Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7641/2007-8
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
PODER DE AUTORIDADE
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Os Tribunais administrativos são competentes em razão da matéria, nos termos do artigo 4.º,alínea i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, para conhecer da acção em que se pretende a responsabilização da ré, empresa pública com capitais exclusivamente públicos, por danos resultantes do facto de não ter cumprido o seu dever de zelar pela segurança de pessoas e de bens no porto sobre o qual tem jurisdição, ou seja, por actuação exercida no âmbito dos poderes de autoridade que lhe foram conferidos pelo Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro e pelo Decreto Legislativo Regional n.º30/2003/A, de 27 de Junho.

(SC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
1. Fernando […] intentou a presente acção de condenação, sob a forma ordinária contra a A.P.T.O. – Administração dos Portos do Triângulo e Grupo Ocidental, S.A., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de €22.500,00, mais juros de mora, por danos patrimoniais e morais causados pelos quais seria civilmente responsável, na sua qualidade de gestora do espaço onde ocorreu o acidente, o porto do Cais do Pico. 

2. Citada, a Ré veio contestar, arguindo a excepção de incompetência em razão da matéria, sendo competentes os Tribunais Administrativos, alegando que na data em que ocorreu o acidente quem geria e administrava todas as operações portuárias realizadas no porto do Cais do Pico era a Junta Autónoma do Porto da Horta, que era um organismo regional dotado de autonomia administrativa e financeira e personalidade jurídica de direito público.

3. O A. veio replicar, referindo que o Tribunal é o competente, porquanto a Ré é uma pessoa colectiva de direito privado, não estando a actuar munida de qualquer poder de autoridade.

4. Foi proferido despacho saneador, tendo-se concluído pela absolvição da instância, por o Tribunal ser incompetente em razão da matéria.

5. Inconformado com esta decisão, o Autor interpôs recurso, que foi recebido como de agravo, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo, nas suas alegações de recurso, apresentado as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. –  A R. é uma pessoa colectiva de direito privado.
2ª. - Apesar de se tratar de uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
3ª. - Independentemente dos actos praticados pela R. serem no âmbito do exercício de gestão pública ou privada são competentes para apreciar a responsabilidade extracontratual da mesma os tribunais comuns.
4ª. - Ainda assim: a responsabilidade da R. resulta única e exclusivamente do facto de não ter acondicionados os contentores que se encontravam no porto, por forma a não causarem causar danos (CC. artigo 493.º, n.º1).
5ª. - Mesmo que assim não fosse não é pela natureza dessas funções que se pode concluir como fez o tribunal recorrido que o tribunal competente é o administrativo.
6ª. - Tal só seria determinante se a R. fosse uma pessoa colectiva de direito público.
7ª. - Sendo que , hoje, não se coloca tal questão, face à redacção do artigo 4.º, nº1, alíneas g) e h), do ETAF.
8ª. - Pois deixou-se de fazer a distinção entre o que até então era feita pela doutrina e jurisprudência, no sentido de apurar nas situações de responsabilidade civil extracontratual da Administração, se esta agiu no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada.
9ª. - Pelo exposto, o tribunal recorrido violou as disposições dos artigos 101.º e 105.º, nº1, do CPC, e artigo 18.º da Lei nº3/99, de 13 de Janeiro (LOTJ).
Conclui pela procedência do recurso, e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada, declarando-se o tribunal a quo competente.
6. A recorrida contra – alegou apresentado as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. - Actualmente a agravada, APTO, S.A., é uma pessoa colectiva de direito privado, mas à data dos factos – 7 de Dezembro de 2001 – era uma pessoa colectiva de direito público, denominada Junta Autónoma do Porto da Horta (cf. D.L. 521/77, de 19.12 e D.L. 37754 de 18.2.1950).
2ª. - Mas considerando a actual natureza jurídica da recorrida (pessoa colectiva de direito privado), a sua eventual responsabilidade continuaria a ser uma “responsabilidade pública”,
3ª. - Porquanto as actividades portuárias, nomeadamente a movimentação e o acondicionamento de contentores na área do porto de São Roque do Pico e sob sua jurisdição, só podem ser exercidas pelos respectivos funcionários, no uso de competências e prerrogativas da autoridade portuária.
4ª. - Assim, as funções que aqui estão sempre em causa são funções de interesse público, exercidas pela respectiva autoridade portuária, entidade que presta em exclusivo o serviço público portuário e que, tendo embora um estatuto organizativo de direito privado, continua a reger-se pelo direito público no que concerne o exercício de poderes de autoridade (veja-se, por exemplo, as competências cometidas pelos Decretos-lei nºs 46/2002 e 49/2002, ambos de 2.3, ainda que na altura ainda não existissem administrações portuárias na R.A.A.).
5ª. - Acresce que todos os trabalhadores da recorrida (salvo os admitidos após 27.8.03 – cf. D.L.R. 30/2003/A, de 27.6) continuam a reger-se pelo direito da Função Pública.
6ª. - A competência dos tribunais comuns é definida por exclusão. Assim,
7ª. - Quer se considere a data da prática dos factos e a agravada como uma pessoa colectiva de direito público (art. 4º/1/als. g) e h) ETAF), quer se considere a actual natureza jurídica da recorrida, pessoa colectiva de direito privado, mas à qual, enquanto autoridade portuária, são cometidas funções exclusivas de interesse público e poderes de autoridade regidos pelo direito público e por isso, em caso de responsabilidade, responderá sempre como as demais pessoas de direito público (artigo 4º/1/al. i) ETAF),
8ª. - Conclui-se que o presente litígio deverá ser submetido à jurisdição administrativa.
9ª. - Pelo que, deverá manter-se a declaração da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria.

Conclui pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
7. Foi proferido despacho de sustentação.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Delimitação do objecto do recurso

Conforme resulta do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem é delimitado em função do teor das conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), só sendo lícito ao tribunal de recurso apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente.

Dentro dos preditos parâmetros, emerge das conclusões da alegação recursória apresentada que o objecto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se é competente em razão da matéria para o julgamento da presente acção o tribunal da 1ª instância (judicial/comum) ou se, diversamente, e como sustenta a decisão recorrida, tal competência deve ser deferida aos tribunais administrativos.

III.  Apreciação do mérito do agravo 

1. Enquadramento preliminar
Consabido é que a função jurisdicional se encontra confiada aos Tribunais, como órgãos de soberania, que a exercem em nome do povo (cf. artigos 110º, nº 1 e 202º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa).

Todavia, a multiplicidade e complexidade das questões a submeter ao poder judicial, bem como a necessidade de aproximar a justiça dos cidadãos, impõem a repartição da função jurisdicional por diversas espécies e categorias de tribunais, integradas ou articuladas num sistema orgânico que a Constituição define nas suas linhas mestras (artigos 209º a 214º) e que as leis orgânicas e estatutárias desenvolvem na especialidade.
Distende-se tal estrutura da organização judiciária por duas espécies de tribunais:

- os tribunais judiciais, que são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras jurisdições [artigos 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa; 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99, de 13.1; 66º do Código de Processo Civil): princípio da plenitude de jurisdição dos tribunais judiciais;
- e os tribunais de outras jurisdições, com competência em áreas específicas do direito, como é o caso dos tribunais administrativos e fiscais.

Assim, a competência concreta do tribunal, enquanto poder de determinado tribunal para julgar certa causa, é aferível pela aplicação de diversos factores estabelecidos na lei e inscreve-se na esfera da competência abstracta (ou seja, na medida de jurisdição genericamente conferida a determinado tribunal e delimitadora do conjunto de causas de que ele pode tomar conhecimento), constituindo, como condição do conhecimento de mérito, um pressuposto processual.

Por sua vez, a competência ex ratione materiae consiste – na feliz expressão de Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, p. 94) - na repartição do poder jurisdicional «pelas diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, num mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação», de acordo com a matéria da relação jurídica de direito substantivo que lhes cumpre apreciar e julgar.

Importa, assim, determinar a que espécie dos tribunais portugueses (subconjunto dos tribunais judiciais/comuns ou subconjunto dos tribunais administrativos) cumpre decidir da questão submetida ao tribunal.

Ora, «na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram» (Antunes Varela, J.M. Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 1985, p. 207), pelo que só será competente o tribunal judicial (comum) se a causa não estiver inserida por lei na competência dos tribunais administrativos.

Por força da legal delimitação negativa, a regra da competência dos tribunais da ordem judicial segue, assim, o princípio da residualidade, ou seja, apenas são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional.

Em contrapartida, quanto à jurisdição administrativa, estabelece o art.º. 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».

Consequentemente, incumbe, em princípio, à jurisdição administrativa o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, à excepção daqueles que o legislador ordinário expressamente atribui a outra jurisdição.

Concretizando a referida disposição constitucional, no quadro da administração da justiça, a lei ordinária vem então atribuir aos tribunais administrativos e fiscais o assegurar da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, a repressão da violação da legalidade e o dirimir de conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas e fiscais (cf. artigo 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF-, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, apenas entrou em vigor em 1.1.2004).

Acresce que, com específico relevo na resolução da questão em análise, a lei atribui aos órgãos da jurisdição administrativa a competência para conhecer da “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (alínea i) do artigo 4º do ETAF).

Por outro lado, “a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” (nº1 do artigo 5º do ETAF).
Ou, como se refere no nº1 do artigo 22º da LOFTJ, a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.

Por último, a competência material como pressuposto processual que é, deverá aferir-se pelo objecto do processo, o qual é, em regra, conformado pela pretensão do autor, que traça o perímetro máximo do thema decidendum, sendo, assim, de confinar o objecto das condições de facto (in casu, inerentes ao mérito da causa) do pressuposto competência exclusivamente à versão dada pelo autor (pois é essa que, como já se referiu, confina a extensão do objecto do processo pelo qual se afere o respectivo pressuposto). Assim, é perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objectivos (pedido e seus fundamentos) e subjectivos (identidade das partes) da acção, a sua apreciação se enquadra na competência dos Tribunais Administrativos ou na competência dos tribunais judiciais comuns.
O juízo a formular quanto à competência tem que ser elaborado independentemente da verificação dos demais pressupostos de que depende a apreciação do mérito da causa e da verificação das condições de provimento desta.

2. O caso concreto

Revertendo ao caso concreto:

No presente recurso, a controvérsia cinge-se à arguida incompetência absoluta do tribunal recorrido, em razão da matéria, para julgar a acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual.

No caso, pretende o Autor que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que os comportamentos culposos destes lhes causaram.

Alega, fundamentalmente, que quando se encontrava no interior do veículo automóvel de matrícula […], estacionado no cais do porto de São Roque do Pico, um contentor de transporte de mercadorias caiu sobre o veículo, sofrendo danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo a responsabilidade da Ré resultante do facto de ser a mesma a gerir o espaço onde ocorreu o acidente.

E, não estando em causa a apreciação do mérito (ou seja, a relação jurídica provada, mas sim a relação jurídica afirmada com vista a ser demonstrada), será nesta versão fáctica alegada pelo Autor que terá de se estribar a decisão acerca da competência do tribunal recorrido em razão da matéria.

A questão colocada resulta assim da circunstância de, sendo a recorrida uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, saber se a sua intervenção na génese do acidente constitui ou não um acto de gestão pública, no sentido de saber se lhe foram concedidos poderes de autoridade.

Isto porque a recorrida se pode limitar a exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com os particulares, portanto desprovida do poder de supremacia que, em princípio, lhe advém da sua qualidade de ente público administrativo. Os actos deste modo praticados já seriam de qualificar como de "gestão privada".
(cf. Marcelo Caetano, in “Manual de Direito Administrativo”, tomo I, 10ª ed., p. 430)
 
Procurando agora delimitar o conceito de actividades de “gestão pública”, temos que a gestão pública é a actividade da Administração desenvolvida sob a égide do Direito Administrativo, enquanto a gestão privada é a actividade da Administração desenvolvida sob a égide do Direito Privado (cf. Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, vol. I, 1986, p. 134). Ou, conforme Antunes Varela, pode dizer-se que «são actos de gestão pública os que, visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e que muitas vezes assentam sobre o jus auctoritatis da entidade que os pratica. (...) Os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder de soberania ou do seu jus auctoritatis» (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9.ª ed., p. 671).

Como expressivamente se refere no Ac. do STJ de 20.10.2005, na esteira do ensinamento de Freitas do Amaral (in Direito Administrativo, vol. III, 1988, p. 487), «o verdadeiro distinguit – para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízo a terceiros (particulares) numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada/gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo» (acessível in www.dgsi.pt).

E adianta-se:
«Mas a “pedra de toque” para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dicotomia “actos de gestão pública – actos de gestão privada”, mas sim no critério constitucional plasmado no artigo 212º, nº 3 da Lei Fundamental, ou seja compete aos tribunais dessa jurisdição especial o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das denominadas relações jurídicas administrativas.
Âmbito assim definido com apelo ao mesmo critério na legislação intra-constitucional (cf. artigo 3º do ETAF, presentemente, artigo 4º); do que se trata é de uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil é regulada por normas de direito privado que não por normas, princípios e critérios de direito público.»

No caso presente, pretende o Autor ser ressarcido pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que os comportamentos culposos da Ré lhe causaram.

Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual estabelecidos nos artigos 483º e segs. do Cód. Civil, ou seja, a questão a decidir versa sobre uma relação jurídica de direito privado, como tal regulada pelas normas e princípios do direito civil comum, sem embargo de, no exercício dos seus poderes de fiscalização, nela haver intervindo, nas suas vestes de publica autorictas, uma empresa pública (a ora recorrida).

Relativamente à posição da recorrida, e tendo presente que a mesma é uma empresa pública (“Consideram-se empresas públicas as sociedades constituídas nos termos da lei comercial, nos quais o Estado ou outras entidades públicas estaduais possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma directa ou indirecta, uma influência dominante…” – nº1 do artigo 3º do Decreto – Lei nº558/99, de 17 de Dezembro -, sendo que as Regiões Autónomas podem dispor de sectores empresariais próprias – cf. artigo 5º do citado diploma):

Prescreve o nº 1 do artigo 7º do Decreto - Lei nº. 558/99, de 17 de Dezembro (Lei das Bases Gerais das Empresas Públicas) que: «sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais, intermunicipais e municipais, as empresas públicas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos estatutos».

E nos termos do disposto no artigo 14º do mesmo diploma:
“1.Poderão as empresas públicas exercer poderes e prorrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a:
a) Expropriação por utilidade pública;
b) Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público;
c) Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável à utilização do domínio público, da ocupação ou de exercício de qualquer actividade nos terrenos, edificações e outras infra-estruturas que lhe estejam afectas.
2. Os poderes especiais serão atribuídos por diploma legal, em situações excepcionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constarão de contrato de concessão.”
Por sua vez, prescreve o artigo 18º do referido diploma, sob a epígrafe de tribunais competentes:
“1. Para efeitos de determinação da competência para julgamento de litígios, incluindo recursos contenciosos, respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 14º, serão as empresas públicas equiparadas a entidades administrativas.
2. Nos demais litígios seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.”

A Ré/Recorrida é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos criada pelo artigo 8º do Decreto Legislativo Regional nº30/2003/A (Sistema portuário regional) e “… visando a sua exploração, conservação e desenvolvimento e abrangendo o exercício das competências e prerrogativas de autoridade portuária que estejam ou venham a estar-lhe cometidas” (artigo 3º do Anexo III ao citado Decreto Legislativo).
Por outro lado, são da sua competência, como se refere na decisão sob recurso, “exercer ou autorizar e regulamentar as actividades portuárias, ou as actividades com estas directamente relacionadas respeitantes a movimento de navios e de mercadorias, a armazenagem e outras prestações de serviços, como fornecimento de água, energia eléctrica, combustíveis e aluguer de equipamentos, e aplicar as sanções previstas na lei, sem prejuízo da competência conferida a outras entidades” (alínea f) do nº1 do Anexo III citado).
Assim, destes diplomas resulta que pelo Decreto Legislativo referido foi criada a Ré e foram-lhe concedidos alguns dos poderes de autoridade a que alude o artigo 14º do Decreto - Lei nº. 558/99, de 17 de Dezembro.
Desta forma, deve ser equiparada para este efeito a entidades administrativas.

Ora, no caso presente, o Autor/Recorrente imputa a responsabilidade à Ré por ser esta que gere o espaço onde ocorreu o acidente, sendo responsável por todos os danos causados naquele espaço (cf. artigo 24º da petição inicial), pois é a R. quem administra e gere todas as operações portuárias realizadas no porto do Cais do Pico (artigo 25º da petição inicial).

Assim, como se afirma na decisão sob recurso, o Autor refere que o seu direito de indemnização resulta do facto de a Ré não ter cumprido o seu dever de zelar pela segurança de pessoas e bens no porto sobre o qual tem jurisdição, isto é, no âmbito dos seus poderes de autoridade que lhe foram concedidos pelo Decreto Legislativo Regional referido.

Da análise das normas atrás referidas resulta claramente que os tribunais administrativos são materialmente competentes para conhecer da acção de responsabilidade civil extracontratual proposta contra a Ré (cf. alínea i) do artigo 4º do ETAF).

Desta forma, o recurso não merece provimento.
IV. Decisão
Posto o que precede, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.
    
Lisboa, 15 de Novembro de 2007
(Processado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as demais folhas)

(A. P. Lima Gonçalves)
(Ana Luísa Geraldes)
(António Valente)