Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3188/12.4TBTVD-H.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: - o nº. 1, do artº. 102º, do CIRE confere ao administrador da insolvência, no que concerne aos contratos bilaterais ainda não totalmente cumpridos, nem pela insolvente nem pela contraparte, e após um primeiro momento de suspensão contratual, um direito potestativo de optar pela execução do contrato – caso em que se mantêm os termos contratuais -, ou recusar o cumprimento – caso em que a contraparte fica com um crédito sobre a insolvência ;
- no que concerne aos contratos-promessa de compra e venda, verificados os requisitos enunciados no nº. 1 do artº. 106º, do CIRE – dotado de eficácia real e tendo ocorrido traditio da coisa -, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas á outorga do contrato definitivo/prometido ;
- sendo permitido ao administrador, nas demais situações, optar pela recusa do cumprimento ;
- estando o contrato-promessa apenas dotado de eficácia obrigacional, aplica-se o regime estipulado naquele artigo 102º, nº. 1, e não a solução consagrada no nº. 1, do artº. 106º, do mesmo diploma – apenas previsto para as situações em que o contrato-promessa de compra e venda goza de eficácia real e houve tradição da coisa prometida a favor do promitente-comprador -, prevendo o nº. 2 deste normativo acerca dos efeitos da recusa de cumprimento do contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência ;
- in casu, colocado perante a hipótese enunciada naquele nº. 1, do artº. 102º, não poderia optar pela execução do contrato prometido, pois, a Insolvente apenas era dona e legítima possuidora do direito a ¼ do imóvel objecto da promessa, sendo que o Administrador da Insolvência não podia suprir a vontade dos três demais promitentes-vendedores, que se recusam à outorga do contrato prometido, ou seja, atentas estas circunstâncias, ao Administrador não se colocava sequer a hipótese do cumprimento do contrato-promessa, estando assim arredada a execução específica do mesmo ;
- ademais, tal juízo de recusa de cumprimento do Administrador sempre resultaria, de forma tácita, do seu comportamento, nomeadamente da aparente inclusão na listagem dos créditos reconhecidos, do crédito resultante do não cumprimento, bem como, maxime, da tentativa de venda de tal direito apreendido ;
- subjacente ao regime previsto no nº. 2, do artº. 99º, do Cód. de Processo Civil estão razões de economia processual, na sua vertente de economia de actos e formalidades processuais, justificando-se plenamente a ponderação do aproveitamento de toda a actividade processual já desenvolvida ;
- tendo sido a acção proposta no tribunal materialmente competente, e não tendo as modificações supervenientes (quanto à competência material do tribunal) ocorrido por qualquer impulso imputável à Autora,  finda a conexão de competência fundada no artº. 86º, nº. 1, do CIRE, e mantendo-se por apreciar objecto controvertido, deverão os autos retornar ao tribunal ab initio materialmente competente, sem que seja sequer exigível qualquer manifestação de vontade da Autora, nos quadros daquele nº. 2, do artº. 99º, do Cód. de Processo Civil ;
- a presente solução não afecta minimamente a tutela da posição dos Réus, pois a acção foi devidamente tramitada no tribunal materialmente competente, onde a contestação foi deduzida e onde, nomeadamente, puderam utilizar todos os meios ou mecanismos processuais destinados à defesa dos seus direitos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I – RELATÓRIO
1 – ANTÓNIO MIRANDA JÚNIOR, CONSTRUÇÃO CIVIL, S.A., com sede na Rua Cândido dos Reis, nº. 12, Torres Vedras, intentou, acção declarativa, a tramitar sob a forma do então processo ordinário, contra:
Ø AC…, residente na Quinta …, Torres Vedras ;
Ø MT..., residente na Rua ..., nº. ..., ...º andar, Torres Vedras ;
Ø MTG…, residente na Rua …, nº. …, …º andar, Torres Vedras ;
Ø JA…, residente na Rua …, … C, … Direito, Paço de Arcos,
pugnando pela procedência da acção, deduzindo o seguinte petitório:
a) – Deve por força do incumprimento contratual dos RR., decretar-se a execução específica do contrato-promessa de compra e venda sub judice, proferindo-se sentença que transmita para a sociedade Autora o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Av. …, em Torres Vedras, freguesia de S. Pedro, inscrito na respectiva matriz sob o art. … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …/S. Pedro, mediante o depósito do restante preço, no valor de € 150.000,00 (cento cinquenta mil euros) nos termos do nº 5 do art. 830º do C. Civil, requerendo-se que o prazo para esse depósito seja o da véspera da audiência de discussão e julgamento, mais se requerendo que esse depósito reverta, não a favor dos RR, mas da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras a fim de esta emitir declaração de cancelamento da hipoteca que impende sobre o prédio;
b) – Devem os RR. ser condenados a pagar à A. a quantia de € 2.515,15 (Dois mil e quinhentos e quinze euros e quinze cêntimos) por cada mês que passar a partir de Junho de 2009, inclusive, correspondente às rendas que estão a receber indevidamente dos inquilinos do prédio, até efectiva transmissão para a A. da posse sobre o mesmo prédio;
c) – Se assim se não entender, ou seja, se não for decretada a execução específica do contrato, deve subsidiariamente condenar-se os RR. por força do seu incumprimento contratual, a pagarem solidariamente à A. a quantia € 900.000,00 (Novecentos mil euros), correspondente ao dobro do sinal e reforços recebidos pelos mesmos RR. até ao presente;
d) - Nesta última hipótese, deverão igualmente os RR. ser condenados a pagar à A. a quantia de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros) correspondente ao valor das obras que esta incorporou de boa-fé no prédio, segundo o principio do não enriquecimento à custa alheia consagrado no art. 473º do C. Civil”.
Alegou, em súmula, o seguinte:
§ em 02/05/2008, celebrou com os Réus um acordo escrito, mediante o qual estes lhe prometeram vender e ela lhes prometeu comprar o prédio urbano, sito na Av. …, nº …, …A, …B, …C e …D, em Torres Vedras, freguesia de S. Pedro, inscrito na respectiva matriz sob o art. … e descrito na C.R.P. de Torres Vedras sob o nº …/S. Pedro ;
§ o preço acordado foi de € 600.000,00, a pagar € 150.000,00, como sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura do contrato, € 150.000,00 até final de Setembro de 2008, € 150.000,00 até final de Janeiro de 2009, € 150.000,00 no acto da escritura, a realizar até final de Maio de 2009 ;
§ ficou igualmente prevista e autorizada a realização de obras de alterações do prédio por parte da sociedade Promitente-Compradora mediante a aprovação do competente projecto de alterações na Câmara Municipal de Torres Vedras, com todas as despesas desse projecto e das obras a cargo da mesma Promitente-Compradora ;
§ após a aprovação desse projecto, realizou obras no prédio que o alteraram, e que consistiram na construção de dois apartamentos no antigo sótão do prédio, com prévia elevação da estrutura do telhado, nos quais se fez casas-de-banho, cozinha, paredes divisórias, pavimentação, electrificação, canalizações de água e gás, portas, tectos falsos, acabamentos e pinturas;
§ procedeu-se, ainda, à colocação de um elevador no prédio e construção da respectiva caixa, o que obrigou a mudança total da coluna da electricidade do prédio, remodelação do apartamento do 3º andar esquerdo, com colocação de novos equipamentos de cozinha e de casa-de-banho, bem como pintura total do apartamento, reparação da coluna de água do prédio e transferência dos contadores para o exterior do prédio, junto à escada de serviço ;
§ realizou-se, igualmente, à pintura exterior do prédio na fachada posterior, obras estas que importaram, na sua totalidade, em € 125.000,00 ;
§ pagou aos Réus € 150.000,00 aquando da assinatura do contrato-promessa, € 150.000,00 em 25/08/2008, € 150.000,00 em 10/02/2009 ;
§ insistiu com os RR. para a marcação da escritura, e marcada esta, os três últimos RR não compareceram e recusaram a outorgar a mesma, declarando não terem recebido o valor que lhes corresponde, pelo que caíram em incumprimento contratual.
2 – Citados os Réus, vieram os demandados MTG…, MT… e JA…, apresentar contestação e reconvenção, na qual aduziram, em súmula, o seguinte:
Ø a Autora não pagou aos ora contestantes as quantias referidas nas cláusulas nº.s 3, 4.1 e 4.2 do contrato-promessa, no valor, cada uma delas, de 150.000,00 € ;
Ø alias, até ao presente a Autora nada pagou aos ora Réus contestantes ;
Ø motivo pelo qual não transmitem a propriedade prometida ;
Ø foram feitas pela Autora obras no prédio, mas sem prévia aprovação da Câmara Municipal de Torres Vedras, na qual não foi apresentado qualquer projecto de alterações ;
Ø inexistindo, ainda, qualquer autorização por parte dos ora Réus, contrariamente ao previsto na cláusula 8ª do contrato-promessa ;
Ø pelo que, por ilegais, devem tais obras ser demolidas ;
Ø desconhecem qual o montante em dívida à Caixa Agrícola, proveniente dum empréstimo concedido unicamente à Ré AC… e garantido por hipoteca do prédio ;
Ø sendo tal hipoteca ineficaz relativamente aos demais Réus, como foi dado conhecimento à Caixa de Crédito Agrícola de Torres Vedras ;
Ø pois foi exarada uma escritura de hipoteca genérica a favor daquela instituição, quando tal não podia ser feito, pois a procuração outorgada em 19/10/2007, pela Ré M… à sua irmã Ré AC…, apenas permitia hipotecar o prédio para garantia do empréstimo concedido a esta em data anterior a 19/10/2007 ;
Ø mantêm interesse na venda do prédio à Autora, pretendendo receber, cada um deles, a quantia de 150.000,00 € a que têm direito ;
Ø requerendo, reconvencionalmente, que seja decretada a execução específica do contrato-promessa.
Concluem, requerendo que o Tribunal se digne:
1º Declarar ineficaz em relação à Ré M… e demais R.R., pelas razões expostas, a hipoteca, inscrita pela AP 28 de 2007 / 11 /13 sobre o prédio descrito na conservatória do registo predial de Torres Vedras sob o nº …, da freguesia de S. Pedro e Santiago do Concelho de Torres Vedras.
2º Julgar não provados e improcedentes todos os pedidos deduzidos pela A., absolvendo-se os R.R. dos mesmos.
3º Condenar a A. a demolir as obras que realizou no prédio, referidas no artº 19º e 23º, repondo o mesmo no estado em que estava anteriormente.
4º Decretar a execução específica do contrato-promessa de compra e venda, proferindo sentença que transmita para a A. o direito de propriedade sobre o prédio referido nesta acção e condenar a A. a pagar imediatamente a cada um dos ora R.R. reconvindes a quantia de 150.000,00 €, acrescida de juros desde a data em que se considere notificada esta reconvenção à A.
5º Deferir e ordenar o chamamento da Ré AC… para intervir como associada dos demais R.R. reconvindes, a fim de assegurar a legitimidade destes.
6ª Deferir e ordenar o requerido no artº 67 deste articulado, a fim de serem comprovadas as alegadas dividas à Caixa Agrícola e em que data foram os empréstimos concedidos.
7º Deferir e ordenar o requerido nos artºs 75 e 76 deste articulado, a fim de o Tribunal apreciar a situação económica da A.
8º Condenar a A. a reconhecer os R.R. donos e senhores do prédio referido nestes autos e absterem-se de praticar actos que ofendam os seus direitos de propriedade, enquanto os mesmos forem proprietários do prédio.
9º Condenar a A. em custas e tudo o mais que for de lei, em multa por litigar de má fé e ainda a pagar a cada um dos R.R. ora contestantes, uma indemnização não inferior a 5.000,00€, ou em outro valor que V.Exª vier a arbitrar”.
3 – Conforme fls. 179 a 188, veio a Autora apresentar réplica, alegando, em resumo, que:
o Nem a A. prometeu comprar a cada um dos Réus contestantes ¼ indiviso do prédio, nem eles prometeram vender àquela as suas quotas de compropriedade ;
o Pois todos os RR. prometeram vender à A. a totalidade do prédio pelo preço global de € 600.000,00 ;
o Não se obrigou, pois, a Autora,  a pagar € 150.000,00 a cada um dos RR., mas sim € 600.000,00 a todos eles.
o A Primeira Ré, AC…, sempre se apresentou perante a A. como representante de todos os promitentes-vendedores, sendo os quatro RR. irmãos ;
o A 1ª Ré é a irmã mais velha, e dois dos outros RR. encontravam-se a residir fora de Torres Vedras, uma, a Segunda R., no Funchal e outro, o Quarto R., em Paço de Arcos ;
o Sendo a Ré AC… a administradora do prédio por acordo com seus irmãos e comportava-se publicamente como tal, recebendo as rendas e tratando de todos os assuntos a ele atinentes ;
o Tendo-lhe entregue os cheques correspondentes ao pagamento do sinal e de dois reforços deste ;
o Que foram pagos pelo Banco, tendo saído os respectivos montantes da conta bancária da Autora ;
o Tendo a Ré AC… destinado as três quantias recebidas para amortizar a dívida garantida pela hipoteca que impende sobre o prédio ;
o Tendo esta hipoteca sido constituída pelos 4 Réus proprietários do prédio ;
o Os RR. contestantes não ignoram o recebimento do sinal, visto que no próprio contrato-promessa está expresso que, nessa data, a A. entregou esse sinal, no valor de € 150.000,00 – confr. cláusula 5ª. –, assim improcedendo a excepção de não cumprimento por parte da A. ;
o Relativamente às obras realizadas, não existiu nenhum projecto junto da Câmara Municipal, mas apenas um requerimento para autorização de obras interiores ;
o Relativamente à reconvenção, o 1º pedido apresentado – declaração de ineficácia da hipoteca – não é admissível, pois não integra nenhum dos casos previstos no nº. 2, do artº. 274º, do Cód. de Processo Civil, devendo assim ser liminarmente rejeitado ;
o Os Reconvintes litigam de má-fé porque deduziram pedido cuja falta de fundamento não podiam ignorar, recusam-se injustificadamente a celebrar uma escritura alegando factos falsos e deturpadores da verdade, pelo que, nos termos do art. 456º do C.P.C., deverão ser condenados como litigantes de má-fé em multa e em indemnização à A. de montante não inferior a € 20.000,00 (vinte mil euros).
Conclui, no sentido das deduzidas excepções serem “julgadas improcedentes com as legais consequências, bem como devem ser julgados improcedentes, por não provados, os pedidos reconvencionais com a absolvição da Reconvinda, devendo ser rejeitados por inadmissíveis à luz do art. 274º do C.P.Civil os pedidos formulados com os nºs 1 e 3, e ainda declarar-se a incompetência deste Tribunal para conhecer do pedido nº 3, terminando-se como se pede na p.i. e condenando-se os Reconvintes em custas, o mais de lei e como litigantes de má-fé nos termos do art. 68º”.
4 – A fls. 217 a 220, vieram os Réus contestantes apresentar tréplica, requerendo que as excepções deduzidas pela Reconvinda sejam julgadas infundadas e improcedentes, terminando-se como na contestação.
5 – Frustrada tentativa de conciliação entre as partes – cf., acta de fls. 250 e 251 -, foi proferido despacho saneador, no qual:
- admissível a réplica apresentada pela Autora ;
- Inadmissível a tréplica apresentada pelos Réus ;
- admitiu-se a cumulação de pedidos formulada pela Autora ;
- indeferiu-se o chamamento da Ré AC… para intervir como associada dos demais Réus/Reconvintes ;
- por não preencher nenhuma das alíneas do artº. 274º, nº. 2, do Código de Processo Civil, não se admitiu o pedido reconvencional de que a hipoteca incidente sobre o prédio sub júdice seja considerada ineficaz contra os Réus contestantes ;
- concedeu-se prazo aos Reconvintes/Réus para, querendo, optarem pelos pedidos reconvencionais aludidos em i) e iii) ou pelo pedido mencionado em iv), sob pena de serem os Autores absolvidos da instância quanto a todos eles, de forma a assegurar a compatibilidade dos pedidos reconvencionais formulados ;
- foi fixado o valor da causa ;
- foi relegado para final o conhecimento de outras excepções inominadas alegadas ;
- foi fixada a matéria de facto assente e a base instrutória – cf., fls. 276 a 289.
6 – Conforme fls. 306, vieram os Réus optar pelos pedidos nºs. 8 e 3 do petitório reconvencional, a que correspondem as alíneas i) e iii) enunciadas no despacho saneador, ficando prejudicado o pedido 4 do petitório reconvencional.
7 – À matéria de facto assente e base instrutória, foram apresentadas reclamações, conforme fls. 309, 310 e 313, atendidas conforme despacho de fls. 390 a 392.
8 – Após a audição das partes – cf., despacho de fls. 492 e 493 -, relativamente à eventual extinção da instância, com base na procedência das excepções expostas, foi proferida Decisão, dispondo o DISPOSITIVO o seguinte:
Nestes termos, impõe-se julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide em relação aos pedidos formulados nas als. a ) e b) da p.i..
Absolve-se da instância os réus MT…, MTG… e JA…, relativamente aos pedidos formulados pela autora nas als. c) e d) com fundamento na excepção dilatória de incompetência material deste tribunal, sendo competente para apreciação dos mesmos o Juízo Central Cível de Loures.
Julga-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide relativamente à insolvente no que respeita aos pedidos formulados nas als. c) e d) da p.i..
Custas a cargo da autora, tendo em conta o valor da acção já fixado no saneador. Registe e notifique”.
9 –Inconformada com o decidido, a Autora interpôs recurso de apelação, em 19/02/2018, por referência à decisão prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
1. – A Sentença Recorrida decretou a impossibilidade e a inutilidade superveniente da lide com base nunca errada interpretação do art. 106º, nº 1, do CIRE.
2. – Na verdade, o que estipula esta norma é que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa se ele tiver sido celebrado com eficácia real e tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.
3. – Isto não significa que, na falta destes dois requisitos cumulativos, o A.I. deva recusar o cumprimento, mas apenas que ele pode recusá-lo.
Tem, pois, a faculdade e não a obrigação de fazê-lo.
4. – Não alcançando esta diferença, a Sentença Recorrida concluíu que “a intenção do legislador foi de afastar o cumprimento do contrato-promessa mesmo que tenha eficácia real, excepto se já houve tradição da coisa”.
5. – Salvo o devido respeito, esta conclusão está errada. O que o legislador pretendeu foi atribuir ao A.I. possibilidade de recusar o cumprimento, excepto no caso de reunião cumulativa dos dois requisitos previstos no citado art. 106º, nº 1, hipótese em que não pode recusá-lo.
6. – Ora, o que aconteceu no caso sub judice é que a Recorrente comunicou ao A.I. a pendência da presente acção de execução específica, dizendo-lhe claramente na sua comunicação de 16/05/2013 (que decerto está nos autos, mas que, por facilidade de consulta se junta) que, no caso de procedência da acção, o direito de compropriedade de ¼ indiviso da Insolvente sobre o prédio urbano objecto do contrato-promessa não deveria fazer parte do activo da massa insolvente, mais adiantando que, subsidiariamente, para o caso de improcedência do pedido de execução específica, então reclamava o crédito correspondente à devolução do sinal em dobro (sanção de incumprimento), acrescido do valor das obras introduzidas no prédio pela Promitente-Compradora, ora Recorrente, e autorizadas pelos promitentes-vendedores, naturalmente correspondente a ¼ do valor total destas rubricas – confr. art. 17 do Doc. Nº 1.
7. – Assim, de harmonia com a correcta interpretação do art. 106º, nº 1, do CIRE, o A.I. poderia ter recusado o cumprimento do contrato-promessa.
8. – Todavia, não o fez!
9. – Tal recusa deverá seguir os trâmites consagrados no art. 102º do CIRE, mas, repete-se e acentua-se, o A.I. nada fez.
10. – Como assim, o Tribunal a quo não podia decretar a extinção da instância, como fez erradamente, violando assim o disposto no art. 106º, nº 1 do CIRE (por má interpretação da norma, como se explicou), bem como o disposto no art. 102º do mesmo diploma legal.
11. - Acresce que a presente acção visa a execução específica de um contrato-promessa de compra e venda através do qual a Insolvente, em conjunto com seus três irmãos, prometeram vender à Recorrente um prédio urbano sito na cidade de Torres Vedras, pelo preço de € 600.000,00;
12. - A posição passiva da presente acção constitui litisconsórcio necessário, na medida em que a A. não peticiona a execução específica sobre 1/4 do prédio separadamente, pertencente em compropriedade a cada um dos promitentes-vendedores, mas sim sobre a totalidade do prédio.
13. - O negócio (contrato-promessa e futura venda) é uno: a A. não prometeu comprar 1/4 do prédio a cada um dos comproprietários, mas sim a totalidade do prédio a todos os comproprietários.
14. - Assim sendo, não é possível isolar as quotas indivisas de cada um desses comproprietários.
15. – Assim, a comunicação de 16/05/2013 dirigida pela ora Recorrente ao A.I. consubstancia a reclamação prevista na alínea c) do nº 1 do art. 141º do CIRE, na medida em que aí se dizia que o ¼ indiviso da Insolvente não devia ser incluído na insolvência por força da situação de litisconsórcio necessário acima referida, sendo ainda certo que essa quota indivisa de compropriedade não é de exclusiva e plena propriedade da Insolvente, nem é susceptível de apreensão para a massa (visto que a acção está registada na Conservatória do Registo Predial) – vide citado artigo 141º, nº 1, c), in fine.
16. – Decidindo como decidiu, a Sentença Recorrida violou outrossim o disposto nesta alínea c) do nº 1, do art. 141º do CIRE, bem como no nº 2 do art. 33º do C. Proc. Civil.
17. – Se, porém, não for atendida a argumentação supra e se este Alto Tribunal mantiver a decisão de declarar impossível a lide em relação às alíneas a) e b) do petitório da p.i., então, ainda assim, nunca deverá declarar-se a inutilidade superveniente da lide em relação aos pedidos das alíneas c) e d), porquanto, nessa hipótese, sendo o Tribunal de Comércio absolutamente incompetente em razão da matéria e sendo competente para apreciação dessas alíneas o Juízo Central Cível de Loures, como a própria Sentença Recorrida reconhece, então o processo deverá, para julgamento desses pedidos, ser remetido ao tribunal competente, de harmonia com o disposto nos arts. 96º, a), art. 99º, nº 2 (vontade que aqui expressa desde já a A. – Recorrente) e art. 278º, nº 2, todos do C. proc. Civil.
18. – Declarando a absolvição da instância dos três co-réus da Insolvente em relação aos pedidos c) e d) e extinguindo a instância por inutilidade superveniente da lide, a Sentença Recorrida aplicou indevidamente, violando-os os dispositivos legais dos arts. 278º, nº 1 e 277º, alínea e), ambos do C. proc. Civil, bem como as normas legais indicadas no Ponto 17. destas conclusões”.
Conclui, no sentido de ser dado provimento ao recurso, devendo, consequentemente:
a) – revogar-se totalmente a Sentença Recorrida
e
b) – aceitar-se que a Recorrente requereu a separação da massa do direito de compropriedade de ¼ indiviso sobre o prédio urbano objecto de contrato-promessa, pertença da Insolvente, nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 141º do CIRE
e consequentemente
c) – declarar-se o prosseguimento dos autos até final, mediante os trâmites processuais previstos na lei, designadamente a audiência de discussão e julgamento.
Se porventura assim se não entender, deverá revogar-se apenas a parte da Sentença que decretou a absolvição da instância dos três co-réus da Insolvente relativamente aos pedidos das alíneas c) e d) formulados na p.i. e, em consequência, remeter-se o processo, para julgamento dessa matéria, para o Tribunal competente, no caso o Juízo Central Cível de Loures”.
10 – A Apelada/Recorrida MTG… veio apresentar contra-alegações, nas quais formulou as seguintes CONCLUSÕES:
a) A Apelante conformou-se com a apensação da presente acção ao processo de insolvência
b) A Apelante não reclamou a inclusão nos bens apreendidos pela massa insolvente, do direito de ¼ indiviso do prédio, nem o podia fazer, com base na alínea c) do nº 1 do art.º 141 do CIRE, pelas razões expostas no art.º 19º
c) A Apelante deduziu o seu crédito de 256.250,00€ na reclamação que apresentou.
d) Na assembleia o Sr. A.I. propôs a liquidação imediata do património e
e) Foi dada a palavra aos mandatários presentes, que declaram “ nada terem a opor quanto à liquidação do activo”,
f) Em seguida a M. Juiz determinou o prosseguimento dos autos para liquidação do activo.
g) A Reclamante, depois dos esclarecimentos pedidos ao Sr. Administrador da Insolvência, pronunciou-se pela venda do direito de ¼ indiviso do prédio, por meio de carta fechada e inclusive indicou o preço.
h) A pretensão da Apelante em querer modificar o pedido de deduzido na reclamação de créditos em pedido de destinado a separar da massa o direito de compropriedade a ¼ do prédio, não pode proceder, nos termos anteriormente expostos nos art.ºs 18 e 19.
i) Existe uma clara contradição, consubstanciada na pretendida venda expressa pela Apelante na assembleia de credores e no seu requerimento em que se pronuncia pela modalidade da venda e valor base, do direito de ¼ indiviso do prédio, e o pedido deduzido neste recurso, com vista à apreciação por parte deste Tribunal Superior, nomeadamente quanto á execução especifica do contrato de promessa de compra e venda que tem por objecto a totalidade do prédio.
j) O Sr. A.I. sem a anuência dos demais promitentes vendedores nunca poderia cumprir o contrato, porque não se pode substituir-se à vontade deles.
k) A Apelada e irmãos M… e JA… recusam-se a cumprir o contrato porque nada lhes foi pago pela Apelante, que actua de forma a causar-lhes um enorme prejuízo.
l) Pelas razões invocadas no art.º 20º, a Apelante opõe-se à remessa dos autos para outro Tribunal.
m) A douta sentença proferida, não violou qualquer norma.
Conclui, no sentido de manutenção, na íntegra, da sentença proferida, negando-se total provimento a todos os pedidos deduzidos pela Apelante.
11 – O recurso foi admitido por despacho de 23/05/2018, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
12 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pela Autora/Apelante, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina aferir acerca do seguinte:
A) Da errada interpretação do artº. 106º, do CIRE – da faculdade de recusar o cumprimento do contrato-promessa e não da obrigação =» Conclusões 1. a 10. e Conclusões contra-alegacionais j) e k) ;
B) Do litisconsórcio necessário passivo e da comunicação de 16/05/2013 como consubstanciando a reclamação prevista na alínea c), do nº. 1, do artº. 141º, do CIRE =» Conclusões 11. a 16. e Conclusões contra-alegacionais b) a i) ;
C) Em caso de não procedência do argumentário exposto em A) e B), do pedido de remessa dos autos ao tribunal absolutamente competente em razão da matéria - Juízo Central Cível de Loures -, nos termos dos artigos 96º, alín. a), 99º, nº. 2 e 278º, nº. 2, todos do Cód. de Processo Civil, de forma a conhecer-se acerca dos pedidos formulados sob as alíneas c) e d) da petição inicial =» Conclusões 17. e 18. e Conclusões contra-alegacionais a) e l).
O que implica, in casu, e prima facie, a análise das seguintes questões:
1) Dos efeitos da declaração de insolvência relativamente aos contratos bilaterais ainda não cumpridos, maxime sob o contrato-promessa de compra e venda ;
2) Do requerimento e requisitos da restituição e separação de bens no processo de insolvência ;
3) Dos efeitos da incompetência absoluta do tribunal por infracção das regras de competência em razão da matéria.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos, as ocorrências e a dinâmica processual a considerar é a aludida no precedente relatório.
Na decisão apelada, tendo por fundamento os autos principais, foi consignada como provada a seguinte factualidade:
1) A 03.06.2012 MT… requereu a insolvência de AC….
2) AC… deduziu oposição ao pedido de insolvência formulado por MT….
3) A 20.04.2013, AC… confessa encontrar-se insolvente.
4) Por sentença proferida a 22.04.2013, foi declarada a insolvência de AC… e nomeado Administrador da insolvência o sr. Dr. RN… (fls. 311 a 313).
5) No relatório apresentado pelo Sr. A.I. nos termos do art. 155º do CIRE, foi proposta a liquidação do património da insolvente, incluindo, a parte indivisa que a mesma detém no prédio urbano, sito na Av. …, nº …, …A, …B, …C e …D, em Torres Vedras, freguesia de S. Pedro, inscrito na respectiva matriz sob o art. … e descrito na C.R.P. de Torres Vedras sob o nº …/S. Pedro, objecto do pedido de execução específica formulado nestes autos pela autora.
6) A autora, na qualidade de credora, esteve presente na Assembleia de Credores realizada a 28.05.2013 (fls. 434-437 do processo principal) e não se opôs à proposta de liquidação, tendo os autos prosseguido os seus termos para esse efeito.
7) A autora, na qualidade de credora, pronunciou-se acerca da modalidade da venda dos bens apreendidos (fls. 458-459 dos autos principais).
8) No apenso de apreensão de bens, mostra-se apreendida, para além do mais, ¼ indiviso do prédio urbano, sito na Av. …, nº …, …A, …B, …C e …D, em Torres Vedras, freguesia de S. Pedro, inscrito na respectiva matriz sob o art. … e descrito na C.R.P. de Torres Vedras sob o nº …/S. Pedro,
9) A autora reclamou créditos no âmbito da insolvência, no montante de € 256.250,00, correspondente a uma quarta parte dos pedidos formulados na presente acção sob as alíneas c) e d).
Com base na prova documental junta aos presentes autos, e nos termos do nº. 4, do artº. 607º, ex vi do nº. 2, do artº. 663º, ambos do Cód. de Processo Civil, urge, ainda, considerar a seguinte matéria de facto provada:
10) no âmbito da reclamação de créditos enunciada em 9), a Autora informou acerca da pendência da presente acção, dos pedidos nesta formulados e do seu registo na Conservatória do Registo Predial competente ;
11) referindo expressamente, nos artigos 17º e 18º de tal reclamação, que:
17º
Serve, assim, a presente reclamação;
1º - Para informar que o prédio supra-identificado, de que a Insolvente é comproprietária na proporção de ¼ indiviso, é actualmente objecto de acção judicial de execução específica em que se peticiona a transmissão do direito de propriedade, pelo que o direito de compropriedade da Insolvente está em risco de deixar de existir e, por conseguinte, de fazer parte do activo da massa insolvente ;
2º - Para, no caso de improceder o pedido de execução específica, reclamar um crédito sobre a Insolvente no valor de € 256.250,00 (duzentos e cinquenta e seis mil, duzentos e cinquenta euros), correspondente a uma quarta parte dos pedidos c) e d) formulados na predita acção judicial.
18º
Pelo exposto, reclama-se este crédito de € 256.250,00 por enquanto sem juros, dependente da sentença que viera a ser proferida na identificada acção judicial, o qual se requer seja reconhecido e graduado com observância do disposto nos arts. 129º e 130º e segs. do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas” ;
12) No âmbito dos mesmos autos de insolvência, em 23/11/2015, lavrou-se Termo de Abertura de Propostas relativo à venda por proposta em carta fechada dos bens apreendidos, consignando-se “que não foi apresentada nenhuma proposta até ao dia e hora marcados para a respectiva abertura, tendo a venda ficado deserta” - cf., doc. junto aos autos a fls. 536 e5317, que aqui integralmente se reproduz
13) Em 02 de Maio de 2008 foi celebrado Contrato de Promessa de Compra e Venda, tendo por Primeiros Outorgantes, e promitentes vendedores, AC…, MT…, MTG… e JA…, e como Segunda Outorgante, e promitente compradora, a Sociedade António Miranda Júnior, Construção Civil, S.A., tendo por objecto o prédio urbano, sito na Av. …, nº …, …A, …B, … e …D, em Torres Vedras, freguesia de S. Pedro, inscrito na respectiva matriz sob o art. … e descrito na C.R.P. de Torres Vedras sob o nº …/S. Pedro, do qual os Primeiros Outorgantes são donos e legítimos proprietários, em compropriedade ;
14) No âmbito do mesmo contrato, foi acordado o preço de 600.000,00 €, devendo o contrato prometido ser realizado até “ao final do mês de Maio de 2009” – cf., doc. junto aos autos a fls. 16 e 17, que aqui integralmente se reproduz ;
15) A escritura pública para celebração do contrato prometido esteve designada para o dia 10/11/2009, data em que não se realizou devido “à falta de comparência de MT… (…) e de JA…cf., doc. junto aos autos a fls. 21, que aqui integralmente se reproduz ;
16) A mesma escritura esteve igualmente designada para o dia 15/12/2009, voltando a não realizar-se “por dois dos vendedores, a saber, MT… e MF…, em nome do seu representado JA…, terem declarado não terem recebido o valor que lhes corresponde, não se tendo pronunciado MTG…” - cf., doc. junto aos autos a fls. 37, que aqui integralmente se reproduz ;
17) MT… e JA…, remeteram á sociedade António Miranda Júnior, Construção Civil, S.A., cartas datadas de 03/12/2009, aludindo que tal sociedade não pagou “as partes do preço a que se obrigaram no contrato promessa que assinaram e ao qual aludem na vossa carta”, e que a escritura designada para 15/12/2009 “só será celebrada se me pagarem, por meio de cheque visado, a parte do preço a que tenho direito” - cf., doc. junto aos autos a fls. 28 a 32, que aqui integralmente se reproduz ;
18) Tais cartas mereceram resposta por parte da sociedade António Miranda Júnior, Construção Civil, S.A., referenciando que a escritura ainda não foi celebrada “porque a hipoteca ainda não está expurgada” e que “sem que a Caixa liberte a hipoteca (feita com a sua assinatura), nós não assinaremos escritura de compra, nem daremos mais dinheiro aos promitentes-vendedores” - cf., doc. junto aos autos a fls. 33 a 36, que aqui integralmente se reproduz.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Questão prévia – do âmbito do recurso
No preâmbulo das alegações recursórias, referencia a Apelante que o recurso é interposto “da sentença que declarou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide em relação aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da p.i. e por inutilidade superveniente da lide em relação aos pedidos das alíneas c) e d) da mesma peça processual”.
Todavia, analisado o teor das conclusões recursórias, bem como da pretensão apresentada nessa sede, constata-se que inexistem quaisquer dúvidas quanto à pretensão recursória relativamente ao juízo de extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, no que concerne aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da petição inicial.
Porém, no que concerne ao petitório deduzido sob as alíneas c) e d), excepto no que concerne à natureza subsidiária das pretensões aqui deduzidas, constata-se que a pretensão recursória apenas abrange o segmento da decisão que absolveu da instância os réus MT…, MTG… e JA…, relativamente aos pedidos formulados pela autora nas als. c) e d) com fundamento na excepção dilatória de incompetência material deste tribunal, sendo competente para apreciação dos mesmos o Juízo Central Cível de Loures.
É o que resulta, claramente, da pretensão formulada, igualmente em termos subsidiários, ao referenciar-se expressamente que se “porventura assim se não entender, deverá revogar-se apenas a parte da Sentença que decretou a absolvição da instância dos três co-réus da Insolvente relativamente aos pedidos das alíneas c) e d) formulados na p.i. e, em consequência, remeter-se o processo, para julgamento dessa matéria, para o Tribunal competente, no caso o Juízo Central Cível de Loures”.
Ou seja, no que concerne às alíneas c) e d) do petitório accional, o recurso incide sobre aquele decisão da absolvição da instância, com fundamento na excepção dilatória de incompetência material do tribunal, proferida relativamente a três Réus, e não sobre a decisão de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, que teve apenas por destinatária a Ré insolvente.
O que se passará a conhecer.
1 - da errada interpretação do artº. 106º, do CIRE – da faculdade de recusar o cumprimento do contrato-promessa e não da obrigação =» Conclusões 1. a 10. e Conclusões contra-alegacionais j) e k)
Aduz a Apelante que a sentença recorrida incorreu em errada interpretação do artº. 106º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo DL nº. 53/2004, de 18/03, mas fruto de consequentes alterações), pois o que decorre desta norma “é que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa se ele tiver sido celebrado com eficácia real e tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”, mas não que, na falta destes dois requisitos, “deva recusar o cumprimento, mas apenas que ele pode recusá-lo”.
Deste modo, é errónea a conclusão feita constar na sentença apelada de que “a intenção do legislador foi de afastar o cumprimento do contrato-promessa mesmo que tenha eficácia real, excepto se já houve tradição da coisa”.
Pelo que, o que sucedeu no caso sub júdice foi a Recorrente ter comunicado ao Administrador da Insolvência “a pendência da presente acção de execução específica, dizendo-lhe claramente na sua comunicação de 16/05/2013 (…) que, no caso de procedência da acção, o direito de compropriedade de ¼ indiviso da Insolvente sobre o prédio urbano objecto do contrato-promessa não deveria fazer parte do activo da massa insolvente, mais adiantando que, subsidiariamente, para o caso de improcedência do pedido de execução específica, então reclamava o crédito correspondente à devolução do sinal em dobro (sanção de incumprimento), acrescido do valor das obras introduzidas no prédio pela Promitente-Compradora, ora Recorrente, e autorizadas pelos promitentes-vendedores, naturalmente correspondente a ¼ do valor total destas rubricas”.
Assim de acordo com a correcta interpretação daquele normativo, o Administrador da Insolvência podia ter recusado o cumprimento do contrato-promessa, mas, todavia, não o fez.
Pelo que, não poderia o Tribunal decretar a extinção da instância, assim violando “o disposto no art. 106º, nº 1 do CIRE (por má interpretação da norma, como se explicou), bem como o disposto no art. 102º do mesmo diploma legal”.
Nas contra-alegações apresentadas, refere a Apelada MTG… que o Administrador da Insolvência, sem a anuência dos demais promitentes vendedores, nunca poderia cumprir o contrato, pois não pode substituir-se á vontade dos mesmos, sendo que a Apelada e os seus irmãos M… e JA… recusam-se a cumprir o contrato, em virtude de nada lhes ter sido pago pela Apelante, assim lhes causando prejuízo.
Vejamos.
Prevendo acerca dos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso, estatui o artº. 102º, do CIRE, que:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.
3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:
a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;
b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;
c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;
d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:
i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);
ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);
iii) Constitui crédito sobre a insolvência;
e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respectivos montantes.
4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável”.
Referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [2] que o presente normativo só se aplica “se se mostrarem preenchidos três requisitos:
a) natureza bilateral do contrato ;
b) não cumprimento total de ambas as partes ;
c) inexistência de regime diferente para os negócios especialmente regulados nos artigos seguintes”.
Pelo que, preenchidos tais requisitos e declarada a insolvência, “o cumprimento do contrato fica suspenso, sendo atribuídas ao administrador duas faculdades potestativas, em alternativa. Cabe-lhe optar entre executar o contrato ou recusar o seu cumprimento”. Ou seja, “o administrador é, em princípio, livre de escolher qualquer das soluções que a lei põe ao seu dispor”.
Defende Alexandre de Soveral Martins [3] estabelecer-se no presente normativo que o “cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento”, sendo que, no exercício de tal direito de optar “o administrador da insolvência deve necessariamente olhar para o que é vantajoso para a massa insolvente e para o conjunto dos credores”.
Todavia, apesar da enunciação de um princípio geral de aplicabilidade aos negócios em curso, o âmbito normativo circunscreve-se aos “contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento por qualquer das partes”, dependendo, assim, a sua aplicação “da verificação de um requisito positivo e de um requisito negativo. O requisito positivo é a existência de um contrato bilateral celebrado entre o insolvente e um terceiro. O requisito negativo é o de, à data da declaração de insolvência, não ter ainda havido cumprimento total por parte de nenhum dos contraentes”.
Tal direito de escolha ou de opção do administrador da insolvência (efectivar ou recusar o cumprimento dos contratos), “apesar de potestativo, não é um direito de exercício livre ou acriterioso, devendo o administrador optar, em cada caso, pela solução que melhor servir as finalidades do processo de insolvência – o que equivale a dizer: a solução que maximizar o valor da massa insolvente e, dessa forma, as probabilidades de satisfação dos credores[4].
Em idêntico sentido, refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão [5]restringir-se a aplicação deste normativo aos “contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento, nem pelo insolvente, nem pela outra parte”.
Acrescenta que “como o cumprimento desses contratos pode ser conveniente aos interesses da massa, concede-se ao administrador a possibilidade de optar entre o cumprimento do contrato e a sua recusa, consoante for ou não conveniente para a massa. Assim se consegue conciliar os interesses da massa e a tutela da igualdade dos credores com o regime característico dos contratos bilaterais[6].
Resulta, deste modo, conceder ou atribuir a lei ao administrador da insolvência, no que concerne aos contratos bilaterais ainda não totalmente cumpridos, nem pela insolvente nem pela contraparte, e após um primeiro momento de suspensão contratual, um direito potestativo de optar pela execução do contrato – caso em que se mantêm os termos contratuais -, ou recusar o cumprimento – caso em que a contraparte fica com um crédito sobre a insolvência.
Porém, para além das limitações de aplicabilidade enunciadas, os próprios termos do nº. 1 de tal normativo ressalvam o disposto nos artigos seguintes, ou seja, os efeitos da declaração de insolvência sobre a vária tipologia contratual especificamente prevista, sendo que, in casu, assume particular relevância o estatuído no artº. 106º, que prevê acerca da promessa de contrato.
Dispõe este normativo que:
“1 - No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.
2 - À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”.
Apesar da epígrafe do presente normativo se reportar ao contrato-promessa, resulta da sua redacção que o seu âmbito de aplicabilidade circunscrever-se-á ao contrato-promessa de compra e venda.
Assim, é aplicável á situação em que “o contrato-promessa tem eficácia real, houve tradição da coisa objecto do contrato prometido e o insolvente é o promitente-vendedor. Dispõe que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa, mais uma vez em desvio ao princípio geral mas sempre ao abrigo da ressalva contidos no nº. 1 do art. 102º.
O nº. 2 do art. 106º regula os casos restantes, em que falha qualquer dos três requisitos exigidos pelo nº. 1, ou seja, os casos em que o contrato-promessa tem eficácia real mas não houve tradição da coisa ou em que, tendo havido tradição, o insolvente não o promitente-vendedor e os casos em que o contrato-promessa não tem eficácia real (tenha ou não havido tradição e seja o insolvente o promitente-vendedor ou o promitente-comprador). Estabelece, pois, a regra geral, aplicável à grande maioria dos contratos-promessa: nestes casos, ao contrário do caso regulado no nº. 1, o administrador pode recusar o cumprimento, aplicando-se então, por remissão nº. 2 do art. 106º, o nº. 5 do art. 104º e, finalmente, por remissão deste último, o nº. 3 do art. 102º” (sublinhado nosso).
Deste modo, parece resultar do regime legal que não deveriam existir “dúvidas quanto à possibilidade de o administrador da insolvência recusar o cumprimento quando, independentemente de traditio, o contrato-promessa tem eficácia meramente obrigacional. Quanto a isso, é muito claro o disposto no nº. 1, a contrario, do art. 106º, conjugado com o nº. 1 do art. 102” (sublinhado nosso) [7] [8].
Ou seja, verificados os requisitos enunciados no nº. 1 do citado normativo, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas á outorga do contrato definitivo. Ou seja, em caso de insolvência do promitente-vendedor que tenha outorgado um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, o negocio não é afectado, caso o promitente-comprador, à data da declaração de insolvência, esteja na posse da coisa objecto do negócio.
 Nas demais situações, e nos termos supra expostos, é permitido ao administrador optar pela recusa do cumprimento [9].
Deste modo, não sendo a situação enquadrável no nº. 1, do citado artº. 106º, “o contrato-promessa de compra e venda fica sujeito ao art. 106º, 2, que tanto diz respeito à insolvência do promitente-comprador como à do promitente-vendedor. Se o administrador da insolvência, podendo fazê-lo, recusar o cumprimento do contrato-promessa, então aplica-se o art. 104º, 5 (…).
O art. 106º, 2, compreende-se melhor se tivermos em conta que, não sendo aplicável o art. 106º, 1 (sendo contrato-promessa, não é contrato-promessa de compra e venda ; ou, sendo contrato-promessa de compra e venda, não tem eficácia real; ou sendo contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, não houve tradição ; ou sendo contrato-promessa de compra e venda com eficácia real e com tradição, é o promitente-comprador o insolvente), então o administrador da insolvência já pode optar. Já pode escolher entre recusar o cumprimento ou cumprir. E, até lá, parece que o contrato ficará suspenso, nos termos do art. 102º,1[10] [11].
Aqui chegados, analisemos o caso concreto.
O princípio geral em matéria de efeitos da insolvência sobre os negócios em curso, estando em causa contratos bilaterais ainda não totalmente cumpridos à data da declaração de insolvência, é o consagrado no artº. 102º, nº. 1, do CIRE: o cumprimento fica suspenso, até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recuar o cumprimento.
Estando o contrato-promessa apenas dotado de eficácia obrigacional, o que acontece in casu, aplica-se o regime estipulado naquele artigo 102º, nº. 1, e não a solução consagrada no transcrito nº. 1, do artº. 106º, do mesmo diploma – apenas previsto para as situações em que o contrato-promessa de compra e venda goza de eficácia real e houve tradição da coisa prometida a favor do promitente-comprador -, prevendo o nº. 2 deste normativo acerca dos efeitos da recusa de cumprimento do contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência.
Assim, no caso sub júdice, o Administrador da Insolvência não era obrigado a cumprir, antes se lhe deparando, prima facie, a faculdade de exercício do direito potestativo de procurar a melhor solução para os interesses da massa insolvente e dos credores desta.
Todavia, colocado perante a hipótese enunciada naquele nº. 1, do artº. 102º, in casu também não poderia optar pela execução do contrato prometido, pois, a Insolvente apenas era dona e legítima possuidora do direito a ¼ do imóvel objecto da promessa, sendo que o Administrador da Insolvência não podia suprir a vontade dos três demais promitentes-vendedores, que se recusam à outorga do contrato prometido. Ou seja, atentas estas circunstâncias, ao Administrador não se colocava sequer a hipótese do cumprimento do contrato-promessa, estando assim arredada a execução específica do mesmo, isto é, o petitório accional deduzido sob as alíneas a) e b) (existindo uma nítida vinculação, dependência ou prejudicialidade deste pedido àquele).
Ademais, ainda que assim não se entendesse, tal juízo de recusa de cumprimento do Administrador sempre resultaria, de forma tácita [12], do seu comportamento, nomeadamente da aparente inclusão na listagem dos créditos reconhecidos, do crédito resultante do não cumprimento [13], bem como, maxime, da tentativa de venda de tal direito apreendido, conforme facto 12).
Determinando, consequentemente, juízo de impossibilidade superveniente da lide relativamente àquele petitório principal, assim improcedendo, neste segmento, a pretensão recursória apresentada, com consequente confirmação da decisão apelada.
Adrede, refira-se, ainda, que diferenciada é a questão relativa ao mecanismo indemnizatório ou ressarcitório a que a Autora promitente adquirente terá eventualmente direito na decorrência da opção de recusa de cumprimento por parte do Administrador da Insolvência, ou seja, qual o quantum do direito de crédito que resulta para a promitente compradora Autora, na sequência de recusa de cumprimento pelo Administrador da massa insolvente da Ré AC….
Nesta questão, que ora não releva, impõe-se atentar ao transcrito nº. 2, do artº. 106º, do CIRE, inexistindo, contudo, unanimidade de entendimento doutrinário e jurisprudencial, sendo controversa a questão de saber se, recusado o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda, com eficácia meramente obrigacional, por parte do administrador da insolvência, o promitente-comprador, beneficiário da traditio, tem direito ao recebimento do sinal dobrado.
Assim, e exemplificativamente, Catarina Serra [14], após enunciar que o citado nº. 2, do artº. 106º, não fixa directamente os termos indemnizatórios, antes se limitando a remeter para o nº. 5, do artº. 104º, que, por sua vez, remete para o nº. 3, do artº. 102º, defende que “a decisão legislativa de atribuir ao administrador da insolvência o direito (potestativo) de recusa de cumprimento do contrato-promessa implica, só por si, a inaplicabilidade do art. 442º do CC. Entre o direito (potestativo) de recusa do cumprimento do contrato-promessa e o direito subjectivo propriamente dito à restituição do sinal em dobro há uma autêntica contradição teleológica”.
Acrescenta, então, que o funcionamento do direito ao sinal em dobro depende de três diferenciados requisitos: “primeiro, que o devedor não cumpra ; segundo, que o não cumprimento seja ilícito ; terceiro, que o não cumprimento ilícito seja imputável ao devedor, por ter sido causado com culpa. Ora, existindo um direito potestativo de recusa de cumprimento do contrato-promessa (…), não existe um dever de cumprir ; não existindo um dever de cumprir, não há ilicitude e não há culpa, faltando, pois, no caso de o cumprimento ser efectivamente recusado pelo administrador da insolvência, a imputabilidade do não cumprimento ao promitente-vendedor e, consequentemente, um dos factos constitutivos do direito do promitente-comprador”.
Por fim, referencia, ainda, que “se porventura existisse alguma dúvida sobre a inaplicabilidade do art. 442º do CC à recusa do cumprimento do contrato-promessa pelo administrador da insolvência, ela seria eliminada pelo art. 119º do CIRE”, aduzindo este normativo ser “nula qualquer convenção das partes que exclua ou limite a aplicação das normas anteriores do presente capítulo”.
Considera, assim, ter a contraparte do insolvente “o direito à diferença (se positiva) entre os valores das duas prestações – uma equivalente ao valor do objecto do contrato prometido na data da recusa de cumprimento do contrato-promessa e a outra equivalente ao montante do preço convencionado actualizado para a data da declaração de insolvência, acrescido do sinal (em singelo)”.
A mesma Autora critica, ainda, evidenciando perplexidade, perante a interpretação efectuada pelo Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº. 4/2014, de 20/03/2014 relativamente ao nº. 2, do artº. 442º, do Cód. Civil.
Considera que tal Alto Tribunal “pronunciou-se por uma interpretação extensiva do termo «não cumprimento imputável», para sustentar que ele incluía uma imputabilidade indirecta, mediata ou reflexa. Imputabilidade deixa, em suma, de significar culpa para passar a significar causalidade”. Sugere, deste modo, tal aresto, “que a aplicação do art. 442º, nº. 2, do CC depende da ilicitude da recusa de cumprimento do contrato-promessa. O promitente-comprador só teria direito à restituição do sinal em duplicado, desde que o administrador de insolvência do promitente-vendedor recusasse ilicitamente, ou seja, em violação do art. 106º, nº. 1, do CIRE, o cumprimento de um contrato-promessa[15] [16].
2 - do litisconsórcio necessário passivo e da comunicação de 16/05/2013 como consubstanciando a reclamação prevista na alínea c), do nº. 1, do artº. 141º, do CIREConclusões 11. a 16. e Conclusões contra-alegacionais b) a i)
Alega a Apelante que a “a presente acção visa a execução específica de um contrato-promessa de compra e venda através do qual a Insolvente, em conjunto com seus três irmãos, prometeram vender à Recorrente um prédio urbano sito na cidade de Torres Vedras, pelo preço de € 600.000,00”, pelo que a posição passiva constitui litisconsórcio necessário, pois não pretende a “execução específica sobre 1/4 do prédio separadamente, pertencente em compropriedade a cada um dos promitentes-vendedores, mas sim sobre a totalidade do prédio”.
Acrescenta que, sendo uno o negócio, pois “não prometeu comprar 1/4 do prédio a cada um dos comproprietários, mas sim a totalidade do prédio a todos os comproprietários”, não se afigura possível “isolar as quotas indivisas de cada um desses comproprietários”.
Adrede, defende, ainda, que a “comunicação de 16/05/2013 dirigida pela ora Recorrente ao A.I. consubstancia a reclamação prevista na alínea c) do nº 1 do art. 141º do CIRE, na medida em que aí se dizia que o ¼ indiviso da Insolvente não devia ser incluído na insolvência por força da situação de litisconsórcio necessário acima referida, sendo ainda certo que essa quota indivisa de compropriedade não é de exclusiva e plena propriedade da Insolvente, nem é susceptível de apreensão para a massa (visto que a acção está registada na Conservatória do Registo Predial) – vide citado artigo 141º, nº 1, c), in fine”.
Em sede contra-alegacional, enuncia a Apelada MP… que não houve qualquer reclamação da inclusão do direito a ¼ do prédio nos bens apreendidos, nem tal podia ser efectuado, pois a situação não cabe em qualquer das situações enunciadas na citada alínea c), do nº. 1, do artº. 141º, do CIRE.
Pelo que não pode proceder a “pretensão da Apelante em querer modificar o pedido de deduzido na reclamação de créditos em pedido de destinado a separar da massa o direito de compropriedade a ¼ do prédio”, existindo, inclusive, “uma clara contradição, consubstanciada na pretendida venda expressa pela Apelante na assembleia de credores e no seu requerimento em que se pronuncia pela modalidade da venda e valor base, do direito de ¼ indiviso do prédio, e o pedido deduzido neste recurso, com vista à apreciação por parte deste Tribunal Superior, nomeadamente quanto á execução especifica do contrato de promessa de compra e venda que tem por objecto a totalidade do prédio”.
Apreciemos.
O transcrito nº. 3, do artº. 102º, aplicável por força do disposto no nº. 5, do artº. 104º, ex vi do nº. 2, do artº. 106º, ressalva o “direito à separação da coisa”.
O que nos conduz ao prescrito na alínea c), do nº. 1, do artº. 141º, do CIRE, que prevê acerca da restituição e separação de bens, determinando a aplicabilidade das disposições relativas á reclamação e verificação de créditos.
Prescreve este normativo, nas diferenciadas alíneas do seu nº. 1, que
“1 - As disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis:
a) À reclamação e verificação do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio;
b) À reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns;
c) À reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa (sublinhado nosso).
Não afectando a opção pela recusa do administrador de insolvência os direitos de separação de bens, a restituição e separação configura-se como um “meio específico de oposição, que se processa em termos semelhantes à verificação de créditos”.
A citada alínea c), em equação no caso concreto, configura-se como o terceiro fundamento da restituição, traduzido na “existência de bens de que o insolvente não seja o pleno e exclusivo proprietário, e ainda de bens estranhos à insolvência ou indevidamente apreendidos pela massa insolvente. Efectivamente, no caso de indivisão ou contitularidade de bens, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens (art. 159º), pelo que poderão os outros contitulares [exercer] o direito à restituição e separação de bens” (sublinhado nosso)[17] [18].
E, efectivamente, estatui o artº. 159º, do mesmo diploma, prevendo acerca da liquidação em caso de contitularidade e indivisão, que “verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens”.
Reforçando a ratio legis da norma, enunciam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [19] contemplar a transcrita alínea c) “a tutela de terceiros, que tenham visto bens seus indevidamente apreendidos para a massa”, regulando, ainda, “o caso de separação de bens apreendidos quando o insolvente não seja pleno e exclusivo proprietário dos mesmos, ou quando se trate de bens estranhos à insolvência ou não susceptíveis de apreensão para a massa insolvente”.
Pelo que, “quando o insolvente for contitular, não proprietário exclusivo, dos bens, só pode verificar-se a apreensão do direito que o insolvente tenha sobre eles, mas não dos próprios bens (cfr., v.g. o artº. 159º). Daí, a faculdade de reclamação concedida aos demais contitulares pela al. c) do nº. 1”.
Por sua vez, exemplo de bens do insolvente insusceptíveis de apreensão para a massa, configuram-se “os isentos de penhora, podendo ser reclamada a separação dos que nela hajam sido indevidamente integrados”, sendo exemplo dos bens estranhos á insolvênciaos do titular de estabelecimento individual de responsabilidade limitada, quando só este tenha sido declarado insolvente, sem a insolvência atingir o seu titular”.
De retorno ao caso concreto, questiona-se: poderá considerar-se traduzir, ou consubstanciar, a comunicação/requerimento de 16/05/2013 – cf., factos 9) a 11) provados -, a reclamação para separação de bens enunciada no artº. 141º, do CIRE, nomeadamente por referência à alínea c), do nº. 1 ?  Não deveria o direito da Insolvente a ¼ indiviso sobre o prédio ser objecto de apreensão, por força do invocado litisconsórcio necessário ? Não é este mesmo direito ou quota indivisa de compropriedade susceptível de apreensão para a massa insolvente ?
Ora, analisado o teor de tal requerimento, intitulado de reclamação de créditos, constata-se que o mesmo apenas se destinava a concreta reclamação do crédito descrito, não possuindo aquela natureza de exercício do direito à separação do direito apreendido. Não é esse manifestamente o objecto ali definido, pois, a referência à compropriedade da Insolvente sobre o ¼ indiviso do prédio é efectuada apenas a título informativo, por referência à pendência de pedido de execução específica e a consequências eventuais deste para a manutenção do direito apreendido.
Com efeito, não sendo deduzido nenhum concreto pedido de separação, não é possível concluir que a ora Autora Apelante tivesse por desiderato qualquer pretensão de separação do bem em causa. 
Todavia, ainda que assim não se entendesse ou considerasse, resulta claro que tal pretensão, a configurar-se, o que não se reconhece, estaria irremediavelmente condenada ao fracasso pois, desde logo, não é equacionável em qualquer das situações previstas no nº. 1, do artº. 141º, nomeadamente na invocada alínea c).
Efectivamente, a apreensão teve por objecto o direito da Insolvente sobre o identificado imóvel (de que é comproprietária), que é efectivamente da sua titularidade (o que se configura incontroverso), inexistindo qualquer afectação de direitos de terceiros.
Por outro lado, não é o facto de se equacionar a alegada situação litisconsorcial passiva necessária, no que concerne ao petitório de execução específica do contrato-promessa, que seria susceptível de inviabilizar tal apreensão do direito da Insolvente, pois, decretada a insolvência, impunha-se tal apreensão – cf., artº. 36º, nº. 1, alín. g), do CIRE -, nada tendo esta a ver com a alegada legitimidade passiva requerida para a dedução do petitório accional principal.
Por fim, também não se afigura que o direito apreendido, pertença da Insolvente, não fosse susceptível de apreensão para a massa e que nesta tivesse sido indevidamente integrado. Ao invés, foi devidamente apreendido, não aduzindo a Apelante qualquer razão sustentadora da indevida apreensão, para Além da situação litisconsorcial já apreciada e refutada.
Donde, sem outras delongas, o juízo, igualmente neste segmento recursório, só pode  ser de improcedência, o que se consigna e decide.
 3 - do pedido de remessa dos autos ao tribunal absolutamente competente em razão da matéria - Juízo Central Cível de Loures -, nos termos dos artigos 96º, alín. a), 99º, nº. 2 e 278º, nº. 2, todos do Cód. de Processo Civil, de forma a conhecer-se acerca dos pedidos formulados sob as alíneas c) e d) da petição inicial Conclusões 17. e 18. e Conclusões contra-alegacionais a) e l)
Aduz a Recorrente que, em caso de não procedência da antecedente argumentação, “nunca deverá declarar-se a inutilidade superveniente da lide em relação aos pedidos das alíneas c) e d), porquanto, nessa hipótese, sendo o Tribunal de Comércio absolutamente incompetente em razão da matéria e sendo competente para apreciação dessas alíneas o Juízo Central Cível de Loures, como a própria Sentença Recorrida reconhece, então o processo deverá, para julgamento desses pedidos, ser remetido ao tribunal competente, de harmonia com o disposto nos arts. 96º, a), art. 99º, nº 2 (vontade que aqui expressa desde já a A. – Recorrente) e art. 278º, nº 2, todos do C. Proc. Civil”.
Donde, ao ter declarado “a absolvição da instância dos três co-réus da Insolvente em relação aos pedidos c) e d) e extinguindo a instância por inutilidade superveniente da lide, a Sentença Recorrida aplicou indevidamente, violando-os os dispositivos legais dos arts. 278º, nº 1 e 277º, alínea e), ambos do C. Proc. Civil”.
Em sede contra-alegacional, referenciou a Apelada MP… ter-se a Autora Apelante conformado com a apensação da presente acção ao processo de insolvência, opondo-se à requerida remessa dos autos, pelas seguintes razões: tal pedido só tem cabimento e é admissível após o trânsito em julgado da decisão que decretou a incompetência, a acção foi proposta no tribunal competente, sem que o despacho que ordenou a apensação tivesse sido objecto de reparo por parte da Apelante, que se conformou com o mesmo, o nº. 2 do artº. 99º, do Cód. de Processo Civil é apenas aplicável às situações em que a acção tenha sido intentada erradamente em determinado tribunal, devendo-o ter sido noutro, o pedido de remessa deve ser apresentado no Tribunal de 1ª instância, e não neste Tribunal Superior e o pedido de condenação solidária dos Réus é impossível de alcançar, em consequência da declaração de insolvência de uma das promitentes vendedoras.
Vejamos.
Prevendo acerca dos casos de incompetência absoluta, estatui a alínea a), do artº. 96º, do Cód. de Processo Civil, determinar “a incompetência absoluta do tribunal:
a) A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional”.
Por sua vez, nos que concerne aos efeitos da incompetência absoluta, prescreve o nº. 2, do artº. 99º, do mesmo diploma, que “se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada”.
Em concatenação com tais normativos, a ajuizando acerca dos casos de absolvição da instância, prescreve a alínea a), do nº. 1, do artº. 278º, que “o juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:
a) Quando julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal”, acrescentando o nº. 2, do mesmo normativo, que cessa o disposto no número antecedente “quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada”.
Segundo a legal prescrição, “o efeito de absolvição da instância que decorre da deteção e declaração da exceção de incompetência absoluta não deve levar a que inelutavelmente se inutilize toda a tramitação processual, maxime as peças processuais em que as partes expuseram os seus argumentos de facto e de direito”, antes se admitindo “que sejam aproveitados os articulados que as partes apresentaram, o que naturalmente envolve os atos processuais que lhes estão associados”.
Todavia, esta possibilidade legal ou efeito está sujeita a algumas condições, nomeadamente o facto da decisão de absolvição da instância, com aquele fundamento, ter transitado em julgado, o requerimento ser apresentado no prazo de 10 dias após aquela decisão e a prévia audição do réu. Na decisão a proferir pelo julgador, “entrarão em linha não apenas os argumentos formalmente expostos pelo réu, como ainda outros que a concreta situação justifique, envolvidos na margem de apreciação do juiz que, designadamente, emerge do facto da remessa ser encarada como uma «possibilidade» e não como um efeito decorrente do mero confronto entre as posições assumidas pelas partes ou do exercício de um direito potestativo[20].
O transcrito nº. 2, do artº. 99º traduz, deste modo, a “manifestação do princípio da economia processual, na vertente da economia de atos e formalidades processuais”, sendo que a oposição do réu, devendo ser justificada, harmoniza-se “com o direito de defesa” e aquele princípio, pelo que “será injustificada se, na contestação, o réu utilizou todos os meios que lhe seriam proporcionados se a ação tivesse sido proposta no tribunal competente ; é discutível se continuará a sê-lo se o réu não utilizou todos esses meios, embora os pudesse utilizar (…)”. Certo é que, no tribunal competente, “se inicia uma nova instância[21].
Exemplificativamente, outra fundada justificação que o réu pode alegar é a de “não ter reconvindo por ser o tribunal materialmente incompetente também para o conhecimento do pedido reconvencional”, sendo certo que, “sendo o processo remetido ao tribunal competente, findos os articulados, não tem o réu nova oportunidade para deduzir reconvenção[22].
Nos presentes autos a decisão recorrida absolveu da instância os Réus MT…, MTG… e JA…, relativamente aos pedidos formulados sob as alíneas c) e d), com fundamento na excepção dilatória de incompetência material deste Tribunal, considerando competente para a sua apreciação o Juízo Central Cível de Loures.
Ora, a presente acção, aquando da sua propositura, foi instaurado no tribunal competente, à data, em razão da matéria, ou seja, inexistiu qualquer lapso ou engano da Autora na escolha do tribunal onde instaurou a demanda.
Na sequência da declaração da insolvência de uma das Rés – AC… -, foi solicitada apensação dos presentes autos aos autos de insolvência – cf., fls. 463 -, aparentemente por requerimento do Administrador da Insolvência – cf., fls. 475 -, o que foi deferido, conforme despacho de fls. 464. Assim, e à data, tramitando os presentes autos no …º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, passaram a tramitar, por apenso aos autos de insolvência, no …º Juízo do mesmo Tribunal Judicial – cf., fls. 466.
Posteriormente, fruto da implementação das regras da reorganização judiciária, a competência em razão da matéria e estrutura para apreciação dos presentes autos passou a pertencer ao Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira – Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – cf., fls. 492.
Estando já em equação apenas, no que concerne ao petitório accional, as pretensões deduzidas nas alíneas c) e d), constata-se o seguinte:
- no que concerne à Ré declarada insolvente – AC… -, o pretenso crédito da Autora será apreciado nos autos de insolvência, nomeadamente no apenso de verificação e reclamação de créditos, onde foi devidamente reclamado ;
- relativamente aos demais Réus, sob os quais incidiu o juízo de absolvição da instância supra exposto, inexiste qualquer razão minimamente justificada que afaste, prima facie, a aplicabilidade do disposto no nº. 2 do artº. 99º, do Cód. de Processo Civil.
Efectivamente, as aludidas razões de economia processual, na sua vertente de economia de actos e formalidades processuais, estão totalmente presentes, justificando-se plenamente a ponderação do aproveitamento de toda a actividade processual já desenvolvida ao longo dos 9 anos de pendência da acção.
Assim, a manifestação de tal aproveitamento por parte da Autora apenas tem eficácia após o trânsito em julgado da decisão que absolveu os Réus da instância, a apresentar no prazo de 10 dias, e não propriamente no âmbito dos presentes autos de recurso. E, tal trânsito não ocorreu ainda, atento o âmbito e amplitude do recurso em apreciação, em concatenação com o facto daqueles pedidos deduzidos sob as alíneas c) e d) terem natureza subsidiária relativamente aos deduzidos sob as alíneas a) e b), questionados igualmente na pretensão recursória apresentada.
Todavia, tendo a Autora já manifestado, inequivocamente, tal vontade, deve esta ser aproveitada, o que, no presente contexto, determinaria que o presente Tribunal sobrestasse no conhecimento de tal alegado fundamento recursório, antes determinando que o Tribunal a quo o apreciasse, de acordo com os legais critérios, nomeadamente na ponderação da oposição igualmente já apresentada pela Ré contra-alegante.
Cremos, porém, que atentas as particularidades da situação sub júdice, não se justifica o recurso a tal iter procedimental.
Com efeito, não estamos perante uma situação em que a Autora, ao intentar a acção, o tenha feito em tribunal não competente em razão da matéria, facultando-lhe a lei a possibilidade de aproveitamento do dispêndio processual entretanto desenvolvido, em observância da tutela daquele princípio de aproveitamento dos actos processuais.
A acção foi proposta no tribunal materialmente competente, sendo que as modificações supervenientes (e não está agora em apreciação a pertinência destas) não ocorreram por qualquer impulso imputável à Autora.
Pelo que, cremos, finda a conexão de competência fundada no artº. 86º, nº. 1, do CIRE, deverão os autos retornar ao tribunal ab initio materialmente competente, sem que seja sequer exigível qualquer manifestação de vontade da Autora. Esta, já foi devidamente exposta e concretizada aquando da instauração da acção, sendo que as demais modificações supervenientes nessa matéria são-lhe totalmente alheias.
Por outro lado, a presente solução não afecta minimamente a tutela da posição dos Réus, pois a acção foi devidamente tramitada no tribunal materialmente competente, onde a contestação foi deduzida e onde puderam utilizar todos os meios ou mecanismos processuais destinados à defesa dos seus direitos.
Por fim, tal decisão permitirá, ainda, conhecer acerca do pedido reconvencional deduzido e admitido – cf., fls. 279 a 283, 306 e 390 -, relativamente ao qual nada foi referido ou decidido na decisão apelada (!).
Pelo que, no que concerne ao presente segmento recursório, e ainda que com diferenciada fundamentação, o juízo é de total procedência, determinando-se a remessa dos presentes autos ao Tribunal competente (Secção Cível da Instância Central com sede em Loures – cf., artº. 86º, nº. 1, alín. a), do DL nº. 49/2014, de 27/03), no qual se apreciará:
- acerca do petitório accional deduzido sob as alíneas c) e d), no que concerne aos Réus MT…, MTG… e JA… ;
- acerca do pedido reconvencional admitido.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas do presente recurso serão suportadas, por Apelante e Apelados, respectivamente, na proporção de 2/3 e 1/3.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Autora/Apelante ANTÓNIO MIRANDA JÚNIOR, CONSTRUÇÃO CIVIL, S.A., no qual figuram como Réus/Apelados AC…, MT…, MTG… e JA… e, consequentemente, decide-se:
1. determinar a remessa dos presentes autos ao Tribunal competente (Secção Cível da Instância Central com sede em Loures – cf., artº. 86º, nº. 1, alín. a), do DL nº. 49/2014, de 27/03), no qual se apreciará:
- acerca do petitório accional deduzido sob as alíneas c) e d), no que concerne aos Réus MT…, MTG… e JA… ;
-  acerca do pedido reconvencional admitido ;
2. considerar, no demais, improcedente a pretensão recursória deduzida.
Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas do presente recurso serão suportadas, por Apelante e Apelados, respectivamente, na proporção de 2/3 e 1/3.
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Lisboa, 19 de Dezembro de 2019
Arlindo Crua
António Moreira
Carlos Gabriel Castelo Branco
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[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 461.
[3] Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2017, 2ª Edição Revista e Atualizada, pág. 173 e 174.
[4] Cf., Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, pág. 225 a 227.
[5] Direito da Insolvência, 8ª Edição, Almedina, Junho de 2018, pág. 185 e 186.
[6] Acerca dos interesses a ponderar pelo administrador da insolvência, aquando da opção pela execução ou recusa de cumprimento, cf., o douto Acórdão da RG de 14/12/2010 – Relator: Manso Raínho, Processo nº. 6132/08.0TBBRG, in www.dgsi.pt .
[7] Cf., Catarina Serra, ob. cit., pág. 234 e 235.
[8] A mesma Autora – idem, pág. 240 - efectua juízo crítico relativamente à interpretação sustentada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº. 4/2014, de 20/03/2014 relativamente a este nº. 1, do artº. 106º, do CIRE.
Considera que tal Acórdão veio sustentar duas coisas: “em primeiro lugar, que no caso de o promitente-comprador ser um profissional, a eficácia real da promessa e a tradição da coisa funcionam como requisitos cumulativos da aplicação da norma ; em segundo lugar, que no caso de o promitente-comprador ser um consumidor, a eficácia real da promessa e a tradição da coisa funcionam como requisitos alternativos da aplicação da norma. O administrador da insolvência não poderia, assim, recusar o cumprimento de nenhum contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional desde que tivesse havido tradição da coisa objecto do contrato-prometido”.
No caso concreto, não possuindo a Autora a natureza de consumidora, tal distinção mostra-se inócua, sendo indubitável, para o funcionamento do nº. 1, do artº. 106º, a exigência da cumulativa verificação dos dois requisitos.
[9] Acerca da aplicabilidade do princípio geral previsto no nº. 1, do artº. 102º, nos casos em que o contrato-promessa de compra e venda tem eficácia meramente obrigacional, cf., o douto aresto da RP de 11/10/2011, Relator: Henrique Araújo, Processo nº. 92/05.6TYVNG-M.P1, in www.dgsi.pt .
[10] Cf., Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., pág. 184 e 185.
[11] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., pág. 194, defende, diferenciadamente, que o contrato-promessa com eficácia real não deverá ser afectado pela insolvência, “independentemente de o bem se encontrar ou não na sua posse”. E, reiterando por uma “interpretação correctiva desta disposição”, acrescenta que “já o contrato-promessa sem eficácia real não poderia ser objecto de recusa do cumprimento se o beneficiário tiver obtido a tradição da coisa, sendo esta a hipótese contemplada no art. 106º, nº. 1”, abrangendo o nº. 2 “apenas as situações em que ainda não ocorreu a entrega da coisa ao promitente-comprador, caso em que pode haver recusa de cumprimento (..)”. 
[12] A recusa do cumprimento por parte do administrador da insolvência não exige declaração expressa, antes sendo aplicável o prescrito nos artigos 217º e 218º, do Código Civil – cf., Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 461 -, bastando-se, assim, com uma declaração negocial tácita, ou seja, “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade a revelam”.
Nas palavras de Catarina Serra - ob. cit., pág. 227, nota 328 -, não se exigindo forma expressa ou especial para a declaração do administrador da insolvência, “deve entender-se que se aplicam os princípios da liberdade declarativa do art. 217º do CC e da liberdade de forma do art. 219º do CC. Assim, se for possível retirar de actos praticados pelo administrador (ou do comportamento por ele adoptado) que a opção foi no sentido da recusa de cumprimento (como acontece, por exemplo, quando o administrador inclui um crédito resultante do não cumprimento de um negócio em curso na lista de créditos reconhecidos sem o subordinar a condição), deve ter-se a recusa por declarada”.
[13] Traduzindo recusa tácita de cumprimento a inclusão na lista de créditos reconhecidos do crédito resultante do não cumprimento, cf.,, o douto aresto da RP de 11/10/2011, Relator: Henrique Araújo, Processo nº. 92/05.6TYVNG-M.P1, in www.dgsi.pt . (já supra citado).
[14] Ob. cit., pág. 236, 237 (nota 341) e 238.
[15] Idem, pág. 240 e 241.
[16] Reclamando uma interpretação restritiva do artº. 106º, nº. 2, de forma a considerar-se que apenas se aplica às promessas não sinalizadas, devendo-se aplicar às sinalizadas a disciplina do nº. 2, do artº. 442º, do Cód. Civil, cf., o douto Acórdão do STJ de 13/11/2014 – Relator: Fernandes do Vale, Processo nº. 1980/11.6T2AVR-B.C1.S1, in www.dgsi.pt .
[17] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., pág. 186 e 250.
[18] Em idêntico sentido, refere Alexandre de Soveral Martins - ob. cit., pág. 337 – poder o insolvente ser “contitular de bens ou ter direitos a bens indivisos relativamente aos quais se verifica o direito de restituição ou separação. Em casos desses, compreende-se que não possa ter lugar no processo da insolvência a liquidação dos bens referidos. Daí que o art. 159º estabeleça que naquelas situações «só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens»”.
[19] Ob. cit., pág. 547.
[20] Cf., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019 Reimpressão, pág. 128 e 129.
[21] Cf., José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 229 e 230.
[22] Cf., Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, 2014, 2ª Edição, Almedina, pág. 125.