalmente fidedigno do local do acidente, o que foi suprido com a consulta na audiência via internet da visualização online do local). Relevaram, ainda, a declaração amigável subscrita pelas intervenientes no acidente, e, em especial, as fotografias tiradas aos veículos no local após o acidente. Estes elementos ilustram e comprovam as zonas do embate em cada um dos veículos e que se entendem reveladoras da posição dos veículos aquando do embate e respectiva dinâmica e justificação racional do contributo de cada uma das condutoras para o acidente, ainda que se tenha demonstrado ter havido um arrastamento do local por o veículo de matrícula ZN ter mantido a aceleração, devido à situação de choque em que entrou a sua condutora após o embate.
V. Assim, ponderando o sentido em que cada um dos veículos se movia e a circunstância
do embate se ter dado na parte traseira direita do veículo de matricula RG com a parte frontal direita do veículo de matrícula ZN, encontrando-se ambos ainda do lado direito da via, no sentido sul/norte, o local provável do embate e as posições em que cada um dos veículos se encontrava, atenta as regras de experiência e leis físicas relativas às movimentação dos corpos, conclui-se ter o embate sido simultâneo, ou seja, de ambos os veículos um no outro, admitindo ambas as condutoras que ainda se encontravam em movimento e que não conseguiram evitar o embate. Nesse sentido, do conjunto da prova produzida, concluiu o tribunal que, ambas as condutoras dos veículos intervenientes se encontravam a executar manobras que implicavam algum risco, nomeadamente, a manobra de marcha-atrás para saída do estacionamento no caso do veículo de matrícula RG e de conclusão de ultrapassagem e retorno à via de trânsito no caso do veículo de matrícula ZN, sem que as condutoras tenham conseguido fazer tudo o que estavam obrigadas para evitar o embate, até por só muito em cima do acontecimento se terem apercebido da presença um do outro, para o que contribuiu a presença do veiculo de mercadorias que se encontrava na mesma via e que condicionava a visibilidade” (cfr. 11.ª e 12.ª páginas da sentença)
VI. Ou seja, não obstante o Tribunal a quo haja julgado por provado que “O embate entre os veículos referidos em 2., deu-se quando a condutora do veículo RG estava a fazer a manobra de marcha atrás, já com a traseira a ocupar a via no sentido sul/norte mas sem transpor o eixo da via, e tendo a condutora do veículo de matrícula ZN ultrapassado já pela esquerda o veículo de matrícula XG que estava parado, e entrado, de novo, à direita na sua mão e sentido de marcha (facto 13.) e haja julgado por não provado que “O embate deu-se quando o veículo de matrícula ZN ainda se encontrava a regressar à via” (facto C.), vem agora na sua motivação afirmar que “ambas as condutoras dos veículos intervenientes se encontravam a executar manobras que implicavam algum risco (…) de conclusão de ultrapassagem e retorno à via de trânsito no caso do veículo de matrícula ZN”.
VII. Ora, ou a condutora do ZN já está na sua mão, tendo, portanto, concluído a denominada pelo Tribunal a quo “manobra perigosa”, ou não estava a terminar a manobra e, por isso, não estava na sua mão. Tendo concluído, e bem, o Tribunal a quo que o veículo ZN já se encontrava devidamente posicionado na sua via, logo não se encontra em execução de qualquer manobra e, muito menos, perigosa.
VIII. Mais, não obstante o Meritíssimo Tribunal a quo haja concluído que que o veículo ZN já se encontrava devidamente posicionado na sua via, vem, contudo, ao mesmo tempo
e contraditoriamente, com o devido respeito, conclui também que ambas as condutoras não terão “conseguido fazer tudo o que estavam obrigadas para evitar o embate” por não “terem apercebido da presença um do outro”.
IX. Ora, como é que um veículo em andamento na via procede para evitar que outro, que
num momento está estacionado e no momento imediatamente seguinte está a entrar na via de trânsito, lhe embata? Imobiliza-se e faz marcha-atrás?
X. Contudo, para além de tal comportamento não ser susceptível de imposição a qualquer condutor por extremamente perigoso e em violação das regras estradais, a condutora do veículo ZN declarou aos autos que (cfr. ficheiro de gravação da audiência de 26.05.2022 com o n.º 20220526105349):
Mandatário [00:10:11] Sra. J…, atento os locais de embate que está a indicar, portanto, a lateral direita frente do seu carro na lateral traseira direita do carro em marcha-atrás, é isto?
J… [00:10:24] Sim. (…)
Mandatário [00:11:07] Portanto, a questão que lhe faço é: quando está a retomar a sua via
olhou para a direita ou olhou assim, só para a frente? Para não ter visto… porque disse que não viu o carro em marcha-atrás.
J… [00:11:18] Eu olhei para a direita antes de entrar na faixa, e depois olhei em frente.
Mandatário [00:11:22] E quando olhou para a direita…
J… [00:11:22] Entre o carro que estava parado em segunda fila… [00:11:25] Entre o carro que estava parado em segunda fila e o carro que saiu do estacionamento, com o qual eu tive o acidente, eram cerca de cinco metros, portanto, eu tive espaço para entrar na minha… na minha faixa.
Mandatário [00:11:41] Portanto, o que está a dizer é que quando olha para a direita, para
regressar à sua via, o carro ainda não estava a fazer marcha-atrás, é isso?
J… [00:11:48] Que eu me tenha apercebido, não.
Juiz [00:11:57] Ó Sr. dr., mas…
[00:11:58] Então, se a senhora estava na sua faixa, e estava… já tinha terminado a ultrapassagem, porque é que o embate se dá mais do lado direito da sua parte dianteira?
J… [00:12:09] Como é que ele me bate do lado direito? Porque eu já estou na minha faixa, e o carro sai de um estacionamento à minha direita.
Outro mandatário [00:17:49] A senhora referiu que entrou em pânico na sequência do embate, certo?
J… [00:17:55] Sim. Sim.
Outro mandatário [00:18:43] No momento anterior a senhora estava serena e a conduzir
normalmente, pergunto.
J... [00:18:48] Sim, sim.
Outro mandatário [00:21:33] Diga-me uma coisa, parou. Está parada atrás [do veículo XG /obstáculo] e arranca com o… arranca nessa altura. Arrancou com muita velocidade?
[00:21:44] Veja se se recorda. O que não se recorda não… ou com velocidade normal?
J... [00:21:48] Quer dizer, o meu carro era um… é um ponto dois, não arranca propriamente com muita velocidade, portanto não.
Outro mandatário [00:21:53] A senhora disse que iria em primeira ou segunda. Poderia ali ir em terceira?
J... [00:21:59] Diga?
Outro mandatário [00:22:00] Disse que ia, pensa que iria em primeira ou segunda. Seria possível ir em terceira?
J... [00:22:08] Eu acho que não seria possível eu ir em terceira, porque eu estava muito perto do arranque, e não dá para arrancar… o meu carro não arrancava em segunda. Muitas vezes ia abaixo em primeira. (…)
Outro mandatário [00:22:47] Então … mas quer dizer, mas tem… a senhora estaria a quê? A poucos metros do veículo atrás de si, ou não? À sua frente, desculpe.
J... [00:22:57] Entre o… nós na altura medimos, entre o veículo que estava parado em segunda fila, e a zona onde nós colidimos, era cerca de cinco metros. (…)
Outro mandatário [00:24:05] …qual era a distância, quando a senhora partiu da situação de imobilizada, estar parada e retoma a…
J... [00:24:11] Devia ser aí uns… devia ser uns… entre… menos de cinco metros, de certeza. Não terá sido mais do que isso. (…)
J... [00:24:59] Era um Ford Fiesta preto, de 2004, se não me engano. Um ponto dois.
Outro mandatário [00:25:05] É um carro que anda em baixa velocidade, ou não? Normalmente.
J... [00:25:09] Sim, é um carro de baixa velocidade.
Outro mandatário [00:25:48] Já estava a retomar a direcção em que pretendia continuar a circular, é isso?
J... [00:25:53] Sim.
Outro mandatário [00:25:53] E nessa altura, pergunto, é nessa altura que percebe que o outro veículo está em marcha-atrás, é isto?
J... [00:26:03] Eu já… acho que já tinha dito isto. Eu não me apercebi propriamente que estava um carro a sair do estacionamento. Eu apercebi-me quando foi o embate.
Outro mandatário [00:26:13] É isso, apercebe-se… quando está a retomar apercebe-se que vai um veículo na sua direcção, é isto ou não?
J... [00:26:22] Eu apercebi-me quando foi o embate, eu não me apercebi antes.
Outro mandatário [00:26:26] Pronto. Outra coisa, tinha o seu pisca ligado para ultrapassar ou não? Recorda-se disso?
J... [00:26:35] Fiz o pisca para a esquerda para ultrapassar e depois para entrar na minha faixa voltei a fazer o pisca para a direita.
Outro mandatário [00:26:43] Fez os dois piscas, é isso?
J... [00:26:45] Sim.
Outro mandatário [00:26:45] Tem a certeza disso?
J... [00:26:47] Tenho a certeza disso.(…)
J... [00:31:41] Ah, a colisão já é fora de… ou seja, temos a berma, que dá início ao lugar de estacionamento, a colisão já é dentro da estrada.
Outro mandatário [00:31:52] Pronto. O local exacto dentro da estrada não sabe, é isto?
J... [00:31:56] Não lhe sei dizer, mas sei que foi… ou seja, considerando a estrada não foi a meio, porque terá sido um pouco mais para a berma, terá sido, vá, se dividirmos por quatro, será um quarto. Está a perceber?
Outro mandatário [00:32:13] Estou.
J... [00:32:13] Da berma.(…)
Juiz [00:42:45] Mas por isso é que eu lhe faço a pergunta, se a senhora diz que estava
calma, que fez pisca para a esquerda, para a direita, que tinha cinco metros à sua frente [errado], não percebo como é que a senhora não parou e parada é que foi embatida. Percebe? [00:42:58] Se a senhora não fez uma manobra rápida…
J...[00:42:59] O acidente foi tudo muito em cima, ou seja, o que eu senti foi que eu estava na faixa e, de repente, saiu um carro do estacionamento e que… mesmo que eu travasse, o sítio onde o outro carro me bateu, mesmo que eu travasse ela… o carro ia-me bater na mesma, portanto…(…)
J... [00:43:42] O que eu senti foi que um carro mandou-se em mim… mandou-se para cima de mim e não saiu… e senti que não saiu propriamente devagarinho do estacionamento, não é?(…)
Juiz [00:44:14] Mas uma coisa é já estar na sua faixa, ou seja, ninguém aqui está a duvidar que a senhora… ninguém diz que a senhora estava ainda na faixa contrária, não é? A questão é se já estava totalmente na sua faixa e tinha terminado a manobra, e quando diz que…
J... [00:44:28] Não, já estava totalmente na minha faixa.
XI. E como é que um veículo que pretende sair do estacionamento evita bater em quem circula na via para onde se dirige a marcha-atrás? Segundo as regras da experiência e leis da física, é simples: (i) mantém sempre o seu ângulo de visão na lateral traseira, de onde vêm esses veículos, (ii) sai extremamente devagar (iii) rente à berma de estacionamento e (iv) no sentido da sua mão de marcha e (v) trava, dando prioridade, quando aparece um veículo a circular na via na qual pretende entrar.
XII. Contudo, conforme resulta expresso do depoimento da condutora do RG (B…) e do depoimento da condutora do ZN – aqui não relevando, de todo, o depoimento da Autora que não viu nada e estava distraída apenas sabendo para que sentido iam (cfr. minutos 00:06:26 a 00:11:05 do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408100513) -, conjugado com a documentação dos autos, apenas é possível concluir que não foi esse o comportamento – nem qualquer outro de devida diligência - adoptado pela condutora do RG (B...).
XIII. Com efeito, relata a Testemunha B... (cfr. ficheiro de gravação de audiência do dia 06.06.2022 com o n.º 20220606092624) que:
B... [00:07:32] E foi o tempo de eu levantar o pé da embraiagem. Neste caso, bastou. Foi literalmente, eu levantei o pé da embraiagem, nem… foi literalmente eu a levantar o pé da embraiagem e o outro carro embateu no meu.
Mandatário [00:07:44] Você saiu devagar? Saiu bruscamente? Como é que saiu?
B... [00:07:48] É o que eu lhe digo, foi literalmente levantar o pé da embraiagem, é uma força mínima e foi, eu quase não estava a andar.
Mandatário [00:07:55] As rodas da parte de trás chegaram a sair do estacionamento?
B... [00:07:59] As rodas da parte de trás? Eu acho que sim. (…)
Mandatário [00:09:09] Conforme, portanto, diz que levanta o pé da embraiagem, começa a rodar e a fazer a marcha atrás, nesse momento está a olhar para o retrovisor? Está a olhar para trás? Está a olhar para onde?
B... [00:09:18] Estou a olhar para trás.
Mandatário [00:09:19] Está a olhar para trás?
B... [00:09:20] Estou a olhar mesmo na estrada.
Mandatário [00:09:21] Com a cabeça virava para onde?
B... [00:09:23] Com a cabeça para a direita.
Mandatário [00:09:24] Para a direita. E nesse momento não estava a ver o carro?
B... [00:09:27] Não, não.
Mandatário [00:09:29] Então, e depois qual é… portanto, está a fazer marcha atrás, está a olhar para a direita. Então, depois acaba por ver o carro?
B... [00:09:33] É que foi tudo muito rápido. É que foi rápido. Não sei. Não…
Mandatário [00:09:42] A questão que lhe faço é se no momento do embate você está a olhar para o?...
B... [00:09:45] Não. Eu não vi o embate.
Mandatário [00:09:47] Não viu?
B... [00:09:47] Não.
Mandatário [00:09:49] Mas tem a certeza que não… então, estava a olhar para trás? Não
estava?
B... [00:09:52] Eu não sei. Não tenho a certeza se no momento do embate estava a olhar para trás ou não. Não tenho. Não me lembro. Já foi há muito tempo. Não me lembro. (…)
Mandatária [00:19:52] Então, agora explique-me. Como é que saiu do estacionamento?
B... [00:19:56] Sair? Eu quase não saí, na verdade. Como é que eu ia sair? Posso-lhe explicar como é que eu ia sair.
Mandatária [00:20:03] Explique-me como é que saiu.
B... [00:20:06] Pronto. Eu vou explicar como é que eu ia sair. Eu ia para o trabalho do meu pai que é em Queluz de Baixo…
Mandatária [00:20:10] Certo.
B... [00:20:11] … portanto, eu ia começar a marcha enquanto rodava o volante, ou seja, rodei o volante, ia começar, tirei o pé da embraiagem e não consegui sair do estacionamento. Foi quando o embate se deu. (…)
Mandatária [00:22:54] Ok. E o carro anda de marcha atrás quando se limita a tirar o pé da embraiagem?
B... [00:23:00] Claro.
Mandatária [00:23:03] Quase metade do carro?
B... [00:23:04] Claro que anda. Olhe, eu ia chumbando no exame de condução assim, por causa do pé na embraiagem, da força que aquilo tem. (…)
Mandatária [00:28:03] Diga-me só uma coisa, desculpe lá, acabou de dizer que a carrinha do Sr. R… estava, portanto, entre 2 e meio a 5 metros do seu carro, um, dois carros, certo?
B... [00:28:13] Certo.
Mandatária [00:28:14] Pronto. Vamos ver mais ou menos. Largura, 2 e meio por cada carro… (…)
B...
[00:32:09] Pronto. Eu digo, o meu carro, eu acho que estava estacionado, não sei se era neste, se era neste, num destes.
Juiz [00:32:13] Só para ficar gravado …
B... [00:32:14] Exactamente.
Juiz [00:32:15] … no 4.º ou no 5.º lugar…
B... [00:32:17] Eu acho que sim…
Juiz [00:32:17] … a contar da…
B... [00:32:18] … ou era num destes ou num destes…
Juiz [00:32:19] … esquerda para a direita.
XIV. Não obstante, conclui ainda o Meritíssimo Tribunal a quo “que, atentos os referidos elementos de prova, se deverá entender, por um lado, que a condutora do veículo de matrícula RG, no caso a testemunha B..., efectuou a manobra de saída do estacionamento em marcha atrás sem acautelar devidamente que podia prosseguir com a sua realização (sendo, no caso, indiferente para o embate a circunstância de pretender entrar no sentido contrário, pois o embate deu-se antes de transpor o eixo da via), e, por outro, que apesar da condutora do veículo de matrícula ZN, no caso a testemunha J... (que devido à situação psicológica vivida já não recordava com segurança a situação), já ter praticamente retomado a sua mão de trânsito no seguimento da ultrapassagem, não conseguiu evitar o embate com o veículo que se encontrava à sua frente, presumivelmente por a manobra em causa e a forma como a realizou, acompanhada com a irritabilidade decorrente do veículo de mercadorias estar estacionado em segunda fila, ter sido efectuada a uma velocidade que não lhe permitiu antecipar a necessidade de evitar o embate.” (cfr. 12.ª página da sentença).
XV. O Meritíssimo Tribunal a quo, conforme resulta demonstrado pelo teor dos depoimentos transcritos, fez tábua rasa do depoimento da testemunha B..., coerente e credível e que não tem qualquer tipo de interesse nos presentes autos, e esse desprezo pelo Tribunal a quo ocorre, inclusivamente, nos pontos que são coincidentes com o depoimento da testemunha B..., cujo interesse no desfecho dos autos é o maior.
XVI. Mais, entende aqui o Meritíssimo Tribunal a quo que é “no caso, indiferente para o embate a circunstância de pretender entrar no sentido contrário, pois o embate deu-se antes de transpor o eixo da via”. Conclusão esta que, com o devido respeito, nos causa o maior espanto e perplexidade, na medida em esse comportamento, para além de ser o causador do sinistro corresponde a uma manifesta violação de várias normas do Código da Estrada.
XVII. Ora, antes de mais, não resulta de um único ponto da matéria de facto dada como provada que a condutora do veículo ZN conduzia irritada e/ou em velocidade excessiva.
XVIII. De resto, se o ZN está em andamento, após ultrapassar o obstáculo, na sua via, fica a cerca 1 metro de distância do RG – atendendo ao cumprimento dos veículos ligeiros
em geral de cerca de quatro metros -, este que está parado dentro do estacionamento, atente-se, e neste momento, sai o RG… Entende então o Tribunal a quo que a condutora do ZN, se circulasse à velocidade subjectivamente necessária, teria tempo para reagir e travar?? Qual velocidade?? E qual tempo de reacção??
XIX. Na verdade, e salvo o devido respeito, não concretiza ou sustenta o Meritíssimo Tribunal a quo tal entendimento porque o mesmo é, com todo o respeito, pura e simplesmente, irrealista!
XX. É que, ao contrário do que parece ter entendido o Tribunal a quo, que entre o minuto 00:42:35 a 00:43:42 afirma existirem cinco metros de distância entre o ZN e o RG, após a ultrapassagem do obstáculo, entre o RG e o ZN havia apenas um metro de distância. Com efeito, se a distância entre o obstáculo (XG) e o RG eram de cinco metros e a medida de um veículo é de cerca de quatro metros (3.9, no caso do Ford Fiesta), então, quando o ZN volta a entrar na sua via após ultrapassado o obstáculo, não pode sobrar mais de um metro de distância entre os RG e ZN.
XXI. Logo, tal suposição / presunção judicialmente estabelecida pelo Tribunal a quo não pode resultar das regras da experiência de qualquer homem médio ou experiente e, com certeza, não resulta das leis da física.
XXII. Na verdade, resulta da matéria de facto dada como provada, que o embate se dá quando o RG sai do estacionamento, portanto, claro está, na linha deste e, portanto, 5 (cinco) metros, reitere-se, cinco metros após (de distância do) o obstáculo.
XXIII. Ora, se o ZN se encontra na via, após o obstáculo, claro está que neste momento está a menos de cinco metros do RG, aliás, aproximadamente a um metro de distância.
XXIV. E se o RG sai do estacionamento, indo ao encontro do ZN, outra não pode ser a conclusão do que a de que sai repentinamente desse estacionamento.
XXV. Por seu turno, a condutora do RG declarou que fez a manobra de marcha-atrás, colocando a mudança e literalmente levantando o pé da embraiagem, sendo que, com a força que aquilo tem, pelo menos, metade do carro, saiu do estacionamento.
XXVI. E, se rodou o volante para sair do estacionamento, pretendo ir em direcção a Barcarena, portanto, na direcção oposta em que se encontra já o seu veículo (estacionado enviesado), natural e logicamente que, “[n]o momento do embate, a traseira do veículo de matrícula RG é colocada, na horizontal, dentro da mesma via e em sentido contrário ao ali imposto.” (facto D), tanto assim que “a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste” (facto provado n.º 13).
XXVII. Ao mesmo tempo, tendo em consideração este depoimento, croqui do acidente e
fotografias do mesmo, o veículo RG não estava “num dos lugares de estacionamento referidos em 7.” (cfr. facto provado n.º 9), mas no 3.º ou quarto lugar a contar da esquerda para a direita.
XXVIII. Não resultando em qualquer parte, nem sequer do depoimento da própria condutora, que a mesma “tendo accionado a mudança de marcha-atrás e acendendo-se a respectiva luz traseira, e aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás” (cfr. facto provado n.º 9).
XXIX. Na verdade, segundo esta condutora, entrou no veículo, fez “sinal ao Senhor da carrinha” e perguntou se ele ia sair (cfr. gravação 00:01:54 a 00:03:00) - sabe-se lá de que janela … -, colocou a mudança de marcha-atrás, virou o volante e largou a embraiagem, logo, não aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás.
XXX. Sendo que, ficou perfeitamente estabelecido, quer pelas declarações de ambas as condutoras, quer pelas medições realizadas pela autoridade policial que se deslocou ao local que o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ...-XG-..., não se encontrava “um pouco mais atrás na Estrada Consiglieri Pedroso”, mas a cinco metros do veículo RG.
XXXI. Assim, conforme decorre da matéria de facto julgada por provada, coincidente com depoimentos e, sobretudo, com a prova documental dos autos (auto de ocorrência, reportagem fotográfica do acidente com as posições dos veículos e, ainda, imagens do googlemaps juntas em sede de audiência de julgamento), resulta claro que a condutora do veículo ZN e testemunha J… encontrava-se já na sua via de trânsito, próxima do eixo da faixa de rodagem.
XXXII. Ao mesmo tempo, resulta igualmente dos depoimentos e da já identificada prova
documental, que o veículo-obstáculo XG se encontrava com as rodas da direita posicionadas em cima da berma do estacionamento, ocupando parcialmente a faixa de rodagem, a cerca de cinco metros de distância do veículo RG, veículo este que estava estacionado enviesado em direcção a Queluz (norte).
XXXIII. Demonstrado resultou igualmente – bem como dos factos julgados por provados pelo Tribunal a quo - que o momento do embate se verifica quando o veículo ZN se encontra já após o veículo XG, sendo nesse momento que o RG sai do estacionamento.
XXXIV. Tendo essa saída ocorrido repentinamente e sem que nada o fizesse prever, limitando-se a condutora do RG a largar o pé da embraiagem – como a própria declara – e o veículo sai desgovernado do estacionamento.
XXXV. Mais, se a condutora do RG tivesse olhado para a direita – de onde vinham os carros em sua direcção – antes de largar o pé da embraiagem, teria visualizado o veículo ZN a ir na sua direcção. Contudo, porque a condutora do RG se limitou a largar a embraiagem, em direcção ao eixo da via, não tendo visto o ZN nem o acidente propriamente dito - conforme declara (cfr. declarações supra) -, claro está que, com este comportamento (ilícito e culposo), não poderia ter evitado o acidente!
XXXVI. Isto posto, e com a devida vénia, claro está claro que andou mal o Tribunal a quo ao não considerar as medidas concretas de distância entre veículos e obstáculo (cfr.factos provados n.º 9 e n.º 10), bem como ao não considerar as declarações das próprias condutoras quanto ao modo de saída do RG do estacionamento (cfr. Factos provados n.º 9 e facto não provado D.).
XXXVII. Assim devendo ser alterada a matéria de facto julgada por provada e não provada.
XXXVIII. Sem prescindir do exposto, afirma ainda o Meritíssimo Tribunal a quo na fundamentação do julgamento da matéria de facto que: “Igualmente com efeitos confessórios, foi valorado o depoimento de parte da autora na parte em que reconheceu parte da factualidade alegada na contestação que lhe era desfavorável, nomeadamente, a circunstância da condutora do veículo de matrícula RG, filha dos autores, encontrar-se, na altura do acidente, a viver com os autores e ser sua dependente, sendo certo que resultou igualmente das declarações prestadas por esta o circunstancialismo em que o veículo foi cedido pelo autor para que a filha o conduzisse na altura do acidente, servindo tal para concretizar o que de forma conclusiva foi alegado a respeito da relação de comissão” (cfr.10.ª página da sentença).“Finalmente, em relação à restante matéria de facto provada e não provada, como se referiu inicialmente, com base no depoimento da própria autora e do depoimento da sua filha B..., ficou provada a factualidade relativa à dependência desta dos autores seus pais e a coabitarem à época, bem como as circunstâncias em que nesse dia conduzia o veículo, por o autor o ter confiado para que, depois do almoço, praticasse a condução pois tinha habilitação há pouco tempo (cfr. factos provados n.º45 e 46). No entanto, ainda a respeito desta questão jurídica, apesar de resultar da cópia do documento único automóvel que o veículo se encontra registado em nome do autor, não foi produzida prova que os autores, ainda que casados, tenham adquirido o veículo na constância do casamento ou do respectivo regime de bens, pelo que não pode o tribunal dar como provado, sequer por presunção, o sustentado pela ré na contestação a este respeito (cfr. facto não provado N)” (cfr.16.ª página da sentença).
XXXIX. Acontece que a própria Autora afirmou que era casada com o Autor em regime de comunhão de adquiridos e que o veículo RG havia sido adquirido na constância do matrimónio. Logo, legalmente, o veículo é propriedade dos dois!
XL. Ao mesmo tempo quer esta Autora quer a própria testemunha B…, condutora do
RG, afirmaram que a condutora, para além de filha, vivia com os Autores e na dependência destes, bem como que antes do acidente, foram almoçar por se encontrarem os Autores na pausa de trabalho (que ocorre entre as 12h e as 13h) e que iam ambos regressar ao trabalho, mais concretamente, naquele momento, B… ia levar o seu pai, aqui Recorrido, ao trabalho, em direcção a Barcarena.
XLI. Com efeito, a Autora declarou aos autos (cfr. ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408100513) o seguinte:
Juiz [00:22:34] Mas estava era a olhar para o telemóvel, era? [00:22:43] O vidro em que bateu foi o do lado.
[00:22:56] Só aqui em relação… na altura vocês viviam, o seu marido era o dono do carro, e a sua filha vivia com vocês nessa altura?
C... [00:23:07] Sim.
Juiz [00:23:09] Mas disse que estava no estrangeiro.
C... [00:23:11] Esteve antes a estudar, sim.
Juiz [00:23:12] Esteve, desculpe?
C... [00:23:13] Esteve antes, três anos a estudar em Londres.
Juiz [00:23:18] E nesta altura?
C... [00:23:19] Nesta altura já cá estava.
Juiz [00:23:23] Mas estudava? Trabalhava?
C... [00:23:25] Nesta altura, não porque é uma profissão complicada.
Juiz [00:23:28] É o quê ela?
C... [00:23:29] Actriz.
Juiz [00:23:31] Estava à procura de trabalho, é?
C... [00:23:34] [00:23:34] curso, sempre à procura de trabalho.
Juiz [00:23:36] Mas, no fundo, eram vocês que asseguravam a subsistência dela? Ela
tinha vinte e tal anos, era, disse-me?
C... [00:23:43] Não, ela tem 23 agora.
Juiz [00:23:45] Ah, na altura tinha 21 ou 20 ou assim?
C... [00:23:48] 21, penso que…
Juiz [00:23:49] Ela faz anos quando?
C... [00:23:50] Sim, sim, tinha 20. (…)
Juiz [00:24:27] Os senhores são casados em que regime de bens? Qual o regime de bens que são casados?
C... [00:24:32] Eu acho que é adquiridos.
Juiz [00:24:33] Adquiridos. Já são casados há muito tempo, não é? E este carro já foi
casados…
C... [00:24:37] 25, vai fazer 25 anos.
Juiz [00:24:38] Este carro já foi comprado quando eram casados?
C... [00:24:41] Sim.
Juiz [00:24:42] Sim.
XLII. Ao mesmo tempo, a condutora e testemunha B… declarou aos autos (cfr. ficheiro de gravação de audiência do dia 06.06.2022 com o n.º 20220606092624) o
seguinte:
Mandatário [00:01:23] Vou-lhe começar também por perguntar de forma aberta e depois,
então, farei questões mais objectivas. O que é que aconteceu? Quando é que aconteceu? Como é que foi?
B... [00:01:32] Ok. Então, lembro-me que foi no dia 11 de Setembro por ser o dia que tínhamos ido almoçar com o meu pai que é uma coisa que fazemos normalmente de forma regular. E eu levei o carro. E pronto. E, estacionei na rua, na zona onde costumamos sempre almoçar… (…)
Mandatário [00:01:23] Vou-lhe começar também por perguntar de forma aberta e depois, então, farei questões mais objectivas. O que é que aconteceu? Quando é que aconteceu? Como é que foi?
B... [00:01:32] Ok. Então, lembro-me que foi no dia 11 de Setembro por ser o dia que tínhamos ido almoçar com o meu pai que é uma coisa que fazemos normalmente de forma regular. E eu levei o carro. E pronto. E, estacionei na rua, na zona onde costumamos sempre almoçar…
Mandatário [00:01:53] Nós, quem? A senhora e a sua mãe, não é?
B... [00:01:54] Nós, eu, a minha mãe e o meu pai. Fomos os três almoçar e depois voltámos do almoço. Pronto, íamos sair do estacionamento. Eu antes de sair, olhei e estava um carro parado em segunda fila com o pisca e eu fiz sinal para o senhor e perguntei se ele ia sair, ele disse que sim. E, então, no momento em que eu começo a fazer a marcha, já a rodar as rodas, porque eu ia para a direcção da oficina do meu pai que é para Queluz de Baixo, portanto, aquilo tem uma rotunda grande que vai dar a Lisboa, eu ia para a direcção oposta. …
Mandatário [00:03:00] Olhe, e, portanto, aquilo era… como é que… é uma estrada, um local…conhece bem aquela zona?
B... [00:03:07] Sim.(…)
Mandatária [00:20:03] Explique-me como é que saiu.
B... [00:20:06] Pronto. Eu vou explicar como é que eu ia sair. Eu ia para o trabalho do meu pai que é em Queluz de Baixo…
XLIII. Assim resultando claro que a condutora do veículo RG actuava na dependência, por ordem e direcção e no interesse dos Autores nos autos.
XLIV. Pelo que, também neste conspecto deverá a matéria de facto julgada por provada e não provada.
XLV. Atento o exposto, deverá a matéria de facto ser julgada por provada ser alterada, mormente os factos n.ºs 4., 9., 10. e 13., aditando-se os factos D. e N. julgados por não provados aos factos provados, nos termos seguintes (vide duplo sublinhado):
(…) 4. O veículo de matrícula RG era propriedade do autor e compropriedade da autora ou integra o património comum do casal composto pelos autores e, nesse momento, era conduzido por B… que transportava os autores, seus pais, no interior do veículo, encontrando-se a autora sentada no lugar ao lado do condutor e o autor no banco de trás. (…)
9. O veículo de matrícula RG encontrava-se estacionado em frente ao BBVA, num dos lugares no terceiro ou quarto lugar de estacionamento referidos em 7., a contar da esquerda para a direita, tendo a condutora ligado o carro com o propósito de sair do lugar de estacionamento, tendo acionado a mudança de marcha-atrás e acendendo-se a respectiva luz traseira, e aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás. rodado o volante e levantado o pé da embraiagem.
10. Atrás dela, a cerca de cinco metros um pouco mais atrás na Estrada Consiglieri Pedroso, no sentido sul/norte, encontrava-se parado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula -XG- (“XG”), conduzido por R…, pretendendo estacionar onde o RG se encontrava.
11. Estando o veículo de matrícula XG parado à espera que o veículo de matrícula RG saísse do estacionamento e com espaço suficiente para tanto, a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste, com o propósito de seguir em sentido contrário, ou seja, no sentido norte/sul transpondo o eixo daquela via de trânsito.
12.1. Assim sendo, no momento do embate, a traseira do veículo de matrícula RG é colocada, na horizontal, dentro da mesma via e em sentido contrário ao ali imposto. (…)
13. O embate entre os veículos referidos em 2., deu-se quando a condutora do veículo RG estava a fazer a manobra de marcha atrás, já com a traseira a ocupar a via no sentido sul/norte mas sem transpor o eixo da via, e tendo a condutora do veículo de matrícula ZN ultrapassado já pela esquerda o veículo de matrícula XG que estava parado, e entrado, de novo, à direita na sua mão e sentido de marcha e, acto contínuo, o veículo RG saiu do estacionamento. (…)
XLVI. Novamente sem prescindir de todo o exposto, recorde-se que, em sede de contestação, a Seguradora Ré e aqui Recorrente, declinou qualquer responsabilidade pelo acidente viário em apreço, alegando, em síntese, o seguinte:
1. A condutora do veículo ZN agiu com diligência, sem que outro comportamento lhe fosse exigível, pelo que lhe não poderá ser imputado qualquer culpa;
2. A condutora do veículo RG foi imprudente e incumpriu as mais elementares regras estradais, nomeadamente, de saída de estacionamento, tendo sido a efectiva e exclusiva culpada por tal ocorrência;
3. À data do sinistro, o veículo RG era conduzido por conta e no interesse dos Autores nos presentes autos, sendo estes ocupantes pais da condutora e proprietários do veículo, não podendo o lesante ser considerado lesado e, portanto, “terceiro” em relação a si próprio.
XLVII. Contudo, decidiu o Meritíssimo Tribunal a quo que ambas as condutoras eram culpadas por violação das regras estradais, sendo que “em relação à medida da contribuição de cada uma das condutoras para o acidente, e sem prejuízo de corresponder a um juízo nem sempre fácil ou isento de uma ponderação com traços de subjectividade, entendemos que a interpretação da dinâmica do acidente e do contributo para o embate de cada uma das actuações culposas que conduziram a este efeito danoso, evidenciada pelos locais concretos em que se deu o embate em cada um dos veículos, conduzem à conclusão de que essa repartição deve ser tida como igualitária e, como tal, deverá ser fixada em 50% para cada uma das intervenientes”(cfr. 21.ª da sentença).
XLVIII. Ora, antes de mais, cumpre recordar que, no que respeita ao ónus de alegação e prova, nos termos disposto no art.º 552.º, n.º 1, alínea d) do CPC, os Autores devem “expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”. Sendo que nos termos do disposto no art.º 342.º n.º 1 do Código Civil “[à]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” e “[a]s regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine” (cfr. art.º 344.º n.º 1 do Código Civil)
XLIX. Ou seja, “[q]uem tem a seu favor uma presunção legal basta-lhe apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção, competindo à outra parte fazer a prova do contrário (ou do facto-base ou do facto presumido) e, se o conseguir, é à parte favorecida pela presunção legal, que passa a competir o ónus de rebater - ao menos com a contraprova -- essa prova do contrário” (cfr. acórdão do STJ do dia 12.07.2005, proferido no âmbito do processo n.º 05B1986 e disponível em www.dgsi.pt10).
L. Assim, sinteticamente, aquele que invoca facto constitutivo de direito tem que produzir prova nesse sentido e, quem invoca uma presunção legal, não tem que produzir prova nesse sentido, por inversão do ónus da prova, porquanto, tal facto presume-se, ficando a parte a quem desaproveita tal facto, onerada da sua contraprova.
LI. Sendo ainda de referir que, “[é] lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou
ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la, conclusões essas que constituem matéria de facto …”. Neste contexto, “[a] chamada prova por presunções (judiciais) permitida pelo art.º 349° e segs. Do C.Civil - "presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido" (art.º 349º do C. Civil) terá, em princípio, que confinar-se e reportar-se aos factos incluídos no questionário e não estender-se a factos dessa peça exorbitantes, e terá de admitir sempre, e em princípio, contraprova ou prova do contrário” (cfr. acórdão do STJ do dia 18.12.2003, proferido no âmbito do processo n.º 03B3794 e disponível em www.dgsi.pt11).
LII. Isto posto, no que respeita à responsabilidade por facto ilícito, cumpre também recordar que, nos termos do disposto no art.º 483.º do Código Civil “[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Estamos, assim, perante uma norma legal destinada a proteger interesses alheios, de terceiro, que responsabiliza civilmente aquele que, culposamente, viola normas que impõem deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado (violação de normas gerais que tutelam interesses alheios, de deveres genéricos de respeito).
LIII. Sendo que, para que a responsabilidade civil extracontratual seja imputada ao (pretenso) lesante, tem o lesado que comprovar (cfr. art.º 342.º do Código Civil) a verificação de todos os seus 4 (quatro) pressupostos cumulativos.
LIV. No caso em apreço, para que a condutora do veículo ZN fosse – como foi em 50% - considerada civilmente responsável pelo sinistro em apreço- o que foi julgado pelo Meritíssimo Tribunal a quo -, e por força desta, a marca LOGO da Ré e Recorrente G SEGUROS (apólice n.º 7010095407), necessário seria que os lesados Autores ora Recorridos tivessem alegado e comprovado - o que efectivamente foi julgado, mas se não verificou – que a mesma lesante circulou voluntariamente em excesso de velocidade subjectiva - acto ilícito -, bem sabendo que tal conduta é censurável e contrária à ordem jurídica e se encontra investida de perigosidade (em que em termos meramente abstractos) - culposo – comportamento voluntário do agente, apreciado, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família (cfr. art.º 487.º, n.º 2 do Código Civil) -, a existência efectiva de um dano e a existência de uma relação causal directa entre tais acto e dano.
LV. Contudo, não conclui o Meritíssimo Tribunal a quo por provado, nem alegam os Autores, que a condutora do ZN conduzia a uma velocidade imprópria para aquela via. Aliás, em momento algum da factualidade dada por provada ou da petição inicial é mencionada a velocidade certa ou aproximada a que circularia aquele veículo (ZN).
LVI. Mais não sendo de presumir, mesmo da factualidade dada como provada – i.e., mesmo que se não altere qualquer dos factos supra descritos conforme ali requerido –que a condutora do veículo ZN agiu com uma qualquer imprudência.
LVII. Pelo que, comportamento ilícito algum lhe será imputável e, desta feita, culpa alguma lhe podendo ser assacada.
LVIII. Bem pelo contrário, pois resulta claro da matéria de facto dada como provada – i.e., mesmo que se não altere qualquer dos factos supra descritos conforme ali requerido –que a colisão entre veículos ocorre quando o veículo ZN se encontra na sua via de trânsito e após o obstáculo que se encontrava a cinco metros de distância do veículo RG, este último, estacionado.
LIX. Ora, se é neste momento que o veículo RG sai do estacionamento, encontrando-se agora, portanto, a cerca de um metro do veículo ZN, de acordo com as regras da experiência e leis da física, nem que o veículo ZN circulasse e cerca de 30 km/h teria sido possível evitar a colisão.
LX. Pelo que, a presunção estabelecida pelo Meritíssimo Tribunal a quo padece de qualquer sustentação cabal.
LXI. Pelo que comportamento ilícito algum será imputável à condutora do veículo ZN e,
desta feita, culpa alguma lhe podendo ser assacada.
LXII. Assim, responsabilidade alguma é imputável à aqui Ré e Recorrente Seguradora por efeito da apólice de seguro da marca LOGO (apólice n.º 7010095407).
LXIII. Mais, tendo em consideração a exposição supra quanto aos depoimentos prestados
por ambas as condutoras – e consequente alteração da matéria de facto julgada por provada -, resulta inequívoco que o sinistro em apreço nos autos ocorreu da seguinte forma:
1. O veículo ZN ao chegar à Estrada Consiglieri Pedroso (Barcarena), no sentido Queluz
(norte), deparou-se com um obstáculo (o veículo XG) parado na via, em segunda fila e encostado / em cima da berma do passeio – não ocupando, portanto, integralmente a via de trânsito;
2. Este obstáculo, veículo XG, encontrava-se a cinco metros de distância do veículo RG que se encontrava estacionado;
3. O veículo ZN parou e depois deu início à manobra de ultrapassagem, accionando o pisca para a esquerda, ultrapassando o obstáculo, depois acciona o pisca para a direita, olhando para direita para ver se podia entrar e regressando à sua via de trânsito, olha para a frente vendo o sinal luminoso verde;
4. Acto contínuo, o veículo RG sai do estacionamento, com as rodas viradas –portanto para entrar no sentido este/oeste ou horizontal à via de trânsito e porque pretendia deslocar-se para o sentido oposto, portanto, Barcarena (sul) -, soltando o pé da embraiagem;
5. O veículo RG sai, assim, repentinamente do estacionamento, pelo menos até metade, indo ao encontro do veículo ZN que, neste momento, estava a cerca de um metro de distância daquele;
6. Finalmente, ambos os veículos embatem.
LXIV. Ora, antes de mais, mandam as regras da experiência e os mais elementares deveres de cuidado que a condutora do RG estivesse atenta ao seu lado direito traseiro, enquanto realizava a manobra. O que também não logrou cumprir. Com efeito, conforme declara a própria, não visualizou o veículo ZN na via e nem mesmo o momento do embate, estando a olhar para a estrada, mas nem tendo a certeza de para onde olhava (vide transcrições supra). Desta feita, não poderia ter vislumbrado, como não vislumbrou, a presença do veículo ZN a circular naquela via e indo na sua direcção.
LXV. Nos termos do disposto no art.º 31.º, n.º 1, alínea a) do Código da Estrada, “[d]eve
sempre ceder a passagem o condutor (…) [q]ue saia de um parque de estacionamento…” (sem destaque no original). Obrigação de cedência de passagem esta que a condutora do veículo RG não logrou cumprir. Bem sabendo, a condutora do RG, que o dever de cuidado incidia especialmente sobre si, porquanto, teria obrigação de ceder passagem a qualquer veículo que circulasse na via, como era o caso do ZN.
LXVI. Sendo ainda que, “[a] marcha atrás só é permitida como manobra auxiliar ou de recurso e deve efectuar-se lentamente e no menor trajecto possível” (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do Código da Estrada). Norma esta que, novamente, foi violada pela condutora do RG, na medida em que a manobra mais curta e segura para efeitos de saída do estacionamento, seria ter entrado com a traseira na via pela direita, e no sentido de marcha ali imposto, sentido Queluz, e o mais rente possível à berma do estacionamento. O que a condutora RG também não logrou cumprir na medida em que se limitou a largar a embraiagem, permitindo que o veículo saísse repentinamente e desgovernado do estacionamento.
LXVII. Mais acresce que, “[a] posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem”, isto é, no sentido de marcha a que se destina aquela via de trânsito (cfr. art.ºs 13.º, n.º 1 e 1.º, alínea u), ambos do Código da Estrada). O que, novamente, foi desrespeitado pela condutora do RG, que atravessou a via na sua horizontal / perpendicular / este-oeste, pretendendo seguir em sentido oposto ao da sua via de trânsito.
LXVIII. Do exposto resulta claro que o acidente em apreço nos presentes autos se verificou devido à conduta negligente, temerária, imprudente e ilegal da condutora do RG e, consequentemente, por culpa única e exclusiva da mesma.
LXIX. Pelo que, sempre deverá ser alterada a sentença dos autos, e substituída por decisão que julgue a condutora do veículo RG como única e exclusiva culpada pela produção do acidente de viação em apreço.
LXX. Portanto, absolvendo-se a Ré do pagamento dos 50% (cinquenta por cento) enquadrados pelo Meritíssimo Tribunal a quo no âmbito da apólice de seguro da marca LOGO (apólice n.º 7010095407).
LXXI. Ainda sem prescindir de todo o exposto, que respeita à relação de comissão entre condutora e Autores alegada pela Ré Recorrente, em sede de motivação afirma o Meritíssimo Tribunal a quo que: “Igualmente com efeitos confessórios, foi valorado o depoimento de parte da autora na parte em que reconheceu parte da factualidade alegada na contestação que lhe era desfavorável, nomeadamente, a circunstância da condutora do veículo de matrícula RG, filha dos autores, encontrar-se, na altura do acidente, a viver com os autores e ser sua dependente, sendo certo que resultou igualmente das declarações prestadas por esta o circunstancialismo em que o veículo foi cedido pelo autor para que a filha o conduzisse na altura do acidente, servindo tal para concretizar o que de forma conclusiva foi alegado a respeito da relação de comissão” (cfr. 10.ª página da sentença).
LXXII. Assim, entende ainda o Meritíssimo Tribunal a quo que: “Da mesma forma, e no que se refere aos demais danos apurados, em concreto os danos não patrimoniais e o dano biológico sofridos pela autora, atenta a sua dimensão pessoal e não meramente material, não se poderão igualmente considerar excluídos da cobertura do seguro obrigatório, nos termos do art.º 14.º do DL n.º 291/2007. Acresce que essa exclusão não pode igualmente decorrer, conforme defendeu a ré, da existência de uma relação de comissão existente entre o autor e a sua filha, condutora do veículo, nos termos do art.ºs 500.º do CC, ou mesmo por efeito do autor ter alegadamente a direcção efectiva do veículo nos termos do art.º 503.º do CC. Com efeito, ainda que os factos dados como provados a respeito das circunstâncias em que ocorreu a condução, pudessem levar à conclusão de que se verificaria qualquer uma dessas situações (cfr., a este respeito, a análise aprofundada efectuada no acórdão da Relação de Guimarães de 14-01- 2021, Proc. n.º 599/18.5T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt), a verdade é que tal regime que justificaria a não cobertura indemnizatória não se estenderia aos danos sofridos pela autora. Com efeito, desconhecendo-se o regime de bens do casal, e nada se tendo provado a respeito da autora ser proprietária do veículo, não se lhe pode estender a pretendida relação de comissão ou atribuir a direcção efectiva do veículo, pelo que, necessariamente, não se encontram os danos sofridos por esta de alguma forma excluídos da cobertura do
seguro automóvel referente ao veículo de matrícula RG. Por conseguinte, sem prejuízo da repartição de culpas pelo acidente em relação a cada um dos veículos, e com excepção do valor relativo à franquia que se encontra parcialmente excluído da cobertura do seguro referente ao veículo de matrícula RG, será a ré condenada no pagamento integral dos restantes danos, por efeito de cada um dos seguros celebrados, e em relação aos quais sucedeu na posição das primitivas seguradoras”.
LXXIII. Ora, conforme já exposto supra em sede de impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada, a condutora do veículo RG é filha dos Autores, estes casados entre si há cerca de 25 anos, no regime da comunhão de bens adquiridos, tendo o veículo sido adquirido na constância do matrimónio e, sendo, portanto, nos termos da lei, da propriedade de ambos os Autores. Com efeito, tal facto, resulta da invocada (em sede de constatação e alegações finais) presunção legal estabelecida no art.º 1717.º do Código Civil, tendo ainda a Autora confirmado que é casada no regime da comunhão de adquiridos, bem como que o veículo RG foi adquirido na constância do matrimónio. Pelo que claro está que, são ambos os Autores aqui Recorridos, legalmente, proprietários do veículo.
LXXIV. Neste contexto, foi ainda pela Autora esclarecido que os Autores – ao contrário da condutora (desempregada) – se encontravam na sua pausa laboral para almoço (que ocorre entre as 12h00m e as 13h00m), tendo concedido a condução à sua filha para os transportar, portanto, de volta para os respectivos locais de trabalho.
LXXV. E, ainda que por absurdo se admita que os Autores entregaram a condução do veículo RG para que esta praticasse a condução – não obstante tivesse licença para conduzir há mais de um ano (cfr. declarações da Autora e da condutora transcritas) – certo é que esta conduzia o veículo na dependência, por conta e no interesse dos Autores aqui
Recorridos.
LXXVI. Sendo que, aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte (presunção culpa do
comissário) e, ao mesmo tempo, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar (responsabilidade objectiva do comitente).
LXXVII. Com efeito, nos termos do disposto no art.º 500.º, n.º 1, do Código Civil, “[a]quele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar”.
LXXVIII. O que significa que, se o acidente for causado por um condutor por conta de outrem, cuja culpa se presume, isto é, por um comissário responsável pelo risco de circulação do veículo (cfr. art.º 503.º, nº. 1 do Código Civil), o/s comitente/s, ou seja, os Autores e aqui Recorridos, são solidariamente responsáveis pelo risco e dano que a sua filha, encarregue de os transportar de volta aos seus locais de trabalho (cfr. art.º 503.º, n.º 3 do Código Civil).
LXXIX. Sendo que, a relação de comissão está longe de esgotar a possibilidade e criação de relações de comissão por via contratual, podendo abranger situações “com base em relações familiares”. A sua verificação depende, em concreto, “de um controlo e recíproca dependência entre comitente e comissário.” A responsabilidade do comitente com o comissário é, funcionalmente, uma garantia do lesado e, portanto, o comitente funciona aqui como um garante, ao lado do comissário, perante terceiros lesados, da obrigação de indemnizar.
LXXX. De acordo com o Assento do STJ de 30.04.1996, o "dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor, quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art.º 500º, n.º 1, do Código Civil entre o dono do veículo e o condutor do mesmo".
LXXXI. Ora, no caso em apreço, a relação de comissão é por demais evidente: a condutora, é filha dos Autores, vivia, à data do sinistro, com estes e sendo dos mesmos dependente (incluindo nas declarações de IRS), os Autores eram os proprietários do veículo sinistrado que ocupavam, para serem transportados, pela sua filha, para os seus locais de trabalho.
LXXXII. Nesta senda, conforme afirmam os Venerandos Desembargadores da Relação de Lisboa em douto acórdão do dia 14.01.2019 (processo n.º 285/11.7TAESP.G1, disponível em www.dgsi.pt): “Há de existir entre comissário e comitente uma relação de dependência, que pode ter por fonte um contrato ou surgir ainda a nível familiar. O vínculo de comissão não tem natureza jurídica autónoma, não estando, designadamente, dependente da existência de um negócio e muito menos de um determinado tipo de contrato – o vizinho que me ajuda a pintar a casa será considerado, meu comissário. Essencial é tratar-se de catividade ou serviço realizado por conta de outrem e sob a direção de outrem, pressupondo uma relação de autoridade, exprimida num poder de controlo, vigilância e direção.” (Ac. TRC de 5 de Maio de 2015, proferido no âmbito do proc. n.º293/13.3TBCDN.C1, in www.dgsi.pt).”
LXXXIII. O interesse da pessoa na utilização do veículo tanto pode revestir natureza patrimonial ou económica, material, como não patrimonial ou apenas moral ou espiritual (como no caso de alguém, querendo ser agradável a outrem, por cortesia, amizade, gratidão, altruisticamente, lhe empresta o carro), ser um interesse legítimo ou reprovável. Terá, isso sim, de se tratar de um interesse próprio, embora, porventura, não exclusivo.
LXXXIV. O requisito da utilização no próprio interesse “visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem”
LXXXV. Como salienta Dário Martins de Almeida (Cfr. Manual dos Acidentes de Viação, 3ª ed., p.317), quem empresta a viatura a um amigo, fá-lo no seu próprio [interesse] e, porque não deixa de manter a direcção efectiva responde solidariamente com aquele por danos causados nessa viagem.
LXXXVI. E, “[e]m regra, tem a direcção efectiva do veículo o seu proprietário, na medida em que é ele que retira e aproveita as vantagens do veículo, pelo que deve acarretar as responsabilidades dos riscos da sua utilização. Ou seja, se alguém empresta o seu veículo a outro que tem um acidente, a responsabilidade do dono permanece, na medida em que a condução é feita sob a sua direcção e sob o seu interesse. (cfr. acórdão do TRL de 18.05.2006, processo n.º 3022/2006-6, disponível em www.dgsi.pt)
LXXXVII. Num caso semelhante ao dos presentes autos, em que A intentou ação declarativa, contra Companhia de Seguros, SA, porquanto, nos aludidos dia, hora e local, sofreu um embate com um veículo ligeiro de passageiros pertença de C..... e conduzido, na altura, pelo seu filho D…; o referido D… tinha acabado de fazer um favor ao seu pai, tratando-lhe de um assunto pessoal. Na sentença impugnada concluiu-se pela culpa presumida do condutor do veículo ...-AJ-..., seguro na Ré, uma vez provado que esse veículo pertencia a C..... Almeida e era, na altura, conduzido pelo seu filho D......Aí se consignou que “a propriedade do veículo faz presumir a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo dono, incumbindo ao proprietário o ónus da prova que não tinha a direcção efectiva do veículo e que este não circulava no seu próprio interesse; quando não, funcionará a presunção de culpa do n.º 3 do art.º 503.º do Código Civil, susceptível de prova em contrário”(cfr. acórdão do TRC de 06.05.2018, processo n.º 300/06.6TBGVA.C1, disponível em www.dgsi.pt)..
LXXXVIII. “A regra do preceituado artigo 500.º do CC, funda-se no princípio de quem tira vantagens de certa actividade deve suportar os respectivos riscos (…) No que toca aos acidentes de viação ocorridos de forma que leve à responsabilização civil dos condutores dos veículos, os donos dos veículos (ou os legítimos detentores da sua direção efectiva: usufrutuários, locatários, comodatários (…), respondem pelos danos resultantes dos acidentes – desde que os comissários actuem no exercício das duas funções. Assim, “[p]ara que se possa falar de culpa presumida do comissário, que se prove que o comissário era mesmo comissário: que, aquando do acidente, estava agindo por ordem (direção) de comitente, numa relação de subordinação em relação ao mesmo.” (cfr. Eurico Heitor Consciência, em “Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel – Leis, Doutrina e Jurisprudência”, 2.ª Ed. – Revista, Actualizada e Ampliada, pp. 52 e ss.).
LXXXIX. Ora, provada estando a relação de comissão entre condutora do RG e Autores aqui Recorridos, presumida se encontra a culpa e responsabilidade solidária destes pela produção do sinistro em apreço.
XC. “Estabelece o direito substantivo civil que responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário – art.º 503º, n.º 1, do Código Civil - donde cabe ao proprietário a direcção efectiva do veículo, que o vê a circular no seu próprio interesse, gozando de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do veículo.” (cfr. acórdão do STJ de 19.10.2021, processo n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt ).
XCI. Ao mesmo tempo, conforme se defendeu em sede de contestação e resulta igualmente supra explanado, a responsabilidade civil extracontratual – delitual ou pelo risco - visa a protecção de interesses de terceiros.
XCII. Bem assim, o regime do SORCA, na medida em que impõe a contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel a “[t]oda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo” (cfr. art.º 4.º, n.º 1)
XCIII. Ora, se o veículo RG é conduzido por conta e no interesse dos Autores, não podem ser estes ser considerados terceiros em relação ao comissário condutor.
XCIV. E se responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário (cfr. art.º 500.º, n.º 1 do Código Civil e acórdão do STJ de19.10.2021, processo n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt ),
XCV. E, correspondendo direcção efectiva de qualquer veículo ao condutor, claro está, que o exercício da função de condutor é extensível aos comitentes, in casu, os Autores ora Recorridos.
XCVI. Desta feita, reputando-se por verificadas as exclusões constantes do SORCA, no que âmbito de aplicação do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel respeita, porquanto “[e]xcluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles” (cfr. art.º 14.º, n.º 1).
XCVII. Isto, naturalmente, sem se prescindir do facto de, nos termos do mesmo art.º 14.º do SORCA, se acharem igualmente excluídos da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados (cfr. n.º 2), do condutor do veículo responsável pelo acidente (cfr. alínea a)), do Tomador do seguro (alínea b), de todos aqueles cuja responsabilidade é garantida, nos termos do n.º 1 do artigo seguinte, nomeadamente em consequência da compropriedade do veículo seguro (cfr. alínea c)) e, portanto, aqui se incluindo os legítimos detentores do veículo (cfr. art.º 15.º n.º 1), dos cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c) (cfr. alínea e)).
XCVIII. Assim, não sendo terceiros, mas quem tem a direcção efectiva do veículo, responsabilidade alguma é imputável à aqui Ré e Recorrente por efeito da apólice de seguro da marca TRANQUILIDADE (apólice n.º 0004442190).
XCIX. Posto isto, deverá a decisão aqui recorrida ser substituída por outra que julgue por provada a relação de comissão entre condutora e Autores e, bem assim, considerando que eram os Autores aqui Recorridos quem tinham a efectiva direcção do veículo (por intermédio da sua filha condutora e comissária).
C. Ao consignar diverso entendimento, a douta decisão recorrida incorre em violação, entre outros, disposto nos artigos 342.º, n.º 1, 344.º, n.º 1, 483.º, 487.º, n.º 2, 500.º, n.º 1 e 503.º, n.ºs 1 e 3 1717.º do Código Civil, 552.º, n.º 1, alínea d) do CPC , 3.º, n.º 2, 13.º, n.º 1 e 1.º, alínea u), 31.º, n.º 1, alínea a), 46.º, n.º 1, todos do Código da Estrada e 4.º, n.º 1, 14.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c) e e) e 15.º, n.º 1, do SORCA
CI. Deve, assim, a douta sentença recorrida ser revogada, absolvendo integralmente a Ré G Seguros, S.A. aqui Recorrente do pedido formulado pelos Autores.
CII. O que se deixa expressamente alegado para todos os devidos efeitos legais.».

Na sequência do recurso da ré veio ainda o Autor apresentar recurso subordinado, concluindo que:
«I. O âmago da divergência face à decisão recorrida reside na teoria adoptada quanto ao dano por privação de uso, tendo o tribunal a quo perfilhado o entendimento de que para compensação deste dano é necessário demonstrar que o bem era utilizado.
II. Entende o ora recorrente, como de resto e salvo o devido respeito a melhor jurisprudência e doutrina designadamente da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza António Abrantes Geraldes, que o dano por privação de uso é um dano indemnizável em si mesmo e porquanto o proprietário vê-se privado de retirar as utilidades que do bem derivam, art.º 1305º C.C
III. O tribunal a quo fez assim uma incorrecta aplicação do Direito aos factos provados violando o disposto nos artigos 483º e 1305º do C.C e 42º n.º 1 do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto, o que a não acontecer teria conduzido a uma solução conforme preconizada pelo recorrente, a procedência do pedido neste segmento, a fixação de uma compensação a determinar equitativamente pelo tribunal por 16 dias de paralisação (Facto Provado n.º 40).
IV. O próprio legislador respondeu em nosso entendimento de forma clara quanto à ressarcibilidade autónoma do dano por privação de uso sem necessidade de qualquer outra prova que não a privação com o ainda anterior DL n.º 83/2006 de 03/05 que consagrou a
figura do veículo de substituição no seu art.º 20º J.
V. Aquela norma manteve-se no actual art.º 42º do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto.
VI. Volvida aquela norma verificamos que o legislador não impõe ao lesado qualquer prova que não seja a imobilização do veículo para que lhe seja cedida uma viatura de substituição!;
VII. Ou seja, o lesado não tem de demonstrar que utilizava ou deixava de utilizar o veículo, desde que aquele esteja imobilizado terá direito a uma viatura de substituição;
VIII. E bem se entende, porque se o proprietário ou aquele com direito de uso do bem vê-se subtraído de alguns dos fins daquele, tem direito à reposição ou compensação pelo acto do lesante;
IX. Não se exige, portanto, qualquer prova ao lesado, que demonstre quantas viaturas tem ou deixou de ter, se usava ou deixava de usar;
X. Se o veículo fica imobilizado o lesado tem direito a uma viatura de substituição que mais não é que tentar repor a situação que existiria se não fosse o evento que obriga à reparação, art.º 562º C.C;
XI. E se a lesante não cedeu viatura de substituição, que seria a reparação natural do dano por privação de uso, então terá a indemnização de ser fixada em dinheiro, n.º 1 do art.º 566º do C.C.
XII. A não se entender assim, não só se viola o art.º 42º do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto em articulação com os artigos 483º e 1305º do C.C como se beneficia o lesante pelo facto de, não obstante ser-lhe imputável a responsabilidade, mesmo parcial, não ter cedido uma viatura de substituição ao lesado, o que consubstancia um enriquecimento ilegítimo e uma vez que tal reparação traduzir-se-ia necessariamente num custo!
XIII. Mais, a não ser assim, porque é que o legislador não pressupõe a necessidade de demonstrar que o veículo era utilizado para que a seguradora tenha de ceder uma viatura de substituição?
XXVII. Conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2022 -Revista n.º 604/18.5T8LSB-A.L1.S1 - 7.ª Secção 5, “Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito.”
XIV. Neste mesmo sentido o Acórdão do STJ de 08-05-2013 e o Acórdão da Relação de Lisboa 08-10-2020, bem como o entendimento do Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes que aprofundou e desenvolveu o tema.
XV. Por fim há a realçar o evidente, mas que raras vezes é invocado nos casos de acidentes de viação em circulação, que é o facto do veículo estar a ser utilizado precisamente no momento do acidente.
XVI. Ou seja, o bem estava a produzir um efeito para o qual foi preconizado antes do acidente e depois do mesmo deixou de o fazer devido a este!
XVII. Termos em que tendo ficado provado que o veículo do Autor esteve paralisado pelo menos 16 dias, (Facto Provado n.º 40), deve ser fixada uma compensação equitativamente, 566º n.º 2 CC, que se julga em 20,00€ diários atento o tipo de bem, veículo automóvel.
XVIII. Assim e considerando a responsabilidade determinada em 50%, deve a R. seguradora compensar o A. em quantia não inferior a 160,00€, correspondente a 20,00€multiplicados por 16 dias e aplicação da percentagem de responsabilidade definida em sentença.».
A ré contra alegou quanto ao recurso apresentado pela Autora e mais uma vez no seu articulado expôs as suas conclusões de forma extensa e exaustiva, considerando-se relevantes os seguinte:
«I. Inconformada com o quantum indemnizatório arbitrado pela sentença dos autos, veio a Autora/Recorrente apelar à Relação de Lisboa a alteração do julgado (…)
VII. Julgando, desta feita, a presente acção (…) parcialmente procedente (…)
VIII. Não obstante, entende a Recorrente que o Meritíssimo Tribunal a quo deveria ter autonomizado a quantificação do dano patrimonial futuro da quantificação do dano biológico e que, atente-se, apenas por força disso, omitiu a atribuição de uma indemnização a título de dano patrimonial futuro (cfr. ponto conclusivo III da alegação de recurso).
IX. O que, salvo o devido e merecido respeito por entendimento diverso, não corresponde à realidade. Em abono da verdade, o Tribunal a quo não utilizou a conceptualização jurídica de “dano biológico” sufragada pela Autora/Recorrente – que o qualifica como um dano meramente não patrimonial e, assim, pedindo duas indemnizações distintas pelo
mesmíssimo dano -, mas autonomizou o dano não patrimonial biológico do dano patrimonial biológico, denominando na sentença dos autos apenas por “dano não patrimonial” o primeiro e por “dano biológico” o segundo, incluindo-se neste último e o
dano patrimonial futuro.
X. Neste contexto, afirma o Meritíssimo Tribunal a quo (cfr. 27.ª a 29.ª páginas da sentença, se destaque no original), que o “dano biológico” “reconduz-se a uma situação de facto que remonta à alegação de um défice funcional permanente ou de afectação da sua integridade física que determina a ocorrência de danos futuros”, julgou por “justo e adequado, e com recurso a juízos de equidade, fixa-se, a título de dano biológico, com o sentido acima delimitado e já incluindo a previsível existência de dano futuro, o valor da indemnização devida à autora em €9.000,00, montante já actualizado à data da presente sentença (cfr. 28.ª página da sentença).
XI. Neste contexto, o Meritíssimo Tribunal a quo, deixando-se levar na mesma linha de raciocínio da Recorrente que defende, sem mais, que fica “consequentemente prejudicada
na prossecução de uma maior produtividade e progressão de carreira” (cfr. ponto XVI da
alegação de recurso), entendeu igualmente o Meritíssimo Tribunal a quo ser de atribuir uma indemnização a título de dano patrimonial biológico.
XII. Para tanto, entendeu Meritíssimo Tribunal a quo ser de relevar (cfr. 27.ª a 29.ª páginas da sentença, sem destaque no original):
• Uma “perda da remuneração ou de capacidade de ganho que, efectivamente, não ocorreu, por à autora ter sido apenas reconhecida, ao nível da repercussão permanente da
sua actividade profissional que as “sequelas são compatíveis com o exercício da sua actividade habitual, mas implicam esforços complementares” (facto provado n.º 30)”;
• As “sequelas apuradas [são] compatíveis com o exercício da atividade habitual, embora
exijam esforços suplementares, pela perturbação da visão associada à sensação de cansaço visual”;
• A “perspectiva da existência de dano futuro, com referência ao aparecimento de rasgaduras periféricas e de glaucoma de ângulo fechado (vide relatório pericial e facto provado n.º 30)”;
• Bem como, “a circunstância da autora ter 48 anos de idade na data do acidente, atingir actualmente a esperança média de vida, em relação às mulheres, os 83,67 anos (cfr. site do INE), e ter sido apurado um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica
fixável em 3 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro”;
• E, ainda o facto de “a autora ser técnica de marketing e necessitar de trabalhar ao computador, decorrendo das lesões e sequelas verificadas a necessidade de fazer tempos de pausa e repouso ocular, por forma a evitar, nomeadamente, ficar com dores de cabeça,
tendo tal repercussão no desempenho da sua vida profissional, o que deve ser valorado nesta sede, até pelas consequências que tal poderá acarretar na sua progressão ou na existência de outras oportunidades profissionais”.
XIII. Ainda para tanto, entendeu Meritíssimo Tribunal a quo ser de relevar (cfr. 29.ª página da sentença, sem destaque no original) “nomeadamente, a circunstância de, na data do acidente, a autora ser técnica de marketing e necessitar de trabalhar ao computador, decorrendo das lesões e sequelas verificadas a necessidade de fazer tempos de pausa e repouso ocular, por forma a evitar, nomeadamente, ficar com dores de cabeça, tendo tal repercussão no desempenho da sua vida profissional, o que deve ser valorado nesta sede, até pelas consequências que tal poderá acarretar na sua progressão ou na existência de outras oportunidades profissionais”.
XIV. Quanto ao cômputo do montante concreto da indemnização a atribuir, o Meritíssimo
Tribunal a quo (30.ª página da sentença) considerou que, (…)
XIX. Assim, no que às especificidades próprias de cada um destes casos ditos análogos respeita, releva referir aqui que:
• O acórdão de Revista n.º 127/145.1TJVNF.S1 de 28-11-2017 20, considerou que “[o]
montante de €5.000 mostra-se adequado para indemnizar o dano biológico sofrido pelo
lesado em consequência de acidente de viação, traduzido na rigidez à mobilização cervical nos movimentos de extensão, rotações bilaterais e inclinação lateral esquerda, ligeira diminuição da força muscular do membro superior esquerdo e hipoestesia localizada a nível da totalidade do antebraço esquerdo, correspondentes a um défice funcional da integridade físico-psíquica de 3 pontos”
• O acórdão de Revista n.º 871/12.8TBPTL.G1.S1 de 20-12-2017 21 22, considerando que o autor, na data do acidente com 19 anos de idade, era saudável, ágil, forte e robusto,
auferindo, no exercício da sua profissão de empregado de mesa e de balcão, o rendimento
mensal ilíquido de €500, e que na sequência do mesmo, ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, após uma semana de internamento e realização de três intervenções cirúrgicas por fractura dos ossos da perna esquerda e escoriações pelo corpo, considerou ser de atribuir uma indemnização, pelos danos patrimoniais futuros, de €8.500,00.
• O acórdão de Revista n.º 3901/10.4TJVNF.G1.S2 de 27-02-2018 23 24, considerou que
“[m]ostram-se conformes a tais critérios ou padrões os valores, de €10 000 e de €8 000,
atribuídos a título de indemnização por danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais com fundamento no seguinte quadro provado: (i) à data do acidente, o autor
tinha 10 anos de idade e era (e é) estudante; (ii) em consequência do acidente, ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, que
demanda maiores esforços no exercício da actividade habitual e demandará perda de capacidade de ganho quando ingressar no mercado de trabalho; (iii) sofreu dores aquando
do acidente e da convalescença, sendo o quantum doloris de grau 4 (numa escala progressiva de 7); (iv) a repercussão permanente das sequelas nas actividades desportivas e de lazer corresponde ao grau 3 (numa escala progressiva de 7); (v) padeceu de incómodos e de tristeza por força do acidente, das lesões e das sequelas dele decorrentes; (vi) antes do acidente, era uma pessoa saudável, alegre e confiante”.
XX. Ainda nesta senda, vide o acórdão de Revista n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1 do dia 17.05.2018 25, no âmbito do qual os Colendos Conselheiros do STJ proferem que: “Resultando da matéria fáctica provada que a autora: (i) tinha 44 anos à data do acidente
de que foi vítima (13-03-2010) e 45 anos à data da consolidação médico-legal; (ii) o prejuízo funcional decorrente da afectação da sua integridade físico-psíquica foi fixado em 3 pontos; e (iii) as lesões de que padecia, mormente ao nível da coluna cervical e lombar, que se agravaram por força do acidente, são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual (de cabeleireira), mas exigem esforços suplementares – bem como necessitando de ajudas técnicas permanentes: fisioterapia cervical e lombar, assistência médica e ajudas medicamentosas -, é de manter a indemnização de €14 000 fixada pela Relação, a título de dano patrimonial futuro (dano biológico), posto que, situando-se o juízo prudencial e casuístico feito no acórdão recorrido dentro da margem de discricionariedade que legitima o recurso à equidade e não colidindo com os padrões
jurisprudenciais adoptados pelo STJ em casos análogos ou similares – não há razões para
dele dissentir.”
XXI. Contestando tal entendimento, afirma a Recorrente que tais valores se não acham dentro dos valores jurisprudências, usando, a título de exemplo os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 proferido no âmbito do processo n.º 559/10.4TBVCT.G1.S1 e do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo n.º 20410/15.8T8LSB.L1 (cfr. pontos XXVII a XXIX da alegação de recurso). Ora, no que ao entendimento do STJ respeita, cumpre referir que, naquele douto acórdão, efectivamente, “um[a] lesad[a] de um acidente de viação com 31 anos, [que] ficou com cervicalgias que lhe conferem um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 2 pontos, viu a indemnização ser fixada em 20.000,00€ a título de dano biológico e 15.000,00€ a título de danos não patrimoniais” (cfr. ponto XXVII da alegação de recurso), lesada essa que era operária fabril cujas cervicalgias se apresentam “sempre que roda a coluna cervical para a esquerda e para a direita, sempre que a flecte para a esquerda e para a direita, sempre que a flecte no sentido ante-posterior”.
XXII. Ou seja, pretende a aqui Recorrente equiparar a sua limitação – de ver em constância uma “cobra” incomodativa equiparável a um escotoma no seu ângulo de visão - à limitação de uma pessoa com menos dezassete anos de vida e que é uma operária fabril que sente dor cada vez que se quase a cada movimento? Não é justo, não é equitativo e, com o devido respeito, não é sequer sensato.
XXIII. Com efeito, conforme aventado pela sentença ora em crise – acompanhando todo o entendimento jurisprudencial – “tal indemnização deve ser fixada segundo juízos de
equidade nos termos do art.º 566.º, n.º 3, do CC, e ter em consideração os seguintes factores essenciais: i) idade do lesado à data do sinistro; ii) esperança média de vida do lesado à data do acidente (por referência à data do nascimento do lesado); iii) índice de incapacidade geral permanente em direito civil; iv) potencialidades de ganho e de aumento de ganho do lesado, anteriores à lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; v) conexão entre as lesões psicofísicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas do lesado, compatíveis com a suas habilitações e/ou formação”.
XXIV. Assim, os casos apreciados pelo Meritíssimo Tribunal a quo, não obstante respeitem a uma situação de défice permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, - bem como o caso invocado pela Recorrente que respeita a uma situação de défice permanente da integridade físico-psíquica fixável em 2 pontos - referem também casos mais graves, quer por efeito da idade menos avançada destes sinistrados quer por efeito da lesão em concreto, que é, em todos esses casos, uma que se manifesta efectivamente em permanência e não de forma intermitente, como é, este último, o caso da Recorrente.
XXV. Efectivamente, conforme decorre do facto julgado por provado n.º 29 que (do relatório médico resulta que) ao exame médico “a autora apresentava queixas, a nível funcional, relativas a epífora durante observação de computador ou televisão, visão turva ocasional e sensação de cansaço visual, bem como queixas, a nível da vida profissional, relativas a epífora durante utilização de computador e sensação de maior cansaço visual, com necessidade de pausas principalmente no período da tarde” (cfr. 6.ª página da sentença) e, em audiência de julgamento manifestou que “no seu campo de visão apresentava uma linha longitudinal, como se fosse uma cobra, em permanência no olho direito” (facto julgado por provado n.º 42, na 8.ª página da sentença), o que corresponde “ao défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, com referência à perturbação da visão por flutuação da estrutura membranosa da base do vítreo, por analogia a escotoma, fixável em 3 pontos” (facto julgado por provado n.º 42, na 7.ª página da sentença).
XXVI. Assim, “[a] autora, no âmbito da sua actividade profissional, não consegue estar muito tempo seguido ao computador e tem necessidade de fazer pausas por sentir uma impressão no olho direito e ficar com dores de cabeça (facto julgado por provado n.º 44, na 8.ª página da sentença).
XXVII. Acontece também que, declarou a Autora e aqui Recorrente em sede de audiência de discussão e julgamento que as funções de “agente de actores” fazendo “de tudo um pouco, trato do site, trato das fotografias, dos compósitos, trato de contratos, tenho reuniões com as produtoras…” (cfr. minutos 53m02s a 53m21s do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408100513), que é também professora desde o ano de 2009, tendo deixado de deixou de dar aulas entre 2015 e 2021 e regressado após o sinistro em apreço, “Imagine, se trabalho de manhã na agência, por exemplo, paro algumas vezes; depois às vezes quando estou nas aulas nem sempre estou ao computador porque estou a dar aulas, portanto, acaba por me ajudar [00:50:53]. Quantas paragens? Não faço ideia. Conforme estiver cansada …” (cfr. minutos 00:49:35 a 00:51:05 do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408100513).
XXVIII. Ou seja, em síntese, para além da “cobra” “incomodativa” mas não limitativa “no imediato” e “a todo o tempo”, a sequela de que a Autora padece apenas se repercute em contextos concretos, e de forma intermitente, como sendo o de passar um dia inteiro de trabalho ao computador e, em especial, no que ao tratamento de fotografias respeita – o que, atentas as suas declarações e aqui citadas, não é comum -, sendo necessário “descansar a vista” e retomar a execução dessa tarefa sem a manifestação de tal sequela.
XXIX. Dito de outro modo, e fazendo aqui o paralelismo com a dor, existe uma diferença abismal entre o sinistrado que – quer na sua vida pessoal quer na sua vida profissional – sente uma dor constante e susceptível de agravamento com a mera aplicação de esforço, e o sinistrado que não sente dor, manifestando-se esta aquando da aplicação de um maior
esforço. De resto, a aqui Recorrente apenas apresenta uma visão turva do olho direito, que se manifesta quando fecha o olho esquerdo (cfr. facto provado n.º 43, na 8.ª página da sentença) – e ninguém, no seu quotidiano, quer pessoal quer profissional, anda com um olho fechado.
XXX. Ainda, para efeito da atribuição do quantum indemnizatório referente ao dano aqui em apreço – dano biológico na sua vertente patrimonial -, o Meritíssimo Tribunal a quo teve em consideração a possibilidade de agravamento do estado patológico da Recorrente (cfr. 31.ª e 32.ª páginas da sentença), bem como os valores jurisprudencialmente fixados (supra exemplificados), nas aludidas “situações análogas”, tendo se aproximado do valor máximo ali arbitrado.
XXXI. Posto isto, o valor indemnizatório de €9.000,00 julgado pelo Tribunal a quo a título do “dano biológico”, respeita, como já extensamente sustentado, ao dano patrimonial consequente da sequela corporal avaliada e à Autora, atendendo às suas declarações e perícias e consequente factualidade julgada por provada, tendo em consideração a afectação que em concreto tal sequela implica e sua consequente justa compensação e numa tentativa de equilíbrio com os valores jurisprudencialmente fixados em situações análogas ou comparáveis.
XXXII. Assim respeitando o Meritíssimo Tribunal a quo não apenas o disposto nos artigos 8.º e 483.º do Código Civil – ao contrário do alegado pela Recorrente no ponto IV da alegação de recurso -, mas também o disposto nos artigos 562.º a 564.º do mesmo diploma legal.
XXXIII. Sem prescindir, cumpre agora apreciar o quantum indemnizatório julgado pelo Meritíssimo Tribunal a quo por justo e equitativo de €7.500,00 a título de danos não patrimoniais -portanto, o “dano não patrimonial e o “dano biológico” na concepção da Autora /Recorrente, a qual reclama uma indemnização de €40.000,00, a alegando que em
consequência do sinistro padeceu de dores que se mantiveram em período convalescença
(quantum doloris de grau 4), sentirá “mal-estar” durante o resto da sua vida (défice funcional permanente de 3 pontos) com risco vitalício de agravamento futuro e também ficará com uma tumefacção na testa (dano estético de grau 2) – cfr. pontos conclusivos VII a XVII da alegação de recurso.
XXXIV. Neste contexto, decorre da sentença dos autos (cfr. 25.ª a 27.ª páginas da sentença) que, tendo em consideração:
• Os períodos de défice funcional total e temporal apurados na perícia, e que ascenderam a um total de 152 dias e que, naturalmente, foram acompanhados de dor e sofrimento (cfr. factos provados n.º 19 a 22, 23, 29 e 30);
• Que a nível funcional apresentasse queixas relativas a epífora durante a observação de ecrãs e necessidade de realizar pausas, por forma a evitar dores de cabeça, com consequências na vida pessoal e profissional (cfr. factos provados n.º 26, 29, 30, 41 e 44);
• O quantum doloris fixado no grau 4 numa escala crescente de 7 graus de gravidade tendo em conta o tipo de lesões resultantes e o tipo de traumatismo (cfr facto provado n.º 30);
• A circunstância da autora ainda visualizar no seu campo de visão do olho direito uma linha longitudinal, como se fosse uma cobra, e ter uma visão turva de um dos olhos quando ambos encerrados (cfr. factos provados n.º 42 e 43);
• E ter ficado com uma tumefação da região frontal, que determinou que pericialmente fosse atribuído um dano estético permanente fixável no grau 2 numa escala de 7 de graus de gravidade crescente (cfr. facto provado n.º 30);
XXXV. Pelo que, entende o Tribunal a quo, com recurso à equidade e casos análogos decididos “pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, destacando-se, pela sua proximidade com o caso presente, os critérios e montantes fixados pelo STJ no acórdão de 27-02-2018, Revista n.º 3901/10.4TJNF.G1.S1, disponível em www.dgsi., cujos critérios e valores fixados, por se mostrarem sensivelmente na mesma ordem de grandeza, aqui seguimos (cfr. Artigos 8.º n.º 3 e 496.º do Código Civil) “que, em consequência do acidente em causa nos autos, se mostra justo e adequado fixar a indemnização a título de danos não patrimoniais sofridos pela autora em montante correspondente a €7.500,00, valor este actualizado na data da prolação da presente sentença”.
XXXVI. Contra tal valor indemnizatório insurge-se, desta feita, a Recorrente, afirmando, em síntese que a mesma não tem em consideração a “gravidade” do dano da Autora/Recorrente, que corre o risco de aparecimento de rasgaduras periféricas e glaucoma de ângulo fechado (factos provados n.º 27 e 30) que pode levar à cegueira (cfr. pontos conclusivos XI a XIII e XV da alegação de recurso).
XXXVII. Ora, para justificação e esclarecimento da matéria dada por assente nestes autos (que não é pela Recorrente impugnada), e no que às sequelas médicas “apuradas no relatório pericial” respeita “e que fotam objecto de discussão no decurso da audiência (cfr. Factos provados n.º 29 e 30)” afirmou ainda o Meritíssimo Tribunal a quo que “entendeu o tribunal que, apesar da defesa e contraditório exercido pela ré, nomeadamente, em sede de esclarecimentos da perita médica, não foram tais elementos suficientes para afastar a credibilidade desse juízo pericial, ainda que, em direito civil, esteja sujeito ao princípio da livre apreciação da prova (cfr. art.º 389.º do CC). Com efeito, tendo a perita admitido que o relatório pericial se fundou, em grande medida, nos elementos remetidos pelo tribunal, nomeadamente, provenientes da médica oftalmologista assistente da autora (cfr. capitulo B do relatório), sem necessidade de exames complementares, entende-se que, face à natureza das lesões e respectiva especialização, não coloca tal em causa a credibilidade e rigor técnico desses elementos que foram, consensualmente, aceites pelos diferentes médicos que foram ouvidos na audiência de julgamento e que se mostram compatíveis com as lesões detectadas. Nesse sentido, não tendo sido requerida segunda perícia e uma vez que se entende que a peritagem médica sempre se teria de basear em elementos da especialidade de oftalmologia, sem que a medicina legal tivesse outros meios distintos de apurar a natureza das lesões, entendeu o tribunal dar como válida a apreciação pericial feita, aliás, de forma coincidente pela testemunha médico G... e pela perita VR.... No mais, as sequelas apuradas, as queixas reportadas e as consequências determinadas no relatório em termos de quantificação das várias dimensões do dano mostram-se compatíveis e verosímeis em face das lesões sofridas pela autora, não havendo razões objectivas para divergir, nomeadamente, a respeito dos 3 pontos atribuídos na perícia a título de défice funcional permanente, atribuídos por referência e com base em analogia com a pontuação atribuída nas tabelas médicas para a situação do escotoma.” (cfr. 15.ª e 16.ª páginas da sentença)
XXXVIII. “Acresce que relativamente à admissão de existência de dano futuro foi ainda produzida prova de haver o efectivo risco da autora vir a sofrer de aparecimento de rasgaduras periféricas e de glaucoma de ângulo fechado, porquanto, ainda que a ciência médica tenha evoluído e possam existir actualmente outras soluções cirúrgicas que possam diminuir esse risco (como ilustrou a mandatária da ré no decurso da audiência), serão ainda pouco divulgadas e implicam outros riscos significativos para o doente, pelo que, face ao juízo de probabilidade justificado pela perita médica em sede de audiência, segundo o critério que tem servido para o preenchimento do conceito legal de dano futuro, entendeu o tribunal igualmente não colocar em causa a conclusão da perícia que indica essa admissão de um dano futuro” (cfr. 15.ª e 16.ª páginas da sentença).
XXXIX. Neste conspecto, e em abono da verdade, cumpre mencionar algumas imprecisões constantes da sentença: a Dra. Marta Araújo, médica especialista em oftalmologia e assistente da Autora e Recorrente há cerca de 15 anos, por astigmatismo e hipermetropia e, ainda, por miopia (para o que foi operada a laser), sendo ainda que a Autora/Recorrente não “sente” a membrana flutuante vulgo “cobra”, mas apenas vê – conforme, aliás, decorre da matéria de facto dada como provada n.º 42, bem como dos minutos 00:47:42 a 00:48:35 do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408100513 e, ainda, dos minutos 00m00s a 03m00s do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408113657).
XL. Mais cumpre recordar a médica oftalmologista Dra. Marta Araújo, a instâncias da Autora, explicou que a aqui Recorrente, por efeito do sinistro em apreço, sofreu um descolamento (= avulsão) da base do vítreo -, tendo sido apenas e tão somente o segundo caso clínico equivalente que viu na vida -, que estabilizou, mas, consequentemente, a mesma paciente ficou com um cordão membranoso a flutuar no vítreo (a “cobra” ou “mosca”) e se vier a incomodar muito de futuro a solução será ou será de ponderar o tratamento cirúrgico, a chamada Vitrecotomia, “o que poderá vir a acontecer”, “que eu não faço e teria que referenciar para um colega”, com os inerentes riscos acrescentados de rasgaduras descolamento da retina (que podem provocar o descolamento da retina) e de glaucoma, sendo que, os actuais riscos de ocorrência são equiparáveis ao da realização de intervenção cirúrgica, “o que não quer dizer que vai acontecer, mas não se pode descartar também”(cfr. minutos 05m00s a 09m07s e 12m40s a 13m20s do ficheiro de gravação de audiência do 08.042022 com o n.º 20220408113657).
XLI. Quando inquirida a instâncias da Ré sobre o grau de probabilidade de a Autora vir a sofrer um agravamento da sequela em apreço, não soube responder, e quanto à probabilidade de vir a ocorrer por efeito pós-cirúrgico (Vitrecotomia) respondeu que tal ocorreria talvez a dois em cada dez doentes, concluindo que a Autora está melhor agora, ou corre um risco menor do que na eventualidade de vir a operar, o que reitera e depois retrata-se dizendo que afinal o grau de probabilidade/risco seria o mesmo (cfr. minutos 14m00s a 18m10s do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408113657). Ou seja, no máximo, existe um risco/grau de probabilidade de 20%.
XLII. Sendo que, quando inquirida sobre a (a)normalidade do aparecimento de rasgaduras (da membrana do vítreo) e glaucomas (hipertensão do globo ocular), esclareceu igualmente esta médica oftalmologista que são patologias comuns, sobretudo em míopes e com o avançar da idade, sendo ambos curáveis através de procedimento ou tratamento, a saber, fotocoagulação (para rasgadura) e realização de anti hipertensores (para glaucoma) - cfr. minutos 07m00s a 12m40s do ficheiro de gravação de audiência do dia 08.04.2022 com o n.º 20220408113657.
XLIII. Resumindo e concluindo, o risco da Autora de aparecimento de rasgaduras e glaucomas é equiparável ao risco do míope em idade envelhecida.
XLIV. Sendo que, não são as rasgaduras susceptíveis de provocar qualquer cegueira! É um hipotético – e não provável – descolamento da retina (não da base do vítreo) que pode,
atente-se, pode eventualmente, causar cegueira. O que, ao contrário do pretendido pela
Recorrente nos pontos conclusivos XI a XV da alegação de recurso, não é sequer provável!
XLV. Com efeito, o risco da Autora de descolamento da retina e de (consequente) cegueira é tão aleatório quanto o de andar e cair, atravessar a estrada e ser atropelada, sofrer um TCE e morrer. Pelo contrário, um dano corporal futuro, corresponde às sequelas de uma lesão que se projecta no futuro, sendo previsível (art.º 654.º, n.º 2, do Código Civil), e essa previsibilidade afere-se pela sua verosimilhança e probabilidade, por corresponder à “evolução lógica, habitual e normal do quadro clínico constitutivo da sequela”, daí que seja juridicamente definido como “uma previsão fisiopatologicamente certa e segura”.
XLVI. Não obstante, conforme já exposto, entendeu o Meritíssimo Tribunal a quo, acolhendo os relatórios dos autos, ser de considerar, para além dos 3 pontos de défice funcional permanente por efeito do aparecimento de uma cobra no ângulo de visão, cujas
repercussões pessoais não passam de um “incómodo”, o Tribunal a quo decidiu revelar para efeitos de quantificação do computo indemnizatório, o mesmo Tribunal decidiu igualmente relevar a existência de dano futuro “com referência ao aparecimento de rasgaduras periféricas na retina e de glaucoma de ângulo fechado”, os quais são tratáveis.
XLVII. Desta feita, e recorrendo novamente à jurisprudência invocada pelo Tribunal a quo, da jurisprudência do STJ resulta o seguinte:
• O acórdão de Revista n.º 127/145.1TJVNF.S1 de 28-11-2017 28, considerou que o montante de €10 000 mostra-se justo para indemnizar os danos não patrimoniais sofridos
pelo lesado, que ficou a padecer de um défice funcional da integridade físico-psíquica de 3 pontos, considerando igualmente (i) o quantum doloris de grau 3 numa escala de 1 a 7, (ii) a persistência e agravamento das dores na cervical com mudanças de tempo e com esforços, e (iii) a perda de sono, que tudo contribuiu para o tornar mal-humorado.
• O acórdão de Revista n.º 871/12.8TBPTL.G1.S1 de 20-12-2017 29 30, considerando que o autor, na data do acidente com 19 anos de idade, era saudável, ágil, forte e robusto,
auferindo, (ii) em consequência do mesmo, sofreu fractura dos ossos da perna esquerda e
escoriações pelo corpo, tendo efectuado exames radiológicos, com prescrição de medicamentos (analgésicos, antibióticos e anti-inflamatórios); (iii) esteve internado durante uma semana; (iv) foi submetido a três intervenções cirúrgicas (e previsivelmente
necessitará, no futuro, de uma outra cirurgia); (v) ficou com sequelas com repercussão na
sua vida quotidiana [correspondentes a um défice funcional da integridade físico-psíquica
de 3 pontos]; (vi) sofreu um grau 5 de quantum doloris e um grau 4 de dano estético, numa escala de 0 a 7, bem como uma repercussão permanente nas actividades desportivas de lazer, de grau 2, numa escala de 0 a 5; e concluindo-se pela relevância das dores físicas e psíquicas, persistentes, a implicarem uma clara diminuição da qualidade de vida do lesado, perturbando o seu bem-estar e, até, a sua vida de relação, deve ser mantido o juízo de equidade formulado pela Relação, que atribuiu ao autor o valor indemnizatório, pelos danos não patrimoniais sofridos, de €27.500”.
• O acórdão de Revista n.º 3901/10.4TJVNF.G1.S2 de 27-02-2018 31 32, considerou que
“[m]ostram-se conformes a tais critérios ou padrões os valores, de €10.000 e de €8.000,
atribuídos a título de indemnização por danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais com fundamento no seguinte quadro provado: (i) à data do acidente, o autor
tinha 10 anos de idade e era (e é) estudante; (ii) em consequência do acidente, ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, que
demanda maiores esforços no exercício da actividade habitual e demandará perda de capacidade de ganho quando ingressar no mercado de trabalho; (iii) sofreu dores aquando
do acidente e da convalescença, sendo o quantum doloris de grau 4 (numa escala progressiva de 7); (iv) a repercussão permanente das sequelas nas actividades desportivas
e de lazer corresponde ao grau 3 (numa escala progressiva de 7); (v) padeceu de incómodos e de tristeza por força do acidente, das lesões e das sequelas dele decorrentes; (vi) antes do acidente, era uma pessoa saudável, alegre e confiante”.
XLVIII. E, no intuído de conferir maior autoridade aduzido na presente alegação de resposta, mormente no que respeita ao excessivo valor pela Recorrente reclamado, veja-se, a título de exemplo, os acórdãos do STJ seguintes:
• “Ponderadas a idade do autor (35 anos), as circunstâncias em que ocorreu o acidente (sem qualquer culpa sua), a extrema gravidade das lesões sofridas por este, os dolorosos
tratamentos a que foi sujeito, a incomodidade daí resultante, o longo período dos tratamentos e as deslocações que teve que realizar para curativos e consultas, quer ao Porto quer a Viana do Castelo, as sequelas anátomo-funcionais, que se traduzem num deficit funcional de razoável grau (07 pontos) e de menor grau (01), em termos estéticos, as dores sofridas e o desgosto de, na força da vida, se ver fisicamente limitado, considera-se ajustada, equilibrada e adequada a indemnização de €20.000, a título de dano não patrimonial.” (cfr. Revista n.º 1043/12.7TBPTL.G1.S1 do dia 06-10-2016);
• Ainda, num sinistro em que o condutor de veículo segurado pela ré transportava um vidro, o qual, por força da velocidade que levava, foi projetado, vindo a atingir o autor, que se encontrava, na altura, no passeio, provocando-lhe danos, entendeu o STJ por “adequada a compensação de €35 000,00 por danos não patrimoniais a lesado de 49 anos na data da alta, que ficou a padecer de incapacidade permanente geral de 12 pontos, teve uma incapacidade temporária de duzentos e quarenta dias até à alta, sofreu dores de grau 5 numa escala de 0 a 7 e dano estético de grau 3 em idêntica escala.” (cfr. Revista n.º 313/12.9TBMAI.P1.S1 do dia 30-06-2020);
• “Em consequência de múltiplas lesões sofridas, o autor, aos 20 anos, ficou afectado física e psicologicamente -com um grau de incapacidade actual de 40%, - por a lesão provocou encurtamento de 4 cm, na perna esquerda e que pela lesão na perna direita coxeia, sente dores ao andar, não dobra a perna esquerda na totalidade, para lá das lesões permanentes que afectam os seus membros superiores -, não sendo razoável considerar que a sua menos valia física, relevante para quantificar o dano patrimonial, não seja valorada como sofrimento, pelo sentimento de inferioridade psicológica que representa alguém jovem e saudável, sendo desportista, e apreciador dos prazeres da vida, se vê com o corpo com cicatrizes em zonas visíveis e padeceu de acentuado grau de sofrimento e relevante dano estético, com sequelas psicológicas que implicam perda de auto-estima e sentimentos de inibição, levando à alteração do padrão de vida pessoal e social. Os danos não patrimoniais foram e são de acentuada magnitude, pelo que a compensação é devida, com base na equidade e que se tem como justa, deve ser fixada como é, em €45.000, uma vez que não se procede a actualização dos valores arbitrados.” (cfr. Revista n.º 2185/04.8TBOER.L1.S1 do dia 26-01-2016);
XLIX. Assim, novamente, da análise dos valores pela jurisprudência habitualmente fixados, à medida que nos vamos aproximando aos valores pela Recorrente nestes autos peticionados, deparamo-nos com realidades bem mais gravosas, quer ao nível do computo
do dano corporal propriamente dito, quer ao nível das suas implicações na esfera (para o
que aqui releva) pessoal do lesado, quer ao nível do tempo de vida em que terá que lidar
com essa sua nova condição biológica.
L. Posto isto, o valor indemnizatório de €7.500,00 julgado pelo Tribunal a quo a título do “dano não patrimonial”, respeita, como já extensamente sustentado, ao dano moral consequente do sinistro e sequela corporal avaliada e à aqui Recorrente, atendendo às suas declarações e perícias e consequente factualidade julgada por provada, tendo em consideração a afectação que em concreto tal sequela implica e sua consequente justa compensação e numa tentativa de equilíbrio com os valores jurisprudencialmente fixados
em situações análogas ou comparáveis.
LI. Assim respeitando o Meritíssimo Tribunal a quo não apenas o disposto nos artigos 607.º n.º 4 do CPC, 8º n.º 3. 483º, 496º e 562º a 564.º, todos do Código Civil.
LII. Pelo que, sempre se deverá improceder quer a alegação da Recorrente no sentido da
omissão pelo Tribunal a quo na atribuição de valor indemnizatório por efeito de dano não
patrimonial e biológico, bem como os quantum indemnizatórios ali reclamados, mantendo-se, desta feita, intocada a sentença proferida nestes autos.
LIII. Com efeito, o cálculo do dano biológico na sua vertente patrimonial quer não patrimonial, implica uma previsão, pouco segura, sobre dados verificáveis no futuro, o que aconselha a recorrer a critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer, seguindo as coisas o seu curso normal e, se não puder apurar-se o seu valor exacto, julgar segundo a equidade (art.º 566º, n.º 3 do C. Civil, Vaz Serra, RLJ 112º, 329 e 114º, 287, Dário Martins de Almeida Manual de Acidentes e Viação, 114 e Ac. do STJ de 10 /02/98, CT –STJ, ano VI, tomo I, pág. 65).
LIV. Sendo que, com o objectivo de conferir maior objectividade e tornar o mais possível justas, actuais e minimamente discrepantes as indemnizações por danos resultantes de incapacidade total ou parcial, têm sido utilizadas por grande parte da jurisprudência tabelas financeiras para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica equivalente à perda da capacidade de ganho do lesado, de tal modo que se esgote no fim da sua vida activa. Porém, como tem sido afirmado na maioria das decisões que têm adoptado as ditas tabelas financeiras, estas apenas devem ser utilizadas como instrumento auxiliar de quantificação do montante indemnizatório, devendo o julgador, recorrendo à equidade, corrigir os seus resultados sempre que os considerar desajustados relativamente ao caso concreto (v., entre outros, o Ac. do STJ de 25-06-02, CJ-STJ, Tomo II, pág. 128).
LV. Ao mesmo tempo, conforme vem sendo reiteradamente sublinhado pelo STJ 33, o juízo de equidade de que se socorrem as instâncias, na fixação de indemnização, podendo tal juízo ter por base as tabelas constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26-05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido.
LVI. Daí que o juízo prudencial 34 e casuístico deva ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (art.ºs 566.º, n.º 3, do CC, e 674.º, e 682.º, do CPC).
LVII. Valores e princípios estes aplicados pelo Meritíssimo Tribunal a quo conforme decorre expressamente explanado na sentença dos autos e aqui evidenciado.
LVIII. Assim sempre devendo o recurso da Autora ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, mantendo-se os montantes indemnizatórios ali fixados.
LIX. Mostra-se, assim, no que à quantificação dos valores indemnizatórios respeita, correcta a subsunção dos factos ao direito e igualmente adequadamente alicerçada a aplicação do direito nestes autos.
LX. Posto isto, e novamente, no que à quantificação dos valores indemnizatórios respeita, não carece a decisão proferida nos presentes autos de ser alterada, devendo os Tribunais
comuns ser considerados materialmente incompetentes para o conhecimento do mérito da causa, sempre se julgando por improcedente o recurso apresentado pelo Autor ora recorrente.».
Veio igualmente a Autora contra alegar quanto ao recurso apresentado pela ré, concluindo que:
«I. O recurso interposto deve improceder tanto na impugnação da matéria de facto assente cuja fundamentação desenvolvida pelo tribunal a quo não merece censura, bem como na aplicação do Direito.
II. Começa a recorrente por atacar a matéria de facto no que concerne ao facto provado em 13 e o facto não provado em C. para invocar uma alegada contradição com a conclusão de que a condutora do veículo seguro na R. Seguradora agiu com culpa.
III. Ora o facto do tribunal a quo não dar como provado que o embate se deu quando o veículo seguro na R. ainda estava a entrar na via e ter dado como provado que aquele já se encontrava na via que retomava não significa naturalmente que não lhe possa ser assacada qualquer responsabilidade!
IV. Para tanto o que interessa é verificar a forma como foi efectuada essa manobra e o perigo que dela resultou pois se o veículo seguro na R. entrou na via sem visibilidade (Facto Provado em 12) e foi embater no veículo terceiro então fê-lo de forma imprudente e perigosa violando pois os art.ºs 35º n.º 1 e 38º n.º 2 alínea b) do Código da Estrada.
V. É impensável que num acidente como o dos autos, em que o embate se dá precisamente após uma manobra de ultrapassagem, não fosse responsabilizado o condutor que efectua aquela manobra sem visibilidade para a frente do veículo ultrapassado.
VI. A manobra de ultrapassagem requer a maior das cautelas, ainda para mais sem se saber que veículos circulam para a frente do veículo ultrapassado.
VII. E o facto da manobra já estar concluída aquando da colisão não significa nem pode naturalmente significar, que a mesma foi realizada prudentemente ou que sobre o seu condutor não possa ser assacada responsabilidade, pois que o acidente dá-se precisamente após essa circunstância com o carro ainda em movimento.
VIII. Ademais, a ultrapassagem foi efectuada antes de um cruzamento (Facto Provado n.º 8), o que consubstancia a violação do que dispõe o art.º 41º n.º 1 alínea c) do Código da Estrada.
IX. Por outro lado pretende ainda a recorrente socorrer-se do depoimento da testemunha B... para concluir que não lhe pode ser assacada responsabilidade quando ficou provado e a mesma corroborou que após o embate ainda acelerou mais provocando o arrastamento parcial da traseira do RG, que ao invés de travar acelerou! (Vide Factos Provados n.ºs 16 e 17).
X. Por outro lado ainda a recorrente lança mão de medidas dos veículos que não se encontram nos factos provados para conclusões que terão que ser necessariamente improcedentes, tais como a distância dos intervenientes aquando do embate.
XI. O tribunal a quo concluiu e a nossa ver bem, como não podia deixar de ser, que se o veículo terceiro está à frente do veículo seguro na R., que se aquele está a sair do estacionamento em marcha atrás e aquele de trás para a frente vai colidir com o mesmo, tem que lhe ser imputada responsabilidade pois não acautelou a manobra de ultrapassagem e não regulou a velocidade de modo a evitar o embate.
XII. Com um veículo automóvel parado na via para estacionar porque é que o veículo seguro na R. vai colidir com o automóvel que saia do estacionamento à frente daquele?
XIII. É esta salvo melhor opinião a questão que tem que se fazer!
XIV. Ouvidos os depoimentos das testemunhas e da prova assente verifica-se que a condutora do veículo seguro na R. estava nervosa e ansiosa, sendo habitual estarem ali veículos estacionados o que a incomodava.
XV. Tanto que a levou a ultrapassar o veículo parado sem ter visibilidade para a frente e portanto sem saber se existiriam veículos a transitar ali como estavam!
XVI. Se a condutora do veículo seguro na R. adotasse o comportamento que lhe era legalmente imposto, tomar as devidas cautelas na ultrapassagem, certificando-se que a podia fazer em segurança e sem causar perigo para os utentes que ali transitassem, o acidente não ocorreria pois ao regressar à via e atentar na manobra de marcha atrás parava ou desviava-se!
XVII. Mas como poderia a condutora do veículo seguro na R. certificar-se que da sua manobra não resultaria perigo se a mesma iniciou aquela manobra sem visibilidade para a frente do carro? Ansiosa e nervosa!
XVIII. É completamente descabido concluir que se a condutora do veículo terceiro levantou o pé da embraiagem e colocou a mudança, pelo menos metade do carro saiu do estacionamento, bem como que por isso não viu o veículo seguro na R.
XIX. Quando foi manifesto que existia um automóvel parado precisamente para ali estacionar e que impedia a visão, tanto da condutora do veículo terceiro como da condutora do veículo seguro na R.
XX. Por conseguinte só pode improceder a impugnação de matéria de facto conduzida pela recorrente.
XXI. Sem prescindir, vem a recorrente invocar que o veículo terceiro era propriedade também da aqui A. sem qualquer suporte documental (que se impõe para prova do regime de casamento) unicamente com as declarações da A. que quando questionada disse “Acho que é comunhão de adquiridos”
XXII. Ora naturalmente que o tribunal a quo sem qualquer certidão, que podia ter sido requerida pela R., colocou nos factos não provados a alínea n) (que o veículo era compropriedade da A.).
XXIII. Termos em que improcede toda a argumentação jurídica da R. assente no facto de que a A. era comproprietária do automóvel.
XXIV. Mas sem prescindir sempre se diga que nunca a A. como ocupante veria afastado o direito de compensação pelos danos corporais mas tão somente os materiais nos termos do art.º 14º n.º 2 alínea e) do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto.
XXV. Não se tendo sequer demonstrado a alegada relação de comissão entre a condutora do veículo terceiro e a A.!
XXVI. Não obstante não ser aplicável o art.º 500º do C.C, a culpa da condutora do veículo seguro na R., mesmo parcial, sempre afastaria a presunção invocada.
XXVII. Termos em que sendo a A. ocupante de um dois veículos intervenientes e estando a responsabilidade civil inerente à circulação daqueles transferida para a R., terá sempre esta que responder pelos danos corporais sofridos pela mesma!
XXVIII. Pelo que não merece qualquer censura a sentença proferida neste segmento decisório.».

Face ao recurso subordinado veio a ré contra alegar relativamente ao mesmo, arrematando que:
«I. A privação do uso de veículo e, portanto, do exercício do direito de propriedade, consubstancia, de per si, a susceptibilidade de fazer nascer uma obrigação na esfera jurídica do terceiro que, ilicitamente, inviabilize o exercício desse direito.
II. Desta feita, a mera afirmação de utilização não faz nascer o direito a que se arroga o  Autor ora Recorrente, sendo que, a aludida susceptibilidade apenas se confirmará produzida com a verificação e avaliação dos parâmetros de necessidade, oportunidade e adequação, os quais têm que ser invocados e comprovados pelo titular do respectivo direito.
III. Parâmetros estes que o Autor não logrou por qualquer meio provar, nomeadamente, qual a actividade a que o veículo se encontraria, porventura, afecto, assim como a quantidade e frequência do uso cometido ao mesmo e, ainda, o grau de necessidade inerente à sua utilização.
IV. “A privação injustificada do uso de uma coisa pode constituir um ilícito susceptível de gerar obrigação de indemnizar, uma vez que, na normalidade dos casos, impedirá o respectivo proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade, impedindo-o de usar a coisa, de fruir as utilidades que ela normalmente lhe proporcionaria e de dela dispor como melhor lhe aprouver, violando o seu direito de propriedade (…). Competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário que o autor alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante” (cfr. o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proferido no âmbito do processo n.º 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt. (destaque e sublinhado nossos)
V. No mesmo sentido, afirmam os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, no douto acórdão proferido em 03.05.2011, no âmbito do processo n.º 2618/08.6TBOVR.P1 (disponível em www.dgsi.pt) que “[não] é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efectivo – de proceder à sua utilização. A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto”.
VI. “Como refere Maria da Graça Trigo [In Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 60], em paralelo com o aprofundamento do problema surgiu uma posição intermédia que parte da exclusão da reparação do dano em
abstrato mas que, num segundo nível, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção. Ao lesado pede-se apenas a prova que utiliza
habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respectiva privação, derivem danos efetivos. Esta posição é hoje tendencialmente maioritária na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [A título de exemplo, os Acórdãos de 23.01.2020, Proc. n.º 279/17 (Rel. Nuno Pinto Oliveira), e de 28.01.2021, Proc. n.º 14232/17 (Rel. Rosa Tching), contendo indicações jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema, acessíveis em www.dgsi.pt]” – Cfr. acórdão do STJ do dia 17.06.2021, proferido no âmbito do processo n.º 879/17.7T8EVR.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt, sem destaque no original.
VII. Vide, no mesmo sentido, PAULO MOTA PINTO, Dano da privação do uso, in Estudos de direito do consumidor, n.º 8 (2006-2007), pág. 229-273.
VIII. Concomitantemente, porque a indemnização dos danos patrimoniais não pode ser determinada nem computada em abstracto, dependendo, incontornavelmente, da verificação de uma lesão concreta e da sua avaliação pecuniária.
IX. E, avaliação essa que, novamente, se não encontra comprovada ou de qualquer forma fundamentada pelo Autor ora Recorrente.
X. Nessa conformidade, e conforme resulta da douta sentença dos autos, será inexistente
qualquer dano patrimonial de privação de uso relativo à paralisação de um veículo que não é objecto de actos concretos de gozo e fruição pelo titular do direito de propriedade que incide sobre o mesmo bem.
XI. Ad cautelam, ainda que assim se não entenda, o que tão-somente por mero dever de patrocínio se alega sem, contudo, conceber nem conceder, certo é também que, o valor diário peticionado pelo Auto ora Recorrente para efeitos compensatórios da privação do seu direito sobre o veículo é arbitrário e inaceitável, não podendo, em caso algum, a Ré/Recorrida ser condenada em valor superior a €40,00 (quarenta euros) [50% (€5,00*16dias)].
XII. Daí que o juízo prudencial, casuístico e actualista supra citado deva ser mantido, só assim se não abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade e equidade.
XIII. Valores e princípios estes aplicados pelo Meritíssimo Tribunal a quo conforme decorre expressamente explanado na dota sentença dos autos e aqui evidenciado.
XIV. Assim sempre devendo o recurso do Autor ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, mantendo-se intocados os montantes indemnizatórios ali fixados.
XV. Mostra-se, assim, no que ao caso em apreço respeita, correcta a subsunção dos factos ao direito e, outrossim, adequadamente alicerçada a aplicação do direito nestes autos.
XVI. Posto isto, e novamente, no que ao alegado de privação do uso respeita, não carece douta decisão proferida nos presentes autos de ser alterada, sempre se julgando improcedente o recurso apresentado pelo Autor ora Recorrente.».
Os recursos foram admitidos no tribunal a quo, sem reservas quantos aos recursos apresentados pela autora C… da sentença proferida nos autos, bem como o recurso interposto pela ré seguradora G Seguros, S.A., dizendo-se, porém, quanto a este que “por ter sido apresentado no seguimento do recurso interposto pela autora e no prazo previsto no art.º 633.º, n.º 2, do CPC, se entende constituir recurso subordinado”.
A sentença foi notificada às partes a 3/08/2022. A autora apresentou recurso a 14/09/2022, tendo a ré apresentado o seu recurso a 14/10/2022, indicando que recorre da sentença sem aludir ao seu carácter subordinado e no recurso impugna a matéria de facto. Com data de 8/11/2022, o Autor apresentou recurso subordinado. Com efeito, o recurso apresentado pela ré apenas pode ser considerado subordinado ao apresentado pela Autora, pois foi interposto quando já havia decorrido o prazo de recurso dito principal, estando em prazo quanto à possibilidade de ser considerado subordinado nos termos do art.º 633º nº 2 do Código de Processo Civil, dado que foi apresentado nos 30 dias subsequentes à data da apresentação do recurso da Autora. Acresce que considerando o princípio da igualdade das partes apenas na sequência do recurso apresentado pela ré, ainda que seja considerado subordinado, é que ao Autor se considera a possibilidade de recorrer, subordinadamente, ainda que o decaimento seja inferior a metade da alçada do tribunal, face ao teor do nº 5 do art.º 633º do Código de Processo Civil. Assim, ao abrigo do disposto no art.º 633º nº 2 e 5 do Código de Processo Civil, admite-se igualmente o recurso subordinado do Autor.
Assim, colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de alterar os factos contidos nos pontos 4, 9., 10 e 13 dos factos provados e dar como provados os factos contidos em D. e N. dos factos não provados;
- É de considerar a inexistência de comportamento ilícito ou culpa imputável à condutora do veículo seguro na ré, mormente no tocante à velocidade desajustada alguma lhe podendo ser assacada;
- Concluir que o acidente se verificou devido à conduta negligente, temerária, imprudente e ilegal da condutora do RG e, consequentemente, por culpa única e exclusiva da mesma, ou ainda pela existência de uma situação de comissão que implica igualmente a presunção de culpa, e sendo o veículo conduzido no interesse dos AA. não responde a ré pelos danos quer da condutora (comissária), quer dos comitentes AA.;
- É de considerar o valor de 20.000€ a título de dano biológico devido à autora, de 20.000€devido a título de danos não patrimoniais e de 15.694€relativamente a dano patrimonial futuro, mantendo-se o demais decidido;
- Relativamente ao Autor é de considerar o dano relativo à privação do uso do veículo no período de imobilização do mesmo (correspondente a 16 dias) na sequência do acidente.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. No dia 11-09-2019, pelas 13:00 horas, na Estrada Consiglieri Pedroso, junto ao banco BBVA, junto do cruzamento com a Rua Alfredo Inácio Ramos da Silva, em Queluz de Baixo, concelho de Oeiras, ocorreu um acidente de viação.
2. Foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, de marca e modelo Toyota Aygo, com a matrícula ...(“RG”) e o veículo ligeiro de passageiros, de marca e modelo Ford Fiesta, com a matrícula … (“ZN”).
3. A responsabilidade civil inerente à circulação de ambos os veículos estava transferida para a actual ré S…, S.A., respectivamente: - quanto ao veículo de matrícula RG através da apólice n.º… da então Tranquilidade, na modalidade de responsabilidade civil obrigatória e cobertura de danos próprios, nos termos do doc. n.º 2 junto com a contestação; - quanto ao veículo de matrícula ZN através da apólice n.º … da então Logo, na modalidade de responsabilidade civil obrigatória, nos termos do doc. n.º 1 junto com a contestação.
4. O veículo de matrícula RG era propriedade do autor e, nesse momento, era conduzido por B...que transportava os autores, seus pais, no interior do veículo, encontrando-se a autora sentada no lugar ao lado do condutor e o autor no banco de trás.
5. O veículo ZN era propriedade de V… e, na altura, era conduzido por J….
6. A faixa de rodagem no local é constituída por duas vias, uma para cada sentido, sem separador central.
7. Após o limite da faixa, do lado direito do sentido sul/norte, existe local para o estacionamento de automóveis enviesado ou em espinha em relação ao eixo da via.
8. Antes do local do acidente existe um cruzamento da Estrada Consiglieri Pedroso com a rua Prof. Dr. Jorge Mineiro e com a rua Alfredo Inácio Ramos da Silva.
9. O veículo de matrícula RG encontrava-se estacionado em frente ao BBVA, num dos lugares de estacionamento referidos em 7., tendo a condutora ligado o carro com o propósito de sair do lugar de estacionamento, tendo acionado a mudança de marcha-atrás e acendido-se a respectiva luz traseira, e aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás.
10. Atrás dela, um pouco mais atrás na Estrada Consiglieri Pedroso, no sentido sul/norte, encontrava-se parado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula … (“XG”), conduzido por R... , pretendendo estacionar onde o RG se encontrava.
11. Estando o veículo de matrícula XG parado à espera que o veículo de matrícula RG saísse do estacionamento e com espaço suficiente para tanto, a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste, com o propósito de seguir em sentido contrário, ou seja, no sentido norte/sul transpondo o eixo daquela via de trânsito.
12. Nesse momento, a condutora do veículo de matrícula ZN, que circulava na mesma via do XG e atrás deste, no sentido sul/norte encontrava-se a efectuar a manobra de ultrapassagem ao XG pela esquerda, sem que tivesse visibilidade dos veículos à frente do XG por este incluir uma caixa de transporte de mercadorias que impedia a visão.
13. O embate entre os veículos referidos em 2., deu-se quando a condutora do veículo RG estava a fazer a manobra de marcha atrás, já com a traseira a ocupar a via no sentido sul/norte mas sem transpor o eixo da via, e tendo a condutora do veículo de matrícula ZN ultrapassado já pela esquerda o veículo de matrícula XG que estava parado, e entrado, de novo, à direita na sua mão e sentido de marcha.
14. No momento do embate, ambos os veículos encontravam-se em andamento e não conseguiram imobilizar a sua marcha por forma a evitar o embate.
15. A colisão deu-se entre a frente, frente direita do veículo de matrícula ZN e a traseira, traseira direita, do veículo de matrícula RG.
16. Após o embate, o veículo de matrícula ZN manteve a aceleração e provocou o arrastamento parcial da traseira do veículo de matrícula RG, imobilizando-se os veículos um pouco adiante do local do embate.
17. A condutora do veículo de matrícula ZN saiu do automóvel e mostrava-se muito nervosa, dizendo que ao invés de travar acelerou sem querer, dizendo ainda que precisava dos seus comprimidos.
18. A condutora do ZN sofre, a nível psiquiátrico, de transtornos de ansiedade.
19. Em consequência do embate, e atento o movimento pendular que se verificou, a autora que viajava no veículo de matrícula RG, embateu com o lado direito da face no vidro lateral direito do veículo, ficando ferida.
20. Ao local deslocou-se a PSP, bem os bombeiros que assistiram a autora e a transportaram de emergência para o Hospital.
21. A autora deu entrada nas urgências do Hospital Dr. Fernando Fonseca, pelo menos, por traumatismo da cabeça/face.
22. Apresentava volumoso hematoma frontal e periorbitário direito, tendo ocorrido o deslocamento parcial da base do vítreo do olho direito com tracção retiniana periférica no sector supero-nasal e co-derrame de sangue na cavidade vítrea.
23. Realizou exames complementares de diagnóstico como TAC cranioencefálico que confirmou o hematoma epicraniano frontotemporal direito.
24. Foi medicada e teve alta com recomendação para continuar a ser seguida, tendo logo no dia seguinte ido a uma consulta de neurocirurgia no Hospital da Luz.
25. Foi acompanhada em oftalmologia pela Dra. Marta Castro Araújo, de quem já era paciente há vários anos por astigmatismo, em consultas, pelo menos uma vez por ano.
26. A autora foi consultada inicialmente em 27-09-2019, tendo em 01-10-2019 sido elaborado relatório médico pela médica assistente que concluiu que a autora não estava livre de perigo de rasgadura retiniana, pelo que teve de ficar em repouso ocular e físico. 27. Em 10-02-2020 foi elaborado novo relatório médico pela médica assistente onde esta declara o atingimento da estabilização, mas com risco vitalício de aparecimento de rasgaduras periféricas da retina e glaucoma de ângulo fechado, devendo manter acompanhamento médico em oftalmologia para vigilância continuada que se impõe.
28. A autora teve outras consultas com a sua médica assistente em consequência da lesão provocada pelo acidente e mantém-se em seguimento em oftalmologia.
29. Realizada perícia médico-legal, resulta do respectivo relatório, com referencia à data de 08- 01-2021, que a autora apresentava queixas, a nível funcional, relativas a epífora durante observação de computador ou televisão, visão turva ocasional e sensação de cansaço visual, bem como queixas, a nível da vida profissional, relativas a epífora durante utilização de computador e sensação de maior cansaço visual, com necessidade de pausas principalmente no período da tarde.
30. Resulta, ainda, da discussão e das conclusões médico-legais resultantes da perícia, com maior relevo que: - a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 10-02-2020; - o défice funcional temporário total, se terá situado no dia 11-09-2019, sendo assim fixável em 1 dia, correspondendo ao período de internamento e/ou de repouso absoluto; - o défice funcional temporário parcial, se terá situado entre 12-09-2019 e 10-02-2020, sendo assim fixável num período 152 dias, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações; - a repercussão temporária na actividade profissional total, se terá situado entre 11-09-2019 e 25-10-2019, sendo assim fixável num período total de 45 dias, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros; - a repercussão temporária na actividade profissional parcial, se terá situado entre 26-10- 2019 e 10-02-2020, sendo assim fixável num período total de 108 dias, correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas atividades, ainda que com limitações; - o quantum doloris, fixável no grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes e o tipo de traumatismo; - o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, com referência à perturbação da visão por flutuação da estrutura membranosa da base do vítreo, por analogia a escotoma, fixável em 3 pontos; - é de perspetivar a existência de dano futuro, com referência ao aparecimento de rasgaduras periféricas na retina e de glaucoma de ângulo fechado; - a repercussão permanente na actividade profissional, correspondente ao rebate das sequelas no exercício da actividade profissional habitual, no caso as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares, pela perturbação da visão associada a sensação de cansaço visual; - dano estético permanente, é fixável no grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta a tumefação da região frontal; - dependências permanentes e ajudas, necessitará de uma consulta anual de oftalmologia para vigilância do aparecimento de rasgaduras periféricas na retina e de glaucoma de ângulo fechado.
31. A autora era, na altura do acidente, trabalhadora dependente da True Sparkle, Unipessoal Lda., com a categoria profissional de técnica de marketing.
32. Auferia uma retribuição mensal base de €1.190,00, acrescida de subsídio de alimentação, correspondente ao valor líquido de cerca de €1.000,00.
33. A autora declarou para efeitos de IRS, em declaração conjunta apresentada com o autor, no ano de 2018, rendimentos do trabalho dependente no valor bruto de €16.093,00. 34. A autora na data do acidente tinha 48 anos de idade.
35. A autora com consulta de neurocirurgia no Hospital da Luz despendeu €93,00.
36. A autora com consultas de oftalmologia despendeu a quantia de €120,00.
37. Com o embate da face no vidro a autora danificou os óculos que trazia, tendo sido necessário substituir a armação, conseguindo, contudo, aproveitar as lentes.
38. O autor accionou o seguro automóvel celebrado com então Tranquilidade, que incluía a cobertura de danos próprios de colisão, tendo esta assumido a responsabilidade pela reparação mas descontando a respectiva franquia contratual no valor de €250,00.
39. Em consequência do acidente, o veículo de matrícula RG ficou impossibilitado de circular.
40. Nos termos da peritagem efectuada ao veículo no dia 16-09-2019 foi indicado como data de início da reparação o dia 23-09-2019 e calculados os dias necessários à reparação em 4 dias, o que perfaz o tempo total de imobilização estimado de 16 dias.
41. Nos dias pós-acidente sentia dores e incómodos, necessitando de repouso.
42. A autora, na data da audiência de julgamento, no seu campo de visão apresentava uma linha longitudinal, como se fosse uma cobra, em permanência no olho direito.
43. A autora, se fechar o olho esquerdo, tem uma visão do olho direito turva que desaparece com os dois olhos abertos.
44. A autora, no âmbito da sua actividade profissional, não consegue estar muito tempo seguido ao computador e tem necessidade de fazer pausas por sentir uma impressão no olho direito e ficar com dores de cabeça.
45. A condutora do veículo RG, na data do acidente, coabitava com os autores, seus pais e, tendo 20 anos de idade, vivia na dependência destes.
46. Na altura do acidente, o autor, seu proprietário, entregou a condução do veículo à filha para que o conduzisse num percurso curto e praticasse a condução, pois esta tinha gosto nisso.
Foram considerados como não provados os seguintes factos:
A. O condutor do veículo de matrícula XG acionou o pisca direito para estacionar.
B. A condutora do veículo de matrícula RG iniciou cautelosamente a manobra de marcha atrás de forma a entrar na via onde estava o XG, e acionou o pisca.
C. O embate deu-se quando o veículo de matrícula ZN ainda se encontrava a regressar à via.
D. No momento do embate, a traseira do veículo de matrícula RG é colocada, na horizontal, dentro da mesma via e em sentido contrário ao ali imposto.
E. Foi o veículo de matrícula ZN que ao ultrapassar um veículo que estava à sua frente que foi embater no veículo de matrícula RG.
F. A condutora do veículo de matrícula ZN apresenta transtornos obsessivo-compulsivo e é medicada diariamente
G. A autora esteve sem prestar serviço durante 45 dias e não foi remunerada durante esse período, tendo deixado de auferir €2.185,24.
H. A autora durante o restante período de incapacidade temporária viu-se ainda obrigada a colocar 10 dias de férias, deixando de auferir €485,61.
I. A autora vai necessitar de acompanhamento vitalício em oftalmologia, com pelo menos duas consultas anuais, tendo em consideração o valor de cada consulta da especialidade em 40,00€e com tendência natural para evoluir ao longo dos anos.
J. A autora gastou em óculos a quantia de €750,00.
K. O veículo de matrícula RG necessitou de 76 dias para ser reparado.
L. O veículo de matrícula RG era utilizado pelos autores para se fazerem deslocar diariamente e não fosse o acidente continuariam a utilizar o veículo.
M. A autora no momento do embate não usava cinto de segurança. N. O veículo de matrícula RG é compropriedade da autora ou integra o património comum do casal composto pelos autores.
*
Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No âmbito da impugnação da matéria de facto estabelece o art.º 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
Salienta-se ainda que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.» (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art.º 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Acresce que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
 Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal invocados pela ré no seu recurso, a saber, alteração dos pontos 4, 9, 10 e 13 e dos factos provados, aditamento do ponto 12.1 e ainda a resposta positiva aos factos contidos em D. e N. dos factos não provados.
A ré na pretendida alteração não o faz de forma criteriosa ( o que já ocorre na classificação do recurso, pois sem cuidar que o prazo já havia decorrido na data da apresentação do mesmo, em momento algum indica que este é subordinado, circunstância, porém, considerado quer no Tribunal a quo, quer neste Tribunal), pois nas suas conclusões I. a XXXVII depois de transcrever os depoimentos de J...e de B...e discorrer sobre a motivação a ter em conta, arremata que deve “ser alterada a matéria de facto julgada por provada e não provada”. De seguida prossegue nas conclusões XXXVIII a XLIV invocando os depoimentos de C… e B..., concluindo, de novo, apenas com “neste conspecto deverá a matéria de facto julgada por provada e não provada”. Por fim, é na sua conclusão XLV que alude às alterações pretendidas nos factos provados, com sublinhado duplo quanto a essas alterações, a saber:
4. O veículo de matrícula RG era propriedade do autor e compropriedade da autora ou integra o património comum do casal composto pelos autores e, nesse momento, era conduzido por B...que transportava os autores, seus pais, no interior do veículo, encontrando-se a autora sentada no lugar ao lado do condutor e o autor no banco de trás.
9. O veículo de matrícula RG encontrava-se estacionado em frente ao BBVA, num dos lugares no terceiro ou quarto lugar de estacionamento referidos em 7., a contar da esquerda para a direita, tendo a condutora ligado o carro com o propósito de sair do lugar de estacionamento, tendo accionado a mudança de marcha-atrás e acendendo-se a respectiva luz traseira, e aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás. rodado o volante e levantado o pé da embraiagem.
10. Atrás dela, a cerca de cinco metros um pouco mais atrás na Estrada Consiglieri Pedroso, no sentido sul/norte, encontrava-se parado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula -XG- (“XG”), conduzido por R…, pretendendo estacionar onde o RG se encontrava.
11. Estando o veículo de matrícula XG parado à espera que o veículo de matrícula RG saísse do estacionamento e com espaço suficiente para tanto, a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste, com o propósito de seguir em sentido contrário, ou seja, no sentido norte/sul transpondo o eixo daquela via de trânsito.
12.1. Assim sendo, no momento do embate, a traseira do veículo de matrícula RG é colocada, na horizontal, dentro da mesma via e em sentido contrário ao ali imposto. (…)
13. O embate entre os veículos referidos em 2., deu-se quando a condutora do veículo RG estava a fazer a manobra de marcha atrás, já com a traseira a ocupar a via no sentido sul/norte mas sem transpor o eixo da via, e tendo a condutora do veículo de matrícula ZN ultrapassado já pela esquerda o veículo de matrícula XG que estava parado, e entrado, de novo, à direita na sua mão e sentido de marcha e, acto contínuo, o veículo RG saiu do estacionamento. (…).
Não provados:
D. No momento do embate, a traseira do veículo de matrícula RG é colocada, na horizontal, dentro da mesma via e em sentido contrário ao ali imposto.
N. O veículo de matrícula RG é compropriedade da autora ou integra o património comum do casal composto pelos autores.
Na motivação o Tribunal recorrido, no que concerne aos factos atinentes ao sinistro ocorrido, fundamenta tais respostas no seguinte: «A convicção do tribunal quanto à factualidadade provada assentou, antes de mais, na confissão por parte da ré, em sede de contestação, de parte dos factos a que se refere a dinâmica do acidente e à transferência de responsabilidade para si através dos contratos de seguro celebrados em relação a cada um dos veículos. Igualmente com efeitos confessórios, foi valorado o depoimento de parte da autora na parte em que reconheceu parte da factualidade alegada na contestação que lhe era desfavorável, nomeadamente, a circunstância da condutora do veículo de matrícula RG, filha dos autores, encontrar-se, na altura do acidente, a viver com os autores e ser sua dependente, sendo certo que resultou igualmente das declarações prestadas por esta o circunstancialismo em que o veículo foi cedido pelo autor para que a filha o conduzisse na altura do acidente, servindo tal para concretizar o que de forma conclusiva foi alegado a respeito da relação de comissão. (…). No mais, assumiu relevância, tanto para efeitos da compreensão do circunstancialismo relativo ao acidente como a respeito das consequências a nível da assistência médica e despesas incorridas pela autora e demais factualidade relativa à reparação do veículo, a diversa documentação junta aos autos, em termos que melhor se concretizarão infra. Já a prova testemunhal, produzida em diversas sessões, foi valorada com alguma reserva no que se refere à dinâmica do acidente por ter sido, nomeadamente, os depoimentos das intervenientes no acidente B...e JRS, e o relato das testemunhas oculares, como a própria autora, o condutor do veículo de mercadorias RCP e da transeunte SF, em diversos aspectos contraditória e incompatível nas diversas versões apresentadas, baseando-se mais o tribunal nos elementos objectivos e nos factos que não se mostraram controvertidos. (…) tendo os restantes depoimentos prestados por PJA, que procedeu à reparação do veículo, e HO, gestor de sinistros da ré, mostrado-se pouco relevantes por confusos ou não terem conhecimento directo dos factos. (…)procedendo oficiosamente ao aditamento de factos instrumentais que resultaram da instrução da causa, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, al. a), do CPC, como seja, as características do veículo que se encontrava estacionado por auxiliar na compreensão das circunstâncias do acidente, bem como o facto de ambos os veículos intervenientes no acidente encontrarem-se em andamento aquando do embate.».
Com efeito, todas as alterações almejadas e relativas ao acidente propriamente dito, mesmo considerando a única prova transcrita para o efeito pela recorrente (depoimentos das condutoras de cada veículo interveniente directo na ocorrência do acidente), sem cuidar a que se alude quando refere “conjugado com a documentação dos autos” (cl. XII) ainda que se aluda às “medições realizadas pela autoridade policial” ( cl. XXX) no que parece aludir à participação do acidente junta aos autos, entendemos que toda a percepção da prova produzida tem de ter como pressupostos que ambos os veículos estavam em andamento, aliás, a condutora do veículo seguro na ré até diz que acelerou – ponto 16 e 17 – o que ocorreu confessadamente logo após o embate, mas das regras de experiência resulta que tal terá acontecido inclusive com a percepção que o embate iria ocorrer.
Ora, percepcionados os depoimentos bem como tudo o constante do auto de participação do acidente, no qual constam igualmente as declarações das condutoras, da testemunha R… e da testemunha S…, somos em corroborar a percepção do tribunal no que diz respeito ao indeferimento no tocante ás alterações dos pontos 9., 10., aditamento 12.1 e 13., quando alude que:« Em concreto, e começando pela dinâmica do acidente (v.g. factos provados n.º 1, 2, 4 a 17 e factos não provados A a E e M), atendeu o tribunal, para lá da já mencionada confissão parcial pela ré no seu articulado, à participação de acidente elaborada pela PSP (sem prejuízo de se ter apurado não ser o croqui totalmente fidedigno do local do acidente, o que foi suprido com a consulta na audiência via internet da visualização online do local). Relevaram, ainda, a declaração amigável subscrita pelas intervenientes no acidente, e, em especial, as fotografias tiradas aos veículos no local após o acidente. Estes elementos ilustram e comprovam as zonas do embate em cada um dos veículos e que se entendem reveladoras da posição dos veículos aquando do embate e respectiva dinâmica e justificação racional do contributo de cada uma das condutoras para o acidente, ainda que se tenha demonstrado ter havido um arrastamento do local por o veículo de matrícula ZN ter mantido a aceleração, devido à situação de choque em que entrou a sua condutora após o embate. Assim, ponderando o sentido em que cada um dos veículos se movia e a circunstância do embate se ter dado na parte traseira direita do veículo de matricula RG com a parte frontal direita do veículo de matrícula ZN, encontrando-se ambos ainda do lado direito da via, no sentido sul/norte, o local provável do embate e as posições em que cada um dos veículos se encontrava, atenta as regras de experiência e leis físicas relativas às movimentação dos corpos, conclui-se ter o embate sido simultâneo, ou seja, de ambos os veículos um no outro, admitindo ambas as condutoras que ainda se encontravam em movimento e que não conseguiram evitar o embate. Nesse sentido, do conjunto da prova produzida, concluiu o tribunal que, ambas as condutoras dos veículos intervenientes se encontravam a executar manobras que implicavam algum risco, nomeadamente, a manobra de marcha atrás para saída do estacionamento no caso do veículo de matrícula RG e de conclusão de ultrapassagem e retorno à via de trânsito no caso do veículo de matrícula ZN, sem que as condutoras tenham conseguido fazer tudo o que estavam obrigadas para evitar o embate, até por só muito em cima do acontecimento se terem apercebido da presença um do outro, para o que contribuiu a presença do veiculo de mercadorias que se encontrava na mesma via e que condicionava a visibilidade. Assim, ainda que as versões apresentadas pelas testemunhas tenham sido contraditórias, nomeadamente, quanto a terem sido accionados os piscas, a respeito da velocidade a que cada um dos veículos circulava ou quanto à forma de realização da manobra de ultrapassagem – tendo, nomeadamente, o depoimento da testemunha S… sido dissonante do depoimento da testemunha R…, inclusive quanto à presença deste ao volante do veículo de mercadorias –, para além das próprias condutoras dissentirem quanto à respectiva actuação ter determinado o embate, entendeu o tribunal ser possível concluir, com base na ponderação conjugada de toda a prova, pelo essencial do circunstancialismo em que ocorreu o acidente. Conclui-se, pois, que, atentos os referidos elementos de prova, se deverá entender, por um lado, que a condutora do veículo de matrícula RG, no caso a testemunha B..., efectuou a manobra de saída do estacionamento em marcha atrás sem acautelar devidamente que podia prosseguir com a sua realização (sendo, no caso, indiferente para o embate a circunstância de pretender entrar no sentido contrário, pois o embate deu-se antes de transpor o eixo da via), e, por outro, que apesar da condutora do veículo de matrícula ZN, no caso a testemunha J...(que devido à situação psicológica vivida já não recordava com segurança a situação), já ter praticamente retomado a sua mão de trânsito no seguimento da ultrapassagem, não conseguiu evitar o embate com o veículo que se encontrava à sua frente, presumivelmente por a manobra em causa e a forma como a realizou, acompanhada com a irritabilidade decorrente do veículo de mercadorias estar estacionado em segunda fila, ter sido efectuada a uma velocidade que não lhe permitiu antecipar a necessidade de evitar o embate. (…)».
Com efeito, mesmo no que diz respeito ás medições constantes da participação e todo o argumentário da recorrente, manifestamente o local do acidente descrito na participação não coincide com o real, pelo que não pode o mesmo servir para se considerar quer o posicionamento dos veículos, quer todas as medições em concreto. Nem do depoimento da testemunha B... resulta tal facto, pois a própria logo após o acidente, relativamente ao facto de já se encontrar na sua faixa de rodagem no momento do embate acabou por referir que “a entrar na minha via”, o que mais indicia que estaria a finalizar a ultrapassagem do tal veículo parado e não que já seguia completamente na sua via.
Por outro lado, haverá que considerar que os aditamentos aos factos provados nos termos pretendidos nem sequer são precisos, nem resultam da prova enunciada e transcrita, nomeadamente face à falta de fidedignidade da participação levada a cabo pela entidade policial quanto ao local preciso e característico do acidente. Analisando com mais precisão pretende a recorrente que se considere no ponto 9. que o estacionamento do veículo RG estava “no terceiro ou quarto lugar” e ainda “a contar da esquerda para a direita”, pormenores de todo irrelevantes e que não resultam da prova, contendo os factos provados a matéria relevante sobre esta questão, nomeadamente o sentido que cada veículo seguia ou pretendia seguir.
O mesmo ocorre com o aditamento pretendido em 10., ou seja, o “a cerca de cinco metros”, tal não pode ter por base o croqui da participação, nem pode resultar apenas do depoimento da condutora do veículo ZN, face ao supra aludido. Acresce que o acréscimo pretendido em 12.1 não resulta evidente, como bem se fundamenta na sentença sob recurso e o provado em 13. Quanto ao aditamento no ponto 13. no sentido de após a transcrição já constante de tal ponto se acrescentar “e, acto contínuo, o veículo RG saiu do estacionamento”, neutraliza todo o mais constante de tal facto, nem resulta da prova produzida no seu conjunto. Donde, improcedem as alterações quanto ao acidente e sua dinâmica.
Resta aferir das alterações do ponto 4. e da alínea N. dos factos não provados. Além do supra aludido quanto à matéria confessória da Autora, o Tribunal a quo fundamenta tal consideração factual no seguinte:«(…) em relação à restante matéria de facto provada e não provada, como se referiu inicialmente, com base no depoimento da própria autora e do depoimento da sua filha B..., ficou provada a factualidade relativa à dependência desta dos autores seus pais e a coabitarem à época, bem como as circunstâncias em que nesse dia conduzia o veículo, por o autor o ter confiado para que, depois do almoço, praticasse a condução pois tinha habilitação há pouco tempo (cfr. factos provados n.º 45 e 46). No entanto, ainda a respeito desta questão jurídica, apesar de resultar da cópia do documento único automóvel que o veículo se encontra registado em nome do autor, não foi produzida prova que os autores, ainda que casados, tenham adquirido o veículo na constância do casamento ou do respectivo regime de bens, pelo que não pode o tribunal dar como provado, sequer por presunção, o sustentado pela ré na contestação a este respeito (cfr. facto não provado N). Por tudo o exposto, deu o tribunal como provada e não provada a matéria de facto acima consignada.».
Ouvida a Autora é insofismável que a mesma nas suas declarações acabou por aludir a um dos regimes de bens do casamento, mas apenas enunciando que acho “que é de adquiridos”, confirmando que o veículo já foi adquirido na constância do matrimónio, pois o veículo nos termos constantes da participação alude-se que será do ano de 2016, estando os AA. casados entre si há cerca de 25 anos, no dizer da A. Porém, perguntado se o marido era o dono do carro a A. afirmou que “sim”, donde, numa matéria tão relevante, nomeadamente para a ré, face a um dos contratos de seguro que se discute nesta acção, não nos parece que a A. tenha confessado quer o regime de bens, quer a natureza de bem comum ou próprio do veículo. Aliás tal ambiguidade quanto à propriedade do veículo resulta desde logo das menções da apelante na pretendida alteração, quer do ponto 4. ,quer da prova dos factos contidos em N. Pois, não pretende a apelante que se considere o bem comum, ou que se considere como integrando o património comum do casal, mas sim que se considere este ou a “compropriedade”, sendo que esta é própria do regime de separação de bens e relativa a bens adquiridos por ambos, terminologia jurídica que não é despicienda quando invocada pelo mandatário da ré.   
Deste modo, também aqui subscrevemos a fundamentação contida na sentença a qual não nos merece qualquer reparo, mantendo inalterados os factos tal como foram considerados na 1ª instância e, consequentemente, declara-se improcedente o recurso subordinado da ré, nesta parte.
*
III. O Direito:
Do recurso da ré
Iniciaremos a nossa abordagem na apreciação do recurso (subordinado) da ré, dado a mesma sustentar a sua absolvição dos pedidos, pelo que constitui pressuposto lógico na abordagem da indemnização pelos danos e cujo conhecimento em sentido positivo levaria à inutilidade do demais objecto de recurso pelos AA., estes autonomamente e reportado aos danos ou valor destes.
No âmbito do recurso a pretensão da ré, além da alteração dos factos a subsumir ao direito, era ainda relativa à ilicitude e culpa na ocorrência do acidente, a qual estaria em discussão desde que fosse obtido ganho recursório quanto aos factos.
Inexistindo a almejada alteração no tocante aos factos relativos à forma como decorreu o acidente e, logo, na verificação do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, somos em concordar com a sentença que depois de elencar os pressupostos da responsabilidade civil considerando o art.º 483º do CC, expõe que: «Em particular, no domínio da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, tem entendido uniformemente a jurisprudência que a culpa traduz-se, por regra, na violação de um dever objectivo de cuidado (actuação negligente ou mera culpa), que se consubstancia na violação de normas (ou de uma norma) do Código da Estrada (cfr. sumário do acórdão do STJ de 13-09-2018, Revista n.º 7391/13.1TBVNG.P1.S1, disponível em www.stj.pt).
Com efeito, “como tem vindo a ser correntemente considerado, nomeadamente pela jurisprudência do STJ, no domínio da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a prova da inobservância das normas estradais constitui, à luz das regras da experiência comum, prova de primeira aparência no sentido da culpa do infrator, a quem caberá então descaracterizá-la em sede de contraprova.” (cfr. acórdão do STJ de 02-06-2016, Revista n.º 3987/10.1TBVFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
A infracção destas regras e as consequências de que daí derivam em termos de apuramento da responsabilidade pela verificação dos acidentes de viação podem ser concorrenciais, cabendo ao julgador formular um juízo decisório a respeito da imputação exclusiva a algum dos intervenientes ou concorrencial em relação aos diversos intervenientes que contribuíram para esse desfecho, devendo, nesse caso, definir a medida ou a proporção da actuação de cada um dos intervenientes para o evento ilícito e culposo e para as suas consequências danosas (ainda que tais dimensões ou juízos nem sempre coincidam).
No caso presente, em face das versões parcialmente contraditórias a respeito da factualidade relativa à dinâmica do acidente, e em especial, quanto à imputação da sua responsabilidade a cada uma das condutoras dos veículos ligeiros que embateram, considerou o tribunal demonstrado que, nas circunstâncias de tempo e lugar que constam da matéria de facto provada e que não foram impugnadas (cfr. factos provados n.º 1, 2, 6, 7, 8), era o veículo interveniente no acidente de matrícula RG, propriedade do autor, na altura, conduzido por B..., filha dos autores, que os transportava no interior do veiculo (cfr. facto provado n.º 4, atendendo a ter a ré questionado que fosse esta a condutora). No mais, ficou provado que, imediatamente antes do acidente, o veículo de matrícula RG encontrava-se estacionado em frente ao banco BBVA, num dos lugares de estacionamento enviesados existente na Estrada Consiglieri Pedroso, tendo a condutora ligado o carro com o propósito de sair do lugar de estacionamento, accionado a mudança de marcha-atrás, acendendo-se a respectiva luz traseira, enquanto aguardava uma oportunidade para dali sair em marcha atrás (cfr. facto provado n.º 9).
Nessa altura, atrás dela, um pouco mais atrás na Estrada Consiglieri Pedroso, no sentido sul/norte, encontrava-se parado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula XG, que pretendia estacionar onde o RG se encontrava (cfr. facto provado n.º 10). Seguiu-se que, estando o veículo de matrícula XG parado à espera que o veículo de matrícula RG saísse do estacionamento e com espaço suficiente para tanto, a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste, com o propósito de seguir em sentido contrário, ou seja, no sentido norte/sul transpondo o eixo daquela via de trânsito (cfr. facto provado n.º 11). Sucede que, nesse momento, a condutora do veículo de matrícula ZN, que circulava na mesma via do XG e atrás deste, no sentido sul/norte encontrava-se a efectuar a manobra de ultrapassagem ao XG pela esquerda, sem que tivesse visibilidade dos veículos à frente do XG por este incluir uma caixa de transporte de mercadorias que impedia a visão (cfr. facto provado n.º 12).
Deu-se, então, o embate entre os veículos ligeiros, o qual ocorreu quando a condutora do veículo RG estava a fazer a manobra de marcha atrás, já com a traseira a ocupar a via no sentido sul/norte mas sem transpor o eixo da via, e tendo a condutora do veículo de matrícula ZN ultrapassado já pela esquerda o veículo de matrícula XG que estava parado, e entrado, de novo, à direita na sua mão e sentido de marcha (cfr. facto provado n.º 13). Mais se deu como provado que, no momento do embate, ambos os veículos encontravam-se em andamento e não conseguiram imobilizar a sua marcha por forma a evitar o embate, tendo a colisão dando-se entre a frente, frente direita do veículo de matrícula ZN e a traseira, traseira direita, do veículo de matrícula RG (cfr. factos provados n.º 14 e 15).
Finalmente, apurou-se que após o embate, o veículo de matrícula ZN manteve a aceleração e provocou o arrastamento parcial da traseira do veículo de matrícula RG, imobilizando-se os veículos um pouco adiante do local do embate, saindo a condutora do veículo de matrícula ZN automóvel e mostrando-se muito nervosa, dizendo que ao invés de travar acelerou sem querer, dizendo ainda que precisava dos seus comprimidos (cfr. factos provados n.º 16 e 17).
Dos factos enunciados, resulta terem ocorrido comportamentos preenchedores de infracção de diferentes normas estradais, por parte de cada uma das condutoras dos veículos ligeiros que embateram um no outro, as quais foram causais do acidente de viação em causa nos autos.
Com efeito, começado pela condutora do veículo ligeiro de matrícula RG, encontrava-se esta a efectuar uma manobra de marcha atrás, tendo em vista sair de um lugar de estacionamento disposto de forma enviesada, ou em espinha, em relação ao lado direito do eixo da via, tratando-se, por isso, de uma manobra que, de acordo com a legislação estradal aplicável, exigia uma especial atenção e cuidado na sua execução. Com efeito, de acordo com o art.º 46.º, n.º 1, do Código da Estrada (na versão introduzida pelo DL n.º 107/2018, de 29/11, vigente à data do acidente), “A marcha atrás só é permitida como manobra auxiliar ou de recurso e deve efectuar-se lentamente e no menor trajecto possível”. No mais, tal imposição, aliada à circunstância desta manobra ocorrer na saída de um lugar de estacionamento, impunha que a condutora do veículo RG observasse, com especial acuidade, as regras gerais de cuidado na condução previstas nos art.ºs 3.º, n.º 2, e 11.º, n.º 2, do mesmo diploma, e a disposição comum a certas manobras específica, como é o caso da marcha atrás, que impõe que a sua execução seja feita “por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”.
Finalmente, no caso, acrescia ainda a obrigação da condutora em causa de “regular a sua velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, (…) à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”, a que se refere o art.º 24.º, n.º 1, do Código da Estrada.
Por outro lado, também a condutora do veículo de matrícula ZN se encontrava a efectuar uma manobra especialmente regulada pela legislação estradal, no caso uma manobra de ultrapassagem a um veiculo estacionado, a qual, ainda que estivesse na sua parte final e já na retoma à sua via de trânsito, exigia, para além da observância dos mencionados deveres gerais de cuidado na condução previstos nos art.ºs 3.º, n.º 2, e 11.º, n.º 2 do Código da Estrada, também que fosse observada a já acima transcrita disposição comum relativa a certas manobras em especial, incluindo a manobra de ultrapassagem, que decorre do art.º 35.º do Código da Estrada, e que impõe que da sua “realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”.
Para além disso, dispõe a lei, a respeito desta manobra, que “o condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário”, devendo, “especialmente, certificar-se de que pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam”, devendo o condutor “retomar a direita logo que conclua a manobra e o possa fazer sem perigo”, tudo nos termos do art.º 38.º, n.º 1, n.º 2, al. b), e n.º 4, do Código da Estrada.
No mais, ainda que seja comum dizer-se que a manobra de ultrapassagem deve ser feita no menor período de tempo possível (não estando, contudo, tal expresso na norma), não prescinde a lei que esta manobra seja executada cumprindo as disposições relativas à velocidade, em particular, o disposto no também já mencionado art.º 24.º, n.º 1, do Código da Estrada, em particular o que se refere à necessidade do condutor regular a velocidade à necessidade de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.».
Insurge-se a recorrente ré quanto ao segmento decisório final que antecede, defendendo que a condutora do veículo ZN já havia retomado a sua via de transito aquando do embate, pelo que não estaríamos perante a manobra em causa. Mais rebate que inexistem factos que comprovem a velocidade da mesma ou que se refiram a esta em concreto.
É certo que efectua uma condução descuidada aquele que não se certifica que pode realizar a manobra de ultrapassagem sem perigo de colidir com outro veículo, sendo esta considerada uma manobra que exige redobradas cautelas. Porém, a condutora do veículo ZN não estava numa simples manobra de ultrapassagem, mas sim de transposição de um veículo parado, que visava aliás estacionar no lugar que iria ficar vago pelo veículo do A., pelo que o veículo parado para o efeito constituía um obstáculo que a condutora do veículo em causa se predispôs a ultrapassar ou contornar.
Ora, quando ao condutor se depare um obstáculo que se torne necessário contornar, deve, consoante art.ºs 3º, 13º, e 20º do Código da Estrada, actuar de harmonia com regras de elementar prudência que por igual determinam que não inicie essa manobra sem a sinalizar com a devida antecedência e sem se certificar que pode efectuá-la sem perigo para os demais utentes da via, reduzindo, para tal evitar, a velocidade respectiva, e parando mesmo, se preciso, de modo a dar passagem a outro veículo que circule em sentido contrário. No caso, perante os factos, a ultrapassagem pela condutora do veículo ZN não foi efectuada com as cautelas devidas, pois avistando o veículo parado num local de estacionamento seria previsível que tal imobilização apenas visasse estacionar, pelo que era previsível para um condutor atento que um veículo pretendesse sair do estacionamento, deixando assim vago um lugar para o veículo parado (o XG), cuja paragem estava assinalada devidamente. Acresce que haverá que considerar que o veículo que se encontrava parado era um veículo ligeiro de mercadorias, o qual incluía uma caixa de transporte de mercadorias que impedia a visão dos veículos que seguissem atrás.
Ora, estando o veículo de matrícula XG parado à espera que o veículo de matrícula RG saísse do estacionamento e com espaço suficiente para tanto, a condutora do veículo RG iniciou a manobra de marcha atrás, no sentido este/oeste, com o propósito de seguir em sentido contrário, ou seja, no sentido norte/sul transpondo o eixo daquela via de trânsito. Foi nesse momento, que a condutora do veículo de matrícula ZN, que circulava na mesma via do XG e atrás deste, no sentido sul/norte encontrava-se a efectuar a manobra de ultrapassagem ao XG pela esquerda, sem que tivesse visibilidade dos veículos à frente do XG.
Donde, a manobra de contorno do veículo parado, em ultrapassagem do mesmo não deixa de ser descuidada. Porém, a esse descuido da condutora do veículo ZN haverá que considerar o descuido da condutora do veículo RG, pois na saída do local de estacionamento não cuidou a mesma aferir se o podia fazer com toda a segurança.
Volvendo assim, à sentença do juiz a quo :«(…) verifica-se que estas disposições foram infringidas por cada uma das condutoras dos veículos ligeiros intervenientes no acidente de viação, porquanto, ficou demonstrado que ambas infringiram, pela forma como exerceram a condução, os deveres gerais de cuidado decorrentes da condução, e em particular os que se referem às manobras perigosas que estavam a executar, respectivamente, a manobra de marcha atrás na saída de um estacionamento e a manobra de ultrapassagem e de retoma da via de trânsito, uma vez que não usaram de todo o cuidado a que estavam obrigadas e de que eram capazes por forma da sua realização não resultasse perigo ou embaraço para o trânsito, como veio a ocorrer, do que é demonstrativo o embate em causa nos autos.
No mais, a execução de cada uma das manobras em si, não foi feita nos termos em que deveriam ter sido realizadas, sendo certo que, tendo ambos os veículos embatido um no outro, vistas as respectivas zonas embatidas dos veículos e estando ambos em andamento no momento do embate, ficou demonstrado não terem, cada uma das condutoras, adequado a velocidade a que circulavam por forma a evitar o embate, incorrendo, pois, em excesso de velocidade subjectivo.
Com efeito, encontrando-se a circular e a executar as manobras concretas de marcha atrás e de conclusão da ultrapassagem teriam, pelo menos, de conseguir adequar a sua velocidade a poderem imobilizar o seu veículo antes do embate, o que não ocorreu na medida em que se provou terem embatido um no outro, ou seja, ido em movimento ao encontro um do outro, assim se produzindo o embate. Entende-se, pois, ter ocorrido, da parte da cada uma das condutoras, a infracção culposa das regras estradais supra indicadas, tendo as responsáveis actuado de forma negligente ou sem que tenham observado, ainda que de modo não intencional, os deveres de cuidado a que estavam obrigadas e de que eram capazes, tendo essa sua actuação sido causal e concorrencial do acidente. Em relação à medida da contribuição de cada uma das condutoras para o acidente, e sem prejuízo de corresponder a um juízo nem sempre fácil ou isento de uma ponderação com traços de subjectividade, entendemos que a interpretação da dinâmica do acidente e do contributo para o embate de cada uma das actuações culposas que conduziram a este efeito danoso, evidenciada pelos locais concretos em que se deu o embate em cada um dos veículos, conduzem à conclusão de que essa repartição deve ser tida como igualitária e, como tal, deverá ser fixada em 50% para cada uma das intervenientes.
Com efeito, considera-se que, face às circunstâncias do caso concreto, e atendendo ao número, qualificação e intensidade da culpa na infracção das referidas normas estradais e suas consequências, em termos de regras de experiência e causalidade para o acidente, tanto a actuação da condutora do veículo de matrícula RG, pela forma como entrou na via em marcha atrás e não imobilizou o seu veículo, como a actuação da condutora do veículo de matrícula ZN, pelo modo como efectuou a manobra de ultrapassagem e retomou a sua mão de trânsito sem conseguir imobilizar o seu veículo perante o veículo que se lhe apresentou à frente, contribuíram em igual medida para o acidente, pelo que, em termos de proporcionalidade, se entende fixar na mesma proporção a responsabilidade pelo acidente de cada uma das condutoras dos veículos.
Por conseguinte, conclui-se pela existência de responsabilidade civil extracontratual em relação a ambas as condutoras e na proporção de metade para cada uma.».
No mais, quanto à questão da verificação de uma situação de comitente/comissário dada a particular relação entre os AA. e a condução do veículo levada a cabo pela filha dos AA., também aqui somos em concordar quando a sentença refere que: «Da  matéria de facto resulta, com efeito, que a responsabilidade civil inerente à circulação de ambos os veículos estava transferida para a actual ré (…): - quanto ao veículo de matrícula RG (…)na modalidade de responsabilidade civil obrigatória e cobertura de danos próprios, (…); - quanto ao veículo de matrícula ZN (…), na modalidade de responsabilidade civil obrigatória(…). Tendo concluído que o acidente em causa nos autos teve origem na responsabilidade concorrencial das ambas as condutoras dos veículos seguros na ré, em igual proporção (ou seja, 50% para cada) e apurados já os danos indemnizáveis e respectivo cômputo, resta decidir da medida da obrigação de indemnização por parte da ré, tendo em atenção o que decorre da aplicação do regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo DL n.º 291/2007, de 21-08.
Com efeito, se em relação aos danos causados a terceiros pelos quais é responsável a condutora do veículo de matrícula ZN, encontram-se estes integralmente cobertos pelo regime do seguro automóvel obrigatório (cfr. art.ºs 4.º, n.º 1, e 11.º), já quanto aos danos, ou proporção dos danos, pelos quais será responsável a condutora do veículo de matrícula RG, invoca a ré a sua exclusão da cobertura do seguro por efeito das excepções previstas no art.º 14.º do referido diploma. Prevê tal preceito, no n.º 1, como excluídos da garantia do seguro, os danos corporais do próprio condutor do veiculo seguro responsável pelo acidente (o que, no caso, não se coloca por a condutora do veículo de matrícula RG não ser autora, nem ter peticionado quaisquer danos corporais), acrescentando o n.º 2 do mesmo art.º 14.º que estão igualmente excluídos da garantia os danos materiais causados, designadamente, ao tomador do seguro ou ao seu cônjuge e aos ascendentes do condutor culpado (cfr. als. b) e e), do referido preceito), os quais, no caso, correspondem, respectivamente, ao autor, por ser o tomador do seguro, e à autora, sua mulher, sendo certo que ambos são igualmente ascendentes da condutora do veículo (parcialmente) responsável pelo acidente.
Ora, o conceito de danos materiais excluídos da cobertura do seguro, nos termos do mencionado art.º 14.º, n.º 2, als. b) e e), do DL n.º 291/2007, não coincide com o de danos patrimoniais acima delimitado, devendo entender-se que apenas se exclui, a este titulo, da cobertura do seguro o necessário à reconstituição material da situação (v.g. estragos no veículo ou no bens dos sujeitos excluídos) e que não se refira a danos reconduzíveis a outro tipo de prejuízos, ainda que de natureza pecuniária, nomeadamente, a danos patrimoniais resultantes de lesões corporais sofridas por estes. Ora, neste sentido, não estão abrangidos pela exclusão os montantes suportados pela autora a título de despesas com consultas, presentes e futuras, (…). Com efeito, os prejuízos com despesas incorridos pela autora com consultas, ainda que de natureza patrimonial, não assumem a natureza de danos materiais susceptíveis de serem abrangidos pela exclusão do art.º 14.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, antes se referem à compensação de danos verificados na esfera patrimonial da autora em consequência de lesões corporais sofridas por esta. (…). Da mesma forma, e no que se refere aos demais danos apurados, em concreto os danos não patrimoniais e o dano biológico sofridos pela autora, atenta a sua dimensão pessoal e não meramente material, não se poderão igualmente considerar excluídos da cobertura do seguro obrigatório, nos termos do art.º 14.º do DL n.º 291/2007.
Acresce que essa exclusão não pode igualmente decorrer, conforme defendeu a ré, da existência de uma relação de comissão existente entre o autor e a sua filha, condutora do veículo, nos termos do art.ºs 500.º do CC, ou mesmo por efeito do autor ter alegadamente a direcção efectiva do veículo nos termos do art.º 503.º do CC.
Com efeito, ainda que os factos dados como provados a respeito das circunstâncias em que ocorreu a condução, pudessem levar à conclusão de que se verificaria qualquer uma dessas situações (cfr., a este respeito, a análise aprofundada efectuada no acórdão da Relação de Guimarães de 14-01- 2021, Proc. n.º 599/18.5T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt), a verdade é que tal regime que justificaria a não cobertura indemnizatória não se estenderia aos danos sofridos pela autora. Com efeito, desconhecendo-se o regime de bens do casal, e nada se tendo provado a respeito da autora ser proprietária do veículo, não se lhe pode estender a pretendida relação de comissão ou atribuir a direcção efectiva do veículo, pelo que, necessariamente, não se encontram os danos sofridos por esta de alguma forma excluídos da cobertura do seguro automóvel referente ao veículo de matrícula RG. Por conseguinte, sem prejuízo da repartição de culpas pelo acidente em relação a cada um dos veículos, e com excepção do valor relativo à franquia que se encontra parcialmente excluído da cobertura do seguro referente ao veículo de matrícula RG, será a ré condenada no pagamento integral dos restantes danos, por efeito de cada um dos seguros celebrados, e em relação aos quais sucedeu na posição das primitivas seguradoras. (…)».
Subscrevemos na integra tal entendimento, o qual não nos merece qualquer reparo, soçobrando o recurso subordinado da ré.

Do recurso da Autora
Aqui chegados importa aferir do recurso da Autora, este circunscrito aos danos, pois insurge-se esta quanto ao quantum indemnizatório fixado.
Entende a apelante Autora que a sentença recorrida peca por defeito quanto ao valor atribuído de compensação de dano biológico que entende que deveria ter sido fixado em 20.000€ (ao invés dos 7.500€ fixados), e valor a considerar igualmente a título de danos não patrimoniais (tendo sido fixado o valor de 7.500€) e em 15.694,00€ a compensação a título de dano patrimonial futuro, este alegadamente não considerado na sentença sob recurso.
Convoca em abono da sua pretensão as decisões superiores de casos análogos, e a
não fundamentação quanto à improcedência do pedido da A. a título de dano patrimonial futuro. Entende que as sequelas de que padece, com perturbação da visão por flutuação da estrutura membranosa da base do vítreo, têm reflexo na sua vida profissional, tanto que ficou provado que necessita de esforços suplementares para o exercício da profissão habitual. Por conseguinte, conclui, que recorrendo à tabela preconizada pelo Ac. do STJ de 04.04.95, perfeitamente actual quanto a todos os seus critérios, designadamente considerando a idade da lesada, a esperança média de vida, a retribuição anual, a taxa de juros líquida de aplicações financeiras (antecipação do capital) e a actualização da remuneração anual, temos uma compensação de 15.694,00€a título de dano patrimonial futuro. No mais, discorre sobre o que considera ajustado indo de encontro à sua preensão em termos de valores.
A apelada/ré nas suas contra alegações defende que não carece a decisão proferida nos presentes autos de ser alterada.
No que concerne ao dano patrimonial futuro, a apelada sustenta que o Tribunal a quo não utilizou a conceptualização jurídica de “dano biológico” sufragada pela Autora/Recorrente – que o qualifica como um dano meramente não patrimonial e, assim, pedindo duas indemnizações distintas pelo mesmíssimo dano -, mas autonomizou o dano não patrimonial biológico do dano patrimonial biológico, denominando na sentença dos autos apenas por “dano não patrimonial” o primeiro e por “dano biológico” o segundo, incluindo-se neste último e o dano patrimonial futuro.
No mais, sufraga que os valores fixados acham-se dentro dos valores jurisprudências fixados em situações análogas ou comparáveis.
Na sentença após a enunciação do propósito da responsabilidade civil, como sendo cumprir o desiderato da reparação integral dos danos, prossegue-se dizendo que será seguida «(…)a terminologia que entendemos ser a que tem sido actualmente seguida pela jurisprudência e que melhor se adequa a este propósito de reparação integral dos danos, ou seja, distinguiremos os prejuízos em danos patrimoniais, danos não patrimoniais e dano biológico, por corresponder a uma divisão que se tem vindo a afirmar mais na jurisprudência do que na doutrina (que tem sido crítica da tripartição em causa, cfr, entre outros, Diogo Costa Gonçalves, A (in)utilidade do dano biológico, Cadernos de Direito Privado, n.º 67, Jul-Set 2019, págs. 58-68) mas que se mostra útil à caracterização e distinção dos danos.
A propósito de cada uma das noções do dano em causa daremos previamente uma breve nota do que se entende e se incluirá em cada um dos conceitos, sem aprofundarmos especialmente as divergências no que se refere ao dano biológico enquanto categoria autónoma, por se entender que, no caso presente, e face à prova concretamente produzida a respeito dos danos decorrentes do acidente de viação em causa nos autos, tal não se mostra decisivo para atingir a medida da justa indemnização, indo-nos focar mais na componente integrativa no conceito de dano biológico daqueles danos futuros, de natureza patrimonial e não patrimonial, que não se encontram, à partida, cobertos pelas restantes categorias.».
Assim, no que diz respeito aos danos patrimoniais específicos e concretamente comprovados, e que constitui o segmento decisório contido na alínea a), na parte que não é posto em causa neste recurso, expõe-se quanto ao autonomizado dano biológico que: «No conceito de dano biológico, e para além das referências já deixadas a respeito da problemática da sua autonomização, resulta do enquadramento das pretensões formuladas na acção, peticionar a autora a atribuição de uma indemnização que, em síntese, reconduz-se a uma situação de facto que remonta à alegação de um défice funcional permanente ou de afectação da sua integridade física que determina a ocorrência de danos futuros.
Nessa medida, visa o ressarcimento de tudo aquilo que, em consequência do acidente, determina a partir da data do acidente e tendencialmente no futuro, senão uma perda da remuneração ou de capacidade de ganho que, efectivamente, não ocorreu, por à autora ter sido apenas reconhecida, ao nível da repercussão permanente da sua actividade profissional que as “sequelas são compatíveis com o exercício da sua actividade habitual, mas implicam esforços complementares” (factos provado n.º 30), aquilo que tornou mais difícil ou onerosa a sua actividade profissional com consequências numa vertente patrimonial, a que acresce a dimensão desse dano na globalidade da sua vida e para além da idade expectável de trabalho.
Precisamente para ir ao encontro desta dimensão do dano que não se limita a uma forma de incapacidade laboral, tem a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, em particular do STJ nos últimos anos, afirmado a existência de um dano que, em Portugal, se optou por denominar como dano biológico.
No entanto, conforme se adverte no recente acórdão do STJ de 12-01-2022, Revista n.º 6158/18.5T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi. (antecipando o artigo da Conselheira Relatora do aresto Maria da Graça Trigo, O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo, Revista Julgar, n.º 46, pág. 269, entretanto publicado): “Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, actualmente o significado com que mais frequentemente tal expressão é aquele que correspondente à de consequências patrimoniais da incapacidade geral ou genérica do lesado, aferida em função das Tabelas de Incapacidade Geral Permanente em Direito Civil. Mas este significado coexiste com outros, designadamente com o de dano biológico como consequência não patrimonial de uma lesão psicofísica. É, por isso, conveniente que, ao fazer-se uso da dita expressão (seja num texto de índole doutrinal seja numa decisão judicial), se comece por definir a acepção em que a mesma é utilizada.”.
Acrescentando-se no referido artigo da mencionada Juiz-Conselheira: “Mais importante do que a terminologia utilizada é, contudo, a realidade subjacente. Com ou sem denominação de dano biológico, o que importa, em nome do princípio da reparação integral dos danos, é assegurar que, diversamente do que sucedia no passado, se indemnizam as vítimas não apenas pela perda da capacidade laboral específica para a profissão exercida à data do evento lesivo, mas também pela perda da capacidade laboral geral que as afectará ao longo do resto da vida. Não se ignorando as dificuldades de fundamentação dogmática justificadamente assinalas, considera-se, porém, que o acolhimento jurisprudencial da reparabilidade do dano de perda de chance (…) constituirá uma adequada base para o efeito.».
Logo, manifestamente o Tribunal entendeu o que considera integrado no dano biológico, não podendo a apelante neste recurso pretender ainda um valor indemnizatório que se reporte em termos autonomizáveis ao dano futuro, pois este integra-se no dano aludido, não sendo devido valores indemnizatórios diferenciados com os mesmos factos, como parece pretender a recorrente. Logo, improcede o recurso na parte relativa ao pedido indemnizatório específico no valor de 15.694,00€, pois os factos relativos ao mesmo resultam apreciados em sede de dano biológico e como tal devem ser considerados.
Mas que dizer do valor indemnizatório fixado quanto a esse dano? Ora, também aqui entendemos que nada há a apontar à decisão quando afirma e fundamenta que: «(…) decorre da matéria de facto provada que a autora, em consequência do acidente em causa nos autos, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que foi fixado em 3 pontos, entendendo-se como tal os danos permanentes referentes à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, ainda que sem as sequelas apuradas sejam compatíveis com o exercício da actividade habitual, embora exijam esforços suplementares, pela perturbação da visão associada à sensação de cansaço visual a que acresce a perspectiva da existência de dano futuro, com referência ao aparecimento de rasgaduras periféricas e de glaucoma de ângulo fechado (vide relatório pericial e facto provado n.º 30).
Será esta dimensão, e eminentemente numa vertente patrimonial, que se pretende aqui indemnizar, sendo certo que, conforme tem entendido a jurisprudência do STJ (cfr. Maria da Graça Trigo, ob. cit., pág. 267, e, exemplificativamente, os acórdãos do STJ de 11-04-2019, Revista n.º 465/11.5TBAMR.G1.S1, de 14-01-2021, Revista n.º 2545/18.7T8VNG.P1.S1 e de 06-04-2021, Revista n.º 2908/18.8T8PNF.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt), tal indemnização deve ser fixada segundo juízos de equidade nos termos do art.º 566.º, n.º 3, do CC, e ter em consideração os seguintes factores essenciais: i) idade do lesado à data do sinistro; ii) esperança média de vida do lesado à data do acidente (por referência à data do nascimento do lesado); iii) índice de incapacidade geral permanente em direito civil; iv) potencialidades de ganho e de aumento de ganho do lesado, anteriores à lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; v) conexão entre as lesões psicofísicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas do lesado, compatíveis com a suas habilitações e/ou formação. No caso presente, e no que se refere à situação da autora, para além dos factos globalmente considerados e que resultam da matéria de facto, importa sublinhar, para este efeito, a circunstância da autora ter 48 anos de idade na data do acidente, atingir actualmente a esperança média de vida, em relação às mulheres, os 83,67 anos (cfr. site do INE), e ter sido apurado um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.
No mais, relevam, nomeadamente, a circunstância de, na data do acidente, a autora ser técnica de marketing e necessitar de trabalhar ao computador, decorrendo das lesões e sequelas verificadas a necessidade de fazer tempos de pausa e repouso ocular, por forma a evitar, nomeadamente, ficar com dores de cabeça, tendo tal repercussão no desempenho da sua vida profissional, o que deve ser valorado nesta sede, até pelas consequências que tal poderá acarretar na sua progressão ou na existência de outras oportunidades profissionais.
Quanto ao cômputo do montante concreto da indemnização a atribuir, tem a jurisprudência dos tribunais superiores, em particular do STJ, vindo progressivamente a rejeitar a aplicação de fórmulas matemáticas que usualmente eram utilizadas, bem como a afastar a aplicação das tabelas que foram aprovadas pelas Portarias n.º 377/2008, de 26-05 e n.º 679/2009, de 25-06 no âmbito da proposta razoável a apresentar pelas seguradoras em sede extrajudicial (cfr, entre outros, os acórdãos do STJ de 08-11-2018, Revista n.º 1500/14.0T2AVR.P1.S1, de 07-05-2020, Revista n.º 952/06.7TBMTA.L1.S1 e de 14-01-2021, Revista n.º 2545/18.7T8VNG.P1.S1, com sumários disponíveis em www.stj.pt).
Importa, no entanto, procurar partir de elementos concretos e ter em consideração os casos análogos, por forma a evitar algum casuísmo e contribuir para uma melhor percepção dos critérios seguidos pelos tribunais sobre esta matéria de grande relevância tanto para os lesados como para as seguradoras que têm de acautelar financeiramente as suas responsabilidades. Nesse sentido, poderá aproveitar-se a sugestão feita por Laurinda Gemas, Juíza Desembargadora, em recente artigo da Revista Julgar, n.º 46, sob o título “Questões actuais da responsabilidade civil por acidentes de viação” (cfr. págs. 78 e 79): “Atrever-me-ia mesmo a ir mais longe, vendo com bons olhos que, na decisão final, ao fixar o valor da indemnização pelo dano biológico, os juízes utilizem efectivamente, ainda que como mero ponto de partida, os critérios da Portaria n.º 377/2008, “mas actualizados”, adequando sempre os valores assim obtidos nos termos já referidos.
Com efeito, embora reconhecendo que a Portaria não é isenta de crítica, até pelo imobilismo em que foi deixada pelo legislador (após a alteração introduzida pela Portaria n.º 679/2009, numa flagrante violação do disposto no seu art.º 13.º), creio que, ao invés da rejeição e desprezo a que tem sido votada pela maioria da jurisprudência, melhor seria explorar todas as suas virtualidades, que também as tem, começando pela circunstância de fazer assentar a proposta razoável para a indemnização do dano biológico em dois critérios objectivos – a idade do lesado e o número de pontos do respectivo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica –, sempre considerados pelos tribunais e que, neste particular, devem prevalecer em detrimento de outros factos, como a carreira profissional do lesado, para evitar injustificadas disparidades. Vejo, pois, como positiva, no sentido de se obter a almejada interpretação e aplicação uniformes do direito, de mãos dadas com a segurança jurídica, e até um progressivo acréscimo dos valores indemnizatórios, a possibilidade de utilização dos critérios da Portaria, devidamente actualizados, nos moldes avançados por parte da jurisprudência. Na verdade, pela minha experiência, os valores assim obtidos podem chegar a ultrapassar os fixados em várias decisões judiciais, não se podendo afirmar que sejam irrisórios em todos os casos, sendo certo que não deixarão de ser, repete-se, um ponto de partida”.
Assim, e tentando ir ao encontro desta sugestão, e partindo do pressuposto que os valores da compensação do aí denominado dano biológico, nos termos constantes do Anexo IV à Portaria n.º 679/2009, foram fixados de acordo com a Remuneração Mínima Mensal Garantida para 2007 que era de €403,00, importa proceder ao seu cálculo actualizado mas atendendo-se, como sugere a mencionada autora, ao valor da remuneração base média mensal, na data mais recente passível de ser considerada que actualmente é de €1.005,10 (cfr. ob. cit., págs. 79 e 80). Assim, e com base na aplicação desse critério, teremos que, no caso da autora, tendo 48 anos à data do acidente e um défice de 3 pontos, se inseriria, de acordo com o anexo à Portaria, no intervalo entre €574,56 e €748,98 por ponto. Encontrando um valor médio apurado de cerca de €660,00 por ponto atribuído, e observando uma regra matemática de três simples, por forma a apurar, em vez do valor do salário mínimo de 2007, o valor por ponto resultante da aplicação do valor da remuneração média nacional actualmente em vigor, teremos a seguinte operação €660,00 x €1005,10: €403,00 = €1.646,07. Este novo valor pecuniário unitário de €1.646,07 apurado, multiplicado pelos 3 pontos de défice atribuído à autora, dará um valor corrigido ou actualizado da tabela de €4.938,21. A quantia apurada com base neste critério, coincide sensivelmente, ainda que em termos ligeiramente inferiores, às indemnizações que foram fixadas em casos análogos consultados para efeitos da formação deste juízo equitativo e cujos sumários se encontram disponíveis no caderno temático sobre dano corporal disponível no site do STJ (cfr. sumários disponíveis em www.stj.pt).
Assim, pode por referência à situação da autora, e para efeitos de cálculo do dano biológico, remete-se para os casos apreciados nos acórdãos do STJ de 28-11-2017, Revista n.º 127/145.1TJVNF.S1 (em que a indemnização foi fixada em €5.000,00), e de 20-12-2017, Revista n.º 871/12.8TBPTL.G1.S1 (em que a indemnização foi fixada em €8.500,00), sendo certo que no acórdão de 27-02-2018, Revista n.º 3901/10.4TJVNF.G1.S2, se considerou adequado fixar tal valor mais próximo do dobro do que resulta do cálculo acima efectuado (indemnização fixada em €10.000,00), estando em causa em todos esses casos um défice de 3 pontos, sem prejuízo das especificidades concretas de cada situação, nomeadamente, em função da idade das vítimas. Em todo o caso, na determinação do quantum desta indemnização, importa atender à existência previsível de dano futuro, uma vez que ficou provado perspectivar-se a sua ocorrência, com referência ao aparecimento de rasgaduras periféricas na rotina e de glaucoma de ângulo fechado, o que justifica que o valor da indemnização, a este título, deva ser majorada, por forma a acautelar o previsível agravamento da situação de saúde da autora. Assim, por se entender justo e adequado, e com recurso a juízos de equidade, fixa-se, a título de dano biológico, com o sentido acima delimitado e já incluindo a previsível existência de dano futuro, o valor da indemnização devida à autora em €9.000,00, montante já actualizado à data da presente sentença.».
Com efeito, na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, maxime do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; por isso mesmo, não deve ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução( cf., a este propósito, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 28/01/2016, proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, o ac. do STJ de 4/06/2015, proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1, bem como os acórdãos deste mesmo Tribunal ali mencionados, todos disponíveis em www.dgsi.pt6).
Quer isto significar que, tal como se referiu no ac. do STJ de 26.1.2017 (proc. 1862/13.7TBGDM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afectação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efectiva utilidade do seu corpo ao nível de actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização.”.
Efectivamente, e acolhendo o entendimento plasmado no acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt): “(…) A compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.
Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não refletida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado - constitui uma verdadeira «capitis deminutio» e «Nesta perspetiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua junta compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal”» ( in www.dgsi.pt/jstj)
Donde, o que se pretende é aferir em que consiste a reparação da perda de capacidade de ganho / “dano biológico”, ou como se alude no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2016, de “procurar ressarcir as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Trata-se das consequências patrimoniais do denominado “dano biológico”, expressão que tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes. Certo é que a lesão físico-psíquica é o dano-evento, que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais (…). Com esta precisão, a indemnização pela perda da capacidade de ganho tem a seguinte justificação, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.: “a compensação do dano biológico [dentro das consequências patrimoniais da lesão físico-psíquica] tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.” Entende-se que o aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que tenha como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.” (citado ainda no Ac. do STJ de 7/04/2016, in site supra aludido).
Situamo-nos, pois, no domínio dos danos patrimoniais indetermináveis, cuja reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cfr. art.º 566º, nº 3, do CC).
Logo, a indemnização a ser fixada reporta-se ou destina-se normalmente a compensar não só a perda de rendimentos pela incapacidade laboral, mas também as consequências dessa afectação, no período de vida expectável, seja no plano da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais ou neste caso de índole pessoal ou dos custos de maior onerosidade com o desempenho de determinadas actividades.
Vejamos que critérios orientadores têm sido seguidos:
- A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinga no final do período provável de vida do lesado;
- As tabelas financeiras ou outras fórmulas matemáticas, a que, por vezes, se recorre, têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;
- Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia;
- Por outro lado, o julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa de vida do cidadão médio, à progressão profissional, e aos previsíveis aumentos da remuneração salarial. (seguimos de perto as orientações fixadas no Ac. do STJ de 6/12/2018 supra aludido, que resume o que vem sendo defendido na jurisprudência recente).
Orientações idênticas têm vindo a ser seguidas pelo STJ (acórdãos de 20 de Outubro de 2011 (proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1), de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1), de 7 de Maio de 2014 (proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1), de 19 de Fevereiro de 2015 (proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1), e de 4 de Junho de 2015 (proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt).
No caso dos autos somos, porém, e ainda, de subscrever a aproximação à Portaria, tal como foi exposto na decisão recorrida, nada nos permitindo concluir por um valor situado nos peticionados €20.000,00 a título de dano biológico.
Nos termos expostos entendemos como ajustado o valor encontrado pelo juiz a quo, inexistindo circunstâncias que nos permitam afastar tal juízo equitativo que julgamos adequado.
Resta por último, atender aos danos não patrimoniais, que a A. peticionou no valor de 20.000€ e que o Tribunal a quo fixou em 7.500€.
Sem se transcrever a abordagem doutrinal e o que se entende quanto a tais danos, sobejamente abordada na decisão, importa ter presente o aludido na sentença na apreciação do caso concreto: «No caso presente, resulta da matéria de facto provada um conjunto de danos que, desde logo, se enquadram nesta tipologia de danos não patrimoniais que decorrem do próprio acidente e suas lesões sofridas pela autora decorrentes do traumatismo na zona da face direita que justificaram o seu transporte, de urgência, ao hospital, os tratamentos que se seguiram e os períodos de imobilização, daí decorrendo os respectivos períodos de défice funcional total e temporal apurados na perícia, e que ascenderam a um total de 152 dias e que, naturalmente, foram acompanhados de dor e sofrimento (cfr. factos provados n.º 19 a 22, 23, 29 e 30). Ficou, neste tema, demonstrado ainda ter a autora sofrido dores e incómodos, bem como necessitar de repouso, nomeadamente, ocular, implicando que a nível funcional apresentasse queixas relativas a epífora durante a observação de ecrãs e necessidade de realizar pausas, por forma a evitar dores de cabeça, com consequências na vida pessoal e profissional (cfr. factos provados n.º 26, 29, 30, 41 e 44).
Tais circunstâncias, implicam apreensão e sofrimento que, pela gravidade da situação, e até pela circunstância de estar em causa um órgão essencial para a saúde e bem-estar, no caso o sentido da visão, impõe que se devam considerar e valorar estes danos em face do disposto no art.º 496.º do CC.
Na fixação e ponderação destes danos e pela sua relevância por decorrerem de um juízo pericial efectuado no decurso da fase de instrução dos autos, importa ainda atender às conclusões médicolegais que atestam um período de cerca de 5 meses em que a autora padeceu de défices ou incapacidades de grau variável e de repercussões decorrentes das lesões sofridas na sua vida pessoal e patrimonial, sendo de destacar o quantum doloris fixado no grau 4 numa escala crescente de 7 graus de gravidade tendo em conta o tipo de lesões resultantes e o tipo de traumatismo (cfr facto provado n.º 30). Para além disso, será ainda de valorar o incómodo, não desprezível, que é a circunstância da autora ainda visualizar no seu campo de visão do olho direito uma linha longitudinal, como se fosse uma cobra, e ter uma visão turva de um dos olhos quando ambos encerrados (cfr. factos provados n.º 42 e 43).
Finalmente, inserimos em termos metodológicos nesta categoria de danos não patrimoniais, as consequências decorrentes para a autora relativas ao denominado dano estético que resulta da circunstância da autora, em consequência do embate, ter ficado com uma tumefação da região frontal, que determinou que pericialmente fosse atribuído um dano estético permanente fixável no grau 2 numa escala de 7 de graus de gravidade crescente (cfr. facto provado n.º 30). Assim, e sem prejuízo de se tratar de matéria de difícil comparação com outras situações objecto de decisões da jurisprudência, por ser mais notória a especificidade de cada situação e a variabilidade de critérios que decorrem do recurso à equidade na fixação do quantum indemnizatório, por força da consideração de casos análogos nos termos do art.º 8.º, n.º 3, do CC, importa ter em consideração o decidido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, destacando-se, pela sua proximidade com o caso presente, os critérios e montantes fixados pelo STJ no acórdão de 27-02-2018, Revista n.º 3901/10.4TJNF.G1.S1, disponível em www.dgsi., cujos critérios e valores fixados, por se mostrarem sensivelmente na mesma ordem de grandeza, aqui seguimos.
Entende-se, por conseguinte, que, em consequência do acidente em causa nos autos, se mostra justo e adequado fixar a indemnização a título de danos não patrimoniais sofridos pela autora em montante correspondente a €7.500,00, valor este actualizado na data da prolação da presente sentença.».
A Autora peticionou a título de danos não patrimoniais o valor de 20.000€, reiterando tal pretensão em sede de recurso.
No que concerne à compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art.º 496º, nº 1, do CC), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença. Deve antes ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (art.º 496º, nº 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art.º 494º, do CC.
Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”.
E “(a) sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão do Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, www.dgsi.pt, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição”. Exigência plasmada também no art.º 8º, nº 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” (todos in www.dgsi.pt).
O presente dano consiste nos prejuízos (dor física, desgosto moral, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, liberdade, beleza, perfeição física, honra, etc) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação.
Esta categoria geral de danos tem sido progressivamente subdividida em danos que respeitam a diversas facetas da vida humana. Desde logo, a dor física sofrida pelos lesados como consequência dos ferimentos e respectivos tratamentos e operações; a afectação da integridade anatómica, fisiológica ou estética; o dano; o prejuízo de distracção ou de afirmação pessoal e a perda de expectativas de duração de vida (cf. Acórdão desta Relação datado de 8/11/2018, proferido no proc. nº 3421/15.0T8PDL.L1-2, in www.dgsi.pt/jtrl).
Relativamente aos presentes danos, Sousa Dinis ( in “O Dano Corporal em Acidentes de Viação”, in CJSTJ, Ano IX, Tomo 1, 2001, pág. 7) refere que o julgador deverá ter em consideração, entre outros, os seguintes factores ou pressupostos: “a incapacidade, ou, se for o caso, a incapacidade temporária total geral, que diz respeito às tarefas da vida corrente, e a incapacidade temporária total especial para a actividade desenvolvida, ou seja, a projecção dessa incapacidade no exercício da actividade específica do lesado” ;
- “a graduação do quantum doloris” (...);
- “o prejuízo estético, também graduado como a dor”;
- “o prejuízo de afirmação pessoal (alegria de viver) que deve ser graduado também de acordo com a escala valorativa da quantificação da dor (...)”;
- “o desgosto de o lesado se ver na situação em que se encontra”;
- “a clausura hospitalar”.
A propósito de tal temática a jurisprudência do nosso Tribunal superior, nomeadamente já no Acórdão do STJ de 25/06/2002 (in CJSTJ, Ano X, Tomo 2, pág. 134), se entendia que “em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. Como se decidiu recentemente neste STJ, a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar”. E, citando Antunes Varela, refere que o “montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessário se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir”. 
Com relevância para a determinação do quantum a arbitrar, e a acrescer à factualidade já supra enunciada, ponderada na sentença apelada, urge, igualmente, ponderar que, além do mais, a responsabilidade do segurado da ré não é única e a violação dos deveres de cuidado encontram-se repartidos entre ambas as condutoras. Porém, no caso concreto a ré é seguradora de ambos os veículos, pelo que não haverá que considerar especificamente tal facto, dado a Autora/apelante ser uma das transportadas num dos veículos intervenientes no acidente.
Donde, no caso dos autos e quanto à questão da fixação de indemnização por danos não patrimoniais, relevam os factos seguintes:
- Em consequência do embate, e atento o movimento pendular que se verificou, a autora que viajava no veículo de matrícula RG, embateu com o lado direito da face no vidro lateral direito do veículo, ficando ferida.
- Ao local deslocou-se a PSP, bem os bombeiros que assistiram a autora e a transportaram de emergência para o Hospital.
-  A autora deu entrada nas urgências do Hospital Dr. Fernando Fonseca, pelo menos, por traumatismo da cabeça/face.
- Apresentava volumoso hematoma frontal e periorbitário direito, tendo ocorrido o deslocamento parcial da base do vítreo do olho direito com tracção retiniana periférica no sector supero-nasal e co-derrame de sangue na cavidade vítrea.
- Realizou exames complementares de diagnóstico como TAC cranioencefálico que confirmou o hematoma epicraniano frontotemporal direito.
- Foi medicada e teve alta com recomendação para continuar a ser seguida, tendo logo no dia seguinte ido a uma consulta de neurocirurgia no Hospital da Luz.
- Foi acompanhada em oftalmologia pela Dra. Marta Castro Araújo, de quem já era paciente há vários anos por astigmatismo, em consultas, pelo menos uma vez por ano.
- A autora foi consultada inicialmente em 27-09-2019, tendo em 01-10-2019 sido elaborado relatório médico pela médica assistente que concluiu que a autora não estava livre de perigo de rasgadura retiniana, pelo que teve de ficar em repouso ocular e físico. - Em 10-02-2020 foi elaborado novo relatório médico pela médica assistente onde esta declara o atingimento da estabilização, mas com risco vitalício de aparecimento de rasgaduras periféricas da retina e glaucoma de ângulo fechado, devendo manter acompanhamento médico em oftalmologia para vigilância continuada que se impõe.
- A autora teve outras consultas com a sua médica assistente em consequência da lesão provocada pelo acidente e mantém-se em seguimento em oftalmologia.
- Realizada perícia médico-legal, resulta do respectivo relatório, com referencia à data de 08- 01-2021, que a autora apresentava queixas, a nível funcional, relativas a epífora durante observação de computador ou televisão, visão turva ocasional e sensação de cansaço visual, bem como queixas, a nível da vida profissional, relativas a epífora durante utilização de computador e sensação de maior cansaço visual, com necessidade de pausas principalmente no período da tarde.
-  o quantum doloris, foi fixado no grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes e o tipo de traumatismo;
- o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, com referência à perturbação da visão por flutuação da estrutura membranosa da base do vítreo, por analogia a escotoma, fixável em 3 pontos;
- O dano estético permanente, é fixável no grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta a tumefação da região frontal;
- Nos dias pós-acidente sentia dores e incómodos, necessitando de repouso.
- A autora, na data da audiência de julgamento, no seu campo de visão apresentava uma linha longitudinal, como se fosse uma cobra, em permanência no olho direito.
- A autora, se fechar o olho esquerdo, tem uma visão do olho direito turva que desaparece com os dois olhos abertos.
- A autora, no âmbito da sua actividade profissional, não consegue estar muito tempo seguido ao computador e tem necessidade de fazer pausas por sentir uma impressão no olho direito e ficar com dores de cabeça.
Acresce que face ao princípio de igualdade supra aludido, deve ter-se em conta a jurisprudência do Supremo Tribunal em matéria de danos não patrimoniais decorrentes de lesões físicas, tendo sido feito no âmbito desta Relação (7ª secção) um “barómetro“ das decisões do STJ que fixam indemnizações decorrente de acidente de viação, de 2011 a 5 de maio de 2021, e no que diz respeito aos danos não patrimoniais constata-se que a fixação é no mínimo de 5.000€, em duas únicas situações (Ac. 15.2.2018, proc. nº 4084/07,Fátima Gomes; A. de 12.11.2020, Pinto de Oliveira, 14697/16, um de 8.000€ de 27.2.2018, Fátima Gomes, pro. Nº 3901/10), e um máximo de 250.000€ (Ac. de 10.9.2019, José Rainho, 5699/11, Sumários; Ac. de 25.11.2019, Raul Borges, 397/03).
Entendemos que face às lesões sofridas e a jurisprudência em casos análogos, aliado à idade da Autora e todas as repercussões na sua vida nos termos aludidos, o valor será desajustado.
Com efeito, haverá que considerar os seguintes Acórdãos do STJ: de 19.2.2015, Oliveira Vasconcelos (in dgsi), que fixou os danos morais em 20.000€, Ac. de 6.6.19, Rosário Morgado, 1209/16, ( in Sumários do STJ), que fixou esse valor em 30.000€; Ac. 22.5.2017, Tomé Gomes, 60/12, (Sumários), que fixou o valor devido ao lesado de 79 anos em 30.000€; Ac. 17.12.2019, Rosa Tching, 2224/17 (in dgsi), fixou em 15.000€, igualmente o Ac. de 27.4.2017, Tomé Gomes, 1343/13, in Sumários.
Assim, considerando tudo o exposto e a prova pela Autora de todos os parâmetros factuais relativos à indemnização em causa, entendemos que o valor devido deverá fixar-se num valor correspondente ao indicado pela apelante e correspondente a 20.000€, procedendo, nesta medida, o recurso da Autora.

Do recurso subordinado do Autor
Por fim, importa apreciar o recurso subordinado do Autor circunscrito à indemnização dos danos que advém da privação do uso do veículo de sua propriedade na sequência do acidente e no período correspondente à paralisação do veículo.
Pugna o Autor por uma incorrecta aplicação do Direito aos factos provados violando o disposto nos artigos 483º e 1305º do C.C e 42º n.º 1 do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto, concluindo pela fixação de uma compensação a determinar equitativamente pelo tribunal por 16 dias de paralisação. Defendendo que tal advém de forma clara quanto à ressarcibilidade autónoma do dano por privação de uso sem necessidade de qualquer outra prova que não a privação com o ainda anterior DL n.º 83/2006 de 03/05 que consagrou a figura do veículo de substituição no seu art.º 20º J. Norma que se mantém actual art.º 42º do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto. Convoca ainda o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2022 -Revista n.º 604/18.5T8LSB-A.L1.S1 - 7.ª Secção, ainda que reportado à ocupação de um imóvel. Alegou ainda que haverá que “realçar o evidente, mas que raras vezes é invocado nos casos de acidentes de viação em circulação, que é o facto do veículo estar a ser utilizado precisamente no momento do acidente”, ou seja, “o bem estava a produzir um efeito para o qual foi preconizado antes do acidente e depois do mesmo deixou de o fazer devido a este”. Pede assim, a condenação da ré a pagar ao A. a titulo de compensação equitativamente, 566º n.º 2 CC, que se julga em 20,00€diários atento o tipo de bem, veículo automóvel e que considerando a responsabilidade determinada em 50%, deve a R. seguradora compensar o A. em quantia não inferior a 160,00€, correspondente a 20,00€multiplicados por 16 dias e aplicação da percentagem de responsabilidade definida em sentença.
A ré insurge-se com tal entendimento.
Na sentença, aborda-se a questão da seguinte forma: «No que se refere à esfera patrimonial do autor (alegada de forma distinta em relação à da autora, desconhecendo-se a existência de um regime de casamento que justificasse o tratamento em comum destes danos), resulta da matéria de facto, ter este liquidado a quantia de €250,00, relativa à franquia do seguro referente ao veículo de que é proprietário (de que era seguradora a Tranquilidade), na parte relativa à cobertura de danos próprios relativa à colisão tendo em vista a reparação do veículo (cfr. factos provados n.º 3, 4 e 38).
No mais, provou-se que, em consequência do acidente, ficou o veículo de matrícula RG, propriedade do autor, impossibilitado de circular, tendo sido necessário, pelo menos, 16 dias para proceder à sua reparação (cfr. factos provados n.º 4, 39 e 40). Não se provou, por conseguinte, a totalidade dos dias de paralisação do veículo invocados, nem a utilização concreta que os autores faziam deste (cfr. factos não provados K e L), o que convoca o debate doutrinal e jurisprudencial relativo à necessidade de alegação e prova do denominado dano da privação do uso.
A este respeito, de forma sintética, e sem prejuízo de serem conhecidas as dúvidas e os argumentos debatidos a este propósito, aderimos à tese que se nos afigura ter-se tornado maioritária na jurisprudência, segundo a qual: “competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efectiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.” (cfr. acórdão do STJ de 28-01-2021, Revista n.º 14232/17.9T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.). Com efeito, conforme se refere no acórdão do STJ de 17-06-2021, Revista 879/17.7T8EVR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt., (citando Maria da Graça Trigo, in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 60), “em paralelo com o aprofundamento do problema surgiu uma posição intermédia que parte da exclusão da reparação do dano em abstracto mas que, num segundo nível, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção. Ao lesado pede-se apenas a prova que utiliza habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respectiva privação, derivem danos efectivos. Esta posição é hoje tendencialmente maioritária na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”.
No caso presente, ao contrário do que sucedeu neste último aresto em que não se deu como provado qualquer facto a respeito da utilização do veículo quando tal havia sido alegado por respeito à circunstância do demandante ser o utilizador habitual (o que motivou a descida dos autos para ampliação da matéria de facto), não ficando aqui provado qual era a utilização que era feita pelos autores do veículo mas apenas a impossibilidade deste circular e o tempo da sua reparação, entendemos, atenta a denominada tese intermédia a que aderimos, não terem os autores demonstrado os factos necessários mínimos ao reconhecimento ao direito a uma indemnização a título de privação do uso do veículo, o qual não se pode presumir com base nos escassos factos dados como provados.».
Antecipando, somos em subscrever neste caso tal entendimento, nem o Acórdão do STJ invocado pelo apelante nas suas conclusões de recurso se reporta à mesma situação, mas sim relativo à falta de entrega de um imóvel. Pois, ainda que se entenda que o dano por si só poderá consistir na mera privação do uso, no caso concreto não lograram os AA. provar que utilizavam tal veículo, facto que alegaram, ou seja, falhará desde logo o “uso”.
Com efeito, o prejuízo ou dano consubstancia-se num sacrifício, tenha ou não conteúdo económico, e uma das formas possíveis é a pessoa deixar de poder gozar de todo ou de que passa a ter um gozo mais reduzido ou precário (Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra, 3ª edição, pág.s 326 e 327). Logo, verificado o sinistro, o segurado ou o tomador, consoante a concreta situação ocorrida, têm o dever, ex bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua propagação (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).( A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina 2013, pág. 699).
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, in www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente os acórdãos do mesmo Tribunal 5 de Julho de 2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados.).  Mas subjacente a tal dano está sempre a utilização do veículo, pois é este o pressuposto da privação do uso, daqui que entendemos neste caso subscrever o exposto na decisão sob recurso. Ou seja, não é necessária a prova dos proveitos concretos obtidos com a utilização do veículo ou os eventuais gastos decorrentes da impossibilidade da sua utilização, porém, já compete provar que era feito uso do veículo, pois é este o dano que se visa indemnizar. Defendemos, por norma, que tal dano deva ser indemnizado, mas tendo sempre como pressuposto que o veículo era utilizado, o que in casu o Autor alegava e não logrou provar.
Na verdade, não se insurge o Autor ora apelante com a resposta negativa contida em L., resultando não provado que: ”O veículo de matrícula RG era utilizado pelos autores para se fazerem deslocar diariamente e não fosse o acidente continuariam a utilizar o veículo”, nem sequer no sentido de se considerar, pelo menos, a primeira parte de tal ponto, ou seja, que o veículo seria utilizado pelos Autores. Donde, haverá que retirar as consequências de tal ausência de prova.  Daí que se defenda, no caso, tal posição dita intermédia, defendida igualmente na sentença sob recurso.
Assim, não logrando o Autor fazer tal prova soçobra o recurso do mesmo.
*
IV. Decisão:
Em face de tudo o exposto, Acorda-se em:
a) Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu;
b) Julgar parcialmente procedente o recurso da Autora e, consequentemente, altera-se a sentença quanto ao segmento decisório relativo ao valor devido a título de danos não patrimoniais que se fixa em 20.000€, mantendo-se no mais o decidido;
c) Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor.
Custas do recurso de apelação da ré pela mesma. Da apelação da autora, pela mesma e pela ré, na proporção de 70% para a A. e 30% para a ré. Do recurso subordinado do Autor pelo mesmo.
Registe e notifique.
Lisboa, 26 de Outubro de 2023
Gabriela de Fátima Marques
António Santos
 Teresa Soares (com voto que antecede relativamente ao recurso subordinado do Autor)

Voto vencida quanto à questão da privação do uso
Depois de devidamente ponderada a questão e conforme já decidi em recente acórdão de 11/5/2023, proferido no processo 24292/19.2T8LSB.L1 vim a perfilhar o entendimento de que quanto à privação do uso “o lesado não tem que demonstrar o prejuízo que concretamente lhe adveio, sendo a mera privação de uso um dano em si mesmo” independentemente da prova do seu uso.
Neste sentido Ac. de 5 de Julho de 2007, proc. 07B1849 (Santos Bernardino) “Entendemos que a privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável. Essa tem sido também a jurisprudência deste Tribunal.
O dono do veículo, ao ser-lhe tornada impossível a utilização desse veículo durante o período em causa, sofre uma lesão no seu património, uma vez que deste faz parte o direito de utilização das coisas próprias. E essa lesão é avaliável em dinheiro, uma vez que a utilização de um veículo automóvel no comércio implica o dispêndio de uma quantia em dinheiro. A medida do dano é, assim, definida pelo valor que tem no comércio a utilização desse veículo, durante o período em que o dono está dele privado.
O dano produzido atinge, neste caso, a propriedade – direito que tem como manifestações, entre outras, a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela; possibilidade e capacidade que são retiradas ao proprietário durante o tempo em que, por via do dano produzido, está privado do veículo. E a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado. Cremos ser este o entendimento de alguma doutrina alemã; e, não parece ser diferente o pensamento do Prof. Gomes da Silva, para quem o dano consiste sempre ou na privação ou deterioração de um bem, ou na frustração de um fim. “O bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e, nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano há sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.
A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é, pois, um dano – e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
Ac. STJ de 29 de Outubro de 2020, proferido no processo 515/04.1TBGDM.P1.S1 (Tomé Roque Gomes), entendendo que basta a privação do uso: ” diremos que a privação do uso e fruição de um bem sofrida pelo seu titular ou detentor em consequência de um facto ilícito de outrem exprime o próprio evento danoso concretizável na sua projeção consequencial sobre o património do lesado.
Esta privação consistirá, desde logo, na supressão da disponibilidade material do bem e, consequentemente, na frustração do aproveitamento das utilidades económicas do mesmo, por parte do lesado, durante o tempo em que perdurar a privação, o que se traduz numa diminuição temporária do desfrute de um elemento patrimonial.
Tal privação assumirá assim, objetivamente, os contornos de um dano primário – dano-evento -, independentemente dos múltiplos danos secundários consequenciais que daquele derivem.
O valor económico dessa diminuição corresponderá ao valor dos aproveitamentos que o lesado deixou de ter e que eram suscetíveis de ser obtidos através de uma aplicação do bem segundo a sua função económica normal aferida pelo contexto de vida ou atividade do lesado. É certo que o lesado poderá, na maioria das situações, suprir a falta desses aproveitamentos, recorrendo a bens substitutivos, casos em que o dano corresponderá, em princípio, ao valor das despesas de substituição.
Mas pode bem suceder que o não possa ou não queira fazer, seja porque não possui disponibilidades financeiras para o efeito, seja porque não encontra um bem que satisfaça as necessidades goradas, ou mesmo por qualquer outra razão objetiva ou meramente subjetiva. Em qualquer destes casos, o titular do bem não deixará, por isso, de sofrer a falta do aproveitamento económico na utilização do bem patrimonial objeto da violação durante o período da privação.
Esta falta de aproveitamento tanto pode consistir na mera frustração da aplicação direta do bem à satisfação imediata das necessidades goradas, como ainda alcançar os ganhos que poderia obter através da disponibilidade material do bem de que ficou privado, em particular, quando se trate de bens de investimento. Na primeira hipótese, estaremos perante um dano emergente; na segunda, perante a frustração de lucros cessantes.
Nesta perspetiva, o dano ocorrerá logo que à privação corresponda a falta de aproveitamento económico do bem, em qualquer das suas dimensões, por parte do seu titular ou detentor.”
Ac. STJ de 5 de Julho de 2018, proc. 176/13.7T2AVR.P1.S1 relatado por Abrantes Geraldes onde se refere “Quanto à ressarcibilidade do dano da privação do uso dir-se-á, em primeiro lugar, que a jurisprudência que a recorrente cita em sentido contrário (de 2008) à que foi adotada pelas instâncias foi larga e consistentemente ultrapassada por jurisprudência posterior, designadamente da emanada deste Supremo, que passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações, como a dos autos, em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas.
Outra tese ainda mais benévola para o lesado é defensável e encontra também na jurisprudência bastas adesões no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação.
Essa é a tese que o ora relator defendeu na monografia citada pela recorrente (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso), a qual é compartilhada por diversos autores também citados pela recorrente e com adesão de um largo setor da jurisprudência.” - acórdãos acessíveis na base de dados da dgsi.
Na monografia citada pode ler-se a pág. 39/41 que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”.
Entendo dever prevalecer esta tese, mais benévola, por ser, a meu ver, a que melhor salvaguarda os interesses do lesado que se viu privado do bem que antes estava na sua plena disponibilidade para usar como e quando bem entendesse.
Assim sendo atribuiria a indemnização com base na mera privação de uso, apenas com base na prova da privação.
Teresa Soares