Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1863/10.7TDLSB.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-A imposição de fundamentação, de facto e de direito, ao despacho de não pronúncia por falta de recolha de indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento, só se deve considerar cabalmente satisfeita com a articulação ou e enumeração, discriminada e autónoma, de cada um dos factos que se consideram indiciados e não indiciados, sob pena de nulidade.
II- O despacho de não pronúncia por falta de recolha de indícios suficientes reveste natureza de puro pressuposto de decisão processual à prossecução do processo para julgamento (não é decisão de mérito e sobre ele não se estabelece caso julgado).
III-A constatação de falta de indícios no despacho de não pronúncia não obsta a que mais tarde, com o surgimento de novos elementos de prova, não venham a prosseguir os autos.
IV- È da natureza do despacho de não pronúncia por falta de recolha de indícios, aliada com a letra da lei (cfr. artº 283º, nº 2 e 3 ex vi do artº 308º, do CPP), que se extrai que o despacho de não pronúncia tem de conter a factualidade considerada suficientemente indiciada e não indiciada, com o necessário reporte a toda a factualidade relevante que conste da acusação e do requerimento de abertura de instrução.
Também só assim se tutela o direito ao recurso.
Decisão Texto Parcial:Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:

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I - Relatório:

Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu despacho de arquivamento em face da queixa formulada por RB... contra

- CNS....,

- ANS...,

- NT... e desconhecidos, pela prática dos crimes de recusa de médico, p. e p. pelo art° 284°/CP, agravado, nos termos do art° 285°/CP, e de ofensa à integridade física por negligência e grave ofensa para a saúde, resultante de intervenções e tratamentos médico-cirúrgico, p. e p. pelo art° 148° e 150°/2, do CP.

O ofendido RB... constitui-se assistente e requereu a abertura de instrução. Realizada a instrução, o Mm° Juiz proferiu decisão instrutória, a 28/02/2013, que não pronunciou nenhum dos denunciados, já constituídos arguidos, por qualquer dos crimes imputados.


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Inconformado com a decisão, o assistente interpôs recurso mediante a apresentação de motivação cujas conclusões se transcrevem:

« 1- Foi proferido despacho de não pronúncia e, em consequência, determinado o arquivamento dos autos, por força do Meritíssimo Juiz de Instrução ter concluído que não se mostra suficientemente indiciado que os arguidos, com as suas condutas, tenham preenchido os elementos dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150.° n.° 2 do Código Penal e de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148. ° n.° 1 do Código Penal.

2 - Salvo o devido respeito e melhor opinião, o douto despacho recorrido afigura-se omisso quanto à narração dos fados indiciários, e, bem assim, quanto ao exame crítico da prova trazida a Juízo.

3 - Na verdade o Meritíssimo Juiz de Instrução conheceu do mérito do requerimento de instrução, tendo concluído pela não pronúncia dos arguidos.

4 - Contudo, conforme flui do despacho recorrido, foi omitida completamente a decisão fáctica, não se descrevendo nem especificando quais os factos do requerimento instrutório que se consideram suficientemente indiciados, nem os que como tal se não consideram.

5 - Ora, até de acordo com a lógica, só após tal enumeração poderia e deveria seguir-se a tarefa de decidir se os factos indiciados eram ou não suficientes para a sujeição dos arguidos a julgamento pelos crimes imputados, sendo certo que tal omissão acarreta a nulidade do despacho de não pronúncia.

6 - No caso em apreço, nenhum facto indiciário, em termos objectivos, foi carreado ao despacho de não pronúncia (nem foi afirmado que nenhum facto se provou) tendo, apenas, sido retiradas conclusões pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, da prova que analisou sem dar por assente qualquer facto.

7 - A ausência de fados descritos impede a análise pelo Tribunal "ad quem" da bondade da solução encontrada em sede de instrução.

8 - A não descrição dos factos acarreta a nulidade do despacho (art.308.º, n°2 com referência ao art. 283. °, n°3, b) do CPP). E constitui esta falta, nulidade cognoscível por este Tribunal da Relação. Não fazendo, embora, parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do art.119° do CPP, não pode deixar de ter-se como insanável a nulidade consistente na falta de narração, ainda que sintética, dos factos que constituem fundamento da decisão de pronúncia ou não pronúncia, tendo em atenção que as disposições do art. 119° do CPP não são taxativas: constituem nulidades insanáveis, para além das que estão descritas nas alíneas daquele dispositivo, todas as que como tal forem cominadas noutras disposições legais, dentro ou fora daquele diploma legal.

9 - Se é certo que o art. 283°, n° 3, do CPP, a que se refere o art. 308°, do mesmo código, não diz que se trata de uma nulidade insanável, a lógica do sistema, em matéria de tão fundamental importância, porque pressuposto da subsunção, necessariamente nos tem de conduzir a essa interpretação. Se a falta de narração dos factos na acusação conduz, nos termos do art. 311.°, n.°2, a), do CPP à rejeição desta, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente.

10 - Para além disso, o despacho recorrido tem a natureza de uma verdadeira sentença, como a define o n.° 1 do artigo 97. °, do CPP, porque conhece do objecto do processo, decidindo que os arguidos não devem ser responsabilizado criminalmente e, como tal, põe teimo aos autos.

11 - Deve assim entender-se que lhe é aplicável o disposto nos artigos 374.° e 379. n.° 1, al a) e n.° 2, do CPP, que exigem que a decisão manifeste a respectiva fundamentação, especificando os motivos de facto e de direito que a determinam, e o conhecimento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal.

12 - Na medida em que a decisão não contém essa fundamentação, está eivada de nulidade, também por violação do disposto nos artigos 379. °, n.° 1, tal. a) e 374.°, n.° 2, do CPP, o que se requer seja reconhecido e declarado por V. Exas., mandando-se corrigir o vício de que a decisão enferma.

13 - De qualquer modo, ainda que assim não fosse, o que se concede por mera cautela e dever de patrocínio, a reconstituição processual dos elementos do Inquérito e da Instrução permitem, no entender do Assistente/Recorrente alcançar o nível de probabilidade necessário do cometimento dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150. ° n.° 2 do Código Penal e de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.° n.° 1 do Código Penal.

14 - O Meritíssimo Juiz a quo veio afirmar que o Assistente/Recorrente assentou a sua pretensão de ver os arguidos pronunciados no facto de estes não terem determinado a realização de exame laboratorial tendo em vista o apuramento da infecção pelo vírus H1N1, o que não é verdade.

15 - A questão essencial deste processo é antes a da análise de um conjunto de práticas médicas, traduzidas na observação, diagnóstico e implementação de terapêutica, incluindo a prescrição medicamentosa. Claro que nesta apreciação, conforme destacado no requerimento de abertura de instrução, a (ausência da) solicitação do exame laboratorial assume um dos principais aspectos a ser ponderado. Um dos principais, mas não seguramente o único, todo o quadro evidenciado pelo Assistente nas diferentes situações em que foi observado era perfeitamente compatível com a infecção pelo vírus H1 N1 e só por si suficiente para permitir que tal diagnóstico fosse correctamente efectuado.

16 - Quer isto dizer, que tal diagnostico se impunha, contrariamente ao que aconteceu. Mas se dúvidas subsistissem aos clínicos, então, estavam os mesmos obrigados a solicitar a confirmação laboratorial.

17 - Só uma cuidada análise da dinâmica factual em crise nos autos permitirá concluir pela adequação ou não das prescrições medicamentosas e das condutas levadas a cabo pelos profissionais de saúde aqui envolvidos, pelo que não basta afirmar, como se faz no douto despacho de não pronúncia de que se recorre, que as condutas estão de acordo com as leges artis. Antes, é necessário dizer quais elas sejam (dá-las como indiciariamente provadas ou não provadas) para que o tribunal possa formular um juízo (o seu próprio juízo) de adequação das condutas dos médicos ao seu dever de agir.

(...)”


***

Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso, porquanto entendeu que o despacho recorrido não enferma de nulidade, impondo-se, em face da perícia, o despacho de não pronúncia.

Nesta instância, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, que foi acompanhado, nos seus termos, pelos arguidos.


***

II- Questões a decidir:

Do art° 412°/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso[i], exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso[ii].

As questões colocadas pelo recorrente, assistente, são

           2-Nulidade da decisão instrutória, por falta de narração dos factos indiciados e não indiciados, com reporte ao requerimento de abertura de instrução, do exame crítico da prova indiciária e daquilo que se considera serem as condutas que, segundo a legis artis, foram seguidas ou omitidas;

           3-Errada interpretação, por parte do despacho recorrido, do motivo pelo qual o assistente entendeu que os arguidos deveriam ter sido pronunciados;

           4-Irregularidade do relatório pericial por falta de fundamentação das conclusões a que chegou, com a consequente subtração do mesmo ao valor probatório previsto no art° 163°/CPP;

           5-lndiciação suficiente e adequada, pela análise do relatório, da prática pelos arguidos dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150º/2, do CP, e de ofensa à integridade

física por negligência, p. e p. pelo artigo 148°/CP, pelo que deveria ter sido proferido despacho de pronúncia.

 


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III- Fundamentação de facto:

O despacho recorrido contem-se nos seguintes termos[iii]:

«1- Por despacho de fls. 201 a 205, o Ministério Público, ao abrigo do disposto no art 277°. n.° 1, do Código de Processo Penal, procedeu ao arquivamento do inquérito.

É o seguinte o teor do despacho de arquivamento:

(...)

De tudo isto se conclui não ter existido qualquer violação das legis artis da medicina ou negligência no tratamento do assistente.


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Existe, portanto, prova suficiente de que não ocorreram os crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos ou de ofensa à integridade física por negligência, Assim, o inquérito deverá ser arquivado.

O assistente entende, outrossim, que a matéria objecto de queixa é susceptível de integrar o cometimento de um crime de recusa de médico, p. e p. pelo art. 284° do Código Penal.

Esta norma tipifica a conduta do médico que recusar o auxílio da sua profissão em caso de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa, que não possa ser removido de outra maneira.

Resulta dos autos (e inclusivamente do próprio teor da queixa) que aquele sujeito processual não foi atendido no Centro de Saúde de ... em virtude de uma suposta avaria informática. Ora, a recusa de assistência em causa não foi praticada por um médico, mas por pessoal administrativo dessa unidade clínica, pelo que este ilícito criminal também não se verificou.

Inconformado com o teor deste despacho de arquivamento, veio o assistente RB... requerer, a fls. 211 a 245, a abertura de instrução, invocando para tanto os seguintes fundamentos:

Em 06-11-2009, o assistente manifestava sintomas de gripe, nomeadamente tosse, dores e febre, que no seu caso chegou a atingir os 40°C;

- Em cumprimento das recomendações da Direcção-Geral da Saúde para o controlo da Gripe A, contactou a Linha Saúde 24 (808 24 24 24);

- De acordo com as informações institucionais, a Linha Saúde 24 disponibiliza um serviço de triagem, Aconselhamento e Encaminhamento, que consiste num serviço de atendimento de contactos de teor clínico que disponibiliza aos utentes o acesso a um profissional de saúde que avalia o nível de risco sobre os sintomas descritos pelo utente, presta aconselhamento, incluindo o auto-tratamento e, caso se verifique necessário, encaminha o doente para a instituição da rede de prestação de cuidados de saúde mais apropriada à sua condição do momento:

 -Durante este contacto, após ter sido avaliado sobre os sintomas que sentia, ao assistente foi dada recomendação para se encaminhar para o Centro de Atendimento da Gripe A da sua área de residência, no caso concreto para o Centro de Saúde da ...:

 -Recomendação que o assistente seguiu, dirigindo-se nesse mesmo dia ao Centro de Saúde da .... onde, após observação clínica conduzida pela Drª,... (portadora da cédula profissional n° ..., emitida pela Ordem dos Médicos), lhe foram confirmados os sintomas de gripe;

- No entanto, embora vindo o assistente referenciado como suspeito de portador do vírus da gripe A, e na observação clínica presencial tenha feito o diagnóstico de gripe, a profissional de saúde acima referida não determinou que fosse apurado, através da devida investigação laboratorial, se se tratava de uma infecção por vírus H1N1;

- Isto, apesar de nessa data estamos em pleno pico do surto epidémico do vírus H1N1 (gripe A);

 -A patologia diagnosticada consubstanciava a hipótese de gripe A;

- O Assistente foi medicado apenas com terapêutica sintomática - anti-inflamatórios e antipiréticos ("Brufen 600" e "Ben-u-ron") - tendo também sido declarada a sua incapacidade laboral até ao dia 12-11-2009, devendo, assim, permanecer (em auto-vigilância e isolamento) no seu domicílio;

- Por que razão a médica em causa, assumindo um diagnóstico de gripe por vírus H1N1, apenas prescreveu medicação sintomática e não incluiu o antivírico Oseltamivir, sendo certo que para combater o vírus H1N1 só o antivírico Oseltamivir poderia ter acção eficaz?;

 -E por que razão, assumindo dúvidas sobre o tipo de gripe que afectava o assistente, não determinou a realização do exame laboratorial para o referido despiste?;

- A médica participada violou assim as legis artis da profissão e criou, desse modo, um perigo para a vida do assistente, gerando grave ofensa para o corpo e saúde deste:

- Actuação que foi livre, voluntária e consciente:

- Conduta que merece censura penal nos termos dos arts. 148° e 150° do Código Penal;

- Durante o dia 07-11-2009, o assistente manteve-se em casa, seguindo as indicações médicas;

- Sucede que, apesar da medicação, os sintomas não só persistiram como se agravaram, nomeadamente a febre alta, pelo que, em 08-11-2009, o assistente voltou a contactar a Linha Saúde 24;

- Nesse atendimento, o assistente relatou o historial clínico e destacou o agravamento dos sintomas que sentia;

- Mais uma vez, na decorrência deste contacto e perante o quadro clínico que apresentava, o assistente voltou a ser encaminhado para um Centro de Atendimento da Gripe A, desta feita para o Centro de Saúde de ..., uma vez que os Centros da sua área de residência (...) se encontravam encerrados;

-Cumprindo a recomendação, ainda em 08-11-2009, o assistente dirigiu-se ao Centro de Saúde de ..., onde lhe foi recusado a prestação de cuidados médicos, devido a suposta avaria no sistema informático, que impossibilitava a sua inscrição naquele Centro de Saúde;

-Perante a informação que lhe estava a ser dada, o assistente insistiu para que lhe fossem prestados cuidados médicos, pois o seu estado de saúde manifestava um agravamento contínuo, configurando uma situação de verdadeira emergência:

- Ao que lhe foi respondido que a referida impossibilidade de inscrição no Centro de Saúde de ... impedia, de forma irremediável, a prestação da pretendida assistência médica, pelos profissionais daquele serviço;

- Refira-se, a este propósito, que no balcão de atendimento deste Centro de Saúde estava afixada uma informação que dava nota de que, temporariamente, se podiam recusar consultas médicas, salvo casos de emergência;

- Face a esta recusa de prestação de cuidados médicos, o assistente voltou a recorrer à Linha Saúde 24 que, em função das contingências descritas e do quadro clínico evidenciado, o encaminhou para o Hospital ...;

- O Hospital ... era também um dos hospitais que pertencia ao conjunto dos hospitais de referência da gripe A;

- Assim, cumprindo a recomendação dada pela Linha Saúde 24, nesse mesmo dia 08-11-2009, o assistente dirigiu-se ao Hospital ... onde, depois de espera prolongada, foi observado Drº...;

 -Durante a consulta que lhe estava a ser feita, o assistente relatou o seu historial clínico, insistindo no agravamento dos sintomas que vinha a sentir, nomeadamente as queixas de mialgias, febre com evolução de dois dias e cefaleias;

- Concluída a observação clínica, o Drº... informou o assistente que, por este não apresentar febre naquele momento, não poderia, de modo algum, estar infectado por vírus H1N1;

 - Perante tal resposta, o assistente relembrou que estava sob o efeito de anti-inflamatórios e antipiréticos, em cumprimento da terapêutica que lhe tinha sido fixada pela médica que anteriormente o observara;

 - Informação que, ao que parece, não teve relevância para a formação do diagnóstico;

- O médico em causa não pediu exames complementares de diagnóstico, considerando que o assistente padecia apenas de um "síndrome gripal sem complicações associadas", sendo que considerou a auscultação cárdio-pulmonar sem quaisquer alterações;

 - Por que razão este médico, assumindo um diagnóstico de gripe e conhecendo o historial clínico do assistente, não determinou a realização do exame laboratorial para o despiste da infecção ser causada pelo vírus H1N1?;

 - O assistente foi assim, de novo, encaminhado para casa, com renovada prescrição medicamentosa, que incluía agora a Cefuroxina, antibiótico dirigido ao tratamento antibacteriano (e não de origem virai) e ainda um broncodilatador:

 -Existiu, assim, um erro no diagnóstico da patologia que afectava o assistente e outro erro na terapêutica fixada, com influência no atraso da identificação da Gripe A;

-Desta forma, o médico em causa violou as legis artis da profissão e criou, desse modo, um perigo para a vida do assistente e gerou grave ofensa para o corpo e saúde deste;

             (...)

- Em desrespeito das regras da arte médica, em especial da recomendação acima referida, o médico em causa não determinou ou tão pouco sugeriu o internamento do assistente:

- Isto, apesar de, quando ainda no Hospital dos ... e na presença do médico, o assistente ter tido uma perda de equilíbrio, que quase o fez cair,

- Perante esta ocorrência, o referido médico apenas aconselhou o assistente a não conduzir automóvel no seu regresso a casa;

-Por que razão, tenho conhecimento do historial clínico do assistente e a sua actual condição física, o médico em causa não solicitou a realização do exame laboratorial para determinação do tipo de gripe?;

 - Ao actuar como actuou, o clínico em causa colocou a vida do assistente em perigo e gerou grave ofensa para o seu corpo e saúde;

 - Actuação que foi livre, voluntária e consciente:

-Pelo que se justifica a respectiva censura penal, nos termos dos arts. 148° e 150° do Código Penal; - Mais uma vez, o assistente cumpriu a indicação e o novo tratamento que lhe havia sido prescrito;

            (...)                 

- Finalmente, de imediato, este médico diagnosticou que o assistente padecia de uma infecção por vírus H1N1, a partir da qual teria tido origem a grave pneumonia, confirmada pelos exames radiológicos;

-Prontamente, foi accionado o procedimento para casos de infecção grave por vírus H1N1, com pneumonia primária associada, do qual resultou o imediato internamento do assistente na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital...;

- Da extrema deterioração do seu estado de saúde à data do diagnóstico de infecção por vírus H1N1 no Hospital dos ... (11-11-2009), resultou o internamento do assistente naquela unidade privada de saúde durante 30 dias, 22 dos quais em coma induzido, bem como a sua sujeição a centenas de exames e tratamentos;

-Na verdade, nas horas seguintes ao seu internamento, e apesar da terapêutica instituída, o assistente teve rápido agravamento clínico, radiológico (pulmão branco bilateral cerca de 24 horas após o internamento) e gasométrico, tendo sido submetido a ventilação invasiva;

- Dada a instabilidade do estado de saúde do assistente durante o período em que esteve internado no Hospital dos ..., alegadamente nunca se reuniram as condições necessárias para efectuar a sua transferência para um Hospital do Serviço Nacional de Saúde;

- Assim, para além dos tremendos danos físicos sofridos pelo assistente, a prestação dos referidos cuidados continua dos de saúde pelo Hospital dos ... determinou-lhe um enorme e incomportável encargo financeiro;

- Este dramático desfecho poderia ter sido atenuado, se não mesmo evitado, pela diligente conduta dos médicos que conduziram as diversas observações clínicas que tiveram lugar entre o início dos sintomas de infecção por vírus H1N1, em 06-11-2009, e o seu diagnóstico, em 11-11-2009.

Concluiu assim o assistente pugnando pela pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150°, n. ° 2, do Código Penal, e de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148°, n° 1, do Código Penal.

No decurso da fase de instrução, para além de ser junta aos autos prova documental, foram ainda prestados esclarecimentos complementares pelo perito que subscreveu a consulta técnico-científica a que se reportam fls. 191 a 194.

Realizou-se o debate instrutório.

(...)

Analisemos, pois, as questões controversas que se perfilam.

Conforme resulta do supra exposto, a divergência do assistente face ao teor do despacho de arquivamento assenta, essencialmente, na circunstância de, segundo o mesmo, ter sofrido uma infecção por vírus H1N1, a partir da qual teve origem uma grave pneumonia, sendo que, devido à falta de diligência dos médicos que conduziram as diversas observações clínicas a que foi sujeito e que tiveram lugar entre o início dos sintomas da sua infecção por vírus H1N1, em 06-11-2009, e o diagnóstico de tal infecção, em 11-11-2009, a sua vida esteve em risco e sofreu grave ofensa para o seu corpo e saúde,

Em suma, o assistente assenta a sua pretensão de ver os arguidos pronunciados no facto de estes não terem determinado a realização de exame laboratorial tendo em vista o apuramento da infecção daquele pelo vírus H1N1.

Desde já, importa referir que o despacho de arquivamento supra citado procede a uma correcta análise dos meios de prova recolhidos na fase de inquérito, sendo que, qualquer dúvida que pudesse subsistir após a leitura da consulta técnico-científica de fls. 191 a 194 foi dissipada na sequência da prestação de esclarecimentos complementares, já na fase de instrução, por parte do perito que a subscreveu,

Na verdade, tal consulta técnico-científica assume primordial relevância nestes autos, nomeadamente porque na mesma se abordam todas as questões pertinentes para a resolução do presente caso à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito e porque, conforme decorre do disposto no art. 163°, n, ° 1, do Código de Processo Penal, o juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador,

Quando, em sede de instrução, o aludido perito prestou esclarecimentos complementares, o mesmo afirmou peremptoriamente, a propósito da resposta à questão 11, constante da mencionada consulta técnico-científica («tendo em atenção o explicitado em 9, e sendo discutível se a solicitação para exame laboratorial deveria ter sido feita mais cedo, somos de opinião que não houve inobservância das legis artis, e o que se verificou foi uma forma de complicação que, felizmente, não é frequente entre os doentes infectados pelo vírus H1N1 (gripe A)» , que o sentido de tal resposta não é o de colocar a hipótese de, no caso concreto, o exame laboratorial para apurar se o assistente estava infectado pelo vírus H1N1 dever ter sido ordenado antes do momento em que o foi, mas precisamente o contrário. Ou seja, de acordo com o perito, porque o quadro clínico apresentado pelo assistente era "banalíssimo", não tinham os arguidos que ter ordenado a realização do mencionado exame laboratorial. Acrescentou o mesmo perito que numa situação de epidemia não é possível efectuar exames laboratoriais a todos os doentes que, como o assistente, apresentam um quadro de gripe banal, bem como que, no caso concreto em discussão, "só quando a situação banal continuou é que foi feito o exame" e que só depois de este ter si do efectuado é que foi possível relacionar a pneumonia com o vírus da gripe A. Em síntese, o perito subscritor da consulta técnico-científica de fls. 191 a 194 reiterou que os arguidos não tinham que ter agido relativamente ao assistente de forma diversa, nomeadamente que nada os aconselhava a ordenar a realização de exame laboratorial para detecção do vírus da gripe A quando com aquele contactaram.

Os factos que o assistente imputa aos arguidos suscitam a questão de, em tese, poder ser imputada a estes a prática dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150°, n 2, do Código Penal, e de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art, 148°, n. ° 1, do Código Penal.

Nos termos do que dispõe a primeira norma citada, praticam o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos as pessoas indicadas no número anterior [médico ou por outra pessoa legalmente autorizada] que, em vista das finalidades nele apontadas [prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental], realizarem intervenções ou tratamentos violando as legis adis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.

Por seu turno, de harmonia com o estatuído no art. 148°, n° 1, do Código Penal, incorre na prática do crime de ofensa à integridade física por negligência quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.

No que concerne ao primeiro destes crimes, não pode o mesmo ser imputado aos arguidos, desde logo, por falta de verificação de um dos elementos objectivos do tipo. Na verdade, à luz do citado juízo pericial, os arguidos não violaram as legis artis, sendo que nenhum outro meio de prova constante dos autos permite divergir de tal juízo (cfr., a propósito, o disposto no art. 163°, n, ° 2, do Código de Processo Penal).

Por outro lado, também o crime de ofensa à integridade física por negligência não pode ser imputado aos arguidos, por falta do indispensável nexo de imputação objectiva do resultado típico à conduta do agente. Aponta-se como critério concretizador de tal nexo de imputação objectiva a violação de normas de cuidado (8). E estas normas de cuidado poderão ser variadas, como legais, regulamentares, profissionais ou da experiência. No entanto, conforme resulta do supra exposto, não há nos autos indícios suficientes de que da violação, por parte dos arguidos, de qualquer norma de cuidado resultou para o assistente uma ofensa do seu corpo ou da sua saúde.

Em suma, no despacho de arquivamento supra transcrito foi efectuada uma correcta abordagem dos problemas suscitados, tendo em conta os meios de prova constantes dos autos, sendo que na fase de instrução não foram trazidos aos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos de qualquer ilícito criminal e, nomeadamente, dos crimes que o assistente imputa àqueles.

Temos assim que não se mostra suficientemente indiciado que os arguidos, com as suas condutas, tenham preenchido os elementos típicos dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150°, n. ° 2, do Código Penal, e de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art 148°, n, ° 1, do Código Penal.

Assim, não é de considerar como altamente provável a futura condenação dos arguidos ou que esta seja mais provável que a sua não condenação.

v - Decisão

Por todo o exposto, nos termos do disposto no art. 308°, n.° 1, 2a parte, do Código de Processo Penal, não pronuncio os arguidos”


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IV- Fundamentos de direito:

1-Das nulidades da decisão instrutória, por (i) falta de narração dos factos indiciados e não indiciados, com reporte ao requerimento de abertura de instrução, (ii) do exame crítico da prova indiciária e  (iii) daquilo que se considera serem as condutas que, segundo a legis artis, foram seguidas ou omitidas:

As referidas nulidade consubstanciam-se, na perspectiva do recorrente, na não indicação dos factos que o Ex.° Juiz de instrução considerou provados e não provados, dentro do rol daqueles que invocou no requerimento de instrução, na não apreciação crítica das provas constantes dos autos e dos indícios que delas são, ou não, susceptíveis de se retirar — com especial incidência na análise do relatório pericial e esclarecimentos posteriores - e da falta de menção daquilo que as legis artis impunham que fosse a conduta dos médicos arguidos e daquilo em que ela se consubstanciou, efectivamente.

Escuda-se, de direito, no disposto no art° 308°/2 com referência ao art° 283°/3-b), no art° 379°/1-a) e 2 e 374°12, e 97°/1, todos do CPP.

Quanto à primeira questão, da falta de menção dos factos provados e não provados, compulsada a decisão recorrida verifica-se que a par de uma longa enumeração daquilo que entende que foram os factos invocados no requerimento instrutório não contém, efectivamente, qualquer referência à factualidade que entende suficientemente indiciada, tal como àquela que entende que o não foi, quer por reporte ao requerimento instrutório, quer com referência ao arquivamento — que também contém factos, ainda que não discriminados.

É que, verificado o teor do despacho recorrido, não se percebe, ainda que de modo indirecto, se se considera algum ou alguns dos factos elencados indiciados, se não os há, de todo, ou se estão uns e não outros, como se isso fosse irrelevante para o destino da acção penal, sendo que o não é. Fica-se, aliás, com a sensação de que toda aquela matéria fáctica terá sido considerada irrelevante porque a questão pertinente, na opinião do julgador, seria apenas saber se o exame laboratorial deveria ter sido feito por todos e/ou cada um dos arguidos, ou não, o que, como é lógico, não vale por si, independentemente de saber que factos concretos se indiciam — até porque o despacho acaba por não fixar sequer os actos relativos às tais análises, nem genericamente nem face a cada um dos actos médicos praticados, e da experiência comum resulta que não se fazem análises sem mais, nem a feitura ou não, das análises, só por si é aquilo que está em causa nos autos.

Ora, (entrando aqui já em consideração com as duas questões seguintes) o que está em causa é uma sequência de tratamentos, por médicos diferentes, e é saber se cada um deles agiu de acordo com aquilo que a arte médica vigente, os bons conhecimentos e boa técnica, se lhe tornava exigível, ou não, quer em sede de diagnóstico quer em sede de tratamento — correlacionado ou mesmo independentemente do diagnóstico feito ou possível, em face de cada concreta situação. E, para se aferir isso, é essencial, tal como o recorrente refere, saber que factos ocorreram relativamente a cada clínico, que práticas foram levadas a efeito e que práticas eram exigíveis, de modo a que, posteriormente, numa análise crítica da situação, se decida se se indicia ou não a violação dessas tão invocadas legis artis.

Ora, o que sucede é que o despacho é absolutamente omisso sobre qual a factualidade que se considera suficientemente indiciada e qual aquela que o não está — factos estes que carecem de ser fixados fundamentadamente, ou seja acompanhados da explicação adequada à percepção do iter cognitivo do julgador. E esta omissão ocorre quer em face do rol de factos levados à instrução pelo assistente, no requerimento de abertura da fase instrutória (enunciados no próprio despacho), quer daqueles que estão pressupostamente indiciados em face dos concretos termos do despacho de arquivamento. Estará ele eivado de nulidade?

Por força do art° 308°/2, do C.PP, é aplicável à pronúncia e à não pronúncia o disposto no art° 283°/2, 3 e 4, do mesmo diploma, que comina com nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

A questão que se coloca é saber qual a forma que a supra referida enunciação deve tomar, no despacho de não pronúncia, para se considerar que cumpre, satisfatoriamente, o desiderato legislativo da motivação das decisões judiciais.

A motivação de qualquer despacho judicial não é um valor em si, mas um meio de persecução do desiderato constitucional da estrita legalidade e da estrita jurisdicionalidade das decisões judiciais.

É através da motivação que se aquilata da bondade e razoabilidade dos motivos que norteiam o razoar intelectivo de que o Tribunal se socorreu, para conferir e atribuir a tutela do direito à pretensão de um dos litigantes, sempre necessariamente em detrimento das pretensões dos demais. Não se adquire a razão, ou a razoabilidade, jurídico-processual, adveniente da "verdade histórica" a que o tribunal se subordina ao julgar os casos histórico-sociais que lhe são submetidos, se não for possível convencer os destinatários da bondade do decidido, o que implica, necessariamente, a compreensão dessa "verdade histórica" através da análise de cada um dos factos que a compõe.

Uma vez que os despacho de pronúncia e de não pronúncia que careçam de fundamentação, de facto e/ou de direito, são expressamente cominados de nulidade[iv], há que aferir se os requisitos de forma e substância de um e de outro se satisfazem nos mesmos termos.

Numa primeira aproximação somos levados a pensar que não, porque enquanto na pronúncia há que transmitir inequivocamente ao arguido e ao Tribunal de julgamento os factos sobre os quais a prova a produzir em audiência há-de recair, para lhe permitir o exercício cabal do seu direito de defesa, no despacho de não pronúncia - tal como no despacho de não acusação - do que se trata, essencialmente, é de explicar ao arguido, endoprocessualmente, e à comunidade, extraprocessualmente, as razões porque não se submete determinada pessoa a julgamento, não obstante isso ter sido requerido ao Tribunal, ou pelo Ministério Público, ou pelo assistente (consoante a natureza do ilícito em apreço). O despacho de não pronúncia (que aprecie a suficiência ou insuficiência de indícios), tal como o de não acusação (com idêntico fundamento), justificam-se pela constituição de determinado indivíduo como arguido, com ulterior constatação, em sede de inquérito ou instrução, da ausência de indícios suficientes para que lhe possa ser imputada a prática do crime em investigação.

Contudo, há que considerar que, sempre que em causa está um despacho de não pronúncia, por falta de recolha de indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento, ele reveste natureza de puro pressuposto de decisão processual e não de decisão de mérito.

Sobre esse despacho não se estabelece caso julgado - como acontece relativamente ao despacho de não pronúncia por inadmissibilidade legal do procedimento criminal ou por não subsunção dos factos a preceito incriminador - e a sua impugnação apenas se faz pela via recursiva. «Na fase da instrução, porque não se tem por objectivo alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão só um juízo sobre a existência de indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, as provas recolhidas não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo, até à fase do julgamento»[v].

Dessa natureza, aliada com a letra da lei, se extrai a necessidade de diferente estruturação de um ou de outro tipo de despacho.

Quanto à natureza do despacho há dois pontos de relevo a considerar.

- Em primeiro lugar, o reconhecimento de que o que está em causa num despacho de não pronúncia por falta de indícios - tal como num despacho de não recebimento de acusação por manifesta falta de fundamento, (art° 311°I1 e 2, al. a) - é a constatação, feita por Juiz, de que, face ao conteúdo da acusação e aos indícios probatórios recolhidos nos autos, não se justifica a sujeição do arguido a julgamento, por ser, improvável, em termos de razoabilidade casuisticamente apreciada, que os factos que lhe são apontados venham a ser considerados ilícitos penais. Ora, a insuficiência de indícios, num dado momento processual - o da pronúncia, no caso - não obsta a que mais tarde venham a ser recolhidos. Há, por isso que admitir a eventualidade do ulterior prosseguimento dos autos, por surgirem novos factos ou elementos de prova que invalidem ou ponham em sérias dúvidas os fundamentos do despacho[vi], o que, para ser constatado, implica a clara definição, por banda do despacho de não pronúncia, da factualidade que considerou e da que não se considerou suficientemente indiciada, no momento da sua prolação - com necessário reporte a toda a factualidade que conste da acusação e do requerimento de abertura de instrução, susceptível de relevar para o preenchimento do tipo.

A suficiência de indícios é definida, lapidarmente, pelo art° 283°/ 2, do CPP: «Os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

Trata-se da «probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal... Esta possibilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa»[vii]. «Os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição»[viii]. «Devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado»[ix]. «Indícios suficientes são suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele»[x], que se materializam na factualidade que resulta indiciariamente adquirida.

- Em segundo lugar, que este despacho é susceptível de recurso e o recurso tem que se ater à factualidade considerada na sua fundamentação, para apreciar da sua bondade. Porque o recurso apenas avalia o bem ou mal fundado do despacho, tem de se socorrer dos elementos que dele constam. Resulta, então, claro, que é necessário que o despacho elenque de modo facilmente cognoscível todos os factos que considerou, quer na vertente dos indiciados, quer na vertente oposta. Só permitindo um cabal entendimento do seu conteúdo o despacho realiza a função a que está adstrito, de dar a conhecer - em primeira mão aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso, e em segunda ao público em geral - aquilo que foi o seu suporte ao nível da "verdade histórica". E só assim se tutela efectivamente o direito ao recurso e à obtenção de uma apreciação recursiva esclarecida.

Quanto à letra da lei, impõe-se a constatação de que a norma (art° 308°/2, do CPP) expressamente manda aplicar ao despacho de não pronúncia os requisitos do despacho de acusação - e, "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus".

Destes considerandos resulta que a imposição de fundamentação, de facto e de direito, ao despacho de não pronúncia, só se deva considerar cabalmente satisfeita com a articulação ou e enumeração, discriminada e autónoma, de cada um dos factos que se consideram indiciados e de cada um que não se consideram. Condescendamos, contudo, que se essa enumeração não for feita, mas constar do despacho, de forma perceptível, a enunciação dos factos que o Tribunal considerou suficientemente indiciados e aqueles que assim não considerou, será um despacho infeliz, mas não necessariamente nulo, pois não há motivo que colha para determinar o desaparecimento da ordem jurídica de um acto, que na sua essencialidade, ainda que defeituosamente, dá cumprimento ao desiderato legislativo.

No caso dos autos o despacho de não pronúncia não considerou qualquer factualidade indiciada ou não indiciada, para a apreciação do bem ou mal fundado da acusação feita pelo assistente, pelo que é inaceitável que se possa considerar minimamente cumprido o dever de fundamentação de facto a que a lei o subordina. O despacho não contempla a apreciação sobre os factos imputados aos arguidos, mas um entendimento global sobre o mal fundado da acusação, partindo-se da premissa de que ela radica num pormenor da questão em apreço — a exigibilidade da análise — quando o que está em causa é todo um conjunto de actos e factos que precisam de ser concatenados entre si e com as boas práticas médicas aplicáveis para que se possa entender, com um mínimo de segurança jurídica, se a actuação de cada um dos médicos foi ou não violadora de normas penais. Isto mesmo ressalta dos termos da acusação (e até do despacho de arquivamento) que descreve um rol de factos que não se contêm apenas na descrição da não realização das análises clínicas invocadas. Antes pelo contrário, reportam-se, entre o mais, à descrição da evolução da situação clínica do paciente, aos actos que praticou na tentativa de obter tratamento adequado, à descrição de cada acto médico a que se sujeitou e à caracterização das medidas clínicas e/ou técnicas tomadas e daquelas outras que entende que deveriam ter sido praticadas porquanto se impunham para o adequado diagnóstico e eficaz e atempado tratamento do mal de que padecia, quer ainda às consequências desses actos e omissões. A tudo isto haverá que aditar os factos que, com pertinência para a apreciação da questão, resultam da investigação levada a efeito, designadamente quanto às práticas que seriam adequadas em cada concreta situação e relativamente a cada arguido, para se discutir, com conhecimentos adequados e suficientes, se aquelas outras praticadas se adequam, ou não, às legis artis — que deverá reflectir práticas adequadas ao estado da ciência médica e às concretas condições em que foi exercida.

Só com a indicação, expressa, de cada um dos factos que se consideram suficientemente indiciados, e de cada um dos que assim não se consideram, se viabilizará um entendimento unívoco sobre o despacho de não pronúncia (ou pronúncia), e se permitira quer o seu controle, por parte do Tribunal de segunda instância, quer a hipótese de posterior prosseguimento dos autos, caso se revelem novos elementos de prova ou novos factos.

A conclusão de que a não pronúncia se alicerça numa determinada perícia, que contempla tão-somente hipóteses que permitem justificar, cientificamente, a não determinação da realização da análise do sangue, não satisfaz a necessidade de concretização da factualidade que resulta indiciada nos autos, de modo a permitir o controle endo e extraprocessual adequados.

Porque do despacho em apreço não resulta sequer indiciado o entendimento do Sr. Juiz de instrução sobre cada um dos factos constantes da acusação, há que reconhecer que está eivado de nulidade. Consequentemente, não resta senão ordenar a remessa dos autos ao Tribunal recorrido, para que seja lavrada nova decisão instrutória, com a enumeração, discriminada, de cada um dos factos que, vertidos no arquivamento e na acusação contida no requerimento de abertura de instrução, se encontram suficientemente indiciados e não indiciados, e dos demais factos que se mostrem pertinentes à avaliação das práticas clínicas executadas, designadamente em face daquelas práticas que integram as legis artis.

Nos termos do art° 307°/1, do CPP, cabe ao Exm° Juiz que presidiu ao debate instrutório lavrar a nova decisão, para o que, poderá e deverá, sendo caso disso, produzir nova prova a fim de bem se habilitar a fornecer o processo dos dados de facto adequados à avaliação jurídica de cada uma das condutas em apreço.

Em face da nulidade verificada resulta despicienda a apreciação das demais questões colocadas.

Não quer isto dizer que, em face de novas diligências ou apenas da nova decisão instrutória, consoante for considerado adequado pelo Tribunal recorrido, elas não devam ser objecto de consideração — e aqui se particulariza a questão contida no ponto 14) das conclusões.


***

V- Decisão:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, em:

- Declarar nulo o despacho de não pronúncia, por falta de enumeração dos factos que se consideram suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados e, consequentemente,

- Ordenar que o Exm° Juiz de Instrução profira nova decisão instrutória, que não enferme da mesma nulidade, devendo praticar previamente todos os actos de instrução que considere necessários e adequados à adequada enumeração dos factos pertinentes à decisão de mérito.

Sem custas.


Lisboa, 11/ 07/2013

Texto processado e integralmente revisto pela relatora,

Maria da Graça M. P. dos Santos Silva


                       Ana Paula Grandvaux Barbosa


[i] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2° edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-° 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478°-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477°-271.

[ii] Cf. Art°s 402°, 403°11, 410° e 412°, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I — A Série, de 28/12/1995.

[iii] Ressalva-se algum erro de escrita, uma vez que o despacho foi "scanizado" de forma muito deficiente - por falta de envio do suporte informático respectivo pelo Tribunal recorrido, em contra-mão ao que determinam as Circulares n° 35/98 do CSM e 24/96, da DGSJ.

[iv] Cf. Ac. R.E., de 01/01/1985, no proc. 1481104-1, em www.dgsi.pt.
[v] Cf.Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, r ed., III, pág. 178.
[vi] Cf. Germano Marques da Silva, obra citada, r ed. III, 197 e Maia Gonçalves, em C.P.P. 178 ed., Almedina, 720.
[vii] Cf. Germano Marques da Silva, obra citada, II, 2.a edição, Verbo 1999, pp. 99 e 100.

[viii] Cf. Prof. Figueiredo Dias, em «Direito Processual Penal», 1.° vol., 1974, pág. 133.

[ix] Cf. Luís Osório, no «Comentário ao CPP Português» , IV, 441.

[x] Cf. Ac. RE, de 01-03-2005, proc. n° 2/05-1.


Decisão Texto Integral: