Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
872/18.2T8LSB-B.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: EXECUÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITOS EM MASSA
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
OBRIGATORIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - Na cessão de créditos em massa, não é preciso deduzir incidente de habilitação de cessionário. Basta o cessionário juntar aos próprios autos cópia do contrato de cessão e, não sendo posta em causa a habilitação pelo cedente ou pela parte contrária, considera-se habilitado o cessionário, sem necessidade de despacho judicial.
2 - Não havendo dedução de incidente de habilitação de cessionário, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça.
3 - Por força do art. 136º nº 1 do C.P.C., “a forma dos diversos atos processuais é regulada pela lei que vigore no momento em que são praticados”, pelo que é possível ao cessionário juntar cópia do contrato de cessão ao abrigo do art. 3º nº 2 do DL 42/2019 mesmo no caso de cessão de créditos em massa celebrada antes da entrada em vigor daquele diploma legal.
4 - Prevendo o art. 3º nº 2 do DL 42/2019 apenas a junção ao processo de cópia do contrato de cessão, importa considerar que não incumbia ao cessionário, no requerimento de junção daquele documento, alegar a verificação da condição suspensiva e oferecer prova dessa verificação.
5 - A prova da verificação da condição só seria exigível caso o cedente ou a parte contrária, notificadas da junção da cópia do contrato de cessão e no exercício do contraditório, suscitassem a questão da não verificação da condição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na ação executiva que N… move contra I…, G…, C…, F…, M… e A…, os executados interpuseram recurso da decisão que julgou procedente o incidente de habilitação e, consequentemente, declarou Ar… habilitada para prosseguir os autos de execução no lugar da exequente.
Na alegação de recurso, os recorrentes pediram que seja revogada a decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. O pedido de habilitação processual, ainda que simplificado ao abrigo do Decreto de Lei n° 42/2019, de 28 de Março, é um impulso processual pelo qual é cobrado taxa de justiça, dado que implica uma modificação subjectiva da instância, que não se enquadra na “normalidade da tramitação”, porque é uma excepção à regra da estabilidade da instância.
Ao decidir de modo diferente, o Tribunal a quo violou o art. 262° do CPC e o Regulamento de Custas Processuais, na rubrica “incidentes anómalos” da Tabela II.
2. A cessão de créditos a que se refere os presentes autos é anterior à entrada em vigor do Decreto Lei n° 42/2019, pelo que não pode a recorrida Ar… fazer-se valer do regime simplificado para a cessão destes créditos.
3. A cessão de créditos ficou sujeita a uma condição suspensiva, cuja eficácia designadamente perante os recorrentes só se verifica com o pagamento, cuja prova recai sobre a recorrida.
4. Logo, nem os recorrentes, nem o Tribunal dispõem de informação suficiente que lhes permita saber se a cessão de créditos que fundamenta a habilitação processual requerida produziu os seus efeitos.
5. Não se verificando os pressupostos acima que o Tribunal a quo não conheceu para verificar se a cessão é válida, apreciando designadamente toda a prova documental legalmente exigida, verifica-se a nulidade da sentença prevista nos termos do art. 615°, n° 1, al. d) do CPC.»
A Ar… respondeu à alegação dos recorrentes, concluindo que «bem andou o Tribunal “a quo”, pois que, decidindo, como decidiu, interpretou corretamente os factos, analisou devidamente a prova e aplicou de forma adequada o Direito.»
São as seguintes as questões a decidir:
- da nulidade da decisão;
- da falta de pagamento da taxa de justiça;
- da não aplicabilidade do DL 42/2019, de 28 de março; e
- da condição suspensiva.
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Na decisão recorrida, consta que “por escritura celebrada aos 18/03/2020 foram cedidos à aqui Requerente os créditos titulados pelo N…, cujo pagamento é objeto desta execução”.
Nessa escritura, pode ler-se:
“- Que a presente cessão de créditos fica sujeita à seguinte condição suspensiva: a produção de efeitos desta escritura fica dependente da verificação do pagamento do preço global dos créditos, melhor identificados no documento complementar UM à presente escritura, mediante transferência a efetuar a partir e para as contas acima indicadas, que deverá ser recebido em fundos com disponibilidade imediata até às dezasseis horas do dia vinte de Março de dois mil e vinte.         
- Que, sem prejuízo da verificação imediata da condição com a realização do pagamento nos termos referidos no parágrafo anterior, o N… confirmará a verificação da condição logo que a mesma ocorra, mediante documento escrito e assinado pelos representantes do N…, com reconhecimento presencial das assinaturas, o qual, para efeitos de averbamento da verificação da condição na presente escritura: 
i) Será entregue fisicamente à Notária P… até ao dia vinte de Março de dois mil e vinte, pelas vinte horas; ou       
ii) Caso a entrega física do documento de quitação nos termos atrás enunciados não seja possível, atentas as medidas excepcionais de contingência da pandemia Covid-19, o mesmo deverá ser digitalizado e entregue por advogado, até ao dia vinte e sete de Março de dois mil e vinte, peias vinte horas, através de correio eletrónico, para o endereço de e-mail… com assinatura digital de advogado aposta na mensagem de correio eletrónico, disponibilizando-se o original, em papel, logo que as medidas de contenção o permitam.      - Que o prazo de entrega do documento referido nos pontos i) e ii) supra, poderá ser estendido mediante acordo escrito entre as partes.     “
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Os recorrentes arguiram a nulidade da sentença com fundamento no disposto no art. 615º nº 1 al. d) do C.P.C., nos termos do qual “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta causa de nulidade da sentença está diretamente relacionada com o art. 608º nº 2 do C.P.C., segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Acresce dizer que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, anotação ao art. 668º).
Na fundamentação da decisão recorrida, pode ler-se:
«Ora, no que à oposição apresentada diz respeito, aquilo que se verifica é que a mesma foi apresentada por quem não interveio no contrato de cessão de crédito em causa.
Na verdade, nenhuma das partes que interveio na cessão de créditos a veio impugnar, nem a validade ou a transmissão desse direito.
Por outro lado, o que vem alegado pelos opoentes não se relaciona com a validade da transmissão nem com a circunstância da transmissão desse direito, não estando por conseguinte alegados fundamentos passíveis de suportar oposição à cessão.
Não obstante, diga-se que se mostra junto aos autos documento que comprova a cessão da carteira de créditos alegada; que a requerente identificou em termos concretos e percetíveis os créditos cedidos; e que e de acordo com a escritura de cessão junta, a mesma foi concretizada na vigência do Decreto-Lei 42/2019 (18/03/2020) que, estabelecendo um regime simplificado, não pressupõe o pagamento de taxa de justiça.
Assim sendo, verificando-se que os documentos junto aos autos pela Requerente provam a cessão operada, ao que não obsta a oposição deduzida pelos executados/ opoentes, impõe-se, na procedência do incidente suscitado, julgar habilitada a Requerente a prosseguir os termos dos autos executivos na posição antes ocupada pelo exequente.»
O tribunal recorrido apreciou a questão da taxa de justiça e a questão da aplicabilidade do DL 42/2019.
Quanto à condição suspensiva, o tribunal recorrido nada disse, sendo de salientar que, na oposição deduzida a 10 de setembro de 2021, os executados também nada disseram.
Certo é que o tribunal recorrido julgou a requerente habilitada, pelo que, se constava da escritura de cessão a estipulação de condição suspensiva e o tribunal recorrido não teve isso em conta, poderá haver erro de julgamento, mas não nulidade da decisão.
Assim, improcede a arguição da nulidade da decisão.
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Conforme resulta do art. 1º do DL 42/2019, de 28 de março, tal diploma “estabelece um regime simplificado para a cessão de créditos em massa”.
Nos termos do art. 2º do citado diploma, “considera-se cessão de créditos em massa aquela em que o cessionário seja uma instituição de crédito, sociedade financeira ou uma sociedade de titularização de créditos sempre que o preço de alienação global dos créditos a ceder seja, no mínimo, de (euro) 50 000,00, e a carteira seja composta por, pelo menos, 50 créditos distintos.”
O art. 3º do DL 42/2019, sob a epígrafe “habilitação legal do cessionário”, dispõe o seguinte:
“1 - O cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão.
2 - Para efeitos do número anterior, compete ao cessionário juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 356º do Código de Processo Civil.
….”
No preâmbulo do DL 42/2019, pode ler-se:
“Cria-se, assim, um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido”.
Assim, na cessão de créditos em massa, não é preciso deduzir incidente de habilitação de cessionário.
Basta o cessionário juntar aos próprios autos cópia do contrato de cessão e, não sendo posta em causa a habilitação pelo cedente ou pela parte contrária, considera-se habilitado o cessionário, sem necessidade de despacho judicial. O juiz, quando muito, determina que seja tida em conta a modificação subjetiva operada por força da lei.
Não havendo dedução de incidente de habilitação de cessionário, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça (no mesmo sentido, www.dgsi.pt Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 9 de setembro de 2021, processo 5584/12.8TBSXL-D.L1-2; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido a 18 de março de 2021, no processo 74/13.4TBGMT-G.G1).
A escritura de cessão de créditos junta pela Ar… foi celebrada a 18 de março de 2020 e o DL 42/2019, por força do seu art. 6º, entrou em vigor no dia 1 de julho de 2019.
Assim, não há dúvida que é aplicável o regime simplificado previsto no DL 42/2019 à cessão de créditos em massa em questão nestes autos.
Acresce dizer que, por força do art. 136º nº 1 do C.P.C., “a forma dos diversos atos processuais é regulada pela lei que vigore no momento em que são praticados”, pelo que é possível ao cessionário juntar cópia do contrato de cessão ao abrigo do art. 3º nº 2 do DL 42/2019 mesmo no caso de cessão de créditos em massa celebrada antes da entrada em vigor daquele diploma legal.
Nos termos do art. 270º do C.C., “as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva”.
A condição é “a cláusula por virtude da qual a eficácia de um negócio (o conjunto dos efeitos que ele pretende desencadear) é posta na dependência de um acontecimento futuro e incerto, por maneira que ou só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir” (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 356).
“… a razão de ser da estipulação condicional radica na incerteza do declarante de alcançar os fins a que se propõe com o negócio, porquanto, embora seja provável que venham a ser alcançados, não está afastada a dúvida sobre a sua futura verificação, uma vez que, na sua perspectiva, a finalidade a que se dirige o negócio depende de circunstâncias futuras que ele não domina e se lhe afiguram de verificação incerta” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 10 de dezembro de 2009, processo 312-C/2000.C1-A.S1).
 Consta da escritura celebrada que a “cessão de créditos fica sujeita à seguinte condição suspensiva: a produção de efeitos desta escritura fica dependente da verificação do pagamento do preço global dos créditos, melhor identificados no documento complementar UM à presente escritura, mediante transferência a efetuar a partir e para as contas acima indicadas, que deverá ser recebido em fundos com disponibilidade imediata até às dezasseis horas do dia vinte de Março de dois mil e vinte”.
Tendo as partes subordinado a cessão de créditos a condição suspensiva, o cessionário só passa a ser o credor quando se verifica a condição.
Prevendo o art. 3º nº 2 do DL 42/2019 apenas a junção ao processo de cópia do contrato de cessão, importa considerar que não incumbia ao cessionário, no requerimento de junção daquele documento, alegar a verificação da condição suspensiva e oferecer prova dessa verificação.
A prova da verificação da condição só seria exigível caso o cedente ou a parte contrária, notificadas da junção da cópia do contrato de cessão e no exercício do contraditório, suscitassem a questão da não verificação da condição.
Na oposição deduzida a 10 de setembro de 2021, os executados nada disseram quanto à condição suspensiva.
A oposição deduzida pelos executados não tem a virtualidade de transformar a habilitação legal em habilitação processual.
Expressões empregues pelo tribunal recorrido como “os documentos junto aos autos pela Requerente provam a cessão operada”, “procedência do incidente suscitado” e “julgar habilitada a Requerente” são reveladoras de alguma confusão por parte do tribunal recorrido entre a habilitação prevista no DL 42/2019 e a habilitação processual.
No entanto, corrigir tal confusão está fora do objeto do presente recurso.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes.

Lisboa, 21 de Outubro de 2021
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo