Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8375/13.5TCLRS-A.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
DEPOIMENTO DE PARTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I– As declarações de parte previstas no artº 466º do Código de Processo Civil têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária.

II– A apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do Juiz.

III– As declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final e total, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.

IV– Nos termos do disposto no artº 454º nº 1 do Código de Processo Civil, o depoimento de parte só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.

V– O que se pretende com o depoimento de parte é a confissão de determinada realidade desfavorável à outra parte (cf. artº 352º do Código Civil).

VI– O artº 414º do Código de Processo Civil enuncia duas regras :
-A dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA .


I–Relatório:


1– Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, sob a forma comum, movida por AG. contra PFS., veio este deduzir oposição à execução, pedindo a extinção da execução, alegando, em síntese, que procedeu ao pagamento da dívida exequenda.

2– Notificada a exequente para contestar, veio a mesma a fazê-lo, defendendo a improcedência da oposição à execução.

3– Foi proferido despacho saneador.

4– Seguiram os autos para julgamento, ao qual se procedeu com observância do legal formalismo.

5– Posteriormente veio a ser proferida Sentença, a julgar a oposição à execução improcedente, constando da parte decisória da mesma :
Decisão: pelo exposto, julgam-se os presentes embargos de executado improcedentes, por não provados, prosseguindo a execução nos exactos termos em que foi instaurada.
Condena-se o executado nas custas desta acção, por ter ficado vencido.
Registe-se, notifique-se e comunique-se”.

6–  Desta decisão interpôs o executado recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1- De acordo com os documentos e a prova produzida haveriam de ser considerados – como factos provados –, os seguintes factos:
A)– A exequente e o executado, no estado de casados um com o outro, contraíram um empréstimo de € 15.000,00 junto do pai da exequente, para a aquisição do prédio que foi objecto de partilha através da escritura pública que constitui o título executivo.
B)– Do referido empréstimo de € 15.000,00, foi parcialmente reembolsado ao pai da exequente, durante a pendência do casamento, o montante de € 6.500,00.
C)– Do remanescente em dívida de € 8.500,00, o executado reembolsou o pai da exequente de metade deste valor, correspondente à sua quota parte de responsabilidade na referida dívida, ou seja, € 4.250,00.
D)– Que o pai da exequente, posteriormente, doou à filha e aquele montante de € 6.500,00 reembolsado (do mencionado empréstimo)

2– Não devem ser considerados como “factos não provados”, os seguintes factos:
a.- O executado entregou o cheque (...) para que fosse entregue à exequente a importância de € 10.000 (...), para pagamento das tornas (...).
b.- O executado procedeu deste modo, a pedido da exequente, de acordo com as instruções desta e com o prévio conhecimento, pelo pai da mesma, do objectivo da entrega do referido cheque.
c.- Na sequência destes factos, o pai da exequente entregou-lhe a importância de € 10.000,00 para pagamento do valor das tornas acima referidas.

3– O peticionado nas conclusão 1ª e 2ª resulta de todos os documentos do processo, nomeadamente do documento de fls. 9, e de todos os testemunhos constantes dos autos que estão transcritos nas presentes alegações e resultam das seguintes passagens:
a)- documento de Fls. 9, elaborado e reconhecido pelo pai da exequente e entregue ao executado para o efeito se ser efectuado o acerto de contas, sendo este um documento que representa um acordo entre o Executado e o pai da exequente que espelha a realidade dos factos relativos pelo menos à dívida comum do ex-casal; e
b)- as declarações prestadas pelo executado ((20170111142323 – 01:05/28:12 a (20170111142323 28:12/28:12 e 20170111142323 00:01/07:18 a 20170111142323 – 06:50/07:18), pela exequente (20170111145834 – 02:07/29:56 a (20170111145834 – 29:56/29:56), por MGS., (20170111152832 – 03:24/11:19 a 20170111152832 – 11:19/11:19) e por GGD (2017011115395388409 – 00:30/19:12 a 2017011115395388409 – 19:12/19:12) que reconheceu e confirmou o teor do documento de fls. 9.

4– O recorrente considera que deve constar do elenco dos factos não provados, o seguinte facto: Que o executado assumiu o reembolso do montante de € 15.000,00 ao pai da exequente.

5– Da prova constante da conclusão anterior, e nomeadamente da escritura pública de partilha, sendo que não existe prova alguma, designadamente documental, da qual resulte que a partilha do imóvel que constitui o título executivo acarretaria, para o executado, a restituição ao pai da exequente de qualquer montante de € 15.000,00.

II
6– Nos termos do 376º do Código Civil, o documento de fls. 9 faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, GGD.

7– Da prova constante dos autos resulta que:
a)- Ocorreu um contrato de mútuo entre o património comum do casal e o pai da exequente.
b)- Este contrato de mútuo não se confunde com o contrato de doação que o pai da exequente celebrou com esta.

8– O pai da exequente só poderia ter feito a doação do valor de € 6.500,00 à filha se o tivesse recebido efectivamente do casal;

9– Mesmo que, ao contrário da realidade, fosse verdade que não houve entrega física de dinheiro,

10– Só se pode doar aquilo que já se tem.

11– Nos termos e para os efeitos do disposto no artº 376º do Código Civil, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao autor deste documento, não podendo ser contrariadas pelo mero depoimento da sua pessoa.

12– Resulta claro dos documentos e das confissões da testemunha GD que foram consideradas pagas as 52 primeiras prestações mesmo que, ao arrepio da realidade, não tivesse havido troca de dinheiro.

13– Nada impedia que a exequente recebesse a doação do seu pai, mas a dívida era comum não tendo de ser repetido o pagamento.

14– O mutuante não pode, sem o acordo dos mutuários, dar sem efeito o pagamento das prestações com efeitos retroactivos – como o mutuante pretende agora interpretar os factos.

15– Esta conclusão justifica-se porque o pai da exequente referiu que se o casamento continuasse, ele consideraria as prestações pagas, se o casamento não continuasse não as consideraria pagas (que pode fazer sentido em termos sociológicos mas não faz qualquer sentido em termos jurídicos).

16– Considerar-se que foi efectuado o pagamento das 52 prestações (foi paga a prestação) ou, ao invés, que não foi, não pode depender de mero capricho do mutuante, pai da exequente, de o casamento dissolvido se manter ou não, porque depende isso sim, e apenas, do real acordo entre as partes no momento em que ocorreu o pagamento (e não de factos posteriores a este).

17– No domínio das relações jurídico contratuais entre o mutuante e o casal, não deixar de ser considerar a dívida parcial pago o montante de € 6.5000,00.

18– Os 15.000,00 correspondem, ao somatório de € 10.000,00, de € 750,00 e de € 4.250,00.

19– De modo tal que, quanto da dívida à ex-esposa, o executado e o pai da exequente celebraram um acordo em favor de terceiros (a pessoa da exequente) segundo o qual o pai da exequente se obrigaria a entregar à exequente aquela verba de € 10.0000,00.
* *
Normas violadas
A Douta Sentença violou as seguintes disposições legais: artºs 236º, 376º, 524º, 1689º, 1691º, 1697º e 1730º do Código Civil e os artigos 604º e 615º do Cód. Proc. Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito, que Vossas Excelências, douta mente, suprirão, deve ser concedido provimento ao presente Recurso e consequentemente ser revogada a decisão recorrida, com as legais consequências, por assim ser de inteira Justiça e julgados procedentes os Embargos”.

7– A exequente apresentou contra-alegações, onde pugna pela manutenção da decisão recorrida.

*  *  *

II–Fundamentação
a)–  A matéria de facto dada como provada em primeira instância foi a seguinte :
1-  AG. instaurou acção executiva contra PFS, para pagamento da quantia de 10.000 €, acrescida dos juros de mora.
2A referida execução funda-se em escritura pública, celebrada em 23/4/2009, na qual intervieram como primeiro outorgante a exequente e como segundo outorgante o executado, tendo ambos declarado, além do mais :  Que foram casados, um com o outro, no regime da comunhão de adquiridos, e, por decisão transitada em julgado em 27/3/2009, foi decidido o divórcio por mútuo consentimento ;  que procedem à partilha do património comum do dissolvido casal, sendo o activo constituído por um prédio urbano, composto de casa de rés­-do-chão, destinado a habitação, com logradouro, sito na freguesia de …, concelho de Arruda dos Vinhos, ao qual atribuem o valor de 70.781,25 € (setenta mil setecentos e oitenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), e o passivo por uma dívida à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Loures, C.R.L.”, resultante de um empréstimo concedido a ambos, que apresenta o valor de 50.781,25 € (cinquenta mil setecentos e oitenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), garantido com uma hipoteca sobre o referido prédio urbano ;  que estando de pleno acordo, procedem à partilha adjudicando ao segundo outorgante, PFS, o mencionado prédio urbano, ficando também com o encargo, que declara assumir, do pagamento de todo o passivo, pelo que leva a mais o valor líquido de 20.000,00 € (vinte mil euros) ; que como só tem direito a 10.000,00 € (dez mil euros), repõe em tornas à primeira outorgante, AG., a importância de 10.000,00 (dez mil euros) ;  que esta importância será paga em quarenta prestações mensais de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros) cada uma, a primeira das quais vence em 1 de Junho de 2011 e as seguintes nos meses subsequentes até ao integral pagamento, podendo o segundo outorgante fazer amortizações sempre que lhe seja possível.
3-  O executado entregou ao pai da exequente um cheque, com o número 7041844056, sacado sobre uma conta bancária aberta em seu nome no “Banco Millenium BCP”, no montante de 15.000 €, datado de 8/6/2009.

b)–  Foram considerados como não provados os seguintes factos :
I–  O executado entregou o cheque acima referido para que fosse entregue à exequente a importância de 10.000 €, para pagamento do valor das tornas acima referidas.
II–  O executado procedeu deste modo, a pedido da exequente, de acordo com as instruções desta e com o prévio conhecimento, pelo pai da mesma, do objectivo da entrega do referido cheque.
III–  Na sequência destes factos, o pai da exequente entregou-lhe a importância de 10.000 €, para pagamento do valor das tornas acima referidas.

c)–  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões das alegações da recorrente, as únicas questões em recurso consistem em apurar :
-Se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância
-Se a oposição à execução deve proceder.

d)–  Vejamos, então, se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
Ora, de acordo com o disposto no artº 640º nº 1 do Código de Processo Civil, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar :
-Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
-Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do artº 690º-A (depois artº 685º-B e actualmente artº 640º) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.
De qualquer modo, há que não esquecer que continua a vigorar entre nós o sistema da livre apreciação da prova conforme resulta do artº 607º nº 5 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.

e)– Procedemos à análise dos documentos juntos aos autos, bem como da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.

f)– Pretende o recorrente que os Factos Não Provados passem para o elenco dos Factos Provados.
Mais entende que se devem aditar os seguintes Factos Provados :
-A exequente e o executado, no estado de casados um com o outro, contraíram um empréstimo de 15.000 € junto do pai da exequente, para a aquisição do prédio que foi objecto de partilha através da escritura pública que constitui o título executivo.
-Do referido empréstimo de 15.000 € foi parcialmente reembolsado ao pai da exequente, durante a pendência do casamento, o montante de 6.500 €.
-Do remanescente em dívida de 8.500 €, o executado reembolsou o pai da exequente de metade deste valor, correspondente à sua quota parte de responsabilidade na referida dívida, ou seja, 4.250 €.
-O pai da exequente, posteriormente, doou à filha e aquele montante de 6.500 € reembolsado (do mencionado empréstimo).
Por fim, pretende que se integre na lista dos Factos Não Provados o seguinte facto :
-Que o executado assumiu o reembolso do montante de 15.000 € ao pai da exequente.

g)– Vejamos :
Em primeiro lugar, foram produzidas declarações de parte do recorrente e, posteriormente, depoimento de parte da apelada.
A propósito das declarações de parte, dispõe o artº 466º do Código de Processo Civil no seu nº 1 que “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”.

E acrescenta o nº 2 de tal normativo que “às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior”.

Por fim, o nº 3 do preceito estipula que “o Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.

Coloca-se aqui a questão de saber como valorar as declarações de parte.

Nos termos do já citado artº 466º nº 3 do Código de Processo Civil, o Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.

Para Lebre de Freitas (in “A Acção Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, pg. 278) “a apreciação que o Juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, “maxime” se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas”.

Ou seja, para este autor as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária.

Paulo Pimenta (in “Processo Civil Declarativo”, 2014, pg. 357) afirma que “face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva”.

Por sua vez, a Jurisprudência tem vindo a valorar as declarações de parte, remetendo a sua valoração para um mero princípio de prova.

Assim, por exemplo, o Acórdão da Relação do Porto de 20/11/2014 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt) refere :
“(…) é certo que actualmente já se admite o “testemunho” de parte, a que se chama declarações de parte (artº 466 do CPC) e a lei diz que o Juiz aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão.  Mas a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do Juiz.  Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da acção, o Juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da acção, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas”.

Além disso, no Acórdão da Relação do Porto de 15/9/2014 (também consultado na “internet” em www.dgsi.pt) salienta-se :
“As declarações de parte (artigo 466º do novo CPC) – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado.  As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção.  Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos”.

Ou seja, o tipo de prova em causa não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final e total, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.

As declarações da parte podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de apuramento de factos, mas as mesmas terão sempre de ser concatenadas com outros dados probatórios alcançados em sede de julgamento.

Deste modo, “in casu” há que apreciar livremente as declarações de parte da recorrente, não lhe dando prevalência sobre as demais provas.

É, pois, com este princípio que teremos de apreciar as declarações de parte produzidas nos autos.

Ora, no essencial, o recorrente reproduziu a sua versão dos factos já vertida nos articulados.

Mas, além disso, apresentou manifestas e inesperadas hesitações que permitem colocar em dúvida a sua narrativa. 

Assim, ao ser interrogado sobre a razão pela qual decidiu proceder ao pagamento da dívida de 10.000 € logo dois meses após a emissão do documento que a titulava, quando o poderia fazer dois anos depois, disse que “entretanto falei com os meus pais e emprestaram-me o dinheiro”.  Acrescentou que não pediu antes o dinheiro porque “não queria sacrificar” os pais.  Disse ainda que se encontrava a pagar as prestações de aquisição de um veículo automóvel.  Referiu que na altura a recorrida, sua ex-mulher, “estava a adquirir um apartamento”, “estava com algumas dificuldades” e, como não queria que ela perdesse o sinal pago pediu aos pais para lhe emprestarem o dinheiro.  Deste modo, segundo referiu, “como não queria ficar a dever mais nada a ela, decidi resolver a situação toda”.

Quando lhe foi perguntado a quem entregou o cheque de 15.000 € (com o qual refere ter pago a dívida à apelada), disse que “se não estou em erro entreguei o cheque directamente ao pai dela”.  Confrontado com a expressão utilizada (“se não estou em erro”) disse que “isso já foi há muito tempo”.  Depois acabou por dizer que “tenho quase a certeza que foi ao pai dela”.  E ainda que entregou o cheque “na casa dos pais” da recorrida, “em mão”, sendo certo que “conhece bem” o pai daquela. 

Instado a esclarecer a razão pela qual o cheque por si emitido tinha aposto o valor de 15.000 €, quando se destinava a pagar uma dívida de 10.000 €, disse que a diferença de 5.000 € era para pagamento de uma dívida que tinha para com o pai da recorrida. Disse ainda que, de acordo com o papel (referindo-se ao documento de fls. 9), a dívida “não era tanto”, mas como “sou uma pessoa de bem, quis acertar as minhas contas todas”.  Mais referiu ao pai da recorrida que “o remanescente dos 10.000 € é para si”. 
Ainda a propósito do documento de fls. 9, não logrou apresentar uma explicação lógica para a operação aritmética ali constante (“15.000,00 – 6.500,00 = 08.500,00 : 2 = 4.250”; “3.250”;  “4.250”), limitando-se a dizer que “era para acertar”, “saldar tudo”.

Não podemos de deixar de salientar alguns aspectos manifestamente imprecisos e obscuros neste depoimento, os quais o apelante não conseguiu minimamente esclarecer, enredando-se em explicações pouco lógicas :
-Se tinha a possibilidade de iniciar o pagamento dos 10.000 € apenas dois anos depois da emissão do documento que titulava a dívida, ainda para mais em prestações mensais de 250 €, qual a razão pela qual, ao fim dois meses de emitir o documento decidiu proceder ao pagamento integral.
-Se o cheque era para pagar a dívida para com a recorrida, qual a razão pela qual o entregou ao pai desta.
-Se conhece bem o pai da apelada, qual o motivo pelo qual foi incapaz de ser claro na indicação da pessoa a quem o entregou, utilizando expressões como “se não estou em erro entreguei (…) ao pai dela”, escudando-se na “estafada” desculpa que muitas e muitas testemunhas gostam de utilizar em Tribunal para não assumirem a responsabilidade daquilo que dizem :  “Isso já foi há muito tempo”.
-Se era correcta a tese apresentada pelo recorrente no seu articulado inicial, e que ele defende estar vertida no documento de fls. 9 (o cheque de 15.000 € destinava-se a pagar 10.000 € à recorrida, 4.250 € ao pai da apelante relativos a metade de uma dívida comum do ex-casal formado pelas parte do processo, e 750 € de um reembolso à apelada), qual a razão pela qual o recorrente não conseguiu explicar esta operação aritmética no seu depoimento e nem sequer foi capaz de se lembrar que parte do excedente dos 10.000 € (750 €) também era para entregar à recorrida.
Todo este circunstancialismo reduz, em muito, a credibilidade destas declarações, tornando altamente improvável a narrativa efectuada pelo apelante. 
h)– Como acima referimos, a apelada prestou depoimento de parte (e não declarações de parte).
Ora, nos termos do disposto no artº 454º nº 1 do Código de Processo Civil, o depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
O que se pretende com o depoimento de parte é a confissão de determinada realidade desfavorável à outra parte (cf. artº 352º do Código Civil).
Como refere Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, pg. 76), “a confissão constitui prova não a favor de quem a emite, mas a favor da parte contrária;  portanto, recai necessariamente sobre factos desfavoráveis ao confitente e desfavoráveis ao adversário”.
No caso “sub judice”, a recorrida prestou um depoimento de parte em que quase se limitou a reproduzir a sua versão dos factos já vertida nos articulados.  Ou seja, o seu depoimento não lhe foi desfavorável, antes pelo contrário, sendo certo que, “se a parte alega facto favorável ao seu interesse não confessa, faz uma afirmação cuja veracidade tem de demonstrar, pela razão simples de que ninguém pode, por acto seu, formar ou fabricar prova a seu favor”(cf. Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, pg. 76).
Face ao exposto, não se poderão ter por confessados os factos narrados pela apelante, os quais lhe são favoráveis, nada tendo acrescentado ao que já alegou nos articulados.

Assim sendo, não há que valorar o depoimento de parte produzido pela apelante.

i)–Também pouco relevante foi o depoimento da testemunha MGS, mãe do recorrente.  Limitou-se a dizer que “ajudou o filho” e que lhe deu “em dinheiro, 15.000 €, para ele fazer as contas do divórcio com a minha ex-nora e com o pai dela”.  Quando lhe foi perguntado que “contas” eram essas, respondeu que “isso não sei”.  Disse que o filho é que lhe disse que o destino do dinheiro era esse, não tendo falado com a recorrida nem com o pai desta sobre o assunto.

j)– Finalmente, a testemunha GDG, pai da recorrida, também acabou por fazer um depoimento em que mostrou alguma parcialidade.  Negou que o cheque em causa, no valor de 15.000 € se destinasse, em parte, à sua filha e que o apelante “nunca falou nesse assunto”. Disse que a referida verba se destinava a restituir-lhe, na íntegra o dinheiro que entregou para compra do prédio objecto da partilha, que foi adjudicado ao apelante.  Tendo-lhe sido apresentado o documento de fls. 9 destes autos, revelou algumas dificuldade em explicar o seu teor, dizendo que o apelante lhe queria pagar os 15.000 € na totalidade.  Referiu ter emprestado 15.000 € para o casal (apelante e apelada) adquirir um terreno. Enquanto eles eram casados, “foi fazendo um abatimento, sem me darem dinheiro” e que se continuassem casados, “perdoaria o restante”, isto para “tentar ajudá-los”.  Quando se separaram, “ele quis pagar-me”.  Referiu que quando deu o papel (o documento de fls. 9) ao recorrente, este lhe disse que “não tinha nada a ver com isso”, e que “foi 15.000 € que o senhor me deu”, pelo que queria pagar a totalidade dos quinze mil euros.

Não podemos deixar de verificar, com alguma perplexidade, que é estranho que a testemunha tenha emprestado ao casal a quantia de 15.000 €, e depois aceitasse que apenas um dos elementos do casal (o recorrente) lhe devolvesse a totalidade desse valor (e não apenas metade), sendo igualmente estranho que o apelante insistisse em fazer o pagamento total.

k)– Estamos, pois, perante duas versões diametralmente opostas, em que os depoimentos principais, o do recorrente e o do pai da recorrida, apresentam algumas lacunas, imprecisões e, nalguns pontos, alguma falta de lógica.

“Quis juris” ?

No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o Tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.

De qualquer modo, há que ter presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artº 414º do Código de Processo Civil, de que a “dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.  Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes (in “Impugnação”, estudo publicado em “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas”, Vol. I, 2013, pgs. 609 e 610), em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.  E mais à frente refere a mesma autora :  “O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade”.

Ora, o citado artº 414º do Código de Processo Civil enuncia duas regras :
-A dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
-A dúvida sobre o ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

A primeira regra é a consequência da consagração, no Direito Civil, das normas de distribuição do ónus da prova, que fica, em princípio, a cargo da parte a quem o facto aproveita (artºs. 342º a 345º do Código Civil) :  A dúvida sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto, pelo que resulta em desvantagem para a parte que tinha o ónus de o provar.

A segunda regra constitui também um enunciado de direito material, aliás também parcialmente constante do artº 342º nº 3 do Código Civil :  É a análise das normas de direito substantivo que, além do mais, permite distinguir o facto constitutivo dos demais, estabelecendo aquele normativa que, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (cf. Lebre de Freitas, in “Código do Processo Civil Anotado”, Vol. 2, pg. 402).

Ora no caso “sub judice” defende o recorrente ter já procedido ao pagamento da quantia exequenda.

Nos termos do artº 342º nº 2 do Código Civil é a ele (apelante), por se tratar de um facto extintivo do direito invocado pela demandante, que cabe o ónus de provar os factos relativos à excepção de pagamento que deduziu.

A exequente não tem, por isso, que provar que ainda não se encontra pago, pois, por força do artº 342º nº 1 do Código Civil, cabe-lhe somente a prova dos factos constitutivos do direito que afirma assistir-lhe.

“In casu”, em face da prova produzida (e acima analisada), subsistindo algumas dúvidas sobre o eventual pagamento da dívida à recorrida, a dúvida terá que se resolver contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja, contra o recorrente.

Motivo pelo qual, não poderemos considerar como provados os factos atinentes ao pagamento da quantia exequenda por parte do apelante.

l)– Daqui se conclui que a matéria de facto, tal como foi considerada na Sentença, não merece qualquer reparo, não se vislumbrando motivos para a alterar, pelo que o recurso nesta parte improcede.

m)– É, pois, com base na factualidade fixada pelo Tribunal de 1ª instância que importa doravante trabalhar no âmbito da análise das restantes questões trazidas em sede de recurso.

n)– Por fim, vejamos se oposição à execução deve proceder.

Dispõe o artº 10º nº 4 do Código de Processo Civil que “dizem-se acções executivas aquelas em que o autor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida”.  E acrescenta o nº 5 do preceito que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”.

O legislador, atenta a “ratio” da acção executiva (que, em regra, exclui a decisão sobre a existência ou a configuração do direito exequendo) condicionou a exequibilidade do direito à prestação à verificação de dois pressupostos :
1º–A existência de título executivo com as características formais legalmente exigíveis (exequibilidade extrínseca).
2º–A certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação (exequibilidade intrínseca).

A pretensão é intrinsecamente exequível quando, em si, reveste características de que depende a sua suscetibilidade de constituir o elemento substantivo do objecto da acção executiva, para o que basta ter como objecto uma prestação que seja certa, líquida e exigível.

Efectivamente, a acção executiva “não pode ter lugar perante a simples previsão da violação dum direito”.  Ela só pode ser instaurada “depois de consumada a violação ou de se ter tornado exigível a obrigação (…) pressupondo, logicamente, a prévia solução da dúvida que possa haver sobre a existência e a configuração do direito exequendo” (cf. Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva”, 2004, pgs. 13 e ss).

Ou seja, a acção executiva pressupõe o incumprimento da obrigação que resulte do próprio título dado à execução, isto é, que o direito inscrito no título dado à execução está definido e acertado.

Nesta conformidade o título executivo é condição necessária e suficiente da acção.

Necessária porque não há execução sem título.

Suficiente porque, perante ele, deve ser dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere.

Na verdade “a relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança, tida por suficiente, da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efectivar por via da acção executiva. (…) O fundamento substantivo da acção executiva (…) é a própria obrigação exequenda, sendo que o título executivo é o seu instrumento documental legal de demonstração, ou seja, constitui a condição daquela acção e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas” (cf. Acórdão do S.T.J. de 18/10/2007, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

A oposição a execução por embargos (os antigos embargos de executado) destina-se a facultar ao executado o exercício do seu direito de defesa, constitucionalmente protegido, invocando argumentos de natureza processual ou substantiva, cuja procedência conduz à extinção, total ou parcial, da acção executiva.

o)–  Ora, tendo-se por assente a factualidade considerada provada em 1ª instância e supra descrita, verifica-se que a sentença recorrida fez, em face dela, uma correcta aplicação do direito.

Com efeito, o recorrente invocou a excepção peremptória do pagamento da dívida exequenda.

Não logrou provar tal pagamento.

Terá, assim, de sofrer as legais consequências, nomeadamente a de ver a presente oposição à execução ser julgada improcedente.

p)–  Em face de tal, é manifesto que o recurso terá de improceder, havendo que confirmar na íntegra a decisão recorrida.

s)–  Sumário :
I- As declarações de parte previstas no artº 466º do Código de Processo Civil têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária.
II- A apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do Juiz. 
III- As declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final e total, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.
IV- Nos termos do disposto no artº 454º nº 1 do Código de Processo Civil, o depoimento de parte só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
V- O que se pretende com o depoimento de parte é a confissão de determinada realidade desfavorável à outra parte (cf. artº 352º do Código Civil).
VI- O artº 414º do Código de Processo Civil enuncia duas regras :
-A dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
-A dúvida sobre o ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

*  *  *

III–Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas :  Pelo recorrente (artº 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator



Lisboa, 9 de Setembro de 2019


(Pedro Brighton)
(Teresa Sousa Henriques)
(Isabel Fonseca)