Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6891/03.6TBCSC.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
NEGÓCIO JURÍDICO
VALIDADE
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
INTENÇÃO DAS PARTES
INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- Para alcançar o sentido e compreender as condições de validade do acordo estabelecido entre os cônjuges, em acção de divórcio por mútuo consentimento, quanto ao destino da casa de morada de família, há que atender, em primeiro lugar, à real intenção das partes na sua formulação;
II- Desconhecendo-se essa vontade real, por não provada, impõe-se o recurso às regras previstas no Código Civil sobre interpretação e integração de negócios jurídicos, posto que de um negócio jurídico se trata.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:

J… (entretanto falecida), A.. e M.L… (sendo estes últimos depois habilitados a prosseguir a causa como sucessores da primeira), vieram propor, contra M.., acção declarativa sob a forma sumária, pedindo que lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito …, em C…, descrito na ficha nº ... da .. Conservatória do Registo Predial de C… e inscrito na matriz da respectiva freguesia sob o nº …, sendo a Ré condenada a entregar-lhes o respectivo 1º andar, livre e devoluto, sem prejuízo de indemnização a liquidar em execução de sentença. Invocam, para tanto e em síntese, que estando inscrito a seu favor o referido prédio urbano, a Ré ocupa o 1º andar sem título legítimo, residindo ali sozinha há mais de um ano.
Contestou a Ré, impugnando a factualidade alegada e sustentando, em súmula, que, tendo sido casada com o A. A…, tal 1º andar lhe foi atribuído no âmbito do processo de divórcio ocorrido entre ambos, conforme consta do acordo relativo à atribuição da casa de morada da família que foi judicialmente homologado. Mais arguiu a falta de capacidade judiciária da 1ª A., concluindo pela improcedência da causa e pedindo a condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Responderam os demandantes, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas e do pedido de condenação por litigância de má fé.
Tendo a 1ª A. falecido na pendência da causa, foram habilitados os co-AA., A… e M.L…, a prosseguirem na acção como seus únicos sucessores.
Foi proferido despacho saneador, sendo conferida a validade formal da instância e dispensada a selecção da matéria de facto.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento e, fixada a matéria assente a fls. 192/193, foi proferida sentença nos seguintes termos: “(...) julgo a acção procedente por provada e, consequentemente, declaro que os AA. são proprietários do prédio urbano, sito na …, F…, freguesia e concelho de C…, descrito na … Conservatória do Registo Predial de C… sob o nº …, e condeno a R. M… a entregar-lhes o 1º andar do identificado imóvel, livre e devoluto.
Julgo improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé do 2º A..
Custas a cargo da R. – artigo 446º nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.”
Inconformada, recorreu a Ré da sentença proferida, sendo o recurso recebido como de apelação e efeito suspensivo. Apresentadas as alegações, foram ali formuladas as seguintes conclusões que se transcrevem nos precisos termos:

1. A ele (a apelante refere-se ao A. A…) ficou atribuído o r/c e à recorrente o 1º andar com as condições impostas e já referidas e que sempre foram cumpridas – só lá viveram e vivem a recorrente com os 3 filhos ou com 2 ou com um dos 3 conforme a vida profissional, estudantil e de saúde de cada um deles!
2. O acordo celebrado entre o recorrido A… e a recorrente é válido juridicamente e não caduca.
3. Do acordo consta uma obrigação condicional por parte da recorrente que foi sempre cumprida.
4. A co-proprietária NUNCA se opôs quando recebeu a carta em 2001 ainda que afirme não a ter recebido!
5. Não pode esquivar-se e vir dizer que não residia na mesma rua na altura do divórcio como ficou cabalmente provado pelas testemunhas ouvidas quer das arroladas pelos autores quer pelas arroladas pela ré, aqui recorridos e recorrente, respectivamente.
6. O douto tribunal a quo deu como provado o artigo 8º da contestação e profere sentença absolvendo os recorridos da litigância de má fé o que consubstancia uma contradição na matéria de facto provada e na decisão proferida.
7. A recorrente tem toda a legitimidade e direito de continuar a residir naquela casa sendo sua possuidora legítima.
8. Quando muito, pode ser-lhe exigida uma renda como acontece nos arrendamentos e respectiva atribuição da casa de morada de família em todos os divórcios e também como acontece e dita a lei em casas de morada de família que sejam bens próprios do cônjuge a quem não fica atribuída a casa.
9. Se o recorrido não pediu renda naturalmente se deveu a ser também – como ainda hoje é – morada do seu único filho que mora com a sua ex-mulher, ora recorrente.”
Conclui pela revogação da sentença proferida.
Em contra-alegações os AA. sustentaram a ausência de fundamento no recurso e pediram a manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

                                                                        ***
II- Fundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:

1) Os AA. são comproprietários, na proporção de metade para a entretanto falecida J… e de 1/6 para cada um dos 2º e 3ª AA., do prédio urbano sito na …, F…, freguesia e concelho de C…, descrito na … Conservatória do Registo Predial de C… sob o nº …, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, com fundamento na aquisição por partilha por óbito de D…, falecido no estado de casado com a 1ª A., no regime da comunhão geral de bens, facto que se encontra registado a seu favor através inscrição …, Ap. …/….
2) Os 2º e 3ª AA. e um seu irmão, J… eram os únicos herdeiros legitimários do mesmo D….
3) No dia 3 de Junho de 1997, faleceu o J…, tendo-lhe sucedido os ora AA., que adquiriram, por sucessão por morte e sem determinação de parte ou direito, o 1/6 de que aquele era proprietário no identificado prédio, facto que se encontra registado a seu favor através da inscrição G-2.
4) A R. ocupa o 1º andar do referido prédio.
5) Vive sozinha há mais de um ano.
6) No processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos pelo ..º Juízo de Família e Menores deste Tribunal, com o nº …/2000, em que eram requerentes a ora R. M… e o ora A. A…, foi homologado o acordo relativo à casa de morada da família, nos termos que constam do documento junto a fls. 19.
7) Consta desse acordo, designadamente das cláusulas 1ª e 3ª, que metade da casa de morada da família, correspondente às divisões localizadas no 1º andar do prédio em questão, fica atribuída à requerente mulher, acordo que só vigorará enquanto a mesma for habitada exclusivamente pela requerente mulher e os seus três filhos, sendo dois do anterior casamento desta.
8) Um dos filhos da R. é deficiente e frequenta um lar.
 ***
III- Fundamentos de Direito:


Cumpre apreciar do objecto do recurso.
Os recursos são meios de impugnação de decisões com vista ao reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida. Assim, o tribunal de recurso não deve conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. Para além disso, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões do recorrente (cfr. arts. 684, nº 3, e 690, nº 1, do C.P.C.), só abrangendo as questões que nelas se contêm, ainda que outras tenham sido afloradas nas alegações propriamente ditas, salvo tratando-se de questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente (art. 660, nº 2, “ex vi” do art. 713, nº 2, do mesmo C.P.C.).
Compulsadas as conclusões do recurso, importa conhecer da nulidade da sentença (aflorada na conclusão 6ª) e do direito da Ré a habitar o 1º andar do prédio urbano sito …, em C….

            A) Da nulidade da sentença:
Afirma a apelante que o Tribunal a quo deu como provado o artigo 8º da contestação mas proferiu sentença absolvendo os recorridos do pedido de litigância de má fé, o que consubstancia uma contradição na matéria de facto provada e na decisão proferida.
Embora não caracterize juridicamente a questão, aponta a apelante para a nulidade da sentença a que se refere a al. c) do nº 1 do art. 668 do C.P.C..
As nulidades da decisão previstas no art. 668 do C.P.C. são deficiências da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento. Este traduz-se antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável, o tribunal fundamenta a decisão mas decide mal, resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito([1]).
Por outro lado, como se resumiu no Ac. RL de 10.5.95 (in CJ, 1995, t. 3, pág. 179), “As nulidades da sentença estão limitadas aos casos previstos nas diversas alíneas do nº 1 do art. 668 do C.P.C.. Não se verificando nenhuma das causas previstas naquele número pode haver uma sentença com um ou vários erros de julgamento, mas o que não haverá é nulidade da decisão.”
Assim, a sentença será nula apenas: “a) Quando não contenha a assinatura do juiz; b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão; d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.” (art. 668, nº 1, do C.P.C., na redacção aplicável).
Não existe, todavia, a alegada contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, o que é, aliás, manifesto se atentarmos nos factos julgados provados em 1ª instância.
Com efeito, alegara a Ré no artigo 8º da sua contestação, referindo-se ao acordo relativo à atribuição da casa de morada de família celebrado no processo de divórcio, que o mesmo “(...) foi assinado pelo aqui autor A… pelo que o mesmo tem pleno conhecimento da legitimidade de ocupação do imóvel e litiga de má fé.”
Após a produção da prova, o Tribunal a quo respondeu à matéria deste artigo, conjuntamente com outros, do modo seguinte: “Artigos 7º, 8º, 13º e 14º da contestação: Provado o que consta da certidão junta a fls. 17/23 dos autos.” Ora, a dita certidão constante de fls. 17 a 23 dos autos respeita aos autos de divórcio por mútuo consentimento que, com o nº 2../2… correu termos no ..º Juízo de Família do mesmo Tribunal de ..…, em que eram requerentes o aqui A. A… e a ora Ré, M…, contendo aquela certidão o acordo relativo à regulação do poder paternal do filho do casal, o acordo relativo à atribuição da casa de morada de família e as Actas da 1ª e da 2ª Conferência que tiveram lugar, na última das quais foram homologados, em definitivo, os referidos acordos e decretado o divórcio dos cônjuges.
Do que acaba de dizer-se resulta, com mediana evidência, que o dito artigo 8º da contestação não foi considerado provado nos termos afirmados pela apelante.
De resto, percorrendo a matéria que foi dada como assente em 1ª instância – e que a recorrente não impugna nos termos e para os efeitos dos arts. 690-A e 712 do C.P.C. – verificamos que do seu elenco não consta, para além da reprodução de parte do acordo relativo à atribuição da casa de morada de família, como não podia constar tendo em conta a decisão sobre a matéria de facto, o teor do artigo 8º da contestação da Ré, nomeadamente na sua parte final, de carácter além do mais conclusivo, que é a assinalada pela recorrente.
Por conseguinte, nenhuma contradição se surpreende entre a matéria julgada assente e acima reproduzida e a decisão que veio a ser proferida nos autos quanto à litigância de má fé.
Inexiste, por conseguinte, a nulidade arguida.

            B) Do direito da Ré a habitar o 1º andar do prédio urbano sito …, em C…:
A questão fulcral do recurso tem, todavia, que ver com o direito que a apelante/Ré reclama ter de habitar a casa reivindicada, excepção que opôs à pretensão dos AA..
Como já acima observámos, a decisão quanto à matéria de facto não foi impugnada nos termos e para os efeitos dos arts. 690-A e 712 do C.P.C., pelo que é da factualidade que foi julgada assente em 1ª instância que temos de partir e não de qualquer outra.
Deste modo, conforme assinalam os recorridos, é evidente que boa parte dos factos mencionados no recurso não podem ser considerados, por qualquer forma, na decisão da causa.
Analisando.
Na sentença decidiu-se pela procedência da acção considerando-se, após se concluir pelo direito de propriedade dos AA. sobre o prédio: “(...) Invoca, a R., o acordo relativo à atribuição da casa de morada da família.
Porém, como da factualidade assente resulta, tal acordo apenas vigoraria nas condições estipuladas na respectiva cláusula 3ª, o que não ocorre.
Acresce que o prédio onde se encontrava instalada a casa de morada da família não era apenas pertença do requerente marido, sendo que os demais comproprietários não autorizaram tal acordo, como dos autos resulta.
Deste modo, do circunstancialismo fáctico apurado não decorre que o R. tenha sobre o imóvel um qualquer direito real que justifique a sua posse, ou que o detém por virtude de direito obrigacional bastante para o efeito, sendo certo que, sobre ela, impendia o respectivo ónus de alegação e prova.”
Sem prejuízo da questão, que abaixo retomaremos, da falta de autorização dos comproprietários que não resulta dos factos assentes([2]) – tal como também daquele elenco não consta que tal autorização tivesse sido concedida, pois a Ré nada alegou sobre a matéria (designadamente, que tal autorização existisse) – impõe-se compreender o teor do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família que foi judicialmente homologado.
Assim, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos pelo …º Juízo de Família e Menores do Tribunal de C…, com o nº …, em que eram requerentes a ora Ré e o ora A. A…, ambos residentes na …, F…, C… (ver certidão de fls. 17 a 23), foi homologado o acordo relativo à casa de morada da família, nos termos que constam do documento junto a fls. 19 destes autos. Mediante tal acordo (datado de 2.6.2000), ficou estabelecido que “Metade da casa de morada de família composta de sótão, três assoalhadas, duas casas de banho e cozinha localizada no 1º andar e a casa de máquinas frente ao anexo sob as escadas que dão para o exterior, ficará atribuída à requerente mulher” (cláusula 1ª), que “Metade da casa de morada de família composta por rés do chão esquerdo, garagem, anexo que se situa sob a escada que dá para o exterior bem como a sala com varanda do 1º andar ficará atribuída ao requerente marido” (cláusula 2ª), e ainda que “Este acordo só vigora enquanto a casa de morada de família seja habitada exclusivamente pela requerente mulher e os seus três filhos, sendo dois do anterior casamento da requerente mulher” (cláusula 3ª).
A questão é de interpretação da última cláusula, a 3ª do acordo firmado.
A Ré defendeu na contestação que o sentido da dita cláusula era evitar que na casa passasse a habitar mais alguém além da própria Ré e dos filhos, designadamente outro homem com quem aquela viesse a refazer a sua vida sentimental.
Os AA., por seu turno, afloraram na petição inicial (artigo 10º) e argumentaram na resposta à contestação que a cláusula 3ª do acordo sujeitava a vigência do mesmo à residência da Ré no prédio com os três filhos, sendo o fim do acordo justamente proporcionar um tecto a estes, um dos quais também filho do A. A…, enquanto dele necessitassem.
Nada temos na acção comprovado sobre a real intenção do A. A… e da Ré na formulação da referida cláusula.
Por conseguinte, desconhecendo-se a vontade real das partes, impõe-se o recurso às regras previstas no Código Civil sobre interpretação e integração de negócios jurídicos (arts. 236 e ss. do C.C.), posto que de um negócio jurídico se trata([3]).
Dispõe o art. 236 do C.C. que: “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.” Prevê ainda o art. 237 do mesmo Código que: “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.”
Por outro lado, dispõe o art. 238 seguinte que: “1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. 2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”
Recorrendo ao art. 236 do C.C. há, pois, que apurar, em conformidade com a prova produzida, o sentido que um declaratário normal, alguém “medianamente instruído e diligente”([4]), colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante.
No processo de divórcio as partes acordaram no que poderemos designar por “divisão partilhada” da mesma habitação, que constituía a respectiva casa de morada de família, ficando cada um a utilizar “metade” da mesma. Não se mostra fixado o pagamento de qualquer contrapartida por essa utilização, designadamente por parte da requerente mulher e aqui Ré, a qual não teria sobre o dito imóvel qualquer direito de propriedade, conforme é aceite na presente acção.
Contudo, os cônjuges sujeitaram a manutenção e validade de tal acordo à verificação de uma condição: “enquanto a casa de morada de família seja habitada exclusivamente pela requerente mulher e os seus três filhos, sendo dois do anterior casamento da requerente mulher”.
A condição mostra-se imposta apenas à cônjuge mulher e do seu teor ressalta o advérbio “exclusivamente” que tem como sinónimos “apenas”, “somente” ou “unicamente”.
Poderá conceber-se que o sentido da cláusula é, como defendem os recorridos, o de que se impunha a convivência naquela parte de casa da mãe com todos os seus filhos (já nascidos à data do acordo)?
Não é, salvo o devido respeito e a nosso ver, o que o texto da cláusula expressa.
Para exprimir uma tal declaração deveriam os cônjuges ter antes utilizado um outro advérbio como, por exemplo, “conjuntamente”, ou qualquer outra formulação que traduzisse esse preciso significado. Todavia, ao recorrerem ao advérbio “exclusivamente”, os cônjuges acentuaram, de forma expressa, a noção de utilização exclusiva, com exclusão de outrem, por parte da ali requerente mulher e seus três filhos, o que é compreensível num contexto de divórcio em que se pretende proteger a habitação de um deles e/ou dos respectivos descendentes/dependentes mas de mais ninguém.
De resto, a interpretação sufragada pelos AA. no sentido de que as partes no divórcio pretenderiam sujeitar a vigência do acordo à residência da Ré no prédio com os três filhos, de modo a garantir a estes uma habitação enquanto dela necessitassem, não se mostra plausível. Pois se o intuito era garantir a habitação dos filhos e de cada um deles, como compreender que se impusesse à ora Ré habitar com todos eles para poder utilizar a parte que lhe fora atribuída? Com este entendimento, a partir do momento que saísse de casa um desses filhos, o acordo deixaria, no rigor, de vigorar, ficando, por absurdo, os outros dois irmãos (porventura até o próprio filho do A. A…), sem poder ali habitar com a mãe.
Assim, o único sentido objectivo do acordo, e que tem um mínimo de correspondência no texto do mesmo, é o de que os cônjuges condicionaram a vigência do convencionado sobre a utilização da casa à respectiva utilização exclusiva da cônjuge mulher e seus filhos (já nascidos), no sentido de que nenhuma outra pessoa, para além deles, poderia residir naquela parte de casa.
Se outra foi a intenção do A. e da Ré na acção de divórcio – e teria de ser de ambos para ter relevância na interpretação do estipulado – não ficou aqui comprovada, como vimos, nem resulta do acordo sobre o destino da casa de morada de família, pois a interpretação da referida cláusula 3ª, à luz do art. 236 do C.C., não consente a leitura que dela fazem os AA./apelados.
Em suma, tem forçosamente de concluir-se que o sentido razoável daquela declaração negocial apreendido por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, é o de que o acordo vigoraria enquanto na casa vivessem somente, e com exclusão de qualquer outro, a requerente mulher e os três filhos já existentes.
Sendo esta a única condição estipulada, constatamos que se concluiu apressadamente na sentença que a mesma se não verificava.
Na verdade, de acordo com a matéria assente, a Ré habita o 1º andar do prédio dos autos sozinha, não se demonstrando que ali viva outrem que não os seus filhos, um dos quais é deficiente e frequenta um lar.
Por conseguinte, não pode afirmar-se que não esteja verificada a condição de que dependia a validade do acordo celebrado no âmbito do processo de divórcio entre o A. A… e a aqui Ré relativo ao destino da casa de morada de família. O que vale por dizer que a dita Ré tem, por força da sentença que homologou tal acordo, título bastante para habitar na parte especificada do 1º andar do prédio urbano sito na …, em C….
Invocaram ainda os AA., como atrás referimos, que aquele acordo não foi autorizado pelos restantes comproprietários. No entanto, como também observámos, ao invés do afirmado na sentença recorrida essa matéria não foi considerada provada (conforme resulta da decisão de fls. 192/193 e dos factos acima reproduzidos), sendo que era aos demandantes que competia a respectiva demonstração (art. 342, nºs 1 e 3, do C.C.).
Deste modo, não podem os AA. obter, por via da presente acção, a restituição reclamada, sem prejuízo do direito que ao A. A… porventura assistirá de ver revisto o dito acordo no âmbito do processo de divórcio, ao abrigo dos arts. 1409, 1411 e 1413 do C.P.C., desde que circunstâncias supervenientes o justifiquem([5]).
Pelo que tem de improceder a acção nessa parte, procedendo em parte o recurso.

                                                                          ***
IV- Decisão:
 
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar a sentença proferida no segmento em que condenou a Ré, M…, a entregar aos AA. o 1º andar do prédio urbano sito na Rua …, em C…, absolvendo, nesta parte, a Ré do pedido, no mais se mantendo o decidido.
Custas pelos apelados/AA..
Notifique.

                                                                       ***
Lisboa, 5.3.2013

Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Roque Nogueira
---------------------------------------------------------------------------------------
[1] cfr. Ac. RC de 15.4.2008, Proc. 1351/05.3TBCBR.C1, in www.dgsi.pt
[2] Veja-se que os AA. haviam alegado, na resposta à contestação, que o acordo celebrado entre o A. António Silva e a Ré relativo à atribuição da casa de morada de família não fora autorizado pelos restantes comproprietários, mas essa matéria não foi considerada provada, conforme resulta da decisão de fls. 192/193 e dos factos acima reproduzidos.
[3] Manuel de Andrade define negócio jurídico “como um facto voluntário lícito cujo núcleo essencial é constituído por uma ou várias declarações de vontade privada, tendo em vista a produção de certos efeitos práticos ou empíricos, predominantemente de natureza patrimonial (económica), com ânimo que tais efeitos sejam tutelados pelo direito – isto é, obtenham a sanção da ordem jurídica – e a que a lei atribui efeitos jurídicos correspondentes, determinados, grosso modo, em conformidade com a intenção do declarante ou declarantes (autores ou sujeitos do negócio).” (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, 1972, pág. 25).
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 223.
[5] Não se ignora a discussão jurisprudencial sobre a possibilidade de alteração do acordo, judicialmente homologado, quanto à casa de morada de família, antes da Lei nº 61/2008, de 31.10, sendo que boa parte da jurisprudência apontava no sentido dessa impossibilidade (ver, entre outros, os Acs. do STJ de 17.3.2002, Proc. 02B555, de 2.10.2003, Proc. 03B1727, e de 27.4.2004, Proc. 04A3621, todos em www.dgsi.pt. No sentido da possibilidade dessa alteração, ver o Ac. da RL de 27.5.2003, Proc. 00106767, com sumário disponível no mesmo sítio, de que foi Relator o Desembargador Roque Nogueira que também subscreve o presente acordão).
A nova Lei referida veio, todavia, resolver definitivamente a questão consagrando, expressamente, no nº 3 do art. 1793 do C.C., que “O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”