Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11006/14.2T8LSB-A.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
PROVA DOCUMENTAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FIADOR
BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) Os factos reportados a documentos autênticos, face ao seu valor probatório, podem ser incluídos nos factos provados, considerando a conjugação do disposto nos artigos 5.º, 567º, e 607º do CPC, com o disposto nos artigos 363º e 371º do Código Civil.
II) Assim, no caso de verificar deficiência na matéria de facto elencada, face à alegação produzida e encontrando-se tais factos provados por prova documental plena, deve a Relação incluir tal factualidade na matéria de facto provada.
III) O artigo 14.º-A do NRAU refere-se a um título executivo de feição complexa – integrado pelo contrato de arrendamento escrito e pelo documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante dos valores em dívida, decorrentes do contrato de arrendamento – o qual pode ser gerado, quer face ao arrendatário, quer face ao fiador, desde que, para tal, sejam observadas as condições legais para o efeito, a saber: a) A junção de contrato de arrendamento; b) A junção de comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida; c) Que ao fiador seja dada a conhecer tal comunicação.
IV) A execução para pagamento de quantia certa baseada no título executivo a que se refere o mencionado artigo 14.º-A do NRAU pode respeitar às rendas, aos encargos e/ou às despesas que corram por conta do arrendatário, considerando-se aí compreendidas as rendas que se vencerem desde a comunicação efectuada ao arrendatário até à entrega efectiva do locado e a indemnização prevista no artigo 1045.º, n.º 1, do CC, cuja liquidação depende de uma operação de simples cálculo aritmético, a ser realizada pelo exequente no requerimento executivo.
V) Nos termos do artigo 640.º, al. a), do CC, o fiador não pode invocar o benefício de excussão se a ele renunciou, o que ocorre se, de forma expressa ou tácita, tiver assumido a obrigação de principal pagador.
VI) Se os apelantes declararam que se constituíram fiadores da inquilina, respondendo com esta, de forma solidária, entre si e para com a inquilina, pelas obrigações decorrentes pelo fiel cumprimento do contrato, obrigaram-se como principais pagadores, renunciando ao benefício de excussão prévia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, na forma ordinária, movidos por MJ…, AL… e JL…, deduziram os executados JA… e PJ…, oposição à execução por meio de embargos de executado.
Alegaram, em suma, a inexistência de título executivo (dizendo que o art. 14.º-A do NRAU refere que o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa das rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, mas não inclui a exequibilidade quanto a quaisquer indemnizações, sendo que os montantes cujo pagamento se peticiona se referem à indemnização devida pela arrendatária até efectiva entrega do locado após a data da cessação do contrato de arrendamento em causa, nos termos previstos no art. 1045.º do Código Civil), que assinaram o contrato de arrendamento na qualidade de fiadores, sendo que, o contrato cessou por denuncia em 30 de Setembro de 2012, pelo que, a partir dessa data deixaram os fiadores de ser responsáveis pelos actos da arrendatária, já que se obrigaram como devedores principais apenas enquanto durasse o contrato, sendo que a indemnização aqui em causa diz respeito à actuação daquela executada em momento posterior ao termo do contrato de arrendamento, determinando a extinção da obrigação principal a extinção da fiança, como dispõe o artº 651º Código Civil, pelo que, os executados são partes ilegítimas na acção, não lhes sendo exigível a quantia peticionada, devendo, a execução extinguir-se contra si.
Alegaram ainda que intervieram no contrato de arrendamento na qualidade de fiadores e, portanto, de devedores subsidiários, sendo lícito, nos termos do artigo 638.º do CC, ao fiador recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver executido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito (nº 1), podendo ainda, inclusive, o fiador continuar a recusar o seu cumprimento, mesmo para além dessa excussão, se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor» (n.º 2), pelo que, invocaram o beneficio da excussão prévia e, assim, nos termos do previsto no art. 745.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não poderão penhorar-se quaisquer bens dos ora executados, enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal, também executada.
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Recebidos liminarmente os embargos, os exequentes apresentaram contestação, pugnando pela improcedência da oposição à execução e pelo prosseguimento da execução.
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Finda a fase dos articulados, o Tribunal proferiu o despacho datado de 24-11-2017, com o seguinte teor:
“Compulsados os autos, verifica-se que as questões a apreciar e a decidir nos presentes embargos traduzem-se em questões meramente jurídicas, nomeadamente, saber se existe título executivo contra o embargante/fiador nos termos do art. 14.º-A do NRAU em conjugação com o art. 703.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil; saber se a obrigação do fiador se extinguiu por força da extinção do contrato de arrendamento afiançado; saber se o fiador goza do benefício da excussão prévia.
Assim sendo, entende o Tribunal ser desde já possível a prolação conscienciosa de decisão de mérito, não se justificando, por outro lado, a realização da audiência prévia (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, pág. 642).
Face ao exposto, nos termos dos artigos 6.º, n.º 1 e 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, notifique as partes para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem quanto ao que tiverem por conveniente”.
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Notificados do citado despacho, embargantes e embargados, não se opuseram à prolação imediata de decisão de mérito, reiterando os fundamentos já alegados nos respectivos articulados.
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Após, em 07-02-2020, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes e determinou o prosseguimento da execução contra os embargantes.
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Não se conformando com a referida decisão, dela apelam os embargantes, formulando as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida que decidiu julgar “.. os presentes embargos improcedente, e, consequentemente determino o prosseguimento da execução contra os embargantes JA… e PJ… (art. 732.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).”
II. A douta sentença na sua fundamentação fática, apenas dá como provados os seguintes factos: a apresentação do requerimento executivo e o teor da clausula décima segunda do contrato de arrendamento.
III. Aderindo, apenas, aos fatos invocados pelo Exequente no requerimento executivo.
IV. Assim sendo, a douta sentença é omissa no que respeita a matéria de fato que fundamenta a sua decisão limitando-se a concluir de improcedência dos embargos apresentados pelos ora Recorrentes, qualquer fundamento fáctica e consubstanciando a sua decisão de direito sem qualquer decisão de fato e aderindo apenas ao alegado pelo Exequente no seu requerimento exexcutivo.
V. Segundo o art. 205º nº 1 da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
VI. Sendo que, o legislador ordinário consagrou o dever de fundamentação para as decisões judiciais em geral, veja-se o art. 154 do CPC,
VII. Com efeito, mais uma vez a douta sentença limita-se a concluir pela sua verificação sem qualquer fundamento fáctica.
VIII. Ora, nos termos do artº 668º nº 1 al. b) do CPC é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direitos que justificam a decisão.
IX. Nulidade cuja declaração se requer!
Sem prescindir
X. Entende a ora Recorrente que da prova produzida nos presentes autos não resultaram provados os factos enunciados no ponto 1 da Motivação de Facto, ou seja os fatos alegados pela Requerente, a saber no requerimento executivo apresentado pela exequente, pelo que não pode a douta sentença dar como provada toda a matéria constante do mesmo, designadamente, o teor do ponto 11 e 12 do mesmo.
XI. Com efeito, o ali alegado é matéria de direito e de natureza conclusiva.
XII. Com efeito, a douta sentença, na verdade, apenas considera como provada a pendencia da acção executiva e o teor do contrato de arrendamento na parte em que convenciona da fiança.
XIII. Conforme já ficou exposto, de que não se prescinde, a douta sentença não pode fundamentar a sua decisão de fato apenas na adesão ao requerimento executivo, sendo por isso nula com todas as legais consequentes.
Contudo, por cautela,
XIV. Não pode o doutro tribunal considerar como provados os fatos/conclusões constante do ponto 11 e 12 do requerimento executivo, dado que esta é a matéria controversa e em apreciação nos presentes autos.
XV. Não tendo resultado provado dos elementos carreados para os autos a prova de tais fatos.
XVI. Face ao exposto, deve a decisão quanto à matéria de fato dada como provada ser alterada, suprimindo-se os pontos 11 e 12 do requerimento executivo da mesma.
Acresce que,
XVII. Entendeu a douta sentença em apreço que:
a. “Ora, revertendo ao caso em apreço, e atento o teor da cláusula décima segunda do contrato de arrendamento outorgado entre as partes, verifica-se que os executados/embargantes constituíram-se fiadores da arrendatária, respondendo pessoal e solidariamente entre si e com esta, pelas obrigações decorrentes do fiel cumprimento de todas as cláusulas do contrato, incluindo seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do local livre devoluto e nas condições estipuladas, designadamente quanto às rendas compreendendo os respectivos aumentos convencionados e legais, os prejuízos causados no locado e também as quantias referidas na cláusula anterior que os senhorios venham a suportar, e, bem assim declararam que a fiança subsistirá ainda que haja alteração da renda fixada e mesmo depois de decorridos o prazo de cinco anos a que alude o n.º 2 do art. 665.º do Código Civil.
b. Por conseguinte, dúvidas não existem de que os executados se constituíram fiadores da arrendatária, renunciando ao benefício da excussão prévia, dado que dado que se constituíram como principais pagadores, respondendo pessoal e solidariamente com a inquilina.
c. Por outro lado, da notificação judicial avulsa junta aos autos de execução, e que, conjuntamente com o contrato de arrendamento, constitui o título executivo da presente acção executiva, verifica-se que os fiadores foram, não só notificados da cessação do contrato, ou melhor, da sua não renovação, bem como da não entrega do locado na data devida, e ainda da liquidação da indemnização prevista no art. 1045.º do Código Civil [conforme decorre dos artigos 14.º a 23.º do requerimento de notificação judicial avulsa].
d. Assim sendo, constituindo o art. 14.º-A do NRAU título executivo contra o fiador, abrangendo as rendas vencidas até à efectiva entrega do locado (art. 1045.º do Código Civil), e tendo os executados, na qualidade de fiadores e principais pagadores, renunciando ao benefício da excussão prévia, e tendo ainda sido notificados para o pagamento das quantias vencidas até efectiva entrega do locado, falece in totum a presente oposição, a qual importa julgar improcedente, prosseguindo os autos executivos contra os executados/fiadores.”
XVIII. Ora, não podem os ora Recorrentes conformar-se com tal decisão, dado que as espécies de títulos executivos estão taxativamente elencadas no art.º 703º, n.º 1, do CPC.
XIX. Na al. d) deste preceito encontram-se previstos, como títulos executivos, «os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».
XX. Neste caso, há que ter em consideração o disposto no art.º 14.º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro [NRAU].
XXI. Na presente acção, o contrato de arrendamento cessou por denúncia à sua renovação efetuada pelos exequentes em 30 de Setembro de 2012.
XXII. Encontrando-se pagas todas as rendas até ao termo do contrato e ainda, segundo os próprios exequentes afirmam, a compensação pela ocupação do imóvel ate Fevereiro de 2013.
XXIII. Sendo que, os montantes cujo pagamento ora se peticiona, referem-se à indemnização devida pela arrendatária até efetiva entrega do locado após a data da cessação do contrato de arrendamento em causa, nos termos previsto no artº 1045º nº 1 do CC.
XXIV. Aliás, tal fato resulta claro do teor dos artºs 15º a 23º das notificações judiciais avulsas juntas aos autos como alegado título executivo.
XXV. Apesar de no requerimento executivo, os Exequentes a «…rendas devidas pela ocupação do locado…», não restam dúvidas que pretendem referir-se ao pedido de indemnização prevista no artº 1045º do CC.
XXVI. Ora, o artº 15º-A do NRAU é claro na sua redação, quanto refere que o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa das rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário.
XXVII. Não incluindo na sua previsão a sua exequibilidade quanto a quaisquer indemnizações.
XXVIII. Sendo certo que se o legislador pretendesse que a indemnização prevista no artº 1045º do CC ali se encontrasse incluída o teria expresso, o que não fez!
XXIX. Com efeito, limitou o seu âmbito a rendas, encargos e/ou despesas que corram por conta do arrendatário.
XXX. Assim, extinto o contrato de arrendamento, já não se pode falar em rendas, nem em arrendatário, pelo que restará recorrer a uma acção declarativa para eventual condenação do executado no pagamento da indemnização a que alude o art.º 1045.º do código civil.
XXXI. Nesse sentido não restam dúvidas de que, de acordo com os mencionados dispositivos legais, artº 703º nº 1 al. d) do CPC e artº 14º-A do NRAU, o documento junto como titulo executivo não reveste natureza de titulo executivo.
XXXII. Assim, inexiste título executivo para a presente acção.
XXXIII. Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-10-2011, Processo n.º 436/09.5TBVNG-A.P1 disponível para consulta em www.dgsi.pt
XXXIV. Pelo que, mal andou a douta sentença a decidir como decidiu, devendo por isso ser revogada e ordenada extinta a presente ação executiva com todas as legais consequências.
Sem prescindir, acresce ainda que,
XXXV. O artigo 15º n.º 2 do NRAU veio atribuir força executiva ao contrato de arrendamento para a acção de pagamento de renda, quando acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em divida.
XXXVI. O nº 5 do artigo 10º do CPC dispõe que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da execução, destacando-se de entre as espécies de títulos previstas no n.º 1 do artigo 703º, no que ao caso importa, os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
XXXVII. Assim sendo, não restam dúvidas que o nº 2 do artigo 15º da Lei n.º 6/2006, ao conferir força executiva ao contrato de arrendamento condicionada à apresentação do mencionado comprovativo, criou um título executivo complexo, porque composto por dois documentos específicos, e constitui uma disposição especial para efeitos de cumprimento coercivo das rendas.
XXXVIII. E porque se trata de norma especial não comporta interpretação analógica (cfr. artigo 11º do Código Civil), não podendo ademais olvidar-se que o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e que tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir adequadamente o seu pensamento (cfr. artigo 9º n.os 2 e 3 CC).
XXXIX. Deste modo, em presença de norma especial que cria um específico título executivo, também ele de natureza especial, face à letra da lei e à presumida correcção do acerto e correcta expressão do pensamento legislativo, temos de concluir que o artigo 14º nº 2 do NRAU só permite a formação de título executivo contra o arrendatário e não contra os fiadores, ainda que figurem no contrato como principais pagadores.
XL. Veja-se nesse sentido, os Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 25.06.2014, pelo Tribunal da Relação do Porto de 24.04.2014 e da Relação de Lisboa de 31.032009 e de 18.09.2014.
XLI. E, ainda Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-12-2019, processo n.º 8820/18.3T8PRT-A.P1 disponível para consulta em www.dgsi.pt
XLII. No mesmo sentido Rui Pinto in Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 1º Ed. 2013, pags 1164 e segs., e Gravato de Morais, in Flata de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, Almedina, 2010, pag. 81 e Teixeira de Sousa in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 2014, Almedina, p. 405-406.
XLIII. Pelo que, ainda que se entendesse que os documentos em causa constituem titulo executivo bastante para a presente execução, a verdade que nunca seria titulo bastante contra os ora executados na qualidade de fiadores.
XLIV. Pelo que, mais uma vez mal andou a sentença a decidir como decidiu.
Acresce ainda que,
XLV. Os ora executados são demandados na sua alegada qualidade de fiadores.
XLVI. É certo que os Executados intervieram e assinaram o contrato de arrendamento em apreço na qualidade de fiadores, contudo, basta atentar na clausula contratual onde de prevê a constituição da fiança, para concluir que a mesma se extinguiu aquando da cessação do contrato de arrendamento em causa.
XLVII. Ora, resulta claramente da referida cláusula 12º do contrato de arrendamento que a obrigação dos fiadores era acessória da obrigação principal que recaía sobre a arrendatária, nos termos do art.º 627.º, n.º 2 do CC.
XLVIII. Ficando, portanto, subordinada a seguir a obrigação afiançada, acompanhando as suas vicissitudes, como sejam a invalidade ou extinção, conforme previsto no artºs 632.º e 651.º do CC.
XLIX. Assim, tendo o contrato de arrendamento cessado por denuncia em 30 de Setembro de 2012, a partir dessa data deixaram os fiadores de ser responsáveis pelos actos da arrendatária, já que se obrigaram como fiadores apenas enquanto durasse o contrato.
L. Acresce que, a indemnização aqui em causa diz respeito à actuação da arrendatária ora executada em momento posterior ao termo do contrato de arrendamento.
LI. Sendo certo que, após a cessação do contrato de arrendamento, os montantes alegadamente devidos a título de ocupação do locado, nos termos do disposto no artº 1045º nº1 CC, já não responsabilizam os fiadores, pois que a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança, como dispõe o artº 651º CC.
LII. Nada obsta ao referido, o fato de na a cláusula 12ª do contrato referir que os fiadores se responsabilizam «…até à efectiva restituição do arrendado…».
LIII. Com efeito, a fiança abrange a responsabilidade pelo pagamento das rendas até à restituição do locado, caso esta ocorresse na vigência do contrato, o que não aconteceu!
LIV. Aliás, tal expressão não exclui a interpretação feita de que «a restituição do arrendado» deve ocorrer, para responsabilizar o fiador, na vigência do contrato.
LV. Sendo que, o numero dois da referida clausula 12º do contrato, vem ao encontro desta interpretação, esclarecendo que: «A fiança prestada pelos fiadores nos termos exarados no presente contrato manter-se-á enquanto o mesmo durar…»
LVI. Ora, se assim não fosse a fiança perderia a sua natureza acessória e tornarse-ia complemente indeterminada.
LVII. Veja-se sobre esta matéria o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-10-2006, processo n.º 6084/2006-8 disponível em www.dgsi.pt
LVIII. Face ao exposto, não restam dúvidas de que a fiança se extinguiu com a resolução do contato, pelo que o ora executado é parte ilegítimas na presente ação, não lhes sendo exigível a quantia peticionada, pelo que a douta sentença ao decidir como decidiu fez uma errada aplicação do direito, devendo ser revogada.
Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio
LIX. Os ora Executados intervêm do contrato de arrendamento que alegadamente constituiu título executivo na presente ação na qualidade de fiadores e, portanto, de devedores subsidiários.
LX. O regime geral da fiança encontra-se plasmado no art.º 627 e ss do C. Civil.
LXI. A Fiança, cujo regime se entra previsto nos artºs 627 e ss do CC, em termos jurídicos, define-se como o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor (cfr., por todos, o prof. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª ed., pág. 475”).
LXII. São duas as características que essencialmente definem tal figura contratual: a acessoriedade e a subsidiariedade.
LXIII. Sendo que, no que respeita a caraterística da subsidiariedade, esta se concretiza na possibilidade de invocação do benefício de excussão, direito esse consagrado no art.º 638 do C.C.,
LXIV. Refere a citada disposição que legal que «ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito (nº 1), podendo ainda, inclusive, o fiador continuar a recusar o seu cumprimento, mesmo para além dessa excussão, se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor» (cfr. nº 2 de tal normativo).
LXV. Assim e, face a qualidade em que os Executados são demandado nos presentes autos, ou seja, a sua qualidade de fiador, pelo nos termos do previsto no art.º 745º nº 1 do CPC, não poderão penhorar-se quaisquer bens dos ora executados, enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal, Club Active Fit – Atividades Desportivas, Lda., também executada nos presentes autos.
LXVI. Acrescendo que o alegado crédito que constitui quantia exequenda e emergente da indemnização por ocupação do locado apos a cessação do contrato de arrendamento apenas se verificou por culpa única e exclusiva da arrendatária, também ora executada.
LXVII. Por ultimo, e ao contrário do afirmado pela douta sentença, em momento algum, os ora fiadores renunciaram ao benefício da excussão prévia ou assumiram a obrigação de principal pagador, pelo que é, inteiramente, licita e legitima a sua invocação (art.º 640º do CC à contrario)
LXVIII. Sendo que a alegada renuncia ao benefício da excussão prévia não resulta do contrato de arrendamento, pelo que não se entende onde a douta decisão funda tal entendimento.
LXIX. Assim, mais uma vez, mal ando a douta sentença ao decidir como decidiu.
LXX. Face ao exposto e com os fundamentos supra invocados, não restam dúvidas de que a douta sentença fez uma interpretação e aplicação errada do direito ao caso concreto, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que ordene a extinção da instância executiva contra o ora executado/recorrente.
Termos em que, deve ser dado provimento ao recurso, ser declarada a nulidade da douta sentença recorrida nos termos do artº 668º nº 1ª al b) do CPC.
Caso assim não se entenda, o que não se concede, deve ser dado provimento ao presente recurso, ser reapreciada por este Venerando Tribunal a prova produzida e, bem assim revogada a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências”.
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Os embargados contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso interposto e manutenção da sentença proferida.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
A) Se a sentença proferida é nula, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão?
B) Impugnação da matéria de facto - Se deve ser alterada a matéria de facto provada, suprimindo-se os pontos 11 e 12 do requerimento executivo da mesma?
C) Se deve ser considerado facto plenamente provado por documento?
D) Se o Tribunal recorrido errou no julgamento de direito efetuado, por considerar improcedente a questão da inexistência de título executivo quanto ao pedido executivo, uma vez que nos termos dos artigos 703º nº 1 al. d) do CPC e 14º-A do NRAU, o documento junto na execução não constitui titulo executivo?
E) Se o Tribunal recorrido fez uma errada aplicação do direito, ao não declarar que a fiança se extinguiu aquando da cessação do contrato de arrendamento ocorrida por denúncia em 30 de Setembro de 2012, ao não declarar os embargantes parte ilegítima e ao não reconhecer a inexigibilidade da quantia exequenda?
F) Se o Tribunal recorrido errou no julgamento efetuado ao não reconhecer que os embargantes não renunciaram ao benefício da excussão prévia, nem que não assumiram a obrigação de principal pagador?
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3. Enquadramento de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. MJ…, AL… e JL…, intentaram a presente execução para pagamento de quantia certa, contra CLUB ACTIVE FIT – Actividades Desportivas, Lda., JA…, PJ… e PN…, alegando, para o efeito, os seguintes factos:
“1- Os requerentes são comproprietários e legítimos possuidores do prédio urbano sito à Av. …, nºs … e …ª A a D, em Lisboa, actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alvalade sob o art. … e descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …/… da freguesia de Santa Maria dos Olivais.
2- Por contrato de arrendamento datado de 09-Jan.-2012 (embora por lapso ali tenha ficado escrito 2011), que ora se junta como doc. 1, os requerentes deram de arrendamento à requerida CLUB ACTIVE FIT, Lda., o espaço correspondente à cave do prédio identificado no artigo anterior, com fim não habitacional.
3- O referido arrendamento foi celebrado pelo prazo certo de três meses, com início a 01-Jan.-2012 e termo a 31-Março-2012, renovando-se automaticamente por sucessivos e iguais períodos trimestrais na ausência de denúncia ou oposição à renovação por qualquer das partes.
4 – Como contrapartida, a inquilina obrigou-se a proceder ao pagamento de uma renda mensal de 3.147,00€ (três mil, cento e quarenta e sete euros).
5- Pelo mesmo contrato de arrendamento, constituíram-se fiadores da Inquilina, os ora requeridos JP…, PP… e PB…, respondendo pessoal e solidariamente com aquela, pelas obrigações decorrentes do fiel cumprimento de todas as cláusulas do referido contrato, incluindo o pagamento das rendas, até à efectiva restituição do locado, nos termos consignados na cláusula décima segunda que aqui se dá por reproduzida.
6- Sucede que, tendo os Requerentes deduzido oposição à renovação do arrendamento, que consequentemente cessou, a Inquilina só procedeu à desocupação e restituição do locado em 12-Maio-2014.
7 – Nessa data, permanecia em dívida a quantia de 45.958,05€ (quarenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinco cêntimos) a título de rendas devidas pela ocupação do locado.
8 – Os requerentes comunicaram aos Requeridos o aludido valor em dívida através de notificação judicial avulsa que se junta como docs. 2 e 3.
9 – Apesar dessa comunicação e das sucessivas interpelações dos Requerentes, até agora os requeridos nada pagaram por conta do aludido débito.
10 – Permanece, assim, em dívida a aludida quantia de 45.958,05€ (quarenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinco cêntimos), a que acrescem juros de mora até efectivo e integral pagamento.
11 – Nos termos do disposto no art. 14º-A da Lei nº 6/2006 de 27.02, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 31/2012, de 14.08, o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação do montante em dívida é título executivo para a presente execução.
12 – A obrigação é certa, líquida e exigível.
Termos em que deve a presente Execução ser admitida, sendo conclusa para Despacho Liminar nos termos previstos no artigo 726º CPC., seguindo-se os demais trâmites legais com vista ao pagamento da quantia exequenda e juros vincendos até efectivo e integral pagamento.”
2. Do contrato de arrendamento outorgado entre as partes, designadamente da cláusula décima segunda, ficou a constar o seguinte:
“Um – Os Srs. PJ…, PN… e o aqui outorgante, JA…, constituem-se fiadores da inquilina, respondendo pessoal e solidariamente entre si e com esta, pelas obrigações decorrentes do fiel cumprimento de todas as cláusulas desse contrato, incluindo seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do local livre devoluto e nas condições estipuladas, designadamente quanto às rendas compreendendo os respectivos aumentos convencionados e legais, os prejuízos causados no locado e também as quantias referidas na cláusula anterior que os senhorios venham a suportar, e, bem assim declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alteração da renda agora fixada e mesmo depois de decorridos o prazo de cinco anos a que alude o n.º 2 do Artº 665 do Código Civil.
Dois – A fiança prestada pelos fiadores nos termos exarados no presente contrato manter-se-á enquanto o mesmo durar, incluindo todos os períodos pelos quais se vier a renovar”.
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4. Enquadramento jurídico:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, o recurso apresentado, apreciando as questões supra enunciadas.
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A) Se a sentença proferida é nula, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão?
Começam os recorrentes por invocar a nulidade da sentença por aquilo que denominada de “falta de fundamentação fática”.
Alegaram, para tanto, que a sentença “na sua fundamentação fática, apenas dá como provados os seguintes factos: a apresentação do requerimento executivo e o teor da clausula décima segunda do contrato de arrendamento”, “parecendo resultar da mesma que apenas adere aos fatos invocados pelo Exequente no requerimento executivo”, considerando que a referida decisão é “omissa no que respeita a matéria de fato que fundamenta a sua decisão limitando-se a concluir de improcedência dos embargos...consubstanciando a sua decisão de direito sem qualquer decisão de fato e aderindo apenas ao alegado pelo Exequente no seu requerimento executivo”.
Invocando os artigos 205º nº 1 da CRP e 154.º do CPC, consideram que a sentença é nula nos termos do artigo 668.º, n.º 1, al. b) do CPC.
Vejamos se ocorre, na decisão proferida, a nulidade arguida.
Antes de mais, importa sublinhar que aos presentes autos de embargos é plenamente aplicável o CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de agosto, atento o prescrito no artigo 6.º, n.º 1, desta Lei.
Assim, as referências dos recorrentes ao artigo 668.º do CPC (de 1961) devem ter-se por efetuadas com respeito ao vigente artigo 615.º do CPC de 2013.
Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, a mesma é nula quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Os recorrentes invocam verificar-se na decisão recorrida a nulidade da alínea b).
A obrigação de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, constante do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC é reflexo do dever de fundamentação das decisões imposto pelo n.º 1 do artigo 205.º da Constituição (nos termos do qual “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”) e ínsito no comando vertido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também, regulamentado pelo artigo 154.º do CPC.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, p. 70) a fundamentação tem uma dupla função de “carácter subjectivo” (de garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários) e uma função de “carácter objectivo” (de pacificação social, legitimidade e auto-controlo das decisões).
Esta exigência de fundamentação das decisões proferidas pelo julgador bem se compreende, na medida em que as decisões dos juízes têm que ter na sua base um raciocínio lógico e argumentativo que possa ser entendido pelos destinatários da decisão, sob pena de não se fazer adequada Justiça.
Resultava já do CPC de 1961 (cfr. arts. 659º, n.º 3 e 655º) e resulta, ainda mais vincadamente, no CPC em vigor (art. 607º, n.º 4), que a fundamentação de facto da sentença não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto de modo a conhecer as razões por que se decidiu no sentido decidido e não noutro.
O exame da prova deve ser (e só pode ser) um exame crítico, no qual o julgador procede à análise ponderada de todos os meios de prova realizados, da sua credibilidade, estabelece as ligações possíveis destes meios entre si, submete-os à luz dos princípios lógicos e das regras da experiência para poder formar, e expressar, a sua convicção e, em face disso, decidir.
Na realidade, embora o julgador aprecie livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção (princípio que não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos, ou que estejam plenamente provados – cfr. art. 607.º, n.º 5 do CPC), não está desonerado de fundamentar as razões pelas quais se convenceu da veracidade de determinados factos, ou da desconsideração de outra factualidade, de modo a permitir o controlo, quer pelas partes quer pelos tribunais superiores, do acerto da respetiva fundamentação, bem como, possibilitando às partes a arguição de eventuais nulidades resultantes da eventual oposição entre os fundamentos e a decisão ou de omissão da especificação desses fundamentos.
Assim, todas as decisões judiciais, quer sejam sentenças quer sejam despachos, têm que ser sempre fundamentadas, de facto e de direito.
No entanto, e em princípio, os despachos não exigem o mesmo grau de fundamentação que é exigido para uma sentença.
Defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros (ob. cit., p. 72 e 73) que a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.
Se o julgador o não fizer, a sentença será nula por falta de fundamentação.
De todo o modo, a falta de fundamentação só acarreta a nulidade da sentença quando é total.
Ou seja: O vício do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC só ocorrerá quando houver falta absoluta, ou total, de fundamentos ou de motivação (de facto ou de direito em que assenta a decisão) e, não já, quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada. Se a decisão for apenas insuficiente ou medíocre ou errada, isso poderá afectar o valor doutrinal da mesma, sujeitando-a ao risco de ser revogada em recurso, verificando o erro ou desacerto do julgamento, mas tal situação não produz a nulidade da decisão (vd., neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Vol. 2.º, 3.ª. Ed., Almedina, 2017, pp. 735-736 e a generalidade da jurisprudência, entre outros: os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA, e de 15-05-2019, processo 835/15.0T8LRA.C3.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO; do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-03-2018, processo 908/17.4T8FNC-B.L1.8, rel. TERESA PRAZERES PAIS; os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-11-2017, Processo 3309/16.8T8VIS-A.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA; de 05-06-2018, Processo 4084/14.6T8CBR-D.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA; os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14-03-2016, Processo 171/15.1T8AVR.P1, rel. PAULA MARIA ROBERTO, e de 11-01-2018, Processo 2685/15.4T8MTS.P1, rel. FILIPE CAROÇO).
Ocorre falta de fundamentação, geradora de nulidade, se a mesma é inexistente, mas também, se a mesma, pela sua formulação não permite apreender qual o processo lógico seguido pelo julgador na formação da sua convicção, não sendo possível aferir as razões que levaram a decidir de um determinado modo, colocando em crise a construção do silogismo judiciário e, não, o erro de julgamento.
Especificamente sobre a fundamentação de decisões no âmbito de processos tutelares cíveis, tem-se entendido que, “apesar da urgência, da simplificação instrutória e da oralidade que presidem a processo tutelar cível (…), o tribunal não está dispensado de consignar na decisão, ainda que de forma mais aligeirada, a factualidade que considera provada e que fundamenta a sua decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-01-2018, Processo 17627/17.4T8LSB.L1-6, rel. EDUARDO PETERSEN SILVA).
Ora, relendo a decisão proferida, nela se divisa, que o Tribunal recorrido teve o cuidado de enunciar que os factos provados derivaram da prova documental, confissão e acordo das partes” (cfr. p. 5 da sentença), pelo que, ao contrário do pretendido pelos recorrentes, se verifica que a fundamentação, ou seja, a razão pela qual o Tribunal considerou assente a factualidade apurada derivou da análise efetuada em face da prova documental, da produzida por confissão – nos articulados – e do acordo das partes – igualmente derivado das posições que expressaram nos articulados apresentados.
Os recorrentes podem não concordar ou se rever na fundamentação exarada, mas a mesma encontra-se presente, percebendo o destinatário de tal acto processual qual a razão de o Tribunal ter considerado como provada a respetiva factualidade.
Assim, independentemente de qualquer outra apreciação, como decorre das considerações supra expendidas, não se divisa que o Tribunal tenha omitido a necessária fundamentação referente à matéria de facto que enunciou como provada, sendo certo que, aliás, o fez, na decorrência de ter assinalado às partes que se encontrava, em seu entender, em condições de conhecer, de imediato do mérito da causa, conforme expressou no despacho proferido em 24-11-2017 e da consequência pronúncia de concordância de ambas as partes (cfr. requerimento dos embargantes de 11-12-2017 e requerimento dos embargados de 07-12-2017).
Conclui-se, pois, inexistir a nulidade arguida.
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B) Impugnação da matéria de facto - Se deve ser alterada a matéria de facto provada, suprimindo-se os pontos 11 e 12 do requerimento executivo da mesma?
Invocam, em seguida, os recorrentes/embargantes, na sua alegação de recurso visar a “alteração à matéria de facto dada como provada”, considerando que “da prova produzida nos presentes autos não resultaram provados os factos enunciados no ponto 1 da Motivação de Facto, ou seja os fatos alegados pela Requerente, a saber no requerimento executivo apresentado pela exequente, pelo que não pode a douta sentença dar como provada toda a matéria constante do mesmo, designadamente, o teor do ponto 11 e 12 do mesmo (…)”, concluindo que o ali alegado constitui matéria de direito e tem natureza conclusiva, entendendo que não pode o Tribunal considerar como provados “os fatos/conclusões constante do ponto 11 e 12 do requerimento executivo, dado que esta é a matéria controversa e em apreciação nos presentes autos” e “não tendo resultado provado dos elementos carreados para os autos a prova de tais fatos”, “…deve a decisão quanto à matéria de fato dada como provada ser alterada, suprimindo-se os pontos 11 e 12 do requerimento executivo da mesma”.
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exactas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Para além do referido e no que concerne ao modo como o Tribunal apurou a factualidade apurada, importa ter presente que existem diferentes planos de apreciação dos factos assim declarados como provados, conforme deriva, aliás, do disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, nos termos do qual o Juiz “…aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto…", sendo certo que essa livre apreciação não inclui "os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes".
Assim, há que distinguir, os casos de prova livre, dos casos de prova legal (tabelada ou tarifada).
Na realidade existem meios de prova cuja força probatória se impõe ao juiz, não tendo este qualquer margem de valoração acerca da factualidade expressa por eles.
É o que sucede, em geral, com os factos cuja prova resulte de documentos (arts. 371º, n.º 1 - documentos autênticos -, 377º - documentos autenticados - e 376º, nº 1 -documentos particulares -, todos do CC.
Também é o que ocorre quando os factos apurados derivam de confissão (art. 358º do CC) ou de acordo das partes (cfr. artigo 574.º, n.º 2, do CPC).
No mais, impera o regime da livre apreciação da prova, querendo isto significar que o Juiz deverá apreciar os meios de prova “…segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto…", nos precisos termos em que o estabelece o referido n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Em termos gerais, a livre apreciação do julgador ocorre na prova pericial (artigo 389.º do CC e artigo 489.º do CPC), na prova por inspecção judicial (artigo 391.º do CC), na prova por verificação não judicial qualificada (artigo 494.º, n.º 3, do CPC), na prova testemunhal (artigo 396.º do CC) e na prova por declarações de parte (artigo 466.º, n.º 3, do CPC).
Pode-se, assim, dizer que, regra geral, os meios de prova são apreciados livremente pelo Tribunal, mas há alguns casos de apreciação legal (vinculada, tabelada ou tarifada) de prova, como acontece com a confissão judicial escrita (artigo 358.º, nº1 do CC), com a confissão extrajudicial constante de documento dirigida à parte contrária (artigo 358.º, n.º 2, do CC) e com certa prova documental (artigos 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e 377.º, todos do CC).
O princípio da livre apreciação da prova cessa quando estejam em questão factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, conforme deriva do acima mencionado n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Por outro lado, mesmo dentro da prova legal, há diferentes graus a considerar, em função das condições em que será possível pôr em causa tal prova, falando-se então em prova bastante (susceptível de ser abalada por contraprova), em prova plena (susceptível de ser abalada pela prova do contrário) e pleníssima (aquela que não pode ser abalada sequer por prova do contrário).
Conforme se expressou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2017 (Pº 969/13.5TBVRL.G1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA), “a admissão de factos por acordo ocorre quando factos relevantes para a acção ou para a defesa não forem impugnados, havendo uma aceitação deles, independentemente da convicção da parte acerca da sua realidade (art. 574º nº1 do CPC)”.
E, no mesmo aresto se considerou que “é pacífico o entendimento que, mostrando-se determinada factualidade provada por acordo das partes- e estando, assim, os factos objecto desse acordo plenamente provados- não é admissível a produção de qualquer outro meio de prova, nomeadamente de prova testemunhal e prova documental, no sentido de pôr em causa aquela prova plena.
Na verdade, o nosso direito processual aceita que, em determinados casos, da omissão dum acto da parte resulte que se tenha por assente um facto, ou um acervo de factos alegados pela parte contrária.
Isso pode acontecer, desde logo, em casos de revelia (arts 566º e ss. do CPC), mas também sucede como decorrência da regra processual de que a não impugnação especificada dum facto no articulado seguinte àquele em que foi alegado resulta ter-se esse facto por assente (art. 574º, nº1 e 2 do CPC e art. 587º, nº1 do CPC, onde se refere expressamente que “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados…”; cfr. também, art. 607º, nº 4 do CPC onde se refere expressamente que “… o Juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito… “)”.
Ora, no caso, cumpre sublinhar que não houve lugar à produção de outra prova que não a que resultou da apresentação dos articulados, ou seja, na expressão do Tribunal recorrido, a que derivou da prova documental, da confissão e do acordo das partes sobre as posições que fizeram constar dos articulados.
Conforme deriva da fundamentação de facto, o juiz do Tribunal recorrido apenas considerou assente uma dupla factualidade:
- por um lado, referiu que os exequentes instauraram a presente execução contra os executados, com a alegação, que reproduziu, constante do requerimento inicial de execução; e
- por outro lado, considerou as cláusulas do contrato de arrendamento outorgado entre as partes, tendo reproduzido o teor de uma das suas cláusulas.
A descrição de que os exequentes apresentaram um requerimento executivo naqueles termos é incontestável, correspondendo ao ato jurídico de apresentação de tal peça processual. Sobre este ponto, o julgador não efetuou qualquer juízo crítico ou probatório, limitando-se a reproduzir a prática de tal ato, com a conformação que o mesmo teve.
E, dado que, com atinência a tal acto de apresentação da peça processual do requerimento executivo, a mesma nela comportou os pontos 11 e 12 do mesmo, com a configuração que foi expressa no ponto 1 dos factos provados, inexiste motivo para a supressão de tal menção relativamente a tal ponto, sem o que não se compreenderia, na integralidade, o teor do requerimento executivo.
Por outro lado, ao contrário do que pugnam os embargantes, não está em questão o conteúdo dos próprios pontos 11 e 12 do requerimento executivo, mas sim, a descrição material que o Tribunal realizou com arrimo no requerimento executivo apresentado que se encontra em perfeita fidedignidade com o inserto no ponto 1 dos factos provados.
Donde não se vislumbra que a matéria aí feita constar seja conclusiva ou contenha matéria de direito. A mesma é um facto enquanto reconduzível ao teor do articulado inicial apresentado pelos exequentes.
O mesmo se diga sobre o facto provado no ponto 2 - a outorga e subscrição do contrato de arrendamento aludido nos autos – contrato este que foi introduzido nestes pelos exequentes e não foi colocado em crise pelos executados.
E, assim, se compreende que o Tribunal recorrido tenha considerado assente uma tal factualidade, para o conhecimento de mérito que efetuou.
Mas, para além do mais, verifica-se que não resultava controvertido qualquer facto previamente à decisão tomada – nem ele foi assinalado pelos recorrentes - que determinasse a inclusão no acervo probatório de outra factualidade para além ou diversa da que foi incluída no rol de facto provados. Para além disso, conforme resulta das próprias posições das partes, não foi controvertida a questão do prosseguimento dos autos com produção probatória em audiência de discussão e julgamento. O que estava – e está – em questão prende-se, em exclusivo, com a interpretação e aplicação do direito aos factos e, não, com a determinação ou certeza destes.
Dito de outro modo: A correção da subsunção jurídica apurada pelo Tribunal recorrido não se prende com alguma alteração que deva ser introduzida na matéria de facto apurada, designadamente sobre o apuramento efetuado em torno do facto provado n.º 1, mas sim, com a apreciação do mérito do recurso, a qual se fará em seguida.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto deduzida pelos recorrentes.
*
C) Se deve ser considerado facto plenamente provado por documento?
Como anotam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, p. 798), “a decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de julgamento. O conteúdo da decisão pode revelar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art. 5.º (…).
Quanto a segmentos da decisão que (sendo imprescindíveis para a decisão) se revelem deficientes, obscuros ou contraditórios (STJ 12-5-16, 2325/12), a Relação deverá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal se fundou (cf., no sentido da constitucionalidade, o Ac. do Trib. Const. N.º 346/2009). Não sendo o caso, deve anular a decisão e remeter o processo também para a 1.ª instância. Solução também prevista para os casos em que se mostre necessária a ampliação da matéria de facto que não possa ser de imediato assegurada”.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-10-2019 (Pº 3901/15.8T8AVR.P1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS): “Verificado qualquer um dos ditos vícios ou patologias da decisão de facto, os poderes conferidos ao Tribunal da Relação como verdadeiro tribunal de instância – tendo em vista o cumprimento do desiderato de um segundo nível de jurisdição em matéria de facto em idênticas condições e sujeito às mesmas regras de direito probatório que vinculam o tribunal de 1ª instância -, conferem-lhe o dever, por um lado, de deles conhecer oficiosamente (independentemente, pois, da existência ou não de impulso da parte interessada) e, por outro, de os poder suprir imediatamente, desde que, naturalmente, constem do processo (ou da gravação) os elementos probatórios indispensáveis para esse suprimento.
Na verdade, como se expôs, além do mais, pode a decisão de facto com que é confrontado o Tribunal da Relação revelar-se deficiente, exigindo a sua ampliação, por terem sido desconsiderados nos temas de prova factos alegados pelas partes e essenciais para a resolução do litígio ou, ainda, como ora sucede, por terem sido desconsiderados na decisão factos que se revelem essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem um enquadramento ou fundamentação jurídica diverso do que foi suposto pelo Tribunal a quo.
Em tal hipótese, como resulta do preceituado no artigo 662º, n.º 2, al. c), do CPC, “ A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta. “
Todavia, como resulta do citado inciso legal, se à partida a consequência deverá ser, pois, a anulação da sentença, essa medida deve ser uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que essa anulação determina ao nível da celeridade e da eficácia.
De facto (…) a anulação da decisão de 1ª instância apenas deve ser decretada se do processo não constarem todos os elementos probatórios relevantes. Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas (…).
Deparando-se a Relação com respostas que sejam de reputar deficientes, obscuras ou contraditórias, se a reapreciação dos meios de prova permitir sanar a deficiência, obscuridade ou a contradição, a Relação fá-lo-á sem necessidade de reenviar o processo ao tribunal recorrido, após o que prosseguirá com a apreciação das demais questões que o recurso suscite. No caso inverso, cabe-lhe assinalar as referidas nulidades, determinar a anulação (parcial) do julgamento e ordenar que o tribunal a quo as supere (…)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2014 (Pº 411/11.6TBGMR-A.G1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA), “na fundamentação do seu acórdão deve a Relação tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras da experiência. Agiu, a Relação, em conformidade com a imposição legal, constante do n.º 4 do art. 607.º do CPC, ao considerar na factualidade provada os factos constantes das certidões de decisões judiciais já transitadas em julgado – documentos esses dotados de força probatória plena – completando assim a remissão genérica para o requerimento executivo”.
Em semelhante sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-11-2017 (Pº 1281/13.5TBTMR.E1, rel. TOMÉ DE CARVALHO), relativamente a factos reportados a documentos autênticos, que os mesmos, face ao seu valor probatório, poderiam ser incluídos nos factos provados “por via da interacção entre a disciplina prevista no artigo 5º, 567º, e 607º - embora não se tenha realizado julgamento este artigo encerra um princípio geral de actuação quanto à valoração dos factos admitidos por acordo, provados por documento ou obtidos através de confissão reduzida a escrito - do Código de Processo Civil, quando conciliados com a disciplina prevista nos artigos 363º e 371º do Código Civil”.
Assim, em caso de verificar deficiência da matéria de facto elencada, face à alegação produzida nos autos e encontrando-se tais factos provados plenamente por prova documental já carreada para os autos, será admissível e legítima a consideração de tal factualidade pela Relação, a incluir na matéria de facto provada, sem que exista necessidade de reenviar o processo ao tribunal de 1.ª instância, reenvio esse que constituiria um acto inútil.
Admite-se, pois, que o vício assinalado “pode e deve ser oficiosamente suprido pela Relação, desde que do processo constem todos os elementos probatórios relevantes (art. 662º, n.º 2, al. c), do CPC, por interpretação “a contrario”)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-10-2019, Pº 33627/18.4YIPRT.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES).
Ora, no caso, não obstante a conclusão antes expressa, no sentido da improcedência da impugnação da matéria de facto deduzida pelos recorrentes, certo é que, se mostra ser de incluir na matéria de facto assente, um outro facto, referente à formação do título executivo, relativamente aos embargantes, o qual se mostra plenamente provado por documento autêntico.
Tal facto – aliás, não colocado em crise pelos embargantes (cfr. v.g. conclusão XXIV da alegação dos embargantes) - deriva da prova documental plena (sobre a qual não recaiu qualquer arguição de falsidade) carreada para os autos de execução e traduz a operatividade da notificação judicial avulsa operada aos embargantes (cfr. artigo 371.º, n.º 1, do CC).
Assim, de harmonia com o exposto, deverá a correspondente factualidade ser considerada no âmbito dos factos apurados.
Importa, pois, em conformidade com o exposto, incluir nos factos assentes, um facto n.º 3, com a seguinte redação:
«Os embargados comunicaram aos embargantes, por notificação judicial avulsa, que correu termos no ….º Juízo Cível do Tribunal de Família, Menores e Comarca de Loures, processo n.º …/…TCLRS, junta como docs. 2 e 3 com o requerimento executivo, concretizadas em 03-10-2014, nomeadamente, o seguinte:
“1 – Que entre os requerentes na qualidade de Senhorios, a sociedade CLUB ACTIVE FIT – Actividades Desportivas Lda. na qualidade de Inquilina e os Requeridos na qualidade de Fiadores, vigorou um contrato de arrendamento relativo à cave do prédio sito à Avenida …, com os números … e …-A a D, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alvalade actualmente sob o artigo … (anterior artigo …) e descrito na ….ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º …/…, da freguesia de Santa Maria dos Olivais;
2 – Que o referido arrendamento cessou em 30 de Setembro de 2012;
3- Que, após aquela data, a Inquilina continuou a ocupar o locado contra a vontade dos Senhorios, só tendo procedido à sua entrega em 12 de Maio de 2014;
4 - Que, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, a inquilina apenas pagou o montante de 15.093,75 € (quinze mil, noventa e três euros e setenta e cinco cêntimos), nada mais tendo pago;
5 - Que, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, calculada nos termos do disposto no art. 1045º, nº 1 do C. Civil e relativa ao período entre Fevereiro de 2013 até 12 de Maio de 2014 conforme acima se expôs, permanece em dívida o montante de 45.958,05 € (quarenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinco cêntimos), em singelo, que os Requeridos, nas respectivas qualidades supra referidas, devem aos Requerentes(…)”».
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D) Se o Tribunal recorrido errou no julgamento de direito efetuado, por considerar improcedente a questão da inexistência de título executivo quanto ao pedido executivo, uma vez que nos termos dos artigos 703º nº 1 al. d) do CPC e 14º-A do NRAU, o documento junto na execução não constitui titulo executivo?
Alegaram os embargantes/recorrentes que o Tribunal recorrido não deveria ter decidido como decidiu ao considerar improcedente a questão da inexistência de título executivo.
Em suma, os embargantes referiram que o artigo 14.º-A do NRAU dispõe que «o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa corresponde às rendas, encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário», sendo que, no presente caso, o contrato de arrendamento cessou por denúncia à sua renovação efetuada pelos exequentes em 30-09-2012.
Mais alegaram os recorrentes que, “encontrando-se pagas todas as rendas até ao termo do contrato e (…) a compensação pela ocupação do imóvel até Fevereiro de 2013”, “…os montantes cujo pagamento (…) se peticiona, referem-se à indemnização devida pela arrendatária até efetiva entrega do locado após a data da cessação do contrato de arrendamento em causa, nos termos previsto no artº 1045º nº 1 do CC”.
Aduziram ainda os embargantes que, “…o artº 15º-A do NRAU é claro na sua redação, quanto refere que o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa das rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário. Não incluindo na sua previsão a sua exequibilidade quanto a quaisquer indemnizações. Sendo certo que se o legislador pretendesse que a indemnização prevista no artº 1045º do CC ali se encontrasse incluída o teria expresso, o que não fez”, pelo que, concluem que “…de acordo com os mencionados dispositivos legais, artº 703º nº 1 al. d) do CPC e artº 14º-A do NRAU, o documento junto como titulo executivo não reveste natureza de titulo executivo”.
Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-10-2011, Processo n.º 436/09.5TBVNG-A.P1 disponível para consulta em www.dgsi.pt “Quanto à indemnização não temos dúvidas que o título não comporta a sua realização coativa.(…) Logo, o título executivo não confere ao exequente suporte para a realização coativa do valor inerente à indemnização pela mora na restituição do locado, a que se refere o artigo 1045º, 2, do Código Civil, mas somente para o pagamento de rendas.”
Pelo que, mal andou a douta sentença a decidir como decidiu, devendo por isso ser revogada e ordenada extinta a presente ação executiva com todas as legais consequências.
Sem prescindir, acresce ainda que,
O artigo 15º n.º 2 do NRAU veio atribuir força executiva ao contrato de arrendamento para a acção de pagamento de renda, quando acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em divida.
O nº 5 do artigo 10º do CPC dispõe que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da execução, destacando-se de entre as espécies de títulos previstas no n.º 1 do artigo 703º, no que ao caso importa, os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Assim sendo, (…) o nº 2 do artigo 15º da Lei n.º 6/2006, ao conferir força executiva ao contrato de arrendamento condicionada à apresentação do mencionado comprovativo, criou um título executivo complexo, porque composto por dois documentos específicos, e constitui uma disposição especial para efeitos de cumprimento coercivo das rendas.
E porque se trata de norma especial não comporta interpretação analógica (cfr. artigo 11º do Código Civil), não podendo ademais olvidar-se que o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e que tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir adequadamente o seu pensamento (cfr. artigo 9º n.ºs 2 e 3 CC).
Deste modo, em presença de norma especial que cria um específico título executivo, também ele de natureza especial, face à letra da lei e à presumida correcção do acerto e correcta expressão do pensamento legislativo, temos de concluir que o artigo 14º nº 2 do NRAU só permite a formação de título executivo contra o arrendatário e não contra os fiadores, ainda que figurem no contrato como principais pagadores.
Veja-se nesse sentido, os Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 25.06.2014, pelo Tribunal da Relação do Porto de 24.04.2014 e da Relação de Lisboa de 31.032009 e de 18.09.2014.
E, ainda Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-12-2019, processo n.º 8820/18.3T8PRT-A.P1: “O título executivo previsto no artigo 14.º-A do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, com as alterações da Lei n.º 31/2012, de 14.08, é restrito ao arrendatário, não se estendendo ao respetivo fiador ainda que tenha intervindo no contrato de arrendamento e renunciado ao benefício da excussão prévia.
(…) Com efeito, a notificação ao fiador não está prevista na lei e não estando prevista na lei não pode o tribunal criá-la ou atribuir-lhe valor jurídico, pois estaria a construir uma norma fora dos casos em que o pode fazer.
Estaria a reconstruir (aumentando-lhe o alcance) a norma do artigo 14.º-A por interpretação extensiva ou a construir uma nova norma por analogia, coisa que, a nosso ver, nesta situação se mostra impossível. Desta forma, justifica-se que não se constitua título executivo contra o fiador porquanto este, após o contrato, não teve qualquer relação com o senhorio, pelo que seria injustificado confrontá-lo com a existência de uma execução sem que, após o contrato, tenha tido qualquer intervenção na formação do título executivo.
(…) O propósito do legislador foi possibilitar ao senhorio a formação de título executivo apenas em relação ao devedor principal, abstraindo da eventualidade de haver qualquer garante da obrigação exequenda.” (…)
Pelo que, ainda que se entendesse que os documentos em causa constituem titulo executivo bastante para a presente execução, a verdade que nunca seria titulo bastante contra os ora executados na qualidade de fiadores.
Pelo que, mais uma vez mal andou a sentença a decidir como decidiu”.
Vejamos:
A ação executiva pressupõe a prévia definição dos elementos, subjetivos e objetivos, da relação jurídica de que é objeto.
Tal definição está contida no título executivo, documento que constitui a base da execução por a sua formação reunir requisitos que a lei entende oferecerem a segurança mínima reputada suficiente quanto à existência do direito de crédito que se pretende executar.
O título executivo constitui um pressuposto processual específico da execução. É ele que determina o fim e os limites da ação executiva (art.º 10.º n.º 5 do CPC). Daí que a sua falta ou insuficiência constitua fundamento para a recusa do requerimento executivo pelo agente de execução (art.º 725.º n.º 1 alínea d) do CPC), para o indeferimento liminar do requerimento executivo pelo juiz (art.º 726.º n.º 2 alínea a) do CPC), para ulterior rejeição oficiosa da execução (art.º 734.º n.º 1 do CPC) e para oposição à execução (artigos 729.º n.º 1 alínea a) e 731.º do CPC).
O CPC em vigor, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, infletiu o sentido de ampla executoriedade de documentos consagrada no anterior CPC, retirando a exequibilidade aos documentos particulares, com ressalva dos títulos de crédito (vide art.º 46.º n.º 1 al. c) do anterior CPC e art.º 703.º n.º 1 do atual CPC).
Visou-se contrariar o aumento exponencial de execuções e o risco de execuções injustas, por ausência de controlo prévio sobre o crédito invocado e de contraditório (cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, que deu origem ao novo CPC).
A executoriedade de documentos particulares está, atualmente, dependente de disposição legal especial, que lhes atribua força executiva (cfr. n.º 2 do art.º 703.º do CPC).
Uma dessas disposições legais especiais, que conferem força executiva a documentos particulares, é a que se contém no n.º 1 do artigo 14.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU, diploma aprovado pela Lei 6/2006 de 27/2, objeto de alteração pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto e, novamente, pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro) que estabelece que: “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente ás rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
Esta norma tem como sua antecessora o art.º 15.º n.º 2 do NRAU (na sua versão originária) onde se dispunha:
“Título executivo
1 - Não sendo o locado desocupado na data devida por lei ou convenção das partes, podem servir de base à execução para entrega de coisa certa:
a) Em caso de cessação por revogação, o contrato de arrendamento, acompanhado do acordo previsto no nº 2 do artigo 1082º do Código Civil;
b) Em caso de caducidade pelo decurso do prazo, não sendo o contrato renovável por ter sido celebrado para habitação não permanente ou para fim especial transitório, o contrato escrito donde conste a fixação desse prazo;
c) Em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no artigo 1097º do Código Civil;
d) Em caso de denúncia por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado dos comprovativos das comunicações previstas na alínea c) do artigo 1101º do Código Civil e no artigo 1104º do mesmo diploma;
e) Em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº 1 do artigo 1084º do Código Civil, bem como, quando aplicável, do comprovativo, emitido pela autoridade competente, da oposição à realização da obra;
f) Em caso de denúncia pelo arrendatário, nos termos do nº 5 do artigo 37º ou do nº 5 do artigo 43º, o comprovativo da comunicação da iniciativa do senhorio e o documento de resposta do arrendatário.
2 - O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.”
Conforme se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-03-2019 (Pº 4957/18.7T8SNT-B.L1-6, rel. ADEODATO BROTAS), sobre a alteração efetuada do artigo 15.º, n.º 2, do NRAU na sua versão inicial, para o actual e vigente artigo 14.º-A, que: “É fácil perceber que com a nova redacção o legislador teve o cuidado de ser mais rigoroso, passando a utilizar a expressão “…título executivo para execução para pagamento de quantia certa…” em vez “…título executivo para acção de pagamento de renda…”. Além disso, ampliou o leque de prestações susceptíveis de constituírem causa debendi constantes do título: alargou-o aos encargos e despesas que corram por conta do arrendatário”.
O normativo em apreço refere-se a um título executivo de feição complexa, integrado por dois elementos corpóreos: o contrato de arrendamento escrito e o documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida (assim, a decisão sumária proferida neste Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 12-12-2008, P.º 10790/2008-7, TOMÉ GOMES).
A questão que se coloca é a da de saber se o título executivo previsto no artigo 14.º-A do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o aditamento resultante da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto - que corresponde ao anterior artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal - se aplica apenas ao arrendatário ou se vincula também os fiadores que tenham intervindo no contrato de arrendamento.
A questão em apreço já foi objecto de intensa análise doutrinária e jurisprudencial, verificando-se acentuada divergência.
Em termos doutrinários, Fernando Gravato de Morais (Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano; Almedina, 2010, pp. 77-81; Cadernos de Direito Privado, Julho/Setembro 2009, n.º 27, CEJUR, pp. 57-63, e “A jurisprudência no triénio posterior à entrada em vigor do NRAU”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, Vol. I, Direito e Justiça, UCP, 2011, pp. 512-513) pronunciou-se no sentido de que, do texto do artigo 15º, nº 2 do NRAU (antes da alteração introduzida pelo actual artigo 14º-A), apenas se pode afirmar uma tendência no sentido da não aplicabilidade ao fiador, dado o preceito ter sido pensado apenas para o arrendatário, revelando contudo dúvidas quanto à interpretação da norma.
Entende o mencionado Autor que o preceito em questão se insere num normativo destinado, essencialmente, a proteger os interesses do senhorio perante o arrendatário, sendo esse o contexto da lei, expresso no amplo leque de casos do n.º 1 do artigo 15.º do NRAU, na sua versão originária.
No mesmo sentido, Rui Pinto (Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, pp. 1164-1165), Soares Machado e Regina Santos Pereira (Arrendamento Urbano (NRAU), 3.ª ed., Petrony, 2014, pp. 281 e 284) e Teixeira de Sousa (Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, coordenação de Menezes Cordeiro, AAVV, 2014, p. 406) excluem o fiador do âmbito e alcance do artigo 14º-A do NRAU, na redação em vigor (correspondente ao artigo 15.º, n.º 2, do NRAU na versão de 2006), afirmando a natureza restritiva das normas que prevêem categorias de títulos executivos, limitados em relação a uma interpretação não literal.
No plano jurisprudencial o dissêndio também se verifica.
Assim, por um lado, manifestando-se no sentido de que o título executivo em questão, previsto no artigo 14.º-A do NRAU, é restrito ao arrendatário, não se estendendo ao respectivo fiador ainda que tenha intervindo no contrato de arrendamento e renunciado ao beneficio de excussão prévia, vd. os seguintes arestos (todos disponíveis nas bases de dados da DGSI e ECLI):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-11-2007 (Pº 7685/2007-6, rel. JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31-03-2009 (Pº 2150/08.6TBBRR.L1-7, rel. ANA RESENDE);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-09-2014 (Pº 6126/12.0TCLRS.L1-2, rel. EZAGUY MARTINS);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-03-2018 (P.º 1457/15.0T8ACB-A.C1, rel. ALBERTO RUÇO);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-04-2014 (Pº 869/13.9YYPRT.P1, rel. ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2019 (Pº 8820/18.3T8PRT-A.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES);
Ao invés, posicionando-se no sentido de que o título executivo se forma também relativamente ao fiador, vd. entre outros, as seguintes decisões (todas disponíveis nas bases de dados da DGSI e ECLI):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-11-2014 (Pº 1442/12.4TCLRS-B.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2012 (Pº 1105/12.0YRLSB-2, rel. ONDINA CARMO ALVES);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-11-2014 (Pº 7211/13.7YYLSB-B.L1, rel. CARLOS MARINHO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-10-2015 (Pº 4156-13.4TBALM-B.L1-8, rel. RUI DA PONTE GOMES);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-05-2016 (Pº 13257/15.3T8LSB-A.L1-7, rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-06-2016 (Pº 5356/12.0TBVFX-B.L1-7, rel. LUÍS ESPIRITO SANTO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-10-2016 (Pº 4960/10.5TCLRS.L1-6, rel. EDUARDO PETERSEN SILVA);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-11-2016 (Pº 4633/08.9YYLSB-B.L1-2, rel. VAZ GOMES)
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-02-2017 (Pº 6165-14.7YYLSB-B.L1-8, rel. ISOLETA ALMEIDA COSTA);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-01-2018 (Pº 10087-16.9T8LRS-B.L1-6, rel. CRISTINA NEVES);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-02-2019 (Pº 11637/18.1T8LSB.L1-7, rel. DIOGO RAVARA);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-03-2019 (Pº 15962/17.0T8LSB-A.L1-7, rel. CRISTINA COELHO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-03-2019 (Pº 4957/18.7T8SNT-B.L1-6, rel. ADEODATO BROTAS);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-09-2019 (Pº 6298/13.7TBVFX.L1-6, rel. ANA PAULA CARVALHO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-11-2019 (Pº 1866/17.0T8ALM-A.L1-6, rel. TERESA PARDAL);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-04-2009 (Pº 7864/07.5TBLRA-B.C1, rel. SÍLVIA PIRES);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-06-2019 (Pº 7285/18.4T8CBR-B.C1, rel. LUÍS CRAVO);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-05-2009 (Pº 1358/07.6YYPRT-B.P1, rel. GUERRA BANHA);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-06-2009 (Pº 2378/07.6YYPRT-A.P1, rel. CÂNDIDO LEMOS);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-10-2009 (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Pº 2789/09.2YYPRT.P1, rel. HENRIQUE ANTUNES);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-05-2010 (Pº 3913/08.8TBGDM-B.P1, rel. RODRIGUES PIRES);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-05-2011 (Pº 515/10.2TBMAI-A.P1, rel. RUI MOURA);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-10-2011 (Pº 8436/09.5TBVNG-A.P1, rel. CECÍLIA AGANTE);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-03-2013 (Pº 8876/09.7TBMAI-A.P1, relatora Anabela Dias da Silva);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-03-2018 (Pº 13535/14.9T8PRT-A.P1, rel. ANA LUCINDA CABRAL);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29-05-2012 (Pº 579/09.1YYPRT-A.G1, rel. MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-02-2018 (Pº 8529/15.0T8VNF-B.G1, rel. MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA).
Ponderada a situação em apreço e as inevitáveis dúvidas decorrentes de tão ampla divergência, designadamente jurisprudencial, afigura-se-nos ser de perfilhar este último entendimento.
Neste ponto, parecem-nos inteiramente válidas as considerações expendidas no Acórdão deste Tribunal de 07-06-2016 (Pº 5356/12.0TBVFX-B.L1-7, rel. LUÍS ESPIRITO SANTO) sobre as razões que justificam esta posição.
Assim:
“(…) A norma em análise – o artigo 14º-A do NRAU (bem como o antecedente artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal) – não identifica concretamente o sujeito contra o qual se formou o título executivo, não aludindo à pessoa do arrendatário ou à do fiador.
Refere, apenas que “o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da notificação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas (…)”.
Trata-se de um documento a que, por disposição especial, é atribuída força executiva, nos termos da alínea d) do nº 1, do artigo 703º do Código de Processo Civil.
É, portanto, neste quadro de especialidade e excepcionalidade que terá que ser entendida e enquadrada a formação do título executivo em referência.
O artigo 10º, nºs 4 e 5, do Código de Processo Civil, estabelecendo que o título executivo constitui a base que determina o fim e os limites da acção executiva, legitima o exequente a obter, nessa sede, a realização de uma obrigação que lhe é devida, sem necessidade de prévia instauração de acção declarativa.
Consistindo o título executivo no contrato de arrendamento celebrado, complementado com a comunicação ao arrendatário (e ao fiador) do montante em dívida, é absolutamente compreensível e expectável que a obtenção da realização da obrigação devida ao senhorio – o pagamento das rendas vencidas – possa advir, nesta sede, do conjunto dos responsáveis pelo incumprimento e que se assumiram, enquanto tais, no próprio título exequendo: o arrendatário e o seu garante, que nessa mesma específica qualidade aceitou e subscreveu o documento agora dado à execução.
Concordantemente, lei não refere nem sugere, em momento algum, em termos restritivos, que este título especial só deva ter eficácia executiva contra o arrendatário.
Na situação sub judice, tendo existido comunicação válida aos fiadores, é indiscutível que os mesmos figuram, enquanto verdadeiros e próprios obrigados, no título complexo que serve de base à execução para pagamento de quantia certa (as rendas vencidas e não pagas).
Não cremos, portanto, que existam razões sérias e bastantes para os excluir do processo executivo, no qual poderão, naturalmente, exercer os mais amplos direitos de defesa – tal como sucederia na acção declarativa, a intentar com o mesmo objecto essencial e prosseguindo idêntico finalidade mediata.
O conteúdo da responsabilidade do fiador, sendo própria e autónoma, molda-se sobre o da pessoa afiançada, nos termos gerais dos artigos 627º, nº 1 e 634º do Código Civil.
Trata-se de uma posição pessoal de garante, a título acessório, do cumprimento da obrigação assumida pelo devedor principal.
Conforme salienta Luís Menezes Leitão, in “Garantia das Obrigações”, a página 108, “a fiança resulta sempre ou de um contrato entre o fiador e o credor, ou de um contrato entre o fiador e o devedor que, nesse caso, revestirá a natureza de contrato a favor de terceiro (…) Apesar de a fiança ser normalmente originada num contrato entre duas partes, ela é sempre elemento de uma relação triangular entre o fiador, o credor e o devedor”.
As características e o regime jurídico da fiança (mormente o preceituado nos artigos 627º, nº 2, 631º, 632º e 637º do Código Civil) não prejudicam, de modo algum, a possibilidade de criação, quanto ao fiador, de um título a que a lei especialmente confira força executiva, conforme é precisamente o caso do citado artigo 14º-A do NRAU, relativamente ao não pagamento das rendas vencidas no contrato de arrendamento.
Não se trata, nesta situação, da constituição de um título executivo (contra os garantes) por mera notificação extrajudicial, atendendo a que o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, não revestiria, por si, a qualidade de título executivo (questão abordada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Novembro de 2007 -relator José Eduardo Sapateiro).
Diferentemente, neste particular, o legislador quis consagrar um título a que, em especial, atribuiu força executiva (cfr. artigo 703º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil), conferindo-lhe uma específica e inconfundível natureza e alcance.
Como se referiu, esse mesmo título, de natureza complexa, é composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e ao fiador) quanto aos montantes em dívida.
A situação do fiador, enquanto executado, é neste contexto precisamente similar à do próprio arrendatário: ambos figuram no contrato de arrendamento; ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas; de ambos pode o credor senhorio exigir tal pagamento.
Logo, o título executivo criado ex novo, com foros de especialidade, protegendo primordialmente o interesse do senhorio, deve valer contra ambos.
A tal não se opõe o regime substantivo da fiança que, nos termos do artigo 634º do Código Civil, prevê que a responsabilidade do fiador cubra as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, indiciando a própria desnecessidade da sua interpelação (sobre este ponto, vide, entre outros, a decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2008 – relator Tomé Gomes).
Na situação sub judice, como se disse, os executados fiadores tiveram intervenção pessoal e directa no contrato de arrendamento que constitui um dos documentos base que serve de suporte à presente execução.
São, portanto, directamente responsáveis pelas consequências patrimoniais associadas ao incumprimento pelo arrendatário quanto à sua obrigação básica do pagamento pontual da renda estabelecida, tendo-lhes sido comunicado previamente, através de notificação judicial avulsa, o montante em dívida a este título.
Não se vislumbra, portanto, tomando em consideração o regime substantivo correspondente à figura da fiança, qualquer motivo suficientemente forte e relevante para não devam ser abrangidos pela previsão do artigo 14º-A do NRAU (e do artigo 15º, nº 2 do regime antecedente).
– Afigura-se-nos absolutamente inócuo, para estes efeitos, que a anterior disposição legal aplicável previsse, no respectivo artigo 15.°, nº 2: “O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida".
A alteração introduzida pelo actual artigo 14º-A limitou-se a acrescentar, no âmbito da abrangência da norma, “os encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário”, sem bulir com o essencial da sua previsão: a possibilidade do senhorio, após haver notificado o devedor ou devedores, partir de imediato para a acção executiva, sem as delongas associadas à instauração prévia da acção declarativa com vista ao reconhecimento do seu crédito.
Não é pelo facto da norma se ter tornado mais abrangente, reforçando a tutela dos direitos do locador face ao incumprimento do locatário, que daí vem a resultar qualquer tipo de exclusão de responsabilidade, em sede executiva, do fiador do inquilino.
A ausência de referência formal – preto no branco – à figura do fiador na letra do artigo 14º-A do NRAU, não é, só por si, susceptível de desarmar o senhorio relativamente à possibilidade de investida executiva contra o garante pelo cumprimento das obrigações do arrendatário.
É a própria norma a conferir a natureza de título executivo ao contrato de arrendamento, conjugado com a subsequente comunicação pessoal da dívida, o que levará razoavelmente a entender, coerente e logicamente – perscrutando, deste modo, a intenção legislativa -, a responsabilização, directa e pessoal, de todos e cada um dos sujeitos obrigados nesse mesmo título: quer o arrendatário, quer o fiador que aí figure.
A referenciada circunstância de o artigo 14º-A não haver alterado substancialmente o que anteriormente dispunha o antecedente 15º, nº 2, quando o assunto já teria sido objecto de discussão e entendimentos divergentes, constitui um argumento manifestamente débil e inconsistente.
Com efeito, a intervenção legislativa não tem de pautar-se necessariamente pela função pedagógica, clarificadora ou uniformizadora do sentido das normas cuja interpretação gere controvérsia. Não é isso que se pede ou que se espera do legislador. Se norma antecedente já revelava o sentido e alcance que ora se propugna, era totalmente dispensável e inapropriada a interpretação autêntica realizada, enviesadamente, por esta via omissiva ou inerte.
É perfeitamente normal que o Decreto-lei nº 1/2013, de 7 de Janeiro, no seu artigo 7º, obrigue a que o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas em atraso só possa ser deduzido contra o arrendatário e não contra o fiador.
Note-se que o objectivo fundamental desse diploma de natureza especial é a cessação do arrendamento e a desocupação célere do locado, em termos particularmente simples e eficazes, procurando-se obstar a invocação de qualquer matéria que, tornando mais complexa a lide, inviabilize ou dificulte esse concreto desiderato.
Já o título executivo que serve de base a execução com vista ao pagamento de quantia certa envolve outro tipo de objectivos: a eficaz obtenção pelo credor dos montantes pecuniários – expressos no título complexo (arrendamento e comunicação) - que lhe são devidos, em relação àqueles que se constituíram como seus devedores através da subscrição desses documentos.
Pelo não é legítimo retirar dessa circunstância, respeitante ao citado artigo 7º do Decreto-lei nº 1/2013, de 7 de Janeiro, qualquer outro tipo de ilação para a discussão que nos ocupa, uma vez que um dos diplomas não contende nem interfere com o alcance e propósitos do outro.
Não se compreende que a pretensa debilidade/fragilidade do fiador ou o seu maior risco – relativamente ao afiançado – aconselhe (interpretativamente) a deixá-lo de fora do título executivo assim formado.
O fiador é responsável directo e pessoal, enquanto garante, pelas obrigações incumpridas pelo afiançado no que se refere ao não pagamento pontual das rendas vencidas. Terá ao seu dispor os meios de defesa que assistem ao afiançado.
Ao assumir-se, livre e voluntariamente, como fiador, e havendo subscrito o contrato nessa qualidade particular, não pode invocar, em termos razoáveis, que não esperasse ou antevisse a eventualidade/probabilidade de ser chamado a responder pela obrigação típica do arrendatário que fora incumprida.
É normal e compreensível que o faça na própria sede executiva, ao lado daquele em cujo interesse se atravessou, assumindo a sua própria e autónoma responsabilidade, embora decalcada na daquele.
A circunstância de a vinculação do fiador ficar inteiramente dependente da vontade e do cumprimento do afiançado, neste caso o inquilino, constitui uma característica absolutamente natural na lógica do regime jurídico inerente ao funcionamento da figura da fiança.
De resto, é precisamente isso o que significa ser garante do cumprimento da obrigação de outrem.
O artigo 637º, nºs 1 e 2 do Código Civil, confere ao fiador a possibilidade de invocação de todos os meios de defesa, os próprios e que os competiriam ao afiançado, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador.
Este recorte essencial do regime da fiança – responsabilidade até ao limite do conteúdo da obrigação principal (artigo 631º, nº 1 do Código Civil) e abrangência quanto às consequências contratuais da mora (artigo 634º do Código Civil) – nada tem a ver com os meios que a lei entenda disponibilizar ao senhorio, enquanto credor do direito às rendas vencidas.
A pretensa fragilidade da posição jurídica do fiador não obriga, por si só, à opção por um regime menos agravado (a acção declarativa em vez da executiva) do ponto de vista processual.
De resto, a própria constituição da fiança constitui, na maior parte das situações, a melhor e mais sólida garantia concedida ao senhorio no sentido da salvaguarda da efectivação do direito básico neste relacionamento negocial: o recebimento pontual da renda.
Fará sentido obrigá-lo a desdobrar os procedimentos processuais – ao jeito de via sacra - para obter a prestação que, no mesmo circunstancialismo de facto, lhe foi expressamente assegurada, por ambos os intervenientes contratuais?
– No mesmo sentido, não pode aceitar-se o argumentário de que “só o arrendatário está em condições de controlar a veracidade do conteúdo da comunicação e deduzir oposição”.
É evidente que o fiador, tendo querido assumir - e assumido de facto - a obrigação pessoal de garante, terá que diligenciar pela sua própria defesa, sem se escudar nos conhecimentos privados do seu afiançado, a que poderá ter, ou não, acesso.
É um problema exclusivo do fiador com o qual o senhorio, credor da importância exequenda, nada tem a ver.
Sempre se dirá que, normalmente, a constituição de fiança tem na base numa relação muito próxima (familiar, de amizade, ou outra) que facilmente permite, na maior parte das situações, reunir os elementos necessários para sindicar a veracidade da comunicação e congregar todos os meios de defesa.
Acrescente-se, ainda, que este tipo de conhecimento - eventualmente distanciado – refere-se a um facto de natureza objectiva e de comprovação relativamente simples: o pagamento, ou não, pontual da renda exigível.
Não colhe a argumentação de que o regime do NRAU já consagra casos de multiplicidade de acções, como sucede relativamente ao pedido de rendas, cumulado com a indemnização prevista à luz do artigo 1045º, nº 2 do Código Civil.
Com efeito, se há casos em que se compreende que não seja possível dispensar a discussão e reconhecimento do direito subjectivo na acção declarativa própria, inviabilizando a possibilidade de recurso imediato à acção executiva, tal não constitui razão suficientemente forte para restringir o âmbito da execução nas situações – como o presente – em que a formalização da obrigação devida ao senhorio, permitindo responsabilizar o arrendatário, deve logicamente produzir tal efeito relativamente ao seu garante e co-responsável, sem prejuízo do exercício dos direitos de defesa em sede de oposição à execução.
A exclusão do fiador do âmbito do título executivo obrigará, quanto a uma matéria normalmente linear – pagou ou não pagou a renda vencida – a uma inconveniente e indesejável duplicação de meios processuais, com todos os riscos inerentes, sacrificando-se o credor, em termos de custos e tempo, quando os tão proclamados valores da economia e agilização de actos e ritos, bem como da eficiência e do prestígio do funcionamento da instituição judiciária, imporiam, obviamente, a resolução conjunta, célere e global, desta questão jurídica, sem mais desdobramentos ou compassos de espera inúteis, injustificados e inconsequentes.
De resto, o entendimento oposto ao que se perfilha conduz a colocar em crise o próprio alcance prático da fiança – que existe fundamentalmente para servir o interesse do credor, que vê nela a sua garantia mais real e eficaz -, uma vez que o senhorio seria sistematicamente levado a accionar executivamente, em primeiro lugar, apenas o inquilino.
A eventual execução contra fiador, após a demorada demanda declarativa (com os custos associados), só aconteceria muito mais tarde, desfasadamente, num momento em que o crédito já se encontraria satisfeito ou em que se teria entretanto consolidado negativamente – quiçá de forma irrecuperável – o arrastado e ininterrupto prejuízo económico para o (virtual) beneficiário da fiança”.
Como resulta do que vem sendo referido, a norma em apreço não é restritiva ao arrendatário, sendo que para haver título executivo contra o fiador será necessário obter-se o comprovativo da comunicação a este, para que não ocorra execução sem, previamente, o fiador saiba que a obrigação do arrendatário se venceu e lhe é exigível a si o pagamento.
A lógica tem de se encontrar nas circunstâncias da própria elaboração da reforma do NRAU e nas finalidades a que se propôs o legislador, nomeadamente a procura pela flexibilização do mercado do arrendamento, a agilização nos procedimentos para a recuperação do gozo arrendado, entre outras.
Concluindo, a norma do NRAU não se encontra restringida ao arrendatário, entendendo-se, sem se efetuar qualquer interpretação analógica, que é passível a formação de título executivo contra o fiador que tenha intervindo no contrato sem que haja a necessidade de, previamente, o locador ver o direito contra este reconhecido em ação declarativa contra ele instaurada.
Assim, perfilhando-se este entendimento, conclui-se que se mostra possível a formação de título executivo, nos termos do n.º 1, do artigo 14.º-A do NRAU, quer contra o arrendatário, quer contra o fiador, desde que, para tal, sejam observadas as demais condições legais para que tal formação se concretize, a saber: a) A junção de contrato de arrendamento; b) A junção de comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida; c) Que ao fiador seja dada a conhecer tal comunicação.
No presente caso, do requerimento executivo dos autos resulta que os exequentes instauraram acção executiva para obter o pagamento das rendas não pagas, indemnização e juros, pela executada/arrendatária, reclamando a quantia exequenda também dos fiadores, ora embargantes, tendo junto o contrato de arrendamento, a notificação do locatário com a comunicação do valor em dívida e certidão de notificações judiciais avulsas operadas na pessoa dos embargantes/fiadores.
Comprovada se encontra a formação do título executivo complexo em questão relativamente aos ora embargantes, que subscreveram no contrato de arrendamento na qualidade de fiadores.
Improcede, pois, a questão de falta de título executivo suscitada pelos embargantes.
*
E) Se o Tribunal recorrido fez uma errada aplicação do direito, ao não declarar que a fiança se extinguiu aquando da cessação do contrato de arrendamento ocorrida por denúncia em 30 de Setembro de 2012, ao não declarar os embargantes parte ilegítima e ao não reconhecer a inexigibilidade da quantia exequenda?
Como se viu, concluem ainda os recorrentes que:
“(…) XLVI. É certo que os Executados intervieram e assinaram o contrato de arrendamento em apreço na qualidade de fiadores, contudo, basta atentar na clausula contratual onde de prevê a constituição da fiança, para concluir que a mesma se extinguiu aquando da cessação do contrato de arrendamento em causa.
XLVII. Ora, resulta claramente da referida cláusula 12º do contrato de arrendamento que a obrigação dos fiadores era acessória da obrigação principal que recaía sobre a arrendatária, nos termos do art.º 627.º, n.º 2 do CC.
XLVIII. Ficando, portanto, subordinada a seguir a obrigação afiançada, acompanhando as suas vicissitudes, como sejam a invalidade ou extinção, conforme previsto no artºs 632.º e 651.º do CC.
XLIX. Assim, tendo o contrato de arrendamento cessado por denuncia em 30 de Setembro de 2012, a partir dessa data deixaram os fiadores de ser responsáveis pelos actos da arrendatária, já que se obrigaram como fiadores apenas enquanto durasse o contrato.
L. Acresce que, a indemnização aqui em causa diz respeito à actuação da arrendatária ora executada em momento posterior ao termo do contrato de arrendamento.
LI. Sendo certo que, após a cessação do contrato de arrendamento, os montantes alegadamente devidos a título de ocupação do locado, nos termos do disposto no artº 1045º nº1 CC, já não responsabilizam os fiadores, pois que a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança, como dispõe o artº 651º CC.
LII. Nada obsta ao referido, o fato de na a cláusula 12ª do contrato referir que os fiadores se responsabilizam «…até à efectiva restituição do arrendado…».
LIII. Com efeito, a fiança abrange a responsabilidade pelo pagamento das rendas até à restituição do locado, caso esta ocorresse na vigência do contrato, o que não aconteceu!
LIV. Aliás, tal expressão não exclui a interpretação feita de que «a restituição do arrendado» deve ocorrer, para responsabilizar o fiador, na vigência do contrato.
LV. Sendo que, o numero dois da referida clausula 12º do contrato, vem ao encontro desta interpretação, esclarecendo que: «A fiança prestada pelos fiadores nos termos exarados no presente contrato manter-se-á enquanto o mesmo durar…»
LVI. Ora, se assim não fosse a fiança perderia a sua natureza acessória e tornarse-ia complemente indeterminada.
LVII. Veja-se sobre esta matéria o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-10-2006, processo n.º 6084/2006-8 disponível em www.dgsi.pt.
LVIII. Face ao exposto, não restam dúvidas de que a fiança se extinguiu com a resolução do contato, pelo que o ora executado é parte ilegítimas na presente ação, não lhes sendo exigível a quantia peticionada, pelo que a douta sentença ao decidir como decidiu fez uma errada aplicação do direito, devendo ser revogada”.
Vejamos:
Do contrato de arrendamento outorgado entre as partes, consta da cláusula décima segunda, que:
“Um – Os Srs. PJ…, PN… e o aqui outorgante, JA…, constituem-se fiadores da inquilina, respondendo pessoal e solidariamente entre si e com esta, pelas obrigações decorrentes do fiel cumprimento de todas as cláusulas desse contrato, incluindo seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do local livre devoluto e nas condições estipuladas, designadamente quanto às rendas compreendendo os respectivos aumentos convencionados e legais, os prejuízos causados no locado e também as quantias referidas na cláusula anterior que os senhorios venham a suportar, e, bem assim declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alteração da renda agora fixada e mesmo depois de decorridos o prazo de cinco anos a que alude o n.º 2 do Artº 665 do Código Civil.
Dois – A fiança prestada pelos fiadores nos termos exarados no presente contrato manter-se-á enquanto o mesmo durar, incluindo todos os períodos pelos quais se vier a renovar”.
A fiança traduz-se no facto de um terceiro assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respectivo credor (cfr. artigo 627.º, n.º 1, do CC).
Conforme dispõe o nº 1 do artº 627º do CC: “O fiador garante a satisfação do crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor”.
A fiança é, assim, como referia Vaz Serra, “uma garantia pela qual um terceiro assegura o cumprimento de uma obrigação (...), responsabilizando-se pelo devedor, se este não cumprir a obrigação” ("Fiança e Figuras Análogas", in BMJ, nº 71, p. 19).
Nesta medida, a responsabilidade do fiador é moldada na responsabilidade do devedor principal, abrangendo todo o conteúdo desta.
As características deste instituto jurídico são as seguintes: a) Acessoriedade; e b) Subsidariedade.
a) Acessoriedade:
Assim, o artigo 627.º, n.º 2, do CC prescreve que: “A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”.
Esta acessoriedade da fiança face à obrigação principal, revela-se nos mais variados aspectos. Assim, o instituto da fiança, podendo ter por fonte a lei, surge normalmente do encontro da vontade das partes, devendo a prestação da fiança ter a forma exigida para a obrigação principal (nº 1 do artº 628º do CC).
Pode, também, a fiança abranger quaisquer obrigações, quer presentes, quer futuras ou condicionais (nº 2 do artº 628º do CC), relativamente ao momento em que é prestada.
Quanto ao modo de constituição da fiança, a lei não é expressa, e a doutrina e a jurisprudência têm-se dividido.
Uns consideram que a fiança só se pode constituir por contrato, enquanto outros admitem a sua constituição, também por meio de negócio jurídico unilateral.
A questão não é destituída de interesse prático, pois, com efeito, quem considere que a fiança pode ser constituída por negócio jurídico unilateral, não vê obstáculo à validade do termo de fiança apenas assinado pelos fiadores, enquanto que já poderá não ser assim para quem siga a opinião contrária.
Por outro lado, nos termos do artigo 634.º do CC, “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”.
Quanto ao conteúdo, o artigo 631.º do CC estabelece que a fiança não pode exceder o conteúdo da dívida principal, nem a fiança ser contraída em condições mais onerosas.
Quanto à validade da fiança, a mesma está dependente, por força do artigo 632º do CC, da validade da obrigação principal.
Finalmente, quanto à extinção, o artigo 651.º do CC prescreve que a mesma se verifica pela extinção da obrigação principal.
b) Subsidariedade:
Por outro lado, sendo uma garantia acessória, a obrigação do fiador é uma obrigação distinta da do devedor, embora tenha o mesmo conteúdo. Esta situação difere do regime da solidariedade passiva em que a obrigação é a mesma, havendo apenas alternativa quanto aos sujeitos.
A obrigação assumida pelo fiador é não só acessória, mas ainda, normalmente (caso não haja, por exemplo, renúncia ao beneficio de excussão prévia), subsidiária da dívida principal, pois, o seu cumprimento só pode ser exigido quando o devedor não cumpra, nem possa cumprir, a obrigação a que se encontra adstrito.
A subsidiariedade da fiança revela-se no benefício da excussão que consiste, precisamente, no direito que pertence ao fiador de recusar o cumprimento da obrigação afiançada, enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal.
Há, todavia, situações em que o fiador não goza do benefício da excussão prévia dos bens do devedor, conforme resulta do disposto no artigo 640.º do CC.
Revertendo estas considerações e aplicando-as ao caso dos autos, vemos que os embargantes prestaram fiança, assumindo o pagamento das obrigações emergentes para a arrendatária com a celebração do contrato dos autos.
Tal declaração assumiu a forma do contrato afiançado - escrita -, mostra-se expressamente declarada (cfr. artº 628º nº 1 do Código Civil) e o seu conteúdo é determinável face ao contrato afiançado, nada obstando à validade de tal obrigação.
Dado ter sido outorgada a prestação de fiança, a mesma acompanha obrigação principal, cujo cumprimento garante.
Assim, verificado o incumprimento por parte da arrendatária, igualmente se verifica a responsabilidade dos fiadores no cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes do contrato que foi celebrado com os exequentes.
Precisa a lei que “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor” (artº 634.º do CC), pelo que, a responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário (artº 631.º, nº 1, do CC), molda-se pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artigo 798.º do CC) ou a pena convencional que, porventura, se haja estabelecido (artigo 810.º do CC).
É que, conforme se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-05-2018 (P.º 5896/17.4T8LSB.L1, rel. CRISTINA NEVES), “quem garante certa obrigação como fiador, pretende, em regra, dar ao credor a segurança de que ele obterá o resultado do cumprimento dessa obrigação.
Nestes termos, o fiador, se não estipulou o contrário, responde, não só pela prestação devida pelo devedor, mas também pelo equivalente pecuniário dela e pelos danos causados ao credor pelo não-cumprimento”.
Assim, constituída a fiança passam a existir duas obrigações: a do devedor (principal) e a do fiador, que é acessória da daquele – cfr. artigo 627.º, n.º 2, do CC.
A fiança assim prestada subsistiria até à efectiva restituição do local livre e devoluto e nas condições estipuladas e, bem assim, ainda que houvesse alteração da renda fixada e mesmo depois de decorrido o prazo de cinco anos a que aludia o n.º 2 do art. 655.º do CC.
Assim, ao contrário do que pugnam os recorrentes, não pode concluir-se que a fiança – e as obrigações que a mesma garantia - se tenha extinguido com a oposição à renovação do contrato de arrendamento, sendo que, aliás, a lei prevê precisamente a possibilidade de ocorrer a satisfação do interesse do senhorio na decorrência de denúncia operada sem respeito de pré-aviso – cfr. artigo 1098.º, n.º 6, do CC.
Dito de outro modo: Não é a circunstância de os senhorios se terem oposto à renovação do contrato de arrendamento, que determina a extinção das obrigações afiançadas e que já se encontravam vencidas quando aquela oposição teve lugar.
Conforme se explanou, em sentido concordante com o que vem sendo expresso, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-10-2009 (Pº 2789/09.2YYPRT.P1, rel. HENRIQUE ANTUNES): “Ao contrário do que sucede com a reparação do dano resultante da mora no cumprimento da obrigação de pagamento da renda que a lei, com propriedade, qualifica, expressamente como indemnização, no caso da inobservância da antecedência da comunicação da denúncia, a lei fala no pagamento das rendas correspondentes ao período do pré-aviso em falta (…).
Esta obrigação de pagamento da renda não visa, portanto, como é característico da indemnização, reparar ou ressarcir o dano resultante da inobservância do pré-aviso da denúncia, que, de resto, pode não existir, como sucederá, nos casos em que o senhorio tenha, acto contínuo à extinção do contrato, dado de novo o prédio de arrendamento.
Portanto, a obrigação de remunerar o senhorio, apesar da extinção do contrato de arrendamento, decorrente da declaração de denúncia, configura simplesmente, no tocante à obrigação de pagamento da renda, um caso de ultractividade do vínculo contratual. A obrigação de pagamento da renda, no caso figurado, é decerto uma obrigação post pactum finitum, mas é ainda a obrigação de remuneração, embora referida, já não ao gozo efectivo da coisa, mas à mera susceptibilidade desse gozo, a que o arrendatário renunciou voluntariamente, e não, ainda que imperfeitamente, uma obrigação de indemnização.
De resto, não há razão material para que se distinga os casos em que a denúncia foi feita com a antecedência devida, mas o arrendatário não procedeu, no período correspondente, ao pagamento da renda, e aqueles em que o arrendatário não observou essa antecedência. Em qualquer destas situações deve facultar-se ao senhorio, fundado no contrato de arrendamento e no documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do valor da renda em falta, o recurso à acção executiva para obter a satisfação coerciva da obrigação correspondente”.
E, tendo em conta o que vem sendo referido, adiante-se, desde já, improcedem, também, as conclusões L e ss. da alegação dos embargantes, relativamente à ilegitimidade dos embargantes e à inexigibilidade da obrigação exequenda.
Como se vê, na decisão recorrida colheu-se o seguinte entendimento:
“…. no caso em apreço, conforme resulta desde logo do teor dos factos alegados no requerimento executivo, não está em causa a cobrança de rendas vencidas na vigência do contrato de arrendamento, mas sim o pagamento da indemnização prevista no art. 1045.º do Código Civil pelo atraso na restituição do locado.
Pretendem os executados que a previsão da norma prevista no art. 14.º-A do NRAU não abrange a indemnização prevista no art. 1045.º do Código Civil. E, à primeira vista, pareceria efectivamente que o título executivo criado pelo art. 14.º-A do NRAU não abrangeria a situação descrita.
No entanto, acompanhamos a posição expressa por Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, no sentido de que «… na denominada “acção de pagamento de renda” pode haver lugar a cumulação do pedido de rendas vencidas e vincendas com o da indemnização pelo atraso na restituição da coisa a que se refere o art. 1045.º do CC, seja por via da aplicação do art. 15.º, n.º 2 da NLAU, ainda que porventura interpretado de forma extensiva, seja por via da aplicação do art. 46.º, n.º 1, al. c), do CPC.» (in Arrendamento Urbano, 2007, Quid Juris, pág. 52).
Assim, nos termos do art. 14.º-A do NRAU, “… o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação do montante em dívida ao arrendatário, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos e/ou às despesas que corram por conta do arrendatário, considerando-se igualmente compreendidas nesse título as rendas que se vencerem desde a comunicação efectuada ao arrendatário até à entrega efectiva do locado, cuja liquidação depende de uma operação de simples cálculo aritmético, a ser realizada pelo próprio exequente no seu requerimento executivo.” (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 3.ª Edição, Almedina, p. 152/153). Ponderou-se, a este propósito, no ac. da RP de 22.03.2012, proc. 5644/11.2TBMAI-A.P1 que “Entende-se que a expressão “renda” é aí empregue com sentido que abrange a indemnização prevista no art. 1045 nº 1 do CC, em virtude de o desiderato legal que faculta a cobrança executiva de verdadeiras rendas ao abrigo da norma do transcrito art. 15 nº 2 ser precisamente idêntico ao desiderato legal que justifica a cobrança de indemnizações que são sucedâneo de verdadeiras rendas. Com o NRAU quis-se alargar a eficácia executiva conferida a actos promovidos pelos senhorios, precisamente para evitar o recurso a acções declarativas, sendo contrário à evidente intenção legal de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento apenas conferir título executivo para cobrança de verdadeiras rendas, obrigando o senhorio a instaurar acção declarativa como passo necessário – possivelmente instrumental de segunda execução – para cobrar aquelas indemnizações, as quais não passam de sucedâneo – legal e económico – de verdadeiras rendas. Discute-se se a exequente comunicou à executada, na notificação avulsa, o montante das indemnizações que seriam devidas após o fim do contrato de arrendamento, até que o arrendado lhe fosse entregue. Mais concretamente e daquele art. 15 nº 2 do NRAU, discute-se o sentido do trecho “comunicação ao arrendatário do montante em dívida”. No ponto 10 da notificação avulsa consta: “Deve ainda a requerida à requerente as rendas que se vencerem até efectiva entrega do arrendado livre de pessoas e bens”.
Também aí a expressão “rendas” é empregue no sentido comum que se referiu supra, uma vez que já se viu tratarem-se de indemnizações, conforme acepção prevista no dito art. 1045 nº 1.”
No mesmo sentido, o ac. da RL de 18.01.2018, proc. 10087/16.9T8LRS-B.L1-6: “Também na nossa jurisprudência, a questão da inclusão das rendas e indemnizações vincendas não tem sido pacífica, tendo sido entendido que podendo este título abranger também as rendas vincendas até à resolução do contrato e as indemnizações devidas após a resolução e até entrega do locado, para a sua fixação haverá que recorrer ao incidente de liquidação previsto no artigo 805º do CPC (actual 716º), quer esteja dependente de simples operação aritmética ou não (neste sentido vidé Ac. de 22/05/2014, proferido no proc. nº 8960/12.2 TCLRS-B.L1-6).
Tem sido igualmente entendido que o título abrange as rendas vincendas mas não a indemnização devida, reportando-se este artigo 14-A, apenas às rendas e encargos.
Ora, o título executivo deve ser preciso e conter com rigor todos os termos da obrigação, não podendo a obrigação exequenda sair do âmbito aí delimitado e estabelecendo o artigo 10 nº 5 (anterior artº 45º) do CPC, em conformidade, que “toda a execução tem por base num título, pelo qual determinam o fim e os limites da acção executiva”.
Ora, neste caso, quer o arrendatário quer o fiador, foram notificados do valor das rendas em dívida, que constam aliás especificadas no contrato, decorrendo igualmente da lei o valor da indemnização devida. A fixação concreta do valor destas rendas vincendas depende da data em que o locado for (ou foi) entregue e o valor devido pelo atraso na restituição do locado está também avisado na notificação realizada: - é o dobro da renda devida, conforme decorre do disposto no artº 1045 do C.C.
Em suma, “sendo conhecido o valor da renda, derivando da lei o prazo de entrega do locado após a declaração de resolução, e dependendo este da data concreta em que a entrega seja feita, e em caso de ultrapassar o prazo, tendo havido aviso de que seria devido o pagamento da renda em dobro, os concretos valores devidos podem, com mediana clareza, ser alcançados, compreendidos e estabelecidos, em suma podem, pelo notificado, ser liquidados por dependerem de simples cálculo aritmético a partir da data de entrega do locado.
De resto, a interpretação segundo a qual “o montante em dívida” tem de ser indicado por referência numérica expressa seria incompatível com os casos em que estivessem em curso efeitos ainda não concretamente fixados, mas fixáveis, designadamente rendas vencidas após a notificação judicial avulsa.” (mencionado Acordão desta Relação de 27/10/16; neste sentido vidé ainda o Ac. de 18/12/2014, T.R. Coimbra 182/13.1TBCTB-A.C1)
Estando a indemnização liquidada pela própria lei, e constando da comunicação que seriam peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, estão tais valores abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia e extraprocessual liquidação através da comunicação efectuada ao arrendatário.
De facto, neste caso, a liquidação resume-se a uma operação aritmética, por forma a que a iliquidez desaparece em função dos montantes já indicados pelo exequente, que acaba por formular um pedido líquido.”
Nos presentes autos de oposição à execução, os executados apenas se insurgem quanto ao pagamento da indemnização peticionada pela exequente, ao abrigo do art. 1045.º do Código Civil.
Ora, foi alegado em sede de requerimento executivo – sem dedução de impugnação por parte dos executados – que: “Sucede que, tendo os Requerentes deduzido oposição à renovação do arrendamento, que consequentemente cessou, a Inquilina só procedeu à desocupação e restituição do locado em 12-Maio-2014. Nessa data, permanecia em dívida a quantia de 45.958,05€ (quarenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinco cêntimos) a título de rendas devidas pela ocupação do locado. Os requerentes comunicaram aos Requeridos o aludido valor em dívida através de notificação judicial avulsa que se junta como docs. 2 e 3. Apesar dessa comunicação e das sucessivas interpelações dos Requerentes, até agora os requeridos nada pagaram por conta do aludido débito. Permanece, assim, em dívida a aludida quantia de 45.958,05€ (quarenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinco cêntimos), a que acrescem juros de mora até efectivo e integral pagamento.” Nos termos do n.º 1 do art. 1081.º do Código Civil, a cessação do contrato de arrendamento torna imediatamente exigível, salvo se outro for o momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, a desocupação do local e a sua entrega, com as reparações que incumbam ao arrendatário”.
Na realidade, se é certo que, existiu alguma jurisprudência que decidiu diversamente (cfr., Acs. da Relação do Porto de 12-05-2009, P.º 1358/07.6YYPRT-B.P1, rel. GUERRA BANHA e de 18-10-2011, P.º 8436/09.5TBVNG-A.P1, rel. CECÍLIA AGANTE), a posição largamente maioritária da jurisprudência é a de que o legislador equipara as quantias devidas nos termos do art.º 1045.º do CC, pelo menos nos termos do n.º 1 do preceito, a rendas.
Neste sentido, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-07-2010, (P.º 8595/08.4YYLSB-B.L1-1, rel. JOÃO AVEIRO PEREIRA) concluiu, nos seguintes termos:
“(…) apesar de o contrato de arrendamento ter findado, a lei continua a designar por locatário o obrigado a pagar a renda ou o aluguer, que as partes tenham estipulado. Portanto, contrariamente ao defendido na decisão recorrida, é a própria lei que usa termos jurídicos decorrentes do contrato, como locatário, o mesmo que arrendatário (locatário de imóvel), e renda. Isto permite desde logo concluir pela ocorrência de uma espécie de ultravigência do contrato extinto, para efeitos de cobrança de todas as rendas devidas e que com ele estão conexionadas. Não se trata de uma solução única no nosso ordenamento jurídico, pois, algo semelhante acontece no tocante às sociedades comerciais, quando uma sociedade dissolvida mantém a sua personalidade jurídica tão-só para efeitos da sua liquidação.
No caso presente o n.º 2 do supra referido art.º 15.º não restringe a formação de título executivo à acção para pagamento de renda na pendência do contrato de arrendamento. Portanto, afigura-se não dever ser o intérprete e aplicador a fazer uma tal distinção restritiva.”
Em semelhante sentido, decidiram, entre outros, os seguintes acórdãos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2012 (Pº 1105/12.0YRLSB-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “O contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante da dívida, a que alude o nº 2 do artigo 15º do NRAU constitui título executivo também para as quantias devidas pelo uso do locado para além do termo do contrato (…). Não podendo ser negada exequibilidade extrínseca ao contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante da dívida, e não sendo controvertido o fundamento de resolução do contrato, há inutilidade do recurso ao Tribunal Arbitral, em conformidade com a convenção de arbitragem inserta no contrato de arrendamento, com vista à definição do direito”;
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-05-2014 (Pº 8960/12.2 TCLRS-B.L1-6, rel. TERESA PARDAL): “Fundando-se a acção executiva para cobrança do pagamento de rendas no título executivo previsto artigo 15º nº2 do NRAU (constituído pelo contrato de arrendamento e pelo comprovativo da comunicação do montante em dívida) e tendo sido também comunicada a resolução do contrato ao abrigo dos artigos 1083º nº3 e 1084º nº1 do CC, o referido título, para além do “montante em dívida” à data da comunicação, pode abranger também as rendas vincendas até à resolução do contrato e as indemnizações devidas depois da resolução e até à entrega do locado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22-05-2014 (Pº 8960/12.2TCLRS-B.L1-6, rel. TERESA PARDAL): “1. Fundando-se a acção executiva para cobrança do pagamento de rendas no título executivo previsto artigo 15º nº2 do NRAU (constituído pelo contrato de arrendamento e pelo comprovativo da comunicação do montante em dívida) e tendo sido também comunicada a resolução do contrato ao abrigo dos artigos 1083º nº3 e 1084º nº1 do CC, o referido título, para além do “montante em dívida” à data da comunicação, pode abranger também as rendas vincendas até à resolução do contrato e as indemnizações devidas depois da resolução e até à entrega do locado. 2. Para a fixação das rendas e indemnizações vincendas haverá que recorrer ao incidente de liquidação previsto no artigo 805º do CPC (actual 716º), quer esteja dependente de simples operação aritmética ou não, devendo, se necessário, convidar-se o exequente a sanar os vícios da exposição nessa matéria existentes no requerimento executivo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-01-2018 (P.º 10087/16.9T8LRS-B.L1-6, rel. CRISTINA NEVES): “A responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário (artº 631, nº 1 do C.C.), molda-se pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artº 798 do C.C.) ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido (artigo 810 do C.C.). Estando ambos vinculados pelo contrato de arrendamento e constando efectuada a comunicação ao fiador nos mesmos termos que a efectuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir o fiador deste título executivo. O artº 14-A do NRAU abrange quer as rendas vencidas quer as rendas vincendas e a indemnização devida pela mora na entrega do locado, contendo a comunicação remetida todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia liquidação, a qual se resume a uma operação aritmética”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-03-2012 (Pº 5644/11.2TBMAI-A.P1, rel. PEDRO LIMA COSTA): “O título executivo a que alude o art.º 15.º, n.º 2 do NRAU abrange as rendas que se vencerem na pendência da execução instaurada para pagamento de quantia certa e em dívida até ao fim do contrato de arrendamento, bem como a indemnização prevista no art.º 1045.º, n.º 1, do Código Civil”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05-02-2013 (Pº 643/11.7TBTND-A.C1, rel. ARLINDO OLIVEIRA): “1. Reúne os requisitos de título executivo a comunicação, por carta registada remetida ao arrendatário, acompanhada do contrato de arrendamento, na qual se refere quais os meses cuja renda não foi paga e a intenção de pretender cobrar uma indemnização igual a 50% das mesmas por não terem sido pagas em 8 dias e computando-se o total das quantias em dívida. 2. O que a lei pretende é que esteja comprovada a comunicação ao arrendatário dos montantes de renda em dívida, pelo que apenas é de exigir que tal comunicação se encontre comprovada, por qualquer meio, desde que suficiente para garantir que ao arrendatário foi feita a comunicação com indicação/especificação dos montantes em dívida”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18-02-2014 (Pº 182/13.1TBCTB-A.C1, rel. FERNANDO MONTEIRO): “1.- A comunicação prevista no nº 2 do artigo 15º da Lei nº 6/2006, de 27.2, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano, pode ter subjacente a cobrança de rendas em caso de resolução do contrato. 2.- Esta extinção contratual pode provocar diferentes situações de cobrança da renda e de indemnizações (liquidadas pela lei) a ela ligadas. 3.- Neste caso, a lei exige mais (e diferente) do que aquilo que já resultava do previsto no art.46º, nº1, c), do Código de Processo Civil, sendo que a maior exigência está na referida comunicação, na qual o interessado fica obrigado, para obter título executivo, a definir o pressuposto da cobrança e a liquidação que confirma o pressuposto. 4. O valor admitido na execução não é apenas o valor contado no momento da comunicação porque o próprio pressuposto, apresentado e comunicado, pode incluir o decurso do tempo como contabilizador do valor a cobrar a final, possível por simples cálculo aritmético”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-06-2019 (Pº 7285/18.4T8CBR-B.C1, rel. LUÍS CRAVO): “O título executivo do dito art. 14º-A do NRAU confere ao exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida. Não obstante, tem de constar da comunicação feita [ao arrendatário e a eventual fiador] que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos”;
Em particular, sublinhou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-02-2019 (P.º 3855/17.6T8OER-A.L1-2, rel. JORGE LEAL) que “cremos que o legislador não recusa, aos montantes devidos pelo uso indevido do locado, a supra referida equiparação às rendas em sentido estrito. Veja-se o n.º 3 do art.º 15.º-N do NRAU: no caso de resolução do contrato de arrendamento para habitação determinada por falta de pagamento de rendas, em que a falta de pagamento se tenha devido a carência de meios do arrendatário, pode ser determinado o diferimento da desocupação do imóvel (art.º 15.º-N, n.º 2 al. a); nos termos do n.º 3 do art.º 15.º-N, nesse caso de diferimento da desocupação do locado, caberá ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social “pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.”
No caso dos autos, os embargados liquidaram, no requerimento executivo, um montante devido pelo atraso na restituição do locado, calculado nos termos do n.º 1 do art.º 1045.º do CC, o qual, aliás, tinha sido objeto de menção na notificação judicial avulsa que promoveram junto dos fiadores (conforme se refere na decisão recorrida, a este respeito: “(…) da notificação judicial avulsa junta aos autos de execução, e que, conjuntamente com o contrato de arrendamento, constitui o título executivo da presente acção executiva, verifica-se que os fiadores foram, não só notificados da cessação do contrato, ou melhor, da sua não renovação, bem como da não entrega do locado na data devida, e ainda da liquidação da indemnização prevista no art. 1045.º do Código Civil [conforme decorre dos artigos 14.º a 23.º do requerimento de notificação judicial avulsa].”).
Não se mostra, pois, extinta relativamente aos recorrentes, a garantia da fiança que prestaram, nem se mostra que o Tribunal recorrido tenha errado ao não declarar os embargantes parte ilegítima e ao não reconhecer a inexigibilidade da quantia exequenda.
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F) Se o Tribunal recorrido errou no julgamento efetuado ao não reconhecer que os embargantes não renunciaram ao benefício da excussão prévia, nem que não assumiram a obrigação de principal pagador?
Finalmente, os recorrentes entendem que o Tribunal recorrido deveria ter reconhecido que os mesmos não renunciaram ao benefício de excussão prévia, dizendo que não assumiram a obrigação de principais pagadores, o que o Tribunal de 1.ª instância também não lhes reconheceu.
Vejamos:
Como se disse, a subsidiariedade da fiança concretiza-se no chamado “benefício da excussão”, que consiste no direito do fiador de recusar o cumprimento enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal e, inclusive, depois dessa excussão, se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor (cfr. artigo 638.º, n.ºs. 1 e 2 do CC).
Mas, “há, todavia, situações em que o fiador não goza do benefício da excussão. O art. 640.º indica dois casos: a) o primeiro verifica-se quando ele haja renunciado a esse beneficio, o que acontecerá, especialmente, se assumiu a obrigação de principal pagador; b) o outro caso tem lugar sempre que, por facto posterior à constituição da fiança, o devedor ou o dono dos bens onerados com a garantia não possa ser demandado ou executado no continente ou ilhas adjacentes, quer dizer, no continente ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira.
É fácil encontrar o motivo destas duas excepções. Na primeira, o fiador equipara-se, do pondo de vista do credor, a um verdadeiro devedor solidário; só que, não o sendo realmente, poderá depois exigir do seu afiançado, se cumpre a obrigação, a totalidade do que pagou. A segunda excepção explica-se por meras razões de equidade” (cfr. Almeida Costa; Direito das Obrigações; 5.ª ed., pp. 752-753).
Assim, nos termos do artigo 640.º, al. a), do CC, o fiador não pode invocar os benefícios constantes dos artigos anteriores quando houver renunciado ao benefício da excussão e, em especial se tiver assumido a obrigação de principal pagador.
Consoante se aplique ou não o regime do benefício da excussão, assim se diz em doutrina, que a fiança é simples ou solidária.
Também não haverá benefício de excussão “se a fiança respeitar a obrigação comercial (art. 101.º CCom)” (assim, Menezes Leitão; Garantias das Obrigações; 4.ª ed., Almedina, 2012, p. 100).
E, finalmente, a lei presume a renúncia ao benefício de excussão se o fiador, demandado isoladamente, não tiver deduzido incidente de intervenção do devedor (cfr. artigo 641.º, n.º 2, do CC).
Por seu turno, quanto à interpretação das declarações dela constantes, à fiança aplicam-se as regras gerais da interpretação do negócio jurídico (Cfr. Menezes Cordeiro; Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações. Garantias, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 458-460).
Apreciados os termos constantes da cláusula 12.ª do contrato de arrendamento verifica-se que PJ…, PN… e JA… se constituíram fiadores da inquilina, respondendo com esta, de forma pessoal e solidária, entre si e para com a inquilina, pelas obrigações decorrentes pelo fiel cumprimento do contrato (“constituem-se fiadores da inquilina, respondendo pessoal e solidariamente entre si e com esta, pelas obrigações decorrentes do fiel cumprimento de todas as cláusulas desse contrato, incluindo seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do local livre devoluto e nas condições estipuladas”).
Sobre esta estipulação contratual conclui o Tribunal recorrido que “(…) dúvidas não existem de que os executados se constituíram fiadores da arrendatária, renunciando ao benefício da excussão prévia, dado que dado que se constituíram como principais pagadores, respondendo pessoal e solidariamente com a inquilina”.
Os embargantes, não obstante reconheceram tal responsabilidade de principais devedores (cfr. artigo 24.º da petição de embargos) invocaram o benefício de excussão prévia.
Ora, do exposto resulta que os fiadores convencionaram o regime da solidariedade, pelo que cada um deles tem que responder, na qualidade de fiador, pela totalidade do crédito afiançado, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 512º do Código Civil.
E, nessa medida, conclui-se, como se fez na decisão recorrida - sem que tal mereça qualquer reparo - que os fiadores se obrigaram como principais pagadores e, portanto, renunciaram ao benefício da excussão, assumindo a declaração de cumprimento solidário o significado de que os fiadores se equiparam, para com o credor, a um autêntico devedor solidário do afiançado.
E, nesta medida, o credor pode exigir ao fiador o cumprimento sem que este lhe possa opor a subsidiariedade da fiança, estando afastada, atenta a aludida estipulação contratual de fiança dos autos, a possibilidade de invocação do benefício de prévia excussão.
Conforme se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-11-2008 (Pº 9041/2008-6, rel. GRANJA DA FONSECA): “Por força da subsidiariedade da fiança, assiste ao fiador o direito de recusar o cumprimento da obrigação enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal e, inclusivamente, depois dessa excussão, se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do devedor. O fiador pode, porém, renunciar expressa ou tacitamente ao benefício da excussão. O fiador, ao responsabilizar-se, por vontade própria, solidariamente com o devedor perante, renunciou tacitamente ao benefício da excussão prévia, passando a responder perante o credor comum pela prestação integral, pelo que o cumprimento da dívida pode ser exigido ao fiador, no todo ou em parte, como pode ser exigido ao devedor. Tratando-se, como se trata, de uma obrigação solidária, não é lícito ao fiador, enquanto devedor solidário, opor o benefício da divisão”. Em semelhante sentido, vd., entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01-06-2000 (Pº 0035468, rel. SILVA SALAZAR), o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-04-2014 (Pº 7815/10.0TBMTS.P1, rel. CARLOS QUERIDO) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-07-2010 (Pº 3458/08.6TJCBR.C1, rel. CARLOS GIL).
Não procedem, pois, as considerações deduzidas em contrário pelos recorrentes.
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A apelação deduzida deverá, em consequência, ser julgada improcedente.
A responsabilidade tributária inerente, nesta instância, incidirá sobre os apelantes, atento o seu integral decaimento, em conformidade com o regime resultante do artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em:
a) Incluir nos factos assentes, um facto n.º 3, com a seguinte redação:
«Os embargados comunicaram aos embargantes, por notificação judicial avulsa, que correu termos no ….º Juízo Cível do Tribunal de Família, Menores e Comarca de Loures, processo n.º …/…TCLRS, junta como docs. 2 e 3 com o requerimento executivo, concretizadas em 03-10-2014, nomeadamente, o seguinte:
“1 – Que entre os requerentes na qualidade de Senhorios, a sociedade CLUB ACTIVE FIT – Actividades Desportivas Lda. na qualidade de Inquilina e os Requeridos na qualidade de Fiadores, vigorou um contrato de arrendamento relativo à cave do prédio sito à Avenida …, com os números … e …-A a D, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alvalade actualmente sob o artigo … (anterior artigo …) e descrito na ….ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º …/…, da freguesia de Santa Maria dos Olivais;
2 – Que o referido arrendamento cessou em 30 de Setembro de 2012;
3- Que, após aquela data, a Inquilina continuou a ocupar o locado contra a vontade dos Senhorios, só tendo procedido à sua entrega em 12 de Maio de 2014;
4 - Que, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, a inquilina apenas pagou o montante de 15.093,75 € (quinze mil, noventa e três euros e setenta e cinco cêntimos), nada mais tendo pago;
5 - Que, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, calculada nos termos do disposto no art. 1045º, nº 1 do C. Civil e relativa ao período entre Fevereiro de 2013 até 12 de Maio de 2014 conforme acima se expôs, permanece em dívida o montante de 45.958,05 € (quarenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinco cêntimos), em singelo, que os Requeridos, nas respectivas qualidades supra referidas, devem aos Requerentes(…)”»;
b) Manter, quanto ao mais, a decisão recorrida, proferida em 07-02-2020 e
c) Julgar improcedente a apelação.
Custas pelos recorrentes.
Notifique e registe.
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Lisboa, 5 de novembro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes