Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1913/18.9T8PDL.L1.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA EXECUTIVA
VENDA POR PROPOSTA EM CARTA FECHADA
DIREITO LEGAL DE PREFERÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Na venda executiva insolvencial - venda forçada em processo de liquidação universal -, optando o Administrador da Insolvência pelas modalidades de propostas em carta fechada (mas também aplicável à adjudicação ao exequente, por força do prescrito no artº. 802º, do CPC e à venda em leilão electrónico, conforme decorre do artº. 8º, nº. 10, do Despacho nº. 12624/15), a transmissão da propriedade da coisa objecto de venda executiva só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, ou seja, apenas se concretiza depois do depósito do preço e da adjudicação, com consequente passagem do título de transmissão ;
II – tal título de transmissão vale como real e concreto título aquisitivo, servindo de veículo para que o adquirente fique investido na propriedade do bem objecto de venda;
III – recaindo a opção do Administrador da Insolvência pela modalidade de venda por negociação particular, a propriedade da coisa só se transmite com a outorga do instrumento de venda, sendo que este é apenas lavrado depois do preço ter sido depositado pelo comprador (cf., o nº. 4, do artº. 833º, do Cód. de Processo Civil), e desde que se mostrem satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão;
IV – tendo o Administrador da Insolvência optado, nos termos do nº. 1, do artº. 164º, do CIRE, por aquela modalidade de venda por negociação particular, na qual introduziu ou adoptou mecanismo previsto para a modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, designando dia e hora para a abertura de propostas, e caso se concluísse no sentido de, à data da abertura das propostas, já estar constituído, na esfera jurídica da Autora, o direito legal de preferência decorrente da sua posição de arrendatária do imóvel alienado, deveria observar-se o iter prescrito nos artigos 819º e 823º, ambos do Cód. de Processo Civil – cf., artº. 165º, do CIRE -, traduzido no poder-dever de notificação do preferente (dia, hora e local aprazados para a abertura de propostas), com o ónus de exercício do direito, sob pena da sua perda, nas referenciadas condições do artº. 823º ;
V – caso contrário, ou seja, não se tendo ainda constituído, naquela data, na titularidade da Autora o reivindicado direito legal de preferência – cf., artº. 1091º, nº. 1, alín. a), do Cód. Civil -, tal notificação não teria que ser efectivada ;
VI – todavia, tendo-se constituído este direito legal de preferência, na titularidade da Autora, no interlúdio entre a data designada para a abertura das propostas e a data da outorga da escritura pública de compra e venda (data da efectiva transmissão do direito de propriedade), por se ter entretanto completado prazo superior a três anos de vigência do arrendamento, que figurava como condição de existência daquele direito potestativo, urge concluir pela admissibilidade e reconhecimento no exercitar de tal direito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I – RELATÓRIO
1FARMÁCIA de VP ... , SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., com sede na Rua ..., nº. xx, São Sebastião, Ponta Delgada, instaurou acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra:
- MASSA INSOLVENTE da sociedade WP ..., LDA., representada pelo Administrador Judicial Dr. FJ… ;
- LM… e mulher ME…, residentes na Rua …, nº. …, Ribeira Grande,
deduzindo o seguinte petitório:
a) Condenar-se os Réus (alienante e adquirente) a reconhecer à Autora o direito de preferência na aquisição do prédio identificado supra (i.e., na compra e venda formalizada por escritura pública de 20 de Outubro de 2017, outorgada no Cartório Notarial do Dr. JC…, do prédio urbano, em regime de propriedade total, composto pela Casa Alta destinada a Comércio, sito na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, na Rua …, n.ºs … -…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número …/…, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, substituindo-o na mesma compra e venda, ao Réu comprador, nela passando a ocupar a posição deste);
b) Condenar-se os Réus a entregar imediatamente o prédio melhor identificado supra à Autora, assim se reconhecendo e declarando, com efeitos ex tunc, o direito exclusivo de propriedade daquela sobre este, mais se autorizando o cancelamento de quaisquer inscrições registrais incompatíveis com tal decisão, com todas as legais consequências”.
Alegou, em súmula, o seguinte:
- Em 01.08.2014, a Autora celebrou com a sociedade WP ..., LDA., um contrato de arrendamento comercial, destinado à exploração de um estabelecimento comercial de farmácia, detido pela aqui Autora ;
- tendo esta, na qualidade de arrendatária, explorado o referido negócio no identificado locado, de forma ininterrupta e pública, desde essa data até ao presente (o contrato mantém-se vigente) ;
- sendo tal contrato referente ao prédio urbano, em regime de propriedade total, composto pela Casa Alta destinada a Comércio, sito na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, na Rua …, n.ºs …-…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número …/…, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo … ;
- em inícios do mês de Novembro de 2017, a Autora tomou conhecimento de que o referido prédio havia sido alienado no âmbito do processo de insolvência (entretanto decretada) da sociedade proprietária/senhoria ;
- porquanto o Réu LB… estabeleceu contacto informal a comunicar que a renda devia ser, doravante, paga a si, agora na qualidade de novo senhorio, por força da mencionada aquisição pretensamente ocorrida em processo de liquidação da insolvente ;
- e, em Fevereiro de 2018, e por força de uma notificação judicial avulsa, que correu termos sob o processo n.º …/… (Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Local Cível de Ponta Delgada – Juiz …), a Autora tomou conhecimento da pretensão do Réu LB…, que através daquele mecanismo, veio denunciar o contrato de arrendamento entre as partes, pelo que este cessará a sua vigência em 31.07.2018 ;
- Nessa mesma data, a Autora tomou igualmente conhecimento do preço da mencionada aquisição (€295.000,00), fazendo fé no teor do declarado na escritura de compra e venda lavrada no Cartório Notarial do Dr. JC…, celebrada em 20.10.2017 ;
- Ou seja, em inícios de Fevereiro de 2018, a Autora toma conhecimento de que o prédio de que é arrendatária, desde 01.08.2014, foi objecto de alienação ao Réu LB…, em 20.10.2017, e pelo preço de €295.000,00, naquela data pretensamente liquidados ;
- A Autora nunca foi notificada, designadamente, pelo Sr. Administrador Judicial, na qualidade de representante da massa insolvente [proprietária do locado], nos termos e para os efeitos concretos do exercício do seu direito de preferência, de origem ou matriz legal, quanto à referida aquisição ;
- O que se imporia em face da antiguidade do contrato de arrendamento e seu integral conhecimento por aquele, ao que acresce, a sua própria subsistência na data da transmissão operada a favor do Réu adquirente.
Juntou vários documentos, tendo a acção sido proposta em 30/07/2018.
2 – Citados os Réus, vieram apresentar contestação, fazendo-o os Réus LM… e mulher ME…, em resumo, nos seguintes termos:
- por impugnação, aduzindo que em 28/07/2017, à data da abertura das propostas, a Autora não era sequer titular do direito de preferência de que se arroga, de origem legal, pois o contrato de arrendamento ainda não tinha completado 3 anos ;
- por excepção, atenta a caducidade do alegado direito de preferência, pois, à data da propositura da acção (30/07/2018), já havia decorrido prazo superior ao legalmente previsto para o exercício daquele direito ;
- da existência de efectiva renúncia do exercício do mesmo direito por parte da Autora, traduzida no seu comportamento de reconhecimento dos Réus contestantes como legítimos proprietários do imóvel em causa ;
- de efectivo abuso de direito da Autora, na modalidade de venire contra factum proprium, no exercício daquele direito, em contradição com o anterior comportamento de reconhecimento dos Réus como legítimos donos do imóvel.
Concluem, no sentido da “presente acção ser julgada improcedente, por não provada, e procedentes, por provadas as excepções alegadas pelos RR. e ainda que assim se não entenda, seja declarado e decretado pelo Tribunal que a Autora excede os limites impostos pela boa fé, em manifesto abuso de direito, devendo, pois, o R. ser absolvido do pedido formulado, com todas as consequências legais”.
3 – Veio igualmente contestar a Ré Massa Insolvente de WP ... , Lda., fazendo-o, em súmula, nos seguintes termos:
- por excepção, invocando a inadmissibilidade do recurso à acção de preferência, pois a Autora foi expressamente notificada para o exercício de tal direito e tinha-o de exercer no próprio acto de abertura das propostas, nos termos do artº. 819º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, o que não fez ;
- pelo que perdeu tal direito, não podendo assim prevalecer-se do disposto no nº. 4. do artº. 819º. do Cód. de Processo Civil, não podendo propor a presente acção de preferência ;
- Por excepção, invocando a caducidade do direito de agir, pois o prazo de 6 meses previsto no artº. 1410º, do Cód. Civil, terá tido, no seu limite, o seu termo inicial em 06/11/2017, expirando em 06/05/2018, pelo que à data da propositura da acção já havia caducado o direito de agir da Autora ;
- por impugnação, referenciando terem sido cumpridos pelo Administrador da Insolvência todos os trâmites legais atinentes ao cabal exercício do direito de preferência por parte da Autora, que o não exerceu no tempo e local devidos.
Conclui, no sentido de:
a) Ser julgada totalmente procedente a matéria de excepção relativa à inadmissibilidade de recurso à presente acção de preferência por parte da A., ao abrigo do disposto nos artigos 165º do CIRE e 819º, n.º 1, do CPC;
b) Quando assim se não entenda, ser julgada totalmente procedente a matéria de excepção relativa à caducidade do direito de agir da A., por decurso do prazo de 6 meses previsto no artigo 1410º do Código Civil;
c) Quando assim se não entenda, ser a acção julgada improcedente, por não provada;
em qualquer dos casos se absolvendo a Ré dos pedidos formulados pela A”.
4 – No exercício do contraditório, veio a Autora, a fls. 80 a 83, responder às contestações, pugnando no sentido das mesmas serem julgadas intempestivas e, subsidiariamente, caso assim não se entenda, improcedentes as excepções arguidas.
5 – Conforme despacho de fls. 85, foram consideradas tempestivas as contestações apresentadas, e designada data para a realização de audiência prévia, considerando-se a possibilidade de conhecer, no imediato, acerca das excepções peremptórias invocadas pelos Réus.
6 – Procedeu-se à realização da audiência prévia, na qual se proferiu saneador stricto sensu, fixou-se o valor da causa e determinou-se a suspensão da instância, por 10 dias, mediante requerimento das partes, com vista a lograrem obtenção de acordo (cf., acta de fls. 86 e 87).
7 – Findo tal prazo, sem que se lograsse obter transacção, em 28/02/2019, foi proferido saneador - sentença – cf., fls. 88 a 91 -, traduzindo-se o Dispositivo nos seguintes termos:
Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente por não provada e, consequentemente, absolvo os Réus Massa Insolvente da Sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda. e LM… e ME… do pedido deduzido nos autos pela Autora Farmácia de Venília Margarida da Costa Ponte, Sociedade Unipessoal, Lda.
Custas a cargo da Autora.
*
Registe e notifique”.
8 – Inconformada com o decidido, a Autora interpôs recurso de apelação, por referência à sentença prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
A. O presente recurso é interposto da douta Sentença proferida em 28.02.2019, a qual julgou a acção improcedente, estribando-se na seguinte fundamentação “(…) Assim sendo e em suma: à data do início do procedimento de venda coerciva inexistia o direito de que a Autora se arroga, em razão do que não pôde (em 28.07.2018), nem pode agora, lançar mão da preferência”.
B. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a aqui Recorrente não se pode conformar com tal entendimento, sendo que, e essa é a sua forte convicção, existe erro de julgamento, uma vez que o momento relevante para aferição da existência da preferência (de origem legal) da Autora (na qualidade de arrendatária do prédio transmitido em processo insolvencial) e do respetivo direito não se reporta ao ato de abertura das propostas (28.07.2017), mas sim ao momento da (efetiva) transmissão do imóvel, caso aquele tenha nascido entre a primeira e segunda datas.
C. Da mesma forma que se entende que o ato de abertura das propostas (realizado em 28.07.2017), que nem sequer coincide com o ato de adjudicação do bem imobiliário, decisão proferida muito posteriormente àquela data, não constitui, per si, como é bom de ver, um ato da venda, como refere a douta Sentença.
D. Sendo neste sentido, um ato preparatório e inserido numa tramitação complexa de alienação, a qual apenas culmina (e se aperfeiçoa e realiza, como é óbvio) com a adjudicação e transmissão do bem no âmbito da venda insolvencial;
E. Até porque o ato de abertura de propostas pode inclusivamente não configurar a apresentação de nenhuma futura proposta vinculativa de aquisição, ou pode até não incorporar a apresentação de qualquer proposta sequer,
F. Sendo que em qualquer dos casos, o ato de abertura de propostas apenas inicia a fase de apresentação de intenções de compra por terceiros, que são isso mesmo, meras propostas ou declarações de vontade de futura aquisição, sem que estejam ainda, naturalmente, verificados todos os pressupostos para a atribuição do bem àquele proponente/interessado, e desde logo porquanto, inter alia, o preço não se encontra pago na sua totalidade, condição necessária para a transmissão insolvencial,
G. Ao ter erigido, única e exclusivamente, a data de realização do ato de abertura de propostas como momento de aferição final e definitiva da existência do direito de preferência, ignorando que tal direito já existia na esfera jurídica da Autora, quer à data da adjudicação, quer à data da transmissão do bem imobiliário, a douta Sentença incorreu em erro de julgamento, pelo que não se poderá manter como válida na ordem jurídica.
H. Aliás, note-se ainda neste conspecto que os Réus (massa insolvente e terceiros adquirentes) nem sequer lograram alegar e demonstrar quando ocorreu o pagamento integral do preço do imóvel, para efeitos da sua consequente adjudicação, verificados os demais pressupostos legais, facto que a Autora desconhece e o Tribunal a quo não cuidou de elencar na matéria provada/não provada,
I. Assim como se desconhece igualmente quando foi emitido o título de transmissão e demais formalidades prescritas na lei.
J. Sucede que a lei não podia ser mais eloquente no que respeita a este tema, não deixando assim margem para dúvidas interpretativas – ao ato de abertura de propostas não pode ser atribuída uma função e um valor jurídico que a lei manifestamente não lhe empresta ou associa.
K. O ato de abertura de propostas apenas materializa uma fase procedimental da liquidação do património integrante da massa insolvente (o qual pode até nem configurar qualquer procedimento de venda futura – basta pensar no exemplo de não haver propostas ou forem todas de valor abaixo do limiar legal), através do qual interessados apresentam propostas de aquisição, elas próprias sujeitas ao cumprimento posterior dos demais requisitos na lei (como por exemplo o pagamento dos encargos/obrigações tributárias), entre os quais avulta (mas não só) o sequente pagamento integral do preço – neste sentido milita o prescrito no artigo 827.º do CC.
L. Ou seja, e como é bom de ver, antes de emitido o título de transmissão e celebrado o negócio translativo (escritura de adjudicação ao proponente), depois de pago o preço e satisfeitas as obrigações tributárias inerentes à venda, e demais pressupostos e formalismos legais, o bem integra o património jurídica da massa insolvente,
M. Sendo certo, igualmente, que só após o cumprimento daquelas formalidades ad substanciam se opera a transmissão a favor do terceiro, donde a existência de um direito de preferência (de origem legal), previamente à data da efetiva transmissão, tem de ser devidamente acautelado, sendo oponível àquela,
N. A abertura de propostas é assim, inelutavelmente, um mero ato preparatório ou interlocutório, e dúvidas não restam sobre tal conclusão, também pela interpretação teleológica do disposto no artigo 824.º do CPC.
O. Aliás, basta pensar na hipótese de não ocorrer o pagamento remanescente do preço a cargo do proponente, o que determina que a venda fique, inescapavelmente, sem efeito, tal como preconizado no artigo 825.º do CPC.
P. Com efeito, entendem os tribunais superiores, bem como a mais iluminada doutrina, que a transmissão da propriedade para o comprador proponente apenas se concretiza depois do depósito do preço e da adjudicação (ou com a emissão do título).
Q. Destarte, haverá que concluir que o ato de abertura de propostas é meramente propedêutico, instrumental e condicional de um futuro (e incerto, porque eventual) acto transmissivo, donde a existência e o reconhecimento de um direito de preferência de origem legal (na venda judicial) devem ser aferidos por referência àquele momento temporal, até porque antes não sabemos se ocorrerá a venda propriamente dita, acto que faz nascer o direito de preferência e autoriza o seu exercício (daquele totalmente dependente e conexo).
R. Pois que até sem venda (ou transmissão do direito de propriedade) não há lugar à preferência na aquisição, faculdade indesligável de tal circunstância factual.
S. Destarte, existindo já um direito de preferência legal em momento (bem) prévio à consumação dos efeitos prototípicos da venda «judicial» (ou seja, no interregno decorrido até à adjudicação e emissão do título, cumpridas as devidas formalidades prescritas na lei e requisitos ali enunciados), e com ela da transmissão, o mesmo é oponível àquele ato de alienação, e exercitável segundo as regras contidas no artigo 1410.º do CC.
T. Até porque quaisquer faculdades e poderes do proponente-adjudicatário só são exercitáveis, como é lógico, após a aquisição do respetivo direito de propriedade, facto que lhe advém da emissão do título de transmissão e sequente celebração adjudicatário (cfr. artigo 828.º do CPC), sendo que até lá a sua situação é de mera expetativa ou potencial direito.
U. Ora, da factualidade vertida nos autos resulta evidente que tal direito de preferência, de origem legal, nasceu na esfera jurídica da aqui Recorrente, em 02.08.2017, pois que nessa data se verificou e consumou integralmente o prazo ordenado pelo legislador para a atribuição desse direito de natureza real.
V. Sucedendo, porém, que a alienação, operada nos autos de insolvência (liquidação) – processo n.º …/…T8PDL – Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Central Cível e Criminal – Juiz …, apenas ocorreu em 20.10.2017,
W. Mister é concluir-se que, à data da transmissão (20.10.2017), à Recorrente assistia o exercício irrestrito do direito de preferência legal na referida aquisição insolvencial, aliás, direito exercitável após 02.08.2017 doravante, sendo assim oponível ao ato translativo de propriedade, assim como oponível aos anteriores actos de adjudicação e emissão do título de transmissão.
X. Ademais é preciso enfatizar que “o direito legal de preferência constitui-se como direito potestativo, com eficácia real, enquanto fundado em razões de interesse e ordem pública”.
Y. Assim é forçoso inferir que lhe assiste a faculdade de preferir naquela aquisição em detrimento do licitante/proponente, sem que tal comprometa uma equilibrada e satisfatória equação de direitos entre as partes envolvidas,
Z. Exactamente porquanto a lei quer, em primeiro lugar, privilegiar quem está mais intensamente conectado com o bem, e até dependente do seu destino económico (no caso de bem imóvel o arrendatário que usufrui daquele), assim lhe conferindo especial tratamento quando comparado com terceiros, logo, destituídos de qualquer relação jurídica e material com aquele,
AA. Sem que tal preconize qualquer ofensa material aos seus (do proponente) direitos de aquisição de propriedade, dado que competem com outros que em igualdade de circunstâncias devem preferir, atenta a ligação «mais forte» ao bem objeto de transmissão coerciva.
BB. Ainda nesta sede convém sublinhar que a preferência legal (como por exemplo também o direito de remição), no âmbito de uma venda judicial, constitui-se no momento da venda ou da adjudicação dos bens, com os efeitos e correspondendo a um verdadeiro direito real de preferência.
CC. Destarte, assistindo à sociedade arrendatária um direito real de preferência, definitivamente consolidado na sua esfera jurídica em momento prévio à adjudicação do bem em venda judicial, àquela (venda) é inteiramente oponível, pelo que ao preferente está reservada a faculdade de, em detrimento do proponente, vir a adquirir o direito de propriedade.
DD. Ao ter decidido de forma divergente, erigindo o ato preparatório de abertura de propostas como momento temporal único e final de aferição de eventual preferente, a douta Sentença recorrida violou, inter alia, o disposto nos artigos 165.º do CIRE, 819.º, n.º 4, 827.º e 843.º, todos do CPC, pelo que dever ser revogada em conformidade”.
Conclui, no sentido da revogação da sentença, por erro de julgamento, com consequente tramitação da acção, com as legais consequências.
9 – Os Recorridos/Réus LM… e mulher ME… apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
“1- Sem quebra do devido respeito, que é muito, a recorrente não tem razão.
2-Antes de mais, porque, no dia 28-07-2017, data designada para a abertura das propostas (cfr. ponto 5. da matéria de facto assente) no âmbito de processo de venda por negociação particular, a recorrente, não era sequer titular do direito de preferência que se arroga relativamente ao imóvel identificado, tal como aliás muito bem notou a douta sentença recorrida,
3-sendo, depois, totalmente irrelevantes, para o efeito do exercício do direito de preferência relativo ao imóvel, quer a manutenção do contrato de arrendamento posteriormente a esse momento (28-07-2017) quer a (mera) formalização da venda por escritura pública, tudo ao contrário do que incorrectamente sustenta a recorrente.
4-No dia 28-07-2017, o imóvel em causa estava arrendado à Autora, ora recorrente, há 2 (dois) anos e 362 (trezentos e sessenta e dois) dias, ou seja, há menos de 3 (três) anos, pelo que, à data da abertura das propostas, da aceitação da proposta dos recorridos e da adjudicação do bem, tal direito de preferência, de origem legal, não existia sequer na esfera jurídica da Autora, ora recorrente, uma vez que até essa data não estava preenchido o pressuposto (interstício temporal) reclamado na lei.
5-Nesse dia 28-07-2017 realizou-se a venda do imóvel, no âmbito venda por negociação particular promovida pelo Sr. Administrador Judicial da Insolvência, por força da entrega da proposta pelos recorridos, contendo cheque para pagamento (parcial) do preço, da sua aceitação e da respectiva adjudicação
6-sendo, pois, irrelevante a manutenção do contrato de arrendamento depois desse momento nomeadamente para o efeito do preenchimento do prazo legal de 3 (três) anos em momento subsequente, por já (antes) ter sido feita a sua venda.
7-Parece resultar da leitura conjugada das normas em apreço (artigo 165º do CIRE e artigos 819º, nº 1, 820º, 823º e 824º do CPC, que a venda se concretiza com a abertura e aceitação da proposta, sendo os actos posteriores àquela actos de mera formalização que, caso não se concretizem, poderão levar a que a venda fique sem efeito.
8-Ora, não se pode dar sem efeito o que (antes) não existe, ou o que ainda não existe. (art. 825º, nº 1 alíneas a) e b), do CPC) sendo que, a venda deverá considerar-se realizada (ou concretizada) na data da diligência de abertura de propostas, seguida de adjudicação, sendo os actos subsequentes (neles se incluindo a escritura pública) uma mera formalização da venda já (antes) realizada, nos já termos referidos.
9-Aliás da própria escritura de 20.10.2017 decorre que o preço havia sido pago anteriormente, sendo essa (escritura) a mera formalização da venda anteriormente concretizada.
10-Por isso, muito bem esteve o Meritíssimo Juiz recorrido quando sustentou a fls… da douta sentença que: “… a venda judicial não equivale - nem pode ser vista nos mesmos moldes – [d]a venda particular em que o contrato, formado por vontade das partes, é integralmente realizado no acto da escritura pública, temporalmente circunscrito a esse momento” e ainda que “A venda judicial, ao invés, não se arrimando no estrito acordo de vontades entre o titular do bem e o proposto adquirente (mas tão só na vontade da parte compradora), consiste num itinerário, com um principio, meio e fim relativamente prolongado no tempo, com referência à prática dos actos que necessariamente a integram (no caso: proposta, adjudicação, depósito do preço, cumprimento das obrigações fiscais e, por fim, realização da escritura pública)”.
11-De outro modo, seria possível uma solução concreta verdadeiramente absurda, decorrente de interpretação legal também absurda, que seria a de permitir que formulada a proposta, adjudicado o bem, depositado o preço e cumpridas as obrigações fiscais, fosse, ainda assim, concedido o exercício de (eventual) direito de preferência relativo a bem imóvel vendido por negociação particular objecto de arrendamento cujo prazo de 3 (três) anos se concluísse posteriormente à venda, até eventualmemte no dia anterior à realização da escritura, com a total frustração da boa fé do comprador e a violação do mais básico princípio da protecção da confiança e da boa fé negocial, tornando inútil todo o processo de venda por negociação particular realizado nesse moldes, ainda que, com o rigoroso cumprimento de todo o formalismo previsto na lei.
12- É, pois, exactamente por isso que, a lei, reportando-se sempre ao momento da venda por entrega de propostas, refere claramente que: “Os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma for aceite.” (art. 819º, nº 1, do CPC) (negrito nosso)
13-Decorre inequivocamente da leitura conjugada dos artigos 165º do CIRE e 819º, 823º e 824º, do CPC, que apenas os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens devem ser notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, pressupondo obviamente o legislador que os notificandos sejam efectivamente titulares de tal direito (de preferência) à data aprazada para a abertura das propostas. (cfr. artigo 819º, nº 1, do CPC.)
14-Por outro lado, sendo a norma em apreço (artigo 819º, do CPC), norma especial para a venda (executiva), tal significa que, do ponto de vista do legislador, são irrelevantes os direitos eventualmente constituídos após o “…dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas”, sendo apenas relevantes, desse ponto de vista, os direitos (de preferência) já constituídos nesse momento, à data da abertura das propostas.
15-Em suma, determinante, nos termos do artigo 819º, nº 1, do CPC, será o momento da abertura das propostas bem como da aceitação da melhor delas e respectiva adjudicação do bem vendido, e não a data da mera formalização da transmissão pela escritura.
Concluem, no sentido da total improcedência do recurso.
10 – O recurso foi admitido por despacho de fls. 112, como apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo.
11 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do interposto recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento, fundamentalmente, da eventual existência de erro de julgamento na decisão apelada. O que implica o conhecimento da seguinte questão:
- aferir se à Autora, ora Recorrente, deveria ter sido reconhecido o direito de preferência, na sua alegada qualidade de arrendatária, na alienação do imóvel, pelo Administrador da Insolvência da senhoria sociedade, entretanto declarada insolvente ;
- o que implica, determinar acerca do momento relevante para aferição da existência da preferência – de origem legal – da Autora – na qualidade de arrendatária do prédio transmitido em processo insolvencial – e do respectivo direito.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida, foi considerado como PROVADO o seguinte:
1. Por escrito particular intitulado por “CONTRATO DE ARRENDAMENTO”, de 01.08.2014, a Autora tomou de arrendamento comercial à sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda., que, por seu turno, deu de arrendamento, destinado à exploração de um estabelecimento comercial de farmácia, o prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, na Rua …, nºs …-…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número …/…, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …º (docs. A fls. 7-8, 9-9v. e 10v.-11) ;
2. O prédio foi alienado no âmbito do processo de insolvência (entretanto decretada) da sociedade proprietária/ senhoria, pela Primeira Ré aos Segundos Réus, pelo preço de € 295.000,00, conforme escritura de 20.10.2017 (doc. a fls. 17v-19);
3. Nessa data subsistia o contrato de arrendamento comercial;
4. Após 01.08.2017 a Autora não foi notificada para efeitos de exercício do direito de preferência na alienação referida no ponto 2.;
5. O Senhor Administrador da Insolvência optou pela modalidade de venda de negociação particular, tendo designado data e local para a abertura de propostas, a saber, o dia 28.07.2018, às 10h., na sala “Polivalente do Tribunal de Ponta Delgada”, do que a Autora foi notificada (doc. a fls. 45)
6. A proposta dos Segundos Réus, apresentada antes da diligência referida no ponto 5., veio a ser aceite e adjudicada pelo Senhor Administrador da Insolvência (doc. a fls. 47v.).
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS
Aduz a Autora Apelante ter a decisão recorrida incorrido em erro de julgamento, defendendo que o momento relevante para aferição da existência da preferência – de origem legal -, de que se arroga titular – na qualidade de arrendatária do prédio transmitido em processo insolvencial – e do respectivo direito, não se reporta ao acto de abertura das propostas (datado de 28/07/2017), mas sim ao momento da (efectiva) transmissão do imóvel.
O saneador sentença apelado raciocinou nos seguintes termos:
- A vexata quaestio reconduz-se em saber quando se considera realizada a venda, para efeitos do momento próprio para a sua comunicação aos preferentes e, sendo esse o caso, o exercício do direito de preferência ;
- Considera ter sido escolhida a modalidade de venda por negociação particular – artº. 811º, nº. 1, alín. d), do Cód. de Processo Civil -, sendo que a venda coerciva, inscrita num processo judicial em que foi deliberada a liquidação do activo, tem a natureza de uma venda judicial – artº. 158º, nº. 1, do CIRE ;
- Desta forma, sendo uma venda por negociação particular, em que foi fixada uma data para a apresentação de propostas, só haveria lugar ao cumprimento do disposto no artº. 819º, do Cód. de Processo Civil (notificação dos preferentes), para efeitos do disposto no artº. 823º, do mesmo diploma (exercício do direito de preferência), aplicável a esta modalidade de venda ex vi do nº. 2, do artº. 811º, por remissão do artº. 165º, nº. 1, do CIRE, se à data houvessem preferentes (titulares desse direito) ;
- Tendo sido apresentada e adjudicada uma proposta, sem que, à data, a Autora pudesse preferir (pois não era titular do direito), os demais trâmites foram tendentes à efectivação da liquidação, num processo dinâmico, iniciado naquela diligência ;
- Aduz e explicita que a venda judicial não equivale a venda particular, em que o contrato, formado por vontade das partes, é integralmente realizado no acto da escritura pública, temporalmente circunscrito a esse momento ;
- Pois consiste num itinerário, com um princípio, meio e fim, relativamente prolongado no tempo, consubstanciado na prática de actos que necessariamente a integram: proposta, adjudicação, depósito do preço, cumprimento das obrigações fiscais e, por fim, outorga na escritura pública ;
- Considera que a apresentação e a adjudicação (da proposta) não são meros actos preparatórios ou exógenos ao processo de venda coerciva, mas antes actos integrantes desta ;
- Pelo que a Autora não pode pretender exercer um direito que não lhe assistia no momento do início da venda coerciva, donde não pôde, nem pode, lançar mão da preferência.
Vejamos.
Prevendo acerca das modalidades de alienação dos bens apreendidos para a massa insolvente, prescreve o artº. 164º, nº. 1, do CIRE, que “o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente”.
Prescreve o normativo seguinte – 165º -, ajuizando acerca dos credores garantidos e preferentes, que “aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo”.
Referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [2], em anotação a este normativo, que “diferentemente do que acontece com relação aos credores garantidos, a quem a lei atribui um benefício particular no caso de aquisição de bens da massa, as especificidades do regime quanto aos titulares do direito de preferência consignadas em sede de processo executivo comum criam-lhe uma situação mais gravosa do que sucederia em caso de omissão.
Na verdade, ao contrário do que à primeira vista poderá parecer, do que se trata é de, relativamente à modalidade da venda por propostas em carta fechada, construir um mecanismo que obriga o preferente ao exercício do seu direito logo que toma conhecimento do preço oferecido pela proposta vencedora, declinando-se no regime que resultaria, para a preferência negocial, do artº. 416º, nº. 2, do C. Civ, e para a preferência legal, das disposições específicas de cada caso (cfr. os art.ºs 819º, nº. 1, e 823º, do C. P. Civ.).
(…)
Nas demais modalidades não estão, por agora, fixadas peculiaridades, pelo que se seguem as regras gerais.
Concretizando o significado do artigo em anotação no que respeita ao regime aplicável aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, cremos que está, precisamente, em causa o poder-dever de os notificar antecipadamente do dia, hora e local aprazados para a venda, com o consequente ónus do exercício do direito nas condições do art. 823º do C.P. Civ., sob pena da respectiva perda.
Restará dizer que, tendo em conta a regra do nº. 1 do art.º 164º do CIRE, é de entender aplicável este regime sempre que efectivamente se recorra à venda por propostas em carta fechada, mesmo que sem respeito da disciplina típica dos art.ºs 819º e 820º do C.P. Civ.” (sublinhado nosso).
Prevendo acerca da regra geral do direito de preferência no arrendamento de prédios urbanos, estatui a alínea a), do nº. 1, do artº. 1091º, do Cód. Civil (na redacção vigente à data e, aqui aplicável, decorrente da Lei nº. 6/2006, de 27/02), que “o arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos”
.
Considere-se, ainda, em termos de enquadramento jurídico, o prescrito nos artigos 819º, nº. 1 e 823º, ambos do Cód. de Processo Civil, acerca da notificação dos preferentes e exercício do direito de preferência.
Estatui o primeiro que “os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, se alguma proposta for aceite”, acrescentando o demais que:
“1 - Aceite alguma proposta, são interpelados os titulares do direito de preferência presentes para que declarem se querem exercer o seu direito.
2 - Apresentando-se a preferir mais de uma pessoa com igual direito, abre-se licitação entre elas, sendo aceite o lance de maior valor.
3 - Aplica-se ao preferente, devidamente adaptado, o disposto no n.º 1 do artigo seguinte”.
Estas normas, previstas para a modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, são, todavia, aplicáveis a todas as demais modalidades, com excepção da venda directa, conforme prescrito na 2ª parte, do nº. 2, do artº. 811º, do Cód. de Processo Civil.
Pondere-se, ainda, o previsto no artº. 827º., do mesmo diploma, acerca da adjudicação e registo, igualmente equacionada em sede da modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, mas aplicável, no que concerne ao seu nº. 2, às demais modalidades de venda – cf., o prescrito na 1ª parte, do nº. 2, do citado artº. 811º.
Dispõe-se que:
“1 - Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.
2 - Seguidamente, o agente de execução comunica a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil”.
Referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [3]que “a procedência da ação de preferência tem os efeitos consignados no art. 839º, nº. 2, existindo uma sub-rogação do preferente ao terceiro adquirente”.
O tempo e modo de exercício “do direito de preferência variam consoante a modalidade da venda. Assim, na venda por propostas em carta fechada, por leilão e na adjudicação (art. 801º, nº. 1), o preferente é interpelado de imediato e presencialmente para exercer o seu direito (…). Tratando-se de venda por negociação particular, o preferente tem de ser notificado dos termos do projecto de venda definido com o terceiro, podendo exercer tal direito no prazo de 8 dias (art. 416º, nº. 2 (…))”.
Assim, naquelas modalidades, e de acordo com os ditâmes do transcrito artº. 823º, “sendo aceite alguma proposta, devem ser interpelados os titulares do direito de preferência presentes ma diligência de abertura das propostas para que declarem se pretendem exercer o seu direito[4]. Titulares que, nos termos expostos, já devem ter sido previamente notificados do dia e hora em causa, de forma a poderem exercer o seu direito no próprio acto, na eventualidade de alguma proposta ser aceite.
Equacionado para a modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, decorre do transcrito nº. 1, do artº. 827º, que, pago o preço da sua integralidade e demonstrado o cumprimento das obrigações fiscais exigidas pelo acto transmissivo (ou a dispensa destas), “o agente de execução adjudica os bens ao adquirente sem necessidade de despacho judicial. A adjudicação formaliza-se pela emissão do título de transmissão a favor do adquirente, com as menções do nº. 1, e a concomitante entrega dos bens[5].
Todavia, quando é que se aperfeiçoa a venda executiva ? Ou seja, na venda executiva, quando é que se pode afirmar que ocorre a efectiva transmissão da propriedade ?
A venda executiva distingue-se “do contrato de compra e venda, atenta a particularidade fundamental de a venda executiva prescindir da vontade do vendedor”.
Assim, enquanto na venda voluntária “existe um encontro de vontades, na venda executiva assiste-se ao encontro de uma única vontade negocial (a do comprador) com uma disposição coativa, através da qual a venda é efectuada independentemente do livre poder de disposição do titular do direito[6].
Reconhecendo a existência de controvérsia quanto à definição do momento em que se aperfeiçoa a venda executiva, e após citar vários entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [7] urgir “notar que a venda executiva integra uma sucessão de atos, afigurando-se como mais correcta a posição que defende que a venda se aperfeiçoa com a emissão do título de transmissão, nos casos da venda por propostas em carta fechada e em leilão electrónico (…). Nas demais modalidades de venda, o momento translativo corresponde ao da entrega dos bens ou da assinatura do título que documenta a venda (art. 843º, nº. 1, al. b)” (sublinhado nosso).
Particularizando algum do entendimento doutrinário, defende José Lebre de Freitas [8] que o “preço da venda é depositado pelo proponente aceite ou pelo preferente, deduzido o valor do cheque que haja entregue, à ordem do agente de execução ou, na sua falta, da secretaria, dentro de 15 dias (art. 824-2), com o que a venda se aperfeiçoa, produzindo os seus efeitos (…), mas podendo o agente de execução, se o depósito não for feito, determinar que a venda fique «sem efeito» (art. 825-1, alíneas a) e b)), em vez de exigir o cumprimento forçado (art. 825-1-c)”.
Considera, assim, que a legal expressão contida na parte final do nº. 1, do artº. 827º - data em que os bens foram adjudicados -, corresponde à do “depósito do preço, ainda que o título da transmissão só seja emitido após o pagamento da sisa, que pode ter lugar posteriormente (…). Só com a adjudicação termina o processo da venda, não sendo o depósito uma mera condicio juris, que se limite (extrinsecamente) a condicionar a eficácia da venda (…), mas um elemento constitutivo da venda executiva por propostas em carta fechada ; dar a venda sem efeito mais não é do que verificar que ela não se chegou a aperfeiçoar, extinguindo os efeitos do contrato preliminar (constituído por proposta e aceitação) que a precede (…)”.
Em sede jurisprudencial a enunciada controvérsia decompõe-se, salvo lapso de constatação, em três diferenciadas posições, que procuraremos enunciar mediante a citação de três distintos arestos das Relações.
Assim, o douto Acórdão desta Relação de 28/04/2015 [9] defende que “a venda em execução reveste a natureza de um negócio jurídico que se realiza com a aceitação de determinada proposta, ficando, contudo, o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o artº 887º nºs. 1 e 2 do anterior Código de Processo Civil (actual artº 815º), ou atestada a dispensa dos mesmos, comprovado cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais inerentes à transmissão, assim como garantido o pagamento das custas prováveis do processo. E, verificada a condição, transfere-se, “ipso jure” a propriedade da coisa ou a titularidade do direito, retroagindo esse efeito à data da aceitação da proposta (cf. artº 276º do Código Civil), que se atestará pelo respectivo título de transmissão.
Ou seja, não é pela emissão do título de transmissão a que se reporta o artº 900º do anterior Código de Processo Civil (actual artº 827º), que se opera a transferência do direito de propriedade, pois este limita-se a comprovar essa transmissão”.
Garantindo o sustentáculo legal de tal posição, aduz que o negócio jurídico (venda) realizou-se em determinada data e com a aceitação da proposta de venda, produzindo o mesmo, desde então, todos os seus efeitos obrigacionais, designadamente, o comprador ou o adjudicante fica, desde logo, obrigado a pagar ou depositar o que for devido, e se não o fizer incorre nas sanções previstas no artº 898º do anterior Código de Processo Civil (actual artº 825º). Só o efeito real ou translativo da propriedade da coisa vendida ou adjudicada é que fica dependente da verificação daquela condição, o que constitui uma excepção prevista na lei, embora não expressamente, ao princípio estatuído no artº 408º nº 1 do Código Civil” (sublinhado nosso).
Citando o douto aresto da RP de 18/10/2011, acrescenta que “a emissão de título de transmissão é uma mera formalidade que culmina o processo de transmissão da propriedade, mas não é com essa emissão que se conclui a venda”.
E, doutrinariamente, entre outros, referencia a posição de Remédio Marques [10], no sentido de que “o contrato fica concluído com a aceitação da proposta, ficando a transmissão da propriedade condicionada ao pagamento do preço e cumprimento das obrigações fiscais”.
Tendo igualmente por fundo a modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, mas ajuizando de forma distinta, defende o douto aresto desta Relação de 27/03/2014 [11]que a transmissão da propriedade na venda executiva opera-se com a adjudicação. Referencia. De forma expressa, que “a transmissão da propriedade da fracção autónoma para o exequente ocorreu, aquando da sua adjudicação em sede de processo execução (venda judicial/propostas em carta fechada)”.
Uma terceira via, na definição do momento em que deve ser considerar efectuada a venda judicial em processo de execução, evidencia-se no douto aresto da RE de 06/12/2018 [12], no qual de defende que a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão.
Referencia que, ao invés do que sucede na venda negocial ou privada, em que a transferência se opera por mero efeito do contrato, pois a transferência não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço (artº. 886º, do Cód. Civil), na venda executiva , conforme norma reguladora para a modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, “os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, agente de execução que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, comunica seguidamente a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do art.º 824º do CC”.
Acrescenta, então, no apelo ao transcrito nº. 1, do artº. 827º, do Cód. de Processo Civil, que “a propriedade da coisa ou do direito não se transfere por mero efeito da venda, como sucede no direito substantivo, dada a sua natureza real e não obrigacional [arts. 408º, nº 1, 874º, e 879º, al. a), e 578º nº 1 todos do CC], mas só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução no caso de venda por propostas em carta fechada/venda em leilão eletrónico (no caso da venda por negociação particular com a outorga do instrumento da venda), para o que se torna necessário que se verifique mostrar-se paga a totalidade do preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão”.
Na esfera do nosso mais Alto Tribunal, referencie-se o douto Acórdão de 19/06/2018 [13] - citado nas alegações recursórias -, o qual efectua a destrinça entre a venda voluntária e a venda executiva, nomeadamente no que se refere à aferição do momento da verificação do efeito real desta.
Assim, enquanto naquela – venda voluntária -, celebrado o contrato, produzem-se, imediata e instantaneamente, os efeitos reais e obrigacionais da venda, nesta – venda executiva -, “só os efeitos obrigacionais se produzem em simultâneo com o acordo firmado entre o Estado (no exercício de um poder de jurisdição executiva) e o adquirente, consubstanciado na aceitação da proposta. Mas, como referem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, com a aceitação da proposta o acto da venda não fica concluído. O efeito translativo do direito de propriedade, assim como a eventual produção dos efeitos específicos da venda executiva, só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel.
Desta forma, clarificando, na venda executiva mediante propostas em carta fechada, que ali se equacionava, “é o título de transmissão emitido pelo agente de execução que vale como título de aquisição, sendo através dele que o adquirente fica investido na propriedade do bem ou na titularidade do direito. É com base nesse título que se efectua o registo da aquisição a favor do adquirente e se procede oficiosamente ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil (cfr. n.º 2 do citado artigo 827º do CPC)” (sublinhado nosso).
O douto aresto, na sustentação do defendido, cita Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo [14] quando referenciam que sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de actos, um verdadeiro acto complexo de formação sucessiva (composto por actos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, entre outros; actos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e aceitação da proposta vencedora; e, finalmente, actos de conclusão do procedimento em que a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do título de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão.
Bem como Amâncio Ferreira [15], ao mencionar que “(…) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, no que toca à venda por propostas em carta fechada, e com a outorga do instrumento da venda, no que respeita à venda por negociação particular. E para que aquele título seja emitido e esta outorga se efective, terá o adquirente de pagar previamente o preço devido e satisfazer as obrigações fiscais inerentes à transmissão (…)” (sublinhado nosso).
De particular importância, atenta a sua atinência para o caso sub júdice, revela-se o douto Acórdão do STJ de 01/09/2016 [16] – igualmente citado pela Apelante -, no qual estava em equação a invocação de alegado direito de preferência, decorrente de contrato de arrendamento rural, na venda insolvencial (consequente à declaração de insolvência da senhoria) do imóvel objecto deste.
Neste processo, e aí decorrem as semelhanças com o caso sub júdice, procurava-se indagar “qual a data que releva para se poder considerar que, aquando da alienação da 2ª Ré à 3ª Ré, a Autora já tinha atingido três anos na veste de arrendatária do prédio alienado. Se se entender, como o fez o Acórdão recorrido, que tal data é a da alienação formalizada pela escritura pública notarial de compra e venda de 09.06.2011, já nessa data tinha a Autora o direito de preferir na compra e venda então celebrada, desde que observando as mesmas condições legais.
A Relação considerou que, na venda executiva, tal como na venda forçada em processo de liquidação universal, no caso em processo de insolvência, a data da alienação é, não a data da abertura das propostas apresentadas por carta fechada, mas a data em que se celebra a escritura que formaliza o negócio de compra e venda.
Já as recorrentes sustentam que tal data é a da abertura das propostas e da adjudicação, que todos estão de acordo ocorreu antes de se atingirem os três anos, que são conditio sine qua non do direito do preferente arrendatário rural”.
A questão nuclear consiste, assim, em apurar qual é o momento processual que consolida a transmissão do direito de propriedade, no caso, da venda, em incidente de liquidação da massa insolvente.
Acrescenta o douto aresto que “na venda forçada, realizada na sequência da liquidação do património do insolvente, tendo o AI optado pela venda por propostas em carta fechada, duas questões muito sensíveis se colocam: saber quando opera a transmissão do direito de propriedade e, dela indissociada, a questão de saber se é esse momento o relevante para saber se ao preferente foram comunicados os elementos essenciais da venda, a entender-se que o art. 416º do Código Civil, é neste caso aplicável”.
Assim, por remissão do já transcrito artº. 165º, do CIRE, para o vigente artº. 819º, do Cód. de Processo Civil, “decorre que o titular do direito de preferência, sendo a venda da coisa que confere tal direito feita por abertura de propostas em carta fechada, deve o titular preferente ser notificado, com as formalidades da citação, do dia hora e local da abertura de tais propostas, sendo aí e nesse momento que tem de exercer o direito de preferência.
Destes normativos decorrem duas consequências: i) o titular do direito de preferência não tem, nesta sede, que ser previamente informado dos elementos essenciais da venda, por não se saber, sequer, qual o preço oferecido, nem a identidade dos proponentes, não sendo aplicável o art. 416º do Código Civil; ii) - não existindo tal notificação, realizada “com as formalidades da citação”, o preferente pode intentar a acção de preferência, nos termos do art. 1410º do Código Civil, uma vez que tal omissão, ou irregularidade da comunicação, não gera nulidade processual” (sublinhado nosso).
E, citando Amâncio Ferreira [17], aduz que “os titulares do direito de preferência na alienação dos bens devem ser notificados do dia, hora e local designados para a abertura das propostas, tanto no caso da venda por propostas em carta fechada (art. 892.°, n.° 1) como no da adjudicação dos bens penhorados (art. 876.°, nº. 2), a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto.
E igualmente devem ser notificados para preferir nas outras modalidades de venda, exceptuada a venda directa (art. 886.°, n.° 2) […].
[…] A notificação dos preferentes é feita de acordo com as regras da citação pessoal, nos termos do art. 256.° (art. 892.°, n.°3). A partir da RPC95-96 não se aplicarão as regras da citação edital, por esta ter desaparecido no chamamento dos preferentes (parte final do nº3 do art. 892.°, em confronto com a redacção anterior […].
[…] Frustrando-se a notificação do preferente, mantém este o direito de propor a acção de preferência (art. 892.°, n.°4) […].
[…] O titular do direito de preferência deve exercê-lo, na adjudicação, no próprio acto dela (art. 877.°, n.°1), e, na venda por propostas em carta fechada, no momento da aceitação de alguma proposta (art. 896.°, n.° 1).”.
Acrescenta-se que, não se tendo provado a notificação da Autora preferente, nos termos legalmente equacionados, “não se pode considerar a data da abertura das propostas apresentadas e sequente adjudicação como a que operou validamente a transmissão do direito de propriedade do prédio rústico arrendado à Autora.
Daí decorre que, irrelevando tal data, como aquela em que a Autora recorrida podia ter exercido o direito de preferência, a data que releva, in casu, é da escritura pública em que foi formalizada a transmissão do direito de propriedade da “Quinta da ...”, para a 2ª Ré.
Assim, tendo a Autora/recorrida exercido, com base na data da escritura de compra e venda o seu direito, e, sendo nessa data, há mais de três anos arrendatária do prédio rústico adjudicado à compradora 1ª Ré, exerce triunfantemente o seu direito de preferência naquela alienação, conquanto, como decorre do art. 28º, nº5, da Lei do Arrendamento Rural, proceda ao depósito do preço”.
Ademais, esclarece-se, de forma inequívoca, “mesmo que a notificação pelo Administrador da Insolvência, tivesse ocorrido, comunicando à Autora a data, hora e local da abertura das propostas – acto que não se provou sequer ter sido efectuado –, a transmissão da propriedade para o comprador proponente, a aqui 2ª Ré, apenas se teria concretizado depois do depósito do preço e da adjudicação – art. 900º, nº1, do Código de Processo Civil – e da realização do registo da venda – nº2 do art. 900º.
O que justifica pela diferenciada natureza da venda executiva, nos termos já supra referenciados, pois, nesta, contrariamente ao ocorrido com a venda negocial, “os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço (cfr. art. 827º, nº1) e apenas depois disso é passado o título de transmissão (art. 833°, nº2) e que, na venda por negociação particular, o instrumento da venda é lavrado depois de o preço ter sido depositado pelo comprador (art. 833º, n°4), parece dever concluir-se que a transmissão da propriedade do bem vendido só opera com o pagamento do preço e a passagem pelo tribunal do respectivo título de transmissão”.
Ou seja, sendo a venda executiva concretizada mediante propostas em carta fechada, “a transmissão da propriedade do bem vendido só opera com o depósito do preço, com a passagem do título do título de transmissão e demais formalidades previstas no art. 900º do Código de Processo Civil” [presentemente, artigo 827º] (sublinhado nosso).
Exposto o presente enquadramento, é tempo de retornarmos ao caso concreto.
Na presente acção, e especificamente na presente pretensão recursória, afere-se se a Autora era arrendatária, há mais de 3 anos, do imóvel alienado, o que se configura como condição essencial para poder exercer o reivindicado direito de preferência.
Surge inquestionado nos autos que entre a ora Autora, enquanto arrendatária, e a sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda., na qualidade de senhoria, foi celebrado, em 01/08/2014, contrato de arrendamento comercial, destinado à exploração de um estabelecimento comercial de farmácia, do prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, na Rua …, nºs …-…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número …/…, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …º.
Resulta igualmente da factualidade provada, sem discussão, ter sido tal prédio alienado no âmbito da insolvência da sociedade senhoria/proprietária, pela ora 1ª Ré Massa Insolvente, ao 2º Réu, ora Apelado, pelo preço de 295.000,00 €, o que foi concretizado conforme escritura pública de compra e venda, datada de 20/10/2017.
Consta, ainda, assente, ter o Administrador da Insolvência optado pela modalidade de venda por negociação particular, designando data e hora para a abertura de propostas, a saber, o dia 28/07/2017, pelas 10.00 horas, numa das salas do Tribunal de Ponta Delgada. Nesta abertura, a proposta apresentada pelo ora 2º Réu veio a ser aceite e adjudicada pelo Administrador da Insolvência.
Por outro lado, não se discute que na data designada para a abertura de propostas – 28/07/2017 -, tal como refere a decisão apelada, ainda não se havia constituído na titularidade da ora Autora arrendatária o direito legal de preferência na compra e venda do local arrendado, pois, naquela data, ainda não se havia completado prazo superior aos três anos então legalmente exigidos.
Ou seja, pode definir-se, com exactidão, que relativamente àquela data designada para a abertura de propostas, não sendo ainda a arrendatária titular o ora invocado direito potestativo de preferência, não era exigível a sua notificação, para eventual exercício, no acto, de um direito de que ainda não dispunha.
Efectivamente, o prazo superior a três anos, imposto pelo normativo vigente, apenas se completaria a partir do dia 02/08/2017.
Aqui chegados, explicitemos questão com natureza apriorística.
O Administrador da Insolvência, no âmbito dos poderes conferidos pelo nº. 1, do artº. 164º, do CIRE, optou pela modalidade de venda por negociação particular.
Todavia, no âmbito da amplitude decisória inscrita naquele normativo – modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente -, mantendo a venda naquela modalidade, optou pela adopção do mecanismo previsto para a modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, designando dia e hora para a abertura de propostas.
Desta forma, atendendo a tal opção, concluímos que, sendo aplicável o prescrito nos artigos 819º e 823º, ambos do Cód. de Processo Civil, à venda por negociação particular – cf., a 2ª parte, do nº. 2, do artº. 811º, do CPC -, e designada que foi data para a abertura das propostas (apesar da venda executiva manter a natureza de modalidade por negociação particular), caso a ora Autora já fosse titular, naquela data, do reivindicado direito legal de preferência, impunha-se a sua notificação. E, impondo-se esta, ficaria então a mesma Autora onerada com o ónus de exercício do direito nas condições inscritas no transcrito artº. 823º, do Cód. de Processo Civil, sob pena de o perder.
Ou seja, e de forma mais clara, caso se concluísse no sentido de, à data da abertura das propostas, já estar constituído, na esfera jurídica da Autora, o direito legal de preferência, deveria observar-se o iter prescrito nos artigos 819º e 823º, ambos do Cód. de Processo Civil, traduzido no poder-dever de notificação do preferente (dia, hora e local aprazados para a abertura de propostas), com o ónus de exercício do direito, sob pena da sua perda, nas referenciadas condições do artº. 823º.
E isto, apesar de estarmos perante uma venda por negociação particular, mas na qual foram acolhidas aquelas regras previstas para a abertura das propostas.
Todavia, conforme vimos, tal direito, naquela data – 28/07/2017 -, não existia na titularidade da Autora arrendatária. Mas, tal direito já se havia constituído na titularidade da mesma à data da outorga da escritura pública de alienação do imóvel arrendado20/10/2017 -, celebrada na sequência da aceitação da proposta apresentada pelo proponente ora 1º Réu.
O que determina que se indague qual o momento juridicamente relevante para a transmissão do direito de propriedade, no caso de venda de bem apreendido para a massa insolvente, na modalidade de venda por negociação particular (apesar da designação de data, hora e local para a apresentação/abertura de propostas em carta fechada).
Ora, já analisámos a controvérsia, quer doutrinária, quer jurisprudencial, existente relativamente á definição do momento em que se aperfeiçoa a venda executiva, ou seja, para a definição daquele momento relevante.
Controvérsia analisada, fundamentalmente, tendo por base ou pressuposto o nº. 1, do artº. 827º, do Cód. de Processo Civil, com campo de aplicabilidade direccionado para a venda na modalidade de propostas em carta fechada (mas também aplicável à adjudicação ao exequente, por força do prescrito no artº. 802º, do CPC e à venda em leilão electrónico, conforme decorre do artº. 8º, nº. 10, do Despacho nº. 12624/15 - define como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores e homologa as regras do sistema aprovadas por essa entidade).
Nesta controvérsia, no acolhimento da posição sufragada pelo STJ, nos arestos citados, entendemos, no que se reporta a estas modalidades de venda, às quais se aplica o estatuído no nº. 1, do artº. 827º, do CPC, que a transmissão da propriedade da coisa objecto de venda executiva só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, ou seja, apenas se concretiza depois do depósito do preço e da adjudicação, com consequente passagem do título de transmissão.
Ou seja, é este título de transmissão que vale como real e concreto título aquisitivo, servindo de veículo para que o adquirente fique investido na propriedade do bem objecto de venda.
Porém, in casu, estando-se perante venda por negociação particular, a propriedade da coisa só se transmite com a outorga do instrumento de venda, sendo que este é apenas lavrado depois do preço ter sido depositado pelo comprador (cf., o nº. 4, do artº. 833º, do Cód. de Processo Civil), e desde que se mostrem satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão.
E, concretamente, tal transmissão apenas se operou com a outorga da escritura pública de compra e venda celebrada em 20/10/2017, através da qual a 1ª Ré vendeu ao 2º Réu, comprador proponente, o imóvel (prédio urbano) objecto do arrendamento comercial.
Nessa data, conforme mencionámos, já havia ingressado na titularidade da Autora o invocado direito legal de preferência, pois, nesse interlúdio, ou seja, entre a data designada para a abertura das propostas e a data da outorga da escritura (data da efectiva transmissão do direito de propriedade), completou-se o prazo superior a três anos de vigência do arrendamento, que figurava como condição de existência daquele direito potestativo.
O que determina, consequentemente, dever decidir-se pela sua admissibilidade e reconhecimento na titularidade da Autora, que assim pretende o exercitar do seu direito de preferência por referência àquela data da outorga do documento de transmissão do imóvel, sendo nessa data há mais de três anos arrendatária do prédio urbano alienado ao comprador 2º Réu.
Tal conclusão determina, necessariamente, num juízo de procedência da presente apelação, insubsistência do acertamento feito constar no saneador sentença apelado, que, assim, não pode prevalecer, antes se impondo a sua necessária revogação, no reconhecimento da Autora ser titular de direito legal de preferência, na data da outorga do instrumento de venda executiva (escritura pública de compra e venda), por negociação particular, do local arrendado - prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, na Rua …, nºs …-…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número …/…, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …º. 
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O juízo supra exposto, de revogação do saneador sentença apelado, no reconhecimento na titularidade da Autora apelante do direito de preferência legal invocado, implicaria, nos quadros do nº. 2, do artº. 665º, do Cód. de Processo Civil, a aplicabilidade da regra de substituição ao tribunal recorrido.
Efectivamente, estatui este normativo que “se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.
O que determinaria, de acordo com o teor das contestações apresentadas, o imediato conhecimento das invocadas excepções de caducidade do direito de preferência, renúncia ao direito de preferência e de abuso de direito.
Ora, para que este conhecimento seja possível, de acordo com o legal desiderato, deve este Tribunal dispor dos elementos necessários, nomeadamente em sede de matéria factual apurada, que não implique a necessidade de qualquer ulterior actividade probatória.
Todavia, analisado o teor das oposições apresentadas, em articulação com a resposta às excepções da autoria da Autora – cf., fls. 80 vº a 83 -, constata-se existir vária matéria factual controvertida com directa incidência e implicância no conhecimento das aludidas excepções, maxime, essencialmente no conhecimento da excepção de caducidade.
É o que resulta, nomeadamente, e exemplificativamente, do teor dos artigos 11º, 12º, 14º, 15º e 18º a 21º da resposta apresentada.
O que, consequentemente, inviabiliza, nesta sede, o conhecimento das questões constantes das contestações apresentadas, consideradas prejudicadas pela solução proferida pelo Tribunal Recorrido.
E determina, necessariamente, o ulterior prosseguimento da presente acção, de forma a conhecer-se acerca do pedido accional formulado pela Autora, com a prática dos actos considerados necessários e pertinentes pelo Tribunal a quo.
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Relativamente à tributação, decaindo os Apelados Réus no recurso interposto, são os mesmos responsáveis pelo pagamento das custas em dívida, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, o seguinte:
A) julgar totalmente procedente a presente apelação, em que figura como Apelante/Recorrente FARMÁCIA de VP ..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.,, e como Apelados/Recorridos MASSA INSOLVENTE da sociedade WP ..., LDA. e LM… e mulher ME… ;
B) consequentemente:
- revoga-se o saneador sentença apelado, no reconhecimento da Autora ser titular de direito legal de preferência, na data da outorga do instrumento de venda executiva (escritura pública de compra e venda), por negociação particular, do local arrendado - prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, na Rua …, nºs …-…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número …/…, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...º ;
Ø determinando-se o ulterior prosseguimento da presente acção, de forma a conhecer-se acerca do pedido accional formulado pela Autora, com a prática dos actos considerados necessários e pertinentes pelo Tribunal a quo ;
C) decaindo os Apelados Réus no recurso interposto, são os mesmos responsáveis pelo pagamento das custas em dívida, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil.
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Lisboa, 10 de Setembro de 2020
Arlindo Crua
António Moreira
Carlos Gabriel Castelo Branco
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[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, Quid Juris, 2015, pág. 623.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, pág. 240 e 244.
[4] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 3ª Edição, Almedina, 2019, pág. 481.
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 247.
[6] Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., pág. 476, citando doutrina estrangeira.
[7] Ob. cit., pág. 247.
[8] A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, Gestlegal, Setembro 2017, pág. 383.
[9] Relator: Pedro Brighton, Processo nº. 30347/09.4T2SNT.L1-1, in www.dgsi.pt .
[10] Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, pg. 404.
[11] Relatora: Carla Mendes, Processo nº. 17748/12.0T2SNT-B.L1-8, in www.dgsi.pt .
[12] Relator: Manuel Bargado, Processo nº. 1866/14.2T8SLV-B.E1, in www.dgsi.pt .
[13] Relator: Henrique Araújo, Processo nº. 5664/14.5T8ENT-A.E1,S1, in www.dgsi.pt.
[14] A Acção Executiva, anotada e comentada, 2015, página 539.
[15] Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, página 391.
[16] Relator: Fonseca Ramos, Processo nº. 243/11.1TBALJ.G1.S1.
[17] Ob. cit., 4ª edição revista e actualizada com as alterações introduzidas pelo DL.nº38/2003, de 8 de Março”, págs. 310 a 312