Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20644/15.5T8LSB.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
IN ITINERE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: Não descaracteriza um acidente de trabalho in itinere a circunstância da sinistrada que se dirigia do trabalho para casa, quando o trânsito parou, ter saído do seu carro e abordado o condutor que seguia na sua frente dizendo-lhe “bateste-me no carro” e “pára” e ter batido no vidro do lado do condutor, agarrando-se ao carro e correndo ao lado deste, quando o veículo arrancou na mudança da sinalização para verde e que acabou por cair por se ter desequilibrado ou tropeçado, vindo a ser atropelada mortalmente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
Nos presentes autos em que é sinistrada AAA, realizada a tentativa de conciliação, o Ministério Público considerou as partes como não conciliadas em virtude da Seguradora BBB, S.A.” não reconhecer a caracterização do acidente como de trabalho e não reconhecer o nexo causal entre as lesões que ocasionaram a morte e o acidente.
Nessa sequência, veio, CCC, residente na Rua (…) Ramada, ao abrigo do disposto no artigo 117.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo do Trabalho, intentar acção declarativa com processo especial emergente de acidente de trabalho contra:
1 - BBB, S.A., pessoa colectiva nº (…), com sede na Rua (…) Lisboa;
2- DDD, E.P.E., com NIF (…), com sede na Rua (…) Lisboa, pedindo que a acção seja julgada procedente e, consequentemente, as Rés sejam condenadas no pagamento das seguintes prestações:
a) Despesas de funeral, no montante de €1.700,00;
b) Pensão anual e vitalícia - actualizável - no montante de € 17.918,60, com início em 16-07-2015, uma vez que já se encontra o 1º A. reformado;
c) A quantia de € 5.533,70, a título de subsídio por morte;
d) O direito a indemnização por despesas de transporte, no valor de €15,00;
e) Juros vencidos e vincendos até integral pagamento, nas custas, procuradoria e demais encargos.
Para tanto invocou em resumo:
-No dia 10 de Julho de 2015, pelas 19.15 h., AAA foi vítima de atropelamento, com arrastamento, na via pública em Lisboa (…), no sentido (…) no trajecto entre o seu local de trabalho, Hospital de (…)  e a sua residência, no percurso que fazia diariamente e de forma habitual;
-O acidente ocorreu numa sexta-feira, em hora de trânsito;
- Na sequência do acidente de que foi vítima, advieram para a mesma, necessária e directamente, as lesões corporais descritas e examinadas no relatório de autópsia as quais lhe determinaram a morte ocorrida no dia 11-07-2015, pelas 00.15 h;
-Ao tempo do acidente, a vítima trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização do (…), E.P.E. exercendo as funções de enfermeira chefe, auferindo uma retribuição mensal de € 3.125,94, bem como subsídio de refeição no valor de € 93,94 que corresponde a uma remuneração anual de € 44.796,50;
-A 2ª R. tinha a sua responsabilidade transferida para a entidade seguradora “BBB,
(…), S.A.”;
-A vítima deixou como seu beneficiário legal o cônjuge sobrevivo e, herdeira, uma filha, de 27 anos de idade;
-Encontra-se a correr processo-crime, para averiguação da responsabilidade do condutor que atropelou a vítima, mulher e mãe dos A.;
 -Na tentativa de conciliação, a 2ª R. reconheceu a existência de contrato de seguro de acidentes de trabalho, abrangendo, porém, apenas a remuneração anual da sinistrada no valor total de € 35.552,86 (€2.082,34 x 14 M + € 93,94 x 11 + € 197,23 x 12 M), não reconhecendo a existência e a caracterização do acidente como acidente de trabalho, nem reconhecendo o nexo causal entre as lesões que ocasionaram a morte e o acidente; e
- O sinistro ocorreu enquanto a sinistrada se encontrava a trabalhar sob ordens, direcção e fiscalização da Ré.
Citadas, as Rés contestaram.
A Ré BBB, SA, aceitou que o acidente ocorreu no (…) quando a sinistrada se deslocava do trabalho para a sua residência, mas acrescentou que a conduta da desditosa sinistrada tem enquadramento nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, uma vez que a sinistrada se colocou consciente e voluntariamente na condição de poder ser atropelada, situação que veio a ocorrer e que, atenta a matéria de excepção que invocou não pode vingar a presunção de existência e caracterização de acidente de trabalho vertida nos artigos 8º e 9ºda LAT.
Pediu, a final, que a acção seja julgada improcedente com todas as consequências legais.
O Réu DDD, EPE defendeu-se invocando, em síntese, que a massa salarial auferida pela sinistrada, nos 12 meses anteriores ao acidente de viação, foi de € 41.995,66 que deve considerar-se totalmente transferida para a Companhia de Seguros, que a sinistrada demorou quase duas horas a vencer a distância entre o (…) e o (…) em dia que não ocorreu qualquer constrangimento de trânsito, o que indicia que a sinistrada não se dirigia para casa quando foi atropelada o que legitima a descaracterização do acidente, que foi a sinistrada que se envolveu na situação dos autos interrompendo o trajecto e colocando-se no meio da faixa de rodagem à mercê do comportamento de que acabou por ser vítima, que foi a conduta da sinistrada que provocou o desfecho do incidente, uma vez que se encontrava a conduzir uma viatura, a qual lhe pareceu que havia colidido com outra, o que despoletou que saísse do carro e ficasse à mercê do comportamento do outro condutor, sem cuidar de se proteger, permanecendo no passeio ou chamando as autoridades.
Finalizou pedindo que a acção seja julgada improcedente com a sua absolvição do pedido.
O Autor foi convidado a aperfeiçoar a petição inicial, o que fez, invocando que o tempo estimado sem trânsito do local de trabalho da sinistrada e a sua residência é de 47 minutos, sendo que no dia em causa era sexta-feira e estava trânsito.
Respondeu a Ré seguradora reafirmando o alegado em sede de contestação e acrescentando existirem fundadas dúvidas de que a sinistrada, no momento do acidente, estivesse no tempo e local de trabalho.
Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes resultantes da tentativa de conciliação e elaborada a base instrutória.
Teve lugar a audiência de julgamento, tendo a Ré seguradora declarado nos autos que a retribuição que lhe foi transferida era de €41.995,66 como alegado pela entidade empregadora, aceitando, assim, o facto 16º da base instrutória.
Foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a presente acção especial emergente de acidente de trabalho e, consequentemente, decide-se condenar a ré BBB, SA a pagar ao autor CCC:
a) a pensão anual e vitalícia, actualizável, desde 12-07-2015, no valor de € 12598,70 (doze mil, quinhentos e noventa e oito euros e setenta cêntimos) até à idade de reforma por velhice, e no valor de € 16798,26 (dezasseis mil, setecentos e noventa e oito euros e vinte e seis cêntimos) a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou a outra que vier a ser legalmente fixada, desde 12-07-2015, até integral e efectivo pagamento;
b) o subsídio por morte no valor de 5533,70€ (cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou a outra que vier a ser legalmente fixada, desde 12-07-2015, até integral e efectivo pagamento;
No mais absolvo os RR do pedido contra eles formulado.
Nos termos do art. 120º do C.P.Trabalho, fixa-se o valor da causa em 181814,71€.
Custas pelo Autor e pela Ré BBB, SA, na proporção de 10% para o primeiro e 90% para a segunda.
Registe e notifique.”
Inconformada com a sentença, a Ré seguradora recorreu e formulou as seguintes conclusões:
“1ª A ora Apelante não se pode conformar com a douta sentença que foi proferida nos presentes autos, por considerar que não foi feita a melhor apreciação jurídica dos factos provados.
2ª Foi a sinistrada quem deu causa, única e exclusiva, ao acidente de que veio a ser vítima sendo, com o devido respeito, evidente a forma temerária como a sinistrada parou o veículo na faixa de rodagem, abordou o outro condutor e depois se agarrou ao tejadilho do veículo que se encontrava em movimento.
3ª A sinistrada era enfermeira, não podendo por isso ignorar o risco de vida que a sua conduta acarretava para sua integridade física, e também por este facto, deve a sua conduta ser considerada negligência grosseira.
4ª O percurso da sinistrada, não teve apenas uma, mas sim duas interrupções, sendo que a última ocorreu no momento em que aquela parou o veículo em plena faixa de rodagem, motivando tal atitude de seguida uma sucessão de factos, em crescendo, que culminaram com a sua morte.
5ª Entende Apelante que a paragem da sinistrada em plena faixa de rodagem, numa altura em que havia trânsito na via, não deve ser considerada uma interrupção ou desvio determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nem houve caso de força maior ou fortuito, nem há prova de que o veículo atropelante tenha colidido com o veículo da sinistrada no momento anteriores ao acidente.
6ª Não pode beneficiar o Apelado do disposto no artº 9º da LAT no que concerne à extensão do conceito de acidente de trabalho, previsto no sobredito dispositivo legal, atenta as interrupções injustificadas ocorridas no trajecto da sinistrada.
7ª No que concerne à primeira interrupção, é certo que, não resulta provado nos autos a que horas a sinistrada abandonou as instalações do Hospital, todavia com o devido respeito, essa prova não cabia à Ré Apelante, atento o disposto nos artº 342º nº1 e 346º, ambos do CC, o que se alega para todos os devidos e legais efeitos, sendo que se provou que o acidente ocorreu quase duas horas após a picagem do cartão de saída.
8ª Não é aceitável que a sinistrada interrompa o seu trajecto, para interpelar o condutor de um outro veículo e muito menos se agarre ao tejadilho de um carro que entrou em movimento, tal situação não é compaginável com uma situação de necessidade atendível do trabalhador, não é um caso de força maior, nem um caso fortuito.
9ª O comportamento da desditosa sinistrada foi motivado única e exclusivamente por questões da sua esfera privada, pessoal e intransmissível, alheio a qualquer desiderato ou qualificação de necessidade atendível e igualmente alheio à prestação de trabalho e ao poder de autoridade, ainda que difuso, da entidade empregadora.
10ª Analisando devidamente os factos provados, não tem dúvida a ora Apelante que a situação de facto descrita e provada na fundamentação de facto, configura se não uma, várias das previsões legais vertidas no sobredito artº14º da LAT, por violação do disposto no artº 100º do CE e bem assim pela violação dos mais elementares princípios de segurança pessoal, razões pelas quais ocorreu o acidente de a sinistrada veio a ser vítima.
 11ª Foi a conduta da sinistrada que deu causa única e exclusiva ao acidente de que foi vítima, atenta a temeridade do seu comportamento melhor descrito nas alíneas P a U dos factos provados.
12ª Verifica-se a violação do disposto no artº 14º al. a) e b) e ainda 8º e 9º nº 3, todos da LAT e artº 100º do CE.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que Vªs Excelências doutamente suprirão deve a mui douta sentença ser revogada, absolvendo-se a Apelante do pedido, com todas as legais consequências, como é de inteira, Justiça !!”       
O Autor contra alegou pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido na forma, modo de subida e efeito adequados.
Neste Tribunal, a Exm.ª Srª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do recurso ser julgado improcedente, mantendo-se o julgado.
Notificadas as partes do teor do mencionado parecer, não responderam.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso limitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), no presente recurso há que analisar as seguintes questões:
1ª- Se, no caso, é de excluir a aplicação do nº 3 do artigo 9º da LAT.
2ª-Se o acidente dos autos está descaracterizado por terem ocorrido as circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 14º da LAT.
Fundamentação de facto
A sentença considerou provados os seguintes factos:
A. No dia 10 de Julho de 2015, pelas 19.15h., AAA foi vítima de atropelamento, com arrastamento, na via pública em Lisboa (Campo Grande).
B. Na sequência deste atropelamento, advieram para AAA, necessária e directamente, as lesões traumáticas crânio-encefálicas melhor descritas no relatório de autópsia junto a fls. 128 a 132, cujo teor se dá aqui por reproduzido, as quais lhe determinaram a morte ocorrida no dia 11-07-2015, pelas 00.15 h..
C. Na data referida em A), AAA trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização do “DDD” aqui 2ª R., com sede na Rua (…), em Lisboa, onde exercia as funções de Enfermeira Chefe.
D. A sinistrada auferia subsídio de refeição no valor de € 93,94 x11, por ano.
E. A 2ª R. tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho que pudessem ocorrer com AAA transferida para a entidade seguradora “BBB, S.A.”, aqui 1ª R., em função da retribuição anual de € 41995,66, que corresponde a € 2135,68 (de retribuição base) x 14 + 790,20 (subsídio por horário acrescido) x 14 + 93,94 (subsídio de refeição) x 11.
F. AAA faleceu no estado de casada com o autor.
G. AAA faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade e deixou como únicos herdeiros:
- o cônjuge sobrevivo
- a filha (…), nascida a (…).
H. A 1ª R. reconheceu a existência de contrato de seguro de acidentes de trabalho, abrangendo a remuneração anual da sinistrada no valor total de € 41.995,66 €.
I. A sinistrada tinha como última residência habitual a Rua (…), Odivelas.
J. O réu DDD procedeu ao pagamento do subsídio por morte em outubro de 2015 no valor de €1257,66, na sequência de requerimento do autor e através de transferência bancária para a conta por este indicada.
K. No momento referido em A) a falecida AAA regressava à sua residência, vinda do Hospital (…), na Rua (…), em Lisboa, onde tinha estado a trabalhar. (1.º BI)
L. Pelo percurso que fazia diariamente (Rua (…) . (2.º BI)
M. Gastando habitualmente cerca de 47 minutos. (3.º BI)
N. Momentos antes do atropelamento, a sinistrada deslocava-se no (…), no sentido (…). (6.º)
O. Imediatamente à frente do veículo da sinistrada, circulava na mesma via e no mesmo sentido de marcha, o veículo com a matrícula (…), conduzido por (…). (7.º)
P. Quando o trânsito parou, a sinistrada parou também o seu veículo saiu do mesmo e dirigiu-se ao veículo terceiro dizendo “bateste-me no carro … pára …”.. (8.º e 9.º)
Q. Abordou então o condutor do veículo, batendo no vidro do carro do lado do condutor. (10.º)
R. Quando a sinalização semafórica mudou para verde, o condutor do veículo arrancou e a sinistrada agarrou-se ao carro, tendo esta corrido ao lado do mesmo, agarrada ao veículo. (11.º)
S. A dado momento, a sinistrada caiu ao solo, por se ter desequilibrado ou tropeçado. (12.º)
T. Tendo sido atropelada pelo veículo com a matrícula (…). (13.º)
U. O acidente ocorreu numa sexta-feira, em hora de trânsito e estava trânsito. (14.º)
V. Para além do referido em D) a sinistrada auferiu:
- Entre Julho de 2014 e Setembro (inclusive) de 2014 a remuneração base de 2281,71€ acrescida de um suplemento devido pelo horário no montante de 844,23€;
- em outubro de 2014 auferiu a remuneração base de 1620,01€, acrescida de subsídio de férias/natal e um suplemento devido pelo horário no montante de €523,42;
- em novembro de 2014 recebeu a remuneração base de 1609,67€, acrescida de subsídio de férias/natal;
- em dezembro de 2014 recebeu 2099,17€, acrescida de subsídio de férias/natal
- em janeiro de 2015 auferiu 2135,68€ de remuneração base, acrescida de suplemento devido pelo horário no montante de 13,51€;
- entre fevereiro de 2015 e junho de 2015 auferiu a retribuição base de 2135,68€ de remuneração base. (15.º)
W. À data do acidente, para além do montante referido em D), a sinistrada auferia a remuneração base ilíquida de 2281,71€.
X. No dia referido em A) a sinistrada picou o ponto de saída, no Hospital (…)  às 17 h 23 m. (art. 17.º BI).
Y. Entre o Hospital de (…)  e o local do acidente (Campo Grande), pelo percurso Rua (…), distam cerca de 6 KM e entre o (…)  e a Rua (…), distam cerca de 7,7 Km (art. 412.º, n.º 1 do CPC).
Z. Por sentença proferida no dia 19-12-2017, pelo Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, (…)  foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência grosseira, por no dia 10 de julho de 2015 ter atropelado mortalmente AAA, na via pública.
*
Fundamentação de direito
Comecemos, então, por apreciar se, no caso, é de excluir a aplicação do nº3 do artigo 9º da LAT.
Após considerar que à presente acção são aplicáveis as disposições do CT 2009 e da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, o que mereceu a concordância das partes e debruçar-se sobre o conceito de acidente de trabalho, escreve-se na sentença recorrida o seguinte:
“A caracterização dos acidentes de trajecto, in itinere, depende de dois elementos fundamentais, cuja prova incumbe ao autor, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC (vd neste sentido o recente acórdão do STJ de 14-06-2017, publicado in www.dgsi.pt – Proc. n.º 620/13.3TTVCT.G1):
1) a via de ligação, o iter, entre os locais considerados,
2) e o tempo normalmente gasto nessa deslocação.
Estes dois elementos podem ser objecto dos ajustamentos previstos no n.º 3 do mesmo dispositivo, motivados nas circunstâncias atendíveis acima referidas.
 Vejamos então se, no caso concreto, se reúnem os referidos dois elementos:
a) No que ao trajecto normalmente utilizado diz respeito, não há dúvidas que face ao facto k) e L) o acidente deve ser considerado in itinere porque ocorreu no percurso que era utilizado habitualmente pela sinistrada para se deslocar do seu local de trabalho – Hospital de (…), em Lisboa – para sua residência, em (…), Loures.
b) No que ao período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador se refere: decorre da matéria de facto dada como provada que o tempo habitualmente gasto pela sinistrada no trajecto entre o seu local de trabalho e a sua residência era de cerca de 45 minutos e que o acidente ocorreu às 19:15 horas, no (…),  ou seja, a aproximadamente a meio do trajecto, 1h e 52m depois de ter picado o ponto no gabinete do hospital onde trabalhava, o que ocorreu às 17h23m.
Não obstante a Ré seguradora – cfr. art. 3.º - concordar que o acidente ocorreu quando a sinistrada se deslocava do local de trabalho para a sua residência – a entidade empregadora, põe tal situação em causa.
No que ao período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador se refere, importa ponderar a lição de JÚLIO GOMES, in O Acidente de Trabalho, Coimbra Editora, pág. 175 «O acidente há-de ocorrer num segmento temporal (…) próximo da hora de saída do trabalho do trabalhador, sem esquecer (…) que circunstâncias várias podem influir na duração de um trajeto (engarrafamento, situações anómalas de transito por força, por exemplo de uma greve de transportes, etc). Esta referência ao período de tempo habitualmente gasto era particularmente importante, como já atrás dissemos, quando o fundamento para a inclusão dos acidentes in itinere nos acidentes de trabalho consistia num risco acrescido a que o trabalhador ficava exposto pelo trajecto. (…) A circunstância de hoje o acidente in itinere ser tutelado mesmo que o trajecto não acarrete qualquer agravamento do risco permite quanto a nós, uma visão um pouco mais lassa do elemento temporal ou cronológico. No fundo, este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim o essencial: o trajecto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a prestação.
- Impõe-se também analisar o que já foi decidido pelos Tribunais Superiores quanto ao tempo gasto na deslocação. Assim:
 não foi considerado acidente de trabalho, o acidente ocorrido com trabalhador que tendo largado o trabalho cerca do meio-dia, só a meio da tarde é que decidiu ir passar o fim de semana fora e só iniciou a viagem de regresso à sua residência ocasional cerca de quatro horas depois de ter deixado de trabalhar.- STJ 26-10-2011 (proc. n.º 154/06.2CTB.C1.S1.
- No entanto, o facto do trabalhador não ter regressado imediatamente à residência após o trabalho, por ter ficado cerca de 15 minutos a conversar com um amigo, no café, não afastou a qualificação do acidente como de trabalho - acórdão da RC, de 16/10/ 2008, CJ, 69/4, tendo-se considerado que se tratou dum atraso razoável e dentro da normalidade da vida.
Importa porém considerar que estes acórdãos foram proferidos à luz da Lei 100/97, de 13 de Setembro e do DL 143/99, de 30 de abril que e no que aos acidentes in itinere diz respeito não é totalmente idêntica à lei actual. Com efeito, o DL 143/99, de 30 de abril impunha que o acidente in itinere tinha que se ter verificado durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador. Actualmente a Lei 98/2009, estabelece que é considerado acidente de trabalho o que se verifique “durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador.”.
 Postas estas considerações, vejamos o caso dos autos:
- a sinistrada picou o ponto às 17:23 horas;
- não foi apurada a hora a que efectivamente a autora saiu do hospital.
- habitualmente a autora despendia cerca de 45 minutos a chegar a casa, sendo que o local do acidente situa-se aproximadamente a meio do percurso.
- o acidente ocorreu às 19:15 horas;
- Era sexta feira, dia 10/07, e estava trânsito.
 O facto de se estar no centro da cidade de Lisboa, em hora de ponta e num dia de trânsito permite-nos ponderar que a autora possa ter demorado mais de uma hora a vencer os 6 Km que distam entre o Hospital (…)  e o campo Grande, o que levaria a considerar que a autora teria saído cerca das 18:15 horas do hospital, ou seja, ter-se –ia que ponderar que a autora demorou quase 50 minutos a sair do hospital após ter picado o ponto.
Ora, tendo em consideração o elemento teleológico da norma, nos termos do qual o que releva é tutelar o trajecto que o trabalhador empreende para o trabalho e o de regresso a casa, e estando a sinistrada a regressar a casa após um dia de trabalho que ocorreu no seu local de trabalho e no trajecto que habitualmente utilizava, importa considerar a dilação temporal existente cuja razão se desconhece é razoável e não é relevante para deixar de se considerar o acidente em causa como de trabalho.
 No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-10-2008, publicado na CJ 2008, Tomo IV, pág. 69 e seguintes, considerou-se que: “não é razoável, nem se pode exigir a qualquer trabalhador que, logo após o fim do seu trabalho inicie de imediato o seu regresso a casa, ou seja, passando a expressão desate a correr para casa. Fere a sensibilidade de qualquer pessoa que no espírito da lei se encontre essa exigência, sendo de aceitar que entre o fim da jornada laboral e o início do regresso possa mediar algum tempo desde que este não se mostre excessivo.”
Por conseguinte, tendo ficado demonstrado que a autora vinha do Hospital de (…), após um dia de trabalho, em direcção à sua residência, quando ocorreu o acidente, menos de duas horas após picar o ponto, impõe-se qualificar o acidente em apreço como um acidente de trabalho, tal como definido no art. 9º, n.º 1 e 2 alínea a) da Lei 98/2009, de 4 de setembro, e, por via disso, indemnizável.
 Acresce referir que o acidente não deixa de ser indemnizável – como pretende a EE
(Entidade Empregadora) – pelo facto de a sinistrada ter saído da viatura que conduzia – numa interrupção forçada e justificada desse trajecto, na sequência de a sinistrada ter considerado que a sua viatura havia sido embatida.
 Com efeito, ficou demonstrado que a sinistrada seguia na direcção Entrecampos (…), quando o trânsito parou e a sinistrada saiu da sua viatura e se dirigiu ao condutor da viatura que seguia à sua frente pedindo-lhe para parar porque ele lhe tinha batido no veículo.
Esta interrupção, que durou o tempo de um sinal passar de vermelho a verde, pela sua curta extensão não assume relevância para efeitos de agravamento do risco da deslocação, por fazer parte do percurso a eventualidade de uma paragem nestas situações, mas ainda que assim se considerasse sempre se dirá que a paragem é devida a uma necessidade atendível: a sinistrada não se afasta da sua viatura por um motivo fútil ou sem razão, sai da sua viatura, como sairia qualquer pessoa na sua situação para resolver um sinistro que acontecera ou pelo menos que a sinistrada estava convicta ter ocorrido, pois só assim se compreende que a mesma se dirija à viatura da frente para parar, dizendo “bateste-me no carro … pára” (cfr. facto P).
No acórdão do STJ de 07-05-2008, processo n.º 08S0148, publicado in www.dgsi.pt foi considerado acidente de trabalho indemnizável aquele em que o trabalhador “(…) sofreu um AVC no trajecto que efectuava para o seu local de trabalho, após ter saído da viatura, numa interrupção forçada e justificada desse trajecto, ditada por causa de força maior (na sequência de colisão de outro veículo no seu) (…)”.
Em suma, ainda que se considere que a paragem da sinistrada e saída da viatura é uma interrupção, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 9.º, n.º 3 da Lei 98/2009, sempre a mesma deve ser considerada uma necessidade atendível do trabalhador.”
Não obstante a Recorrente ter admitido que o acidente ocorreu no Campo Grande quando a sinistrada se deslocava do local de trabalho para a sua residência, discorda do entendimento do Tribunal a quo defendendo, em suma, que a paragem da sinistrada em plena faixa de rodagem, numa altura em que havia trânsito na via, não deve ser considerada um interrupção ou desvio determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nem houve caso de força maior ou fortuito, nem há prova de que o veículo atropelante tenha colidido com o veículo da sinistrada no momento anterior ao acidente, que as interrupções ocorridas no trajecto da sinistrada são injustificadas, que, no que concerne à primeira interrupção, é certo que não resulta provado nos autos a que horas a sinistrada abandonou as instalações do Hospital, mas essa prova não cabia à Apelante, sendo que se provou que o acidente ocorreu quase duas horas após a picagem do cartão de saída, que não é aceitável que a sinistrada interrompa o seu trajecto para interpelar o condutor de um outro veículo e muito menos se agarre ao tejadilho de um carro que entrou em movimento, tal situação não é compaginável com uma situação de necessidade atendível do trabalhador, não é um caso de força maior, nem um caso fortuito, tendo o comportamento da desditosa sinistrada sido motivado única e exclusivamente por questões da sua esfera privada, pessoal e intransmissível, alheio a qualquer desiderato ou qualificação de necessidade atendível e igualmente alheio à prestação de trabalho e ao poder de autoridade, ainda que difuso, da entidade empregadora, pelo que o Apelado não pode beneficiar do disposto no nº3 do artº 9º da LAT no que concerne à extensão do conceito de acidente de trabalho.
Vejamos:
Tendo o acidente dos autos ocorrido no dia 10 de Julho de 2015, tal como considerou o Tribunal a quo, ao caso é aplicável a Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro (cfr. artigos 187º e 188º).
Dispõe o artigo 8º da referida Lei:
“ 1. É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte.
2. Para efeitos do presente capítulo entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
Por seu turno, determina o artigo 9º da mesma Lei e sob a epígrafe “ Extensão do conceito”:
“1-Considera -se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2- A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3- Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4- No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.”
Desta norma decorre que o legislador estendeu o conceito de acidente de trabalho aos acidentes que se verifiquem no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, que sejam normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador e mesmo que se verifiquem interrupções e desvios resultantes da satisfação de necessidades atendíveis, de caso fortuito ou de força maior. Ou seja, a lei caracteriza como acidente de trabalho os denominados acidentes in itinere.
E sobre os acidentes in itinere escreve-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.6.2014, pesquisa em www.dgsi.pt:
“No que aos acidentes in itinere toca ainda se pode discutir se tem alguma especificidade ou, no fundo, não é mais do que um acidente de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho.
A verdade, porém, é que o acidente in itinere se caracteriza precisamente por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir, porém, que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito [14]) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho – lesão [15], não partilham os demais elementos “tempo e local de trabalho”[16] [17]. Em suma: os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo [18]: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal [19] [20], traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente [21], compreendidos no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4.9 [22]. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro.”
E como escreve o Exm.º Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes, na obra “ O Acidente de Trabalho o acidente in itinere e a sua descaracterização”, pág. 162: “ Como se vê, a Lei portuguesa optou, à semelhança do que fazem as legislações francesa e italiana, mas diferentemente das legislações alemã e espanhola, por definir-embora como veremos, seja duvidoso se o elenco do n.º 2 do art.9.º é taxativo – o ponto de partida e o ponto de destino de trajectos protegidos.”
Resta, contudo, saber quando é que o acidente “se dá no caminho” e quando se inicia esse “caminho”, o que equivale a questionar onde se inicia o trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer, para que o acidente possa ser considerado como acidente de trabalho.”
Então, qual o trajecto que a lei considera tutelado para efeitos de se considerar que o acidente é ainda um acidente de trabalho?
Sobre o trajecto tutelado escreve o mesmo autor, na pag.177 da obra citada: “ A circunstância de hoje o acidente in itinere ser tutelado mesmo que o trajecto não acarrete qualquer agravamento do risco permite, quanto a nós uma visão um pouco mais lassa do elemento temporal ou cronológico. No fundo este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim, o essencial; o trajeto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação.”
E sobre as interrupções e desvios do trajecto escreve o citado autor, na pag.184 da mesma obra: “ O nº 3 prevê a possibilidade de existir um acidente de trabalho, mesmo “quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. Note-se em primeiro lugar, que a norma não esclarece se, tendo o trajecto normal sofrido interrupções ou desvios “injustificados” tal acarreta – como parece ser o entendimento dominante entre nós – que, a partir do momento do desvio ou da interrupção, qualquer acidente já não poderá ser considerado acidente de trabalho, ou se, terminada a interrupção ou terminado o desvio “injustificados”, e retomando o trabalhador o trajecto normal, um acidente neste percurso voltaria a ser considerado acidente de trabalho.”
E na pag.186 lemos: “A Lei permite, em todo o caso interrupções ou desvios. As interrupções parecem ser, simplesmente, paragens, momentos em que o trabalhador deixa de se deslocar para o trabalho, reatando posteriormente essa deslocação, enquanto o desvio supõe um abandono parcial do itinerário ou trajecto normal.”
Sobre a interrupção ou desvio do trajecto determinados por caso fortuito ou de força maior ou por necessidades atendíveis do trabalhador refere o mesmo autor, nas pags.188 e 189: “ Em primeiro lugar o trabalhador pode ver o seu trajecto interrompido ou ter que se desviar da rota planeada por motivos estranhos ou alheios à sua vontade, os quais podem ou não ser de força maior ou caso fortuito: uma ponte levada pela enxurrada, uma via cortada pelas autoridades públicas na sequência de uma manifestação, de uma prova desportiva ou de uma procissão, uma estrada submersa, são, obviamente, motivos independentes da vontade do trabalhador. Mas também pode tratar-se, por exemplo, do cumprimento do dever legal de socorro a sinistrados que implicou que o trabalhador teve que fazer um desvio e levar o referido sinistrado ao hospital, antes de se poder dirigir para o emprego.
Quanto às necessidades atendíveis, parece-nos claro que serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador em que a nossa Lei, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível. Podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno- almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou ir buscar os filhos à escola ou ao jardim infância.”
Regressando ao caso dos autos e analisados os factos provados é de concluir que não se apurou qualquer desvio na rota habitual da sinistrada mas, sim, que estamos perante um quadro em que o trajecto percorrido pela sinistrada, que se deslocava do local de trabalho para casa, sofreu interrupções.
Com efeito, ficou provado que: No dia 10 de Julho de 2015, pelas 19h15m, AAA foi vítima de atropelamento, com arrastamento, na via pública em Lisboa (…) (facto A); No momento do acidente, a falecida AAA regressava à sua residência, vinda do Hospital (…), na Rua (…), em Lisboa, onde tinha estado a trabalhar (facto K), pelo percurso que fazia diariamente (Rua (…) (facto L), Gastando habitualmente cerca de 47 minutos (facto M); O acidente ocorreu numa sexta-feira, em hora de trânsito e estava trânsito (facto U); No dia referido em A) a sinistrada picou o ponto de saída, no Hospital de (…)  às 17 h 23 m. (facto X), Entre o Hospital (…)  e o local do acidente (…, pelo percurso Rua (…)  (…), distam cerca de 6 KM e entre o (…)  e a Rua (…), distam cerca de 7,7 Km (facto Y).
Afirma a Recorrente que no que se refere à primeira interrupção, é certo que não resulta provado nos autos a que horas a sinistrada abandonou as instalações do Hospital, mas essa prova não cabia à Apelante, sendo que se provou que o acidente ocorreu quase duas horas após a picagem do cartão de saída.
Ora, considerando que ficou provado que o acidente ocorreu numa sexta-feira, em hora de trânsito e que estava trânsito e sendo certo que não ficou provado qualquer desvio no trajecto realizado pela sinistrada estando, pelo contrário, assente que esta regressava a casa após um dia de trabalho e utilizando o trajecto habitual, impõe-se afirmar que a interrupção ocorrida no seu trajecto e que não lhe permitiu percorrê-lo nos 47 minutos habituais, ocorreu devido a circunstâncias estranhas à sua vontade, no caso, a existência de trânsito característico de um final de sexta-feira, o que nos leva a concluir, como fez o Tribunal a quo, que é de ponderar que a sinistrada possa ter demorado mais de uma hora para vencer os 6km que distam o Hospital de (…)  e o (…).
Por conseguinte, a dilação temporal verificada entre o momento em que a sinistrada picou o ponto de saída e aquele em que ocorreu o acidente não assume relevância para efeitos de se considerar que o trajecto percorrido deixou de ser tutelado e de descaracterizar o evento como acidente in itinere.
Mas ainda sustenta a Recorrente que não é aceitável que a sinistrada interrompa o seu trajecto para interpelar o condutor de um outro veículo e muito menos se agarre ao tejadilho de um carro que entrou em movimento e que tal situação não é compaginável com uma situação de necessidade atendível do trabalhador, não é um caso de força maior, nem um caso fortuito, tendo o comportamento da desditosa sinistrada sido motivado única e exclusivamente por questões da sua esfera privada, pessoal e intransmissível, alheio a qualquer desiderato ou qualificação de necessidade atendível e igualmente alheio à prestação de trabalho e ao poder de autoridade, ainda que difuso, da entidade empregadora.
Com relevo para a questão provou-se que: Momentos antes do atropelamento, a sinistrada deslocava-se no (…), no sentido (…). (facto N); Imediatamente à frente do veículo da sinistrada, circulava na mesma via e no mesmo sentido de marcha, o veículo com a matrícula (…), conduzido por (…). (Facto O); Quando o trânsito parou, a sinistrada parou também o seu veículo saiu do mesmo e dirigiu-se ao veículo terceiro dizendo “bateste-me no carro … pára …”.. (Facto P); Abordou então o condutor do veículo, batendo no vidro do carro do lado do condutor. (Facto Q); Quando a sinalização semafórica mudou para verde, o condutor do veículo arrancou e a sinistrada agarrou-se ao carro, tendo esta corrido ao lado do mesmo, agarrada ao veículo. (Facto R); A dado momento, a sinistrada caiu ao solo, por se ter desequilibrado ou tropeçado. (Facto S); e tendo sido atropelada pelo veículo com a matrícula (…). (Facto T).
Adiantamos, desde já, que não podemos afirmar que existiu motivo de força maior ou caso fortuito. Mas será que não podemos considerar que a situação descrita não traduz uma interrupção do trajecto determinada por necessidades atendíveis do trabalhador, como entendeu a sentença recorrida?
Já vimos que a lei não define o conceito de necessidades atendíveis.
Assim, relembrando o ensinamento do Exm.º Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes, obra citada e que perfilhamos, o conceito de necessidades atendíveis a que alude o nº 3 do artigo 9º da LAT reporta-se às necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a lei não exige, sequer, que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível.
E como se refere no Acórdão deste Tribunal e Secção proferido em 5.12.2018, no Processo nº 4899/16.0T8LRS.L1, em que a ora relatora interveio como 2ª adjunta, “Atendendo a um critério de adequação social serão tais necessidades as ligadas à vida pessoal e familiar do trabalhador, necessidades que o texto legal não exige que sejam urgentes ou inadiáveis – cfr. Cons. Júlio Gomes, O Acidente de Trabalho- O acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª Edição, Outubro de 2013, Coimbra Editora, pgs. 187 e ss. – , não sendo as mesmas limitadas a meras necessidades de um qualquer tipo específico, ou seja, não sendo as mesmas meramente materiais ou de subsistência básica.”
Assim e como se ponderou no mencionado Acórdão, também no caso em análise, importa valorar toda a actuação da sinistrada à luz daquele conceito, bem como se impõe tomar em linha de conta o comportamento normal de um trabalhador colocado na situação da sinistrada, ou seja, no meio do trânsito de um final de dia de sexta -feira em que aquela foi embatida ou, pelo menos, ficou convencida de que um veículo terceiro bateu no seu veículo, o que motivou a sua saída do veículo e que abordasse o condutor em causa.
Ora, como refere a sentença recorrida, esta interrupção durou o tempo de um sinal passar de vermelho a verde, pelo que atenta a sua curta duração não tem a virtualidade de agravar o risco da deslocação, tanto mais que durante a condução sempre existe a possibilidade de uma paragem motivada por um embate, pelo que estando a sinistrada convencida de que o seu veículo tinha sido batido, a sua actuação, traduzida em apear-se do mesmo e dirigir-se ao veículo da frente que, segundo ela, teria sido o causador do embate, mostra-se suficientemente justificada.
E como apontou o Tribunal a quo, não se pode afirmar que a sinistrada saiu do carro por motivo fútil ou desprovida de qualquer razão.
Com efeito, a sinistrada reagiu como reagiria qualquer comum dos mortais em idêntica situação, ou seja, sairia do seu veículo caso se tivesse apercebido ou convencido que o seu veículo tinha sido batido, com vista a abordar o condutor que lhe bateu e no momento mais próximo ao embate que, no caso, se situou com a paragem dos carros perante o sinal vermelho.
E como se refere no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa: “Mas mais importante do que olhar para os exemplos é procurar entender o sentido da lei dos acidentes de trabalho neste segmento: abarcar os casos em que o desvio e a interrupção mantêm, com razoabilidade, conexão com a relação laboral, isto é, em que tal é compreensível atenta a situação do trabalhador.
(…)
O que importa é que também a necessidade seja compreensível, na perspetiva de alguém com bom senso, enfim, inteligível quer para um empregador quer para um trabalhador (e já agora, e salvo o devido respeito, para uma seguradora) razoáveis.”
E, no caso, parece-nos indubitável que a interrupção é razoável e compreensível, pois não se trata de satisfazer um mero capricho ou de uma conduta sem qualquer sentido, surgindo no decurso da viagem de regresso a casa após um dia de trabalho e em moldes que poderiam abarcar qualquer trabalhador com bom senso colocado em idêntica situação.
Por conseguinte, a interrupção ocorrida com vista a abordar o condutor do veículo terceiro insere-se no contexto das necessidades ligadas à sua vida pessoal constituindo, assim, uma interrupção para satisfação de uma necessidade pessoal mas também socialmente atendível.
Assim, impõe-se concluir, como concluiu o Tribunal a quo, que a mencionada interrupção ainda mantém conexão com a situação laboral da sinistrada e foi determinada para satisfação de uma necessidade atendível da trabalhadora sendo, por isso, enquadrável na previsão do nº 3 do artigo 9º da Lei 98/2009 de 4.9., daí que seja de considerar o acidente dos autos, como acidente de trabalho.
*
Apreciemos, agora, se o acidente dos autos está descaracterizado por terem ocorrido as circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 14º da LAT.
Sobre a alegada descaracterização do acidente, escreve-se na sentença recorrida o seguinte:
“Defendem as RR que o comportamento da autora que se colocou consciente e voluntariamente na condição de poder ser atropelada como veio a acontecer tem enquadramento nas alíneas a) e b) do art. 14.º da LAT.
Estabelece o art. 14º, nos seus números 1 a 3, da Lei 98/2009, de 04.09, que o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
Sendo que para efeitos do disposto na alínea a), se considera que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la e entendendo-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Cabe à pessoa legalmente responsável pelo acidente de trabalho – neste caso às RR – o ónus da prova de que foi a sinistrada que dolosamente provocou o acidente ou sem causa justificativa infringiu as regras de segurança ou que agiu com negligência grosseira e que a sua conduta foi causa exclusiva do acidente.
Ora, analisando os factos provados, e tendo designadamente ficado demonstrado que o autor do atropelamento já foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, dúvidas não restam de que o acidente em causa não foi dolosamente provocado pela sinistrada, nem proveio de seu acto ou omissão que importe a violação de quaisquer normas, tendo antes a sinistrada sido vítima de acto de terceiro relativo à relação laboral. Também é manifesto, face à referida condenação, que o acidente não proveio de negligência grosseira da sinistrada e designadamente exclusivamente de uma eventual negligência da sinistrada, não tendo aliás sido invocado qualquer preceito pela mesma infringido.
Importa ainda referir que a jurisprudência tem entendido que o facto de o acidente ter resultado de uma agressão de que o trabalhador foi vítima, por razões inteiramente estranhas à relação laboral, não exclui o direito à indemnização (vd neste sentido o acórdão do STJ de 28-03-2007 (Pinto Hespanhol) Processo n.º 06S3957 publicado in www.dgsi.pt onde se decidiu que era acidente de trajecto o roubo por esticão.
Em suma, não lograram as RR demonstrar qualquer facto que descaracterizasse o acidente de trabalho em causa.”
Defende a Recorrente, em síntese, que foi a sinistrada quem deu causa, única e exclusiva, ao acidente de que veio a ser vítima, sendo evidente a forma temerária como parou o veículo na faixa de rodagem, abordou o outro condutor e depois se agarrou ao tejadilho do veículo que se encontrava em movimento, que o comportamento temerário da sinistrada é altamente censurável e configura uma negligência de elevado grau, que não se pode esquecer que a sinistrada era enfermeira, não podendo por isso ignorar o risco de vida que a sua conduta acarretava para sua integridade física e também por este facto, deve a sua conduta ser considerada negligência grosseira.
Ou seja, entende a Recorrente que o acidente de trabalho deve ser descaracterizado por se verificarem as circunstâncias a que aludem as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 14º da LAT.
Vejamos:
De acordo com o artigo 2º da LAT, “O trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei”.
Contudo, existem determinadas circunstâncias, as enumeradas no artigo 14º da citada Lei, que levam a que o empregador não tenha de reparar os danos decorrentes do acidente de trabalho, não obstante estar demonstrada a sua verificação.
Dispõe o artigo 14º da LAT:
“1.O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
c) (…).
2. Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto grau e relevante grau que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”
Analisada a factualidade provada, logo ressalta que não existem factos que suportem a conclusão de que o acidente foi dolosamente provocado pela sinistrada ou que decorreu de acto exclusivamente seu. Com efeito, resulta dos factos provados que a sinistrada foi atropelada e que o autor do atropelamento já foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, pelo que não se consegue vislumbrar como é que se pode afirmar que o acidente foi dolosamente provocado pela sinistrada ou por acto da sua exclusiva responsabilidade.
Mas será que a conduta da sinistrada é enquadrável na 2ª parte da al.a) do nº 1 do artigo 14º da LAT?
Conforme se afirma no sumário do acórdão do STJ de 15.04.2015, pesquisa em www.dgsi.pt, “(…) 4. A descaraterização do acidente de trabalho com fundamento na alínea a), 2.ª parte, do n.º 1 do art. 14º da NLAT, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela lei ou pela entidade empregadora; (ii) verificação, por parte do sinistrado, de uma conduta violadora dessas regras ou condições; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) a existência de um nexo causal entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente.
5. A ausência de “causa justificativa” não comporta um juízo de “negligência grosseira”, bastando, para a sua conformação, a violação consciente, por parte do trabalhador, das condições de segurança específicas da empresa e/ou decorrentes da lei.
(…).”
Ora, as Rés na sua defesa, não invocaram quaisquer regras ou condições de segurança estabelecidas pela lei ou pela empregadora que tivessem sido violadas pela sinistrada de modo voluntário e consciente e sem qualquer causa justificativa. Só no recurso, invoca a Ré seguradora a violação do artigo 100º do CE.
E muito menos se consegue extrair qualquer nexo causal entre a actuação da sinistrada e o acidente, na medida em que não se pode afirmar a existência de violação das regras ou condições de segurança estabelecidas pela lei ou pela empregadora, que nem foram invocadas.
Consequentemente, o acidente de trabalho não pode ser descaracterizado com base na al. a) do nº 1 do artigo 14º da LAT.
Mas ainda afirma a Recorrente que o acidente proveio exclusivamente de negligência grosseira da sinistrada, pelo que deve ser descaracterizado nos termos da al. b) do nº 1 do artigo 14º da LAT.
Sobre a negligência grosseira escreve-se no Acórdão do STJ de 19.11.2014, pesquisa em www.pt, “(…) III – A negligência grosseira, prevista na alínea b) da norma enquanto causa exclusiva descaracterizadora do acidente, preenche-se na assunção, pelo sinistrado, por acção ou omissão, de um comportamento temerário em alto e relevante grau, causalmente determinante da eclosão do evento infortunístico, considerando-se como tal a actuação perigosa, audaciosa e inútil, reprovada por um elementar sentido de prudência
(…)
E como elucida o Acórdão do mesmo Tribunal, de 11.02.2013, mesma pesquisa, “(…)3. A “negligência grosseira”, que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, deve ser apreciada não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta, mas em concreto, em face das condições da própria vítima – segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais”
Por fim, como ensina o Acórdão do nosso mais alto Tribunal de 17.09.2009 também disponível em www.dgsi.pt “I - Para excluir o direito à reparação de acidente de trabalho, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), é indispensável que o evento seja imputado, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, a comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado (n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril), o que implica, por um lado, a prova de que o acidente se deveu a conduta inútil, indesculpável, sem fundamento, e de elevado grau de imprudência, da vítima, e, por outro lado, a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.”
Ora, analisada a factualidade provada e ponderadas as circunstâncias que rodearam o caso concreto, entendemos que não se assume como inútil, despropositada ou indesculpável a circunstância da sinistrada, convencida de que o seu carro fora embatido pelo outro veículo, ter saído do seu veículo no momento em que a sinalização mudou para vermelho e ter abordado o outro condutor a fim de alertá-lo para tal facto.
Contudo, já consideramos que a circunstância de a sinistrada agarrar-se ao veículo terceiro e de ter corrido ao lado dele, certamente com o vã intuito de o fazer parar por causa do embate que teria sofrido no seu carro, traduz uma atitude grave por irreflectida, negligente e temerária já que perigosa em elevado ou relevante grau e que contribuiu em larga medida para a produção do acidente nos exactos termos em que o mesmo se verificou.
Na verdade, a sinistrada, perante a atitude do condutor do veículo terceiro em não atender ao facto de aquela ter batido no vidro de forma a questioná-lo sobre o embate na sua viatura e ter retomado a marcha, deveria ter-se limitado a “retirar” a matrícula do veículo terceiro ou a fotografá-la e a apresentar queixa à polícia.
Porém, não podemos afirmar que a actuação da sinistrada foi causa exclusiva da produção do acidente, pois resulta evidente a concorrência da atitude adoptada pelo terceiro, condutor do veículo atropelante, na medida em que não é plausível que este não se tenha apercebido de que a sinistrada bateu no vidro do lado do condutor para lhe exigir explicações e, mesmo assim, arrancou o veículo na mudança do sinal, precipitando e contribuindo de uma forma grosseiramente negligente para a ocorrência do sinistro, pelo que veio a ser condenado no processo crime.
 Consequentemente, também não se pode afirmar que o acidente de trabalho se mostra descaracterizado nos termos da al. b) do nº 1 do artigo 14º da LAT, termos em que improcede o recurso, devendo ser confirmada a sentença recorrida.
Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal e Secção em julgar o recurso improcedente e confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.

Lisboa, 15 de Maio de 2019

Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
José António Santos Feteira