Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9207/2007-1
Relator: JOSÉ AUGUSTO RAMOS
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL
FUNDO DE LIMITAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
EMBARCAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - Nos termos do artigo 1º, n.º 1, al. b), da Convenção Internacional sobre Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar (aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 48.036, de 14 de Novembro de 1967, alterada pelo Protocolo aprovado para ratificação pelo Decreto n.º 6/82, de 21 de Janeiro, posta em vigor também como direito interno pelo Decreto-Lei n.º 49.028, de 26 de Maio de 1969), pode o proprietário de um navio de alto mar limitar a sua responsabilidade ao montante determinado no artigo 3º da Convenção em relação aos pedidos de indemnização resultantes, além do mais, de perdas ou danos de quaisquer bens ou infracções a quaisquer direitos causados pela acção, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo do navio por quem o proprietário seja responsável, a menos que o motivo que deu origem ao referido pedido tenha resultado da culpa pessoal do proprietário.
II - Nos termos do artigo 1º, n.º 2, sob reserva do disposto no n.º3, ambos do artigo 6º dessa Convenção, as suas disposições serão aplicáveis ao fretador, ao armador e ao armador gerente do navio, bem como ao comandante, aos membros da tripulação e aos outros empregados do proprietário, fretador, armador gerente, enquanto actuando no exercício das suas funções, da mesma maneira como se aplicam ao proprietário, sem que o montante total da responsabilidade limitada do proprietário e de todas essas outras pessoas por danos corporais e materiais derivando de um mesmo evento possa exceder os montantes fixados de harmonia com o artigo 3 da presente Convenção.
III - De acordo com o disposto no artigo 4º da Convenção, pelo Decreto n.º 49.029, de 26 de Maio de 1969, estabeleceu-se o regulamento do processo de execução dessa mesma Convenção, estabelecendo o artigo 1º deste Decreto, que o proprietário do navio ou alguma das pessoas referidas no artigo 6° da Convenção, que pretenda beneficiar do limite da responsabilidade nela consignado, poderá requerer ao tribunal comum competente para a acção a constituição do fundo de limitação, por qualquer das formas de constituição caução admitidas na lei civil.
IV – O direito marítimo concede ao proprietário do navio o privilégio de limitar o montante da sua responsabilidade relativamente aos danos resultantes da condução do navio, seja esta culposa ou negligente, regra esta antiga e comum nos países com tradição marítima, que tem visado, acima de tudo, a promoção do desenvolvimento do transporte marítimo, pois que desde há muito que se vem considerando que um armador não tem que indemnizar integralmente aqueles que sofrerem prejuízos na sequência de um abalroamento, funcionando a tonelagem do navio como o critério limitador da responsabilidade.
V - A pertinência da conservação de tal privilégio, que não é exclusivo do proprietário do navio, é crucial para a indústria seguradora, na medida em que a determinação de um limite máximo de responsabilidade permite ao segurador avaliar com maior certeza a extensão do risco a segurar e também é crucial para os proprietários dos navios, na medida em que, se não houvesse a possibilidade dessa limitação, corriam o risco de ficar arruinados sempre que ocorresse qualquer catástrofe marítima.
VI - Embora a citada Convenção não refira que as seguradoras podem pedir a constituição do fundo, como a responsabilidade do segurador perante terceiros não pode ultrapassar a medida da responsabilidade do segurado, facultando a lei a este a limitação da sua responsabilidade, dessa prerrogativa pode prevalecer-se o segurador que acordou com o segurado pagar, até aos limites estipulados, o que este tiver de satisfazer, por isso nenhum obstáculo existe a que o segurador do proprietário do navio requeira o fundo de limitação de responsabilidade previsto na Convenção.
VII – Assim, não é fundamento de indeferimento da constituição do fundo a existência de contrato de seguro pelo qual o proprietário do navio transferiu a sua responsabilidade para uma seguradora.
FG
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível da Relação de Lisboa:
       I- Relatório   
       A e mulher, R, e M Seguros, por apenso à acção, com processo ordinário n.º 207/05.4TCFUN da 1ª Secção da Vara de Competência Mista do Funchal, intentada por W Ag., intentaram este processo especial de constituição de fundo de limitação de responsabilidade, nos termos da Convenção Internacional sobre Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, para concluírem o requerimento pedindo que seja fixada a modalidade do fundo por meio de prestação de garantia bancária e declarado o fundo constituído, sustado o prosseguimento daquela acção e apensado este processo à referida acção.
       Para tanto, em síntese, alegaram que o requerente, proprietário da embarcação de pesca “Baía”, celebrou com a requerente M Pescadores um contrato de seguro de casco, máquinas e responsabilidade civil da citada embarcação, titulado pela apólice n°88/027824, sendo que nos termos desse contrato nunca a responsabilidade da seguradora pode ultrapassar a medida da responsabilidade do segurado, e que, em 14/4/01, pelas 12h30m, no porto de pesca de Palmeira, Ilha do Sal, República de Cabo Verde, essa embarcação quando o mestre fazia aproximação ao cais, porque se partiu o cabo da embraiagem, abalroou a embarcação “I”, pelo que a seguradora W, alegando que pagou a correspondente indemnização aos armadores desta embarcação, em virtude do contrato de seguro com eles celebrado, e ter adquirido todos os os direitos do proprietário do “I” relativos à indemnização de todos os prejuízos sofridos com o abalroamento, propôs a acção ordinária, pedindo exclusivamente danos materiais, o valor da indemnização, € 69.593,42, a franquia deduzida, € 14.534,57, o valor das duas peritagens efectuadas, € 3.507,68 e € 1.609,10, e lucros cessantes, € 219.317,40, nela tendo demandado o requerente, na qualidade de proprietário da embarcação “Baía”, e a requerente M Pescadores, na qualidade de seguradora deste navio para quem foi transferida a responsabilidade civil, que assim requerem a constituição do fundo de limitação de responsabilidade no montante de € 7.975,87.

       Perante este requerimento, tendo o processo sido apensado à referida acção, foi proferida decisão que indeferiu a requerida constituição do fundo de limitação de responsabilidade.

       Desta decisão interpõem os requerentes este recurso de apelação, tendo apresentado as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1ª- A decisão recorrida não se encontra fundamentada juridicamente, ao invés, procurou-se defender um mero ponto de vista que nada tem de jurídico, a descoberto e à revelia de qualquer norma legal, sendo por isso nula nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 668º do CPC;
2ª-Todavia, se por absurdo assim não se entender, hipótese que os apelantes apenas por elementar cautela adiantam, sempre a decisão recorrida teria de ser revogada por ser ilegal, violando as normas ínsitas na al. b) do §1º do artigo 1º, artigos 2º e 3º da referida Convenção e ainda o artigo 1º e n.ºs 1 e 2 do artigo 3º do Decreto 49.029, de 26/5/1969;
3ª- O proprietário da embarcação “Baía” tem o direito de requer a limitação da sua responsabilidade nos termos da Convenção de Bruxelas de 10 de Outubro de 1957, sobre limite de responsabilidade dos proprietários de navios de alto mar, ratificada por Portugal (Decreto-Lei n.º 48.036, de 14/11/1967) e vigente na ordem jurídica interna como direito internacional e como direito interno (ex vi Decreto-Lei n.º 49.028, de 26/5/1969), com as alterações introduzidas pelo Protocolo assinado em Bruxelas em 21/12/1979 (Decreto-Lei n.º 6/82, de 21/1);
4ª- O Decreto n.º 49.029, de 26/5/1969, aprovou o regulamento de processo de execução da convenção, estabelecendo-se a tramitação processual para a constituição de um fundo de limitação da responsabilidade dos proprietários de navios;
5ª- Deste modo, no exercício de um direito que lhe assiste, o proprietário veio requerer a constituição do fundo de limitação de responsabilidade ao abrigo da referida Convenção e ainda nos termos do artigo 1º do Decreto 49.029, de 26/5/1969, cabendo exclusivamente ao tribunal a quo aferir do preenchimento ou não dos requisitos de que os artigos 2º e 3º deste Decreto fazem depender o deferimento do pedido de limitação;
6ª- Não se pode confundir a limitação de responsabilidade do proprietário do navio com a obrigação de indemnizar assumida pela seguradora no âmbito do contrato de seguro celebrado com aquele;
7ª- A seguradora não existe para garantir o pagamento dos eventuais credores do seu segurado, o seguro não constitui uma garantia das obrigações do devedor mas sim o património deste;
8ª- Ao contrário do que decidiu a douta decisão recorrida, faz todo o sentido, não só, que o proprietário da embarcação venha requerer a limitação da sua responsabilidade como a própria seguradora pois a responsabilidade desta terá de ser aferida pela responsabilidade daquele, conforme tem sido unanimemente entendido pelo Tribunal ad quem.
       Termos em que pede a anulação ou a revogação da sentença recorrida.

       A W Ag. contra-alegou com as seguintes conclusões:
1ª-A fundamentação do tribunal recorrido baseou-se quer juridicamente no que diz respeito aos termos da Convenção Internacional sobre Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, quer na factualidade actual no que concerne à existência de um seguro marítimo e nas obrigações daí decorrentes para segurado e seguradora e ainda na protecção dos direitos de terceiros lesados. Portanto, nada há a apontar à douta sentença, nem fundamentos existem para a mesma ser considerada nula;
2ª- A constituição do fundo de limitação de responsabilidade é um direito que assiste ao proprietário do navio, mas também existem limitações para a constituição do fundo. Logo no artigo 1º do Decreto n.º 49.029, de 26 de Maio de 1969, pode ler-se “O proprietário do navio ou outra das pessoas referidas no artigo 6º da Convenção de Bruxelas” (…). Recorrendo ao mencionado artigo 6º da Convenção fica-se a saber que quem tem legitimidade para requerer a constituição do fundo são o proprietário do navio, o fretador, o armador e o armador gerente do navio, o comandante, os membros da tripulação os outros empregados do proprietário, fretador, armador ou armador gerente;
3ª- Assim sendo, a Mútua dos Pescadores não teria legitimidade para requerer a constituição do fundo, ao contrário do que os Recorrentes defendem;
4ª- Existe uma abalroação culposa por parte do proprietário do Baía; existem danos materiais no I que são bastante avultados; existe uma Companhia de Seguros para a qual foi transferida a responsabilidade sobre o navio Baía, companhia que pretende eximir-se de indemnizar a recorrida ao fazer valer-se da constituição de um fundo de valor mínimo, tendo em conta os prejuízos causados na embarcação desta, para o qual não tem legitimidade nos termos da referida Convenção de Bruxelas de 1957;
5ª-Essa ilegitimidade está patente na Convenção, caso contrário a mesma teria referido que teria direito à constituição do fundo de limitação de responsabilidade toda e qualquer pessoa que nisso tenha interesse. Ora, ao invés a Convenção fez questão de mencionar expressamente quais as partes que têm legitimidade para o fazer. Interpretando a Convenção de outra forma revelar-se-ia numa decisão injusta, com o devido respeito, para a recorrida;
6ª- Vêm também os apelantes afirmar que a tese postulada pelo Tribunal a quo é indefensável atendendo à bem recente produção legislativa de direito interno, nomeadamente, ao Decreto-Lei n.º 202/98, de 10/7, que na al. b) do artigo 1º dá uma noção legal de “fundo de limitação de responsabilidade” e que no artigo 12º vem postular uma solução idêntica à da Convenção de Bruxelas de 1957 para as situações jurídicas meramente internas. Ora, com o devido respeito parecem esquecer-se novamente que este direito está previsto unicamente para o proprietário do navio e não para a seguradora do mesmo, como diz no próprio artigo 12º;
7ª- Sempre estaria excluída a possibilidade do proprietário do Baía dos Juncos limitar a sua responsabilidade ao abrigo da Convenção, porquanto a abalroação deveu-se a culpa exclusiva e pessoal deste ao não efectuar a manobra de atracagem com a devida diligência e destreza a que estava obrigado como capitão do navio. Exclusão essa logo prevista no artigo 1º da Convenção, pelo que para poder usufruir dessa possibilidade teria o ora recorrente de fazer previamente prova da inexistência de culpa na abalroação;
8ª-Diz e muito bem a douta sentença que um seguro é a transferência da responsabilidade, mediante contrato, para uma terceira entidade, que terá a seu cargo o pagamento de qualquer indemnização futura. (…) As seguradoras assumem a plena responsabilidade, sem qualquer limite, salvo nos casos de responsabilidade objectiva. Pelo que havendo contrato de seguro, é de indeferir a constituição do fundo de limitação de responsabilidade, por absolutamente inútil, em virtude da seguradora já garantir todos os direitos dos credores e deveres do proprietário do navio, que seriam protegidos por tal Fundo;
9ª- Por fim, diga-se que a presente acção especial deveria sempre ser liminarmente indeferida por extemporânea por não ter cumprido o prazo legal para ser intentada – o prazo para a contestação à acção ordinária previamente proposta – nos termos e para os efeitos do artigo 16º do referido Decreto-Lei n.º 202/98. Desta forma, o presente recurso não deve ser admitido e deverá manter-se a douta sentença recorrida.

       Como resulta do disposto nos artigos 684º, n.º 3, e 690, n.º 1, do Código de Processo Civil, as conclusões da alegação do recorrente servem para delimitar o âmbito do recurso e, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, servem ainda para colocar as questões que nele devem ser conhecidas.
      Sendo assim apenas cumpre apreciar as questões colocadas pela recorrente, primeiro, se a sentença recorrida deve ser revogada por incorrer em nulidade por falta de especificação de razões de direito justificativas da decisão e, depois, se deve ser revogada por os recorrentes poderem requerer a constituição do fundo de limitação de responsabilidade.

       II- Fundamentação
       A invocada nulidade ocorre, nos termos do artigo 668º, n.º1, al. b), do Código de Processo Civil, quando a sentença não contenha a especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão.
       Tem-se entendido que não é indispensável a indicação das disposições legais em que se baseia a decisão, sendo suficiente a menção das regras e princípios jurídicos que apoiam a decisão[1].
       No caso dos autos para se chegar à decisão partiu-se do disposto no artigo 1º, n.º 1, da Convenção Internacional sobre Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 48.036, de 14 de Novembro de 1967, alterada pelo Protocolo aprovado para ratificação pelo Decreto n.º 6/82, de 21 de Janeiro, posta em vigor também como direito interno pelo Decreto-Lei n.º 49.028, de 26 de Maio de 1969, que expressamente se citou, para a partir desta disposição efectuar a ponderação que levou à decisão.
       Deste modo logo resulta que não se verifica a pretendida nulidade.

       Passando à segunda questão em recurso, verifica-se que nos artigos 1º e 2º da petição inicial da referida acção ordinária, em apenso, a Autora, W Ag., alegou, nomeadamente, o seguinte:
- no dia 14 de Abril de 2001, pelas 12h30m, no Porto Palmeira, Ilha do Sal, Arquipélago de Cabo Verde, ocorreu um acidente entre a embarcação de pesca denominada Baía, propriedade de A, 1º Réu, e a embarcação de recreio denominada I;
- a responsabilidade emergente de danos provocados a terceiros pela embarcação Baía encontrava-se transferida para a 2ª Ré através de contrato de seguro titulado pela apólice n.° 88/027824.
       Esta matéria foi aceite pelos Réus, aqui requerentes, e assim transitou para as als. a) e b) dos factos assentes da selecção da matéria de facto efectuada na acção.
      A propósito da transferência dessa responsabilidade emergente de danos provocados a terceiros para a requerente Mútua Seguros, esta, como refere no artigo 5º do requerimento em apreciação, nessa acção, com a contestação e alegando que integram a referida apólice, apresentou os documentos de fls. 109 a 122, que não foram impugnados, deles constando, a fls. 121 de acordo com o artigo 28º, n.º 1, das condições gerais, no tocante à responsabilidade civil que a responsabilidade da seguradora em relação a danos causados a terceiros fica limitada à proporção indicada nas condições especiais e até ao montante do valor seguro ou até ao que dele restar livre e, a fls. 109, consta ser aplicável a cláusula particular de responsabilidade civil 008, constante de fls. 112, dela resultando que, no tocante a responsabilidade civil, a seguradora garante 4/4 dos prejuízos que legalmente sejam imputados ao segurado por danos materiais causados a terceiros por abalroamento com outros navios ou embarcações.
       Por outro lado importa considerar que, nos termos do artigo 1º, n.º 1, al. b), da referida Convenção, pode o proprietário de um navio de alto mar limitar a sua responsabilidade ao montante determinado no artigo 3º da Convenção em relação aos pedidos de indemnização resultantes, além do mais, de perdas ou danos de quaisquer bens ou infracções a quaisquer direitos causados pela acção, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo do navio por quem o proprietário seja responsável, a menos que o motivo que deu origem ao referido pedido tenha resultado da culpa pessoal do proprietário.
       Por outro lado, nos termos do artigo 1º, n.º 2, sob reserva do disposto no n.º3, ambos do artigo 6º dessa Convenção, as suas disposições serão aplicáveis ao fretador, ao armador e ao armador gerente do navio, bem como ao comandante, aos membros da tripulação e aos outros empregados do proprietário, fretador, armador gerente, enquanto actuando no exercício das suas funções, da mesma maneira como se aplicam ao proprietário, sem que o montante total da responsabilidade limitada do proprietário e de todas essas outras pessoas por danos corporais e materiais derivando de um mesmo evento possa exceder os montantes fixados de harmonia com o artigo 3 da presente Convenção.
       De acordo com o disposto no artigo 4º da Convenção, pelo Decreto n.º 49.029, de 26 de Maio de 1969, estabeleceu-se o regulamento do processo de execução dessa mesma Convenção[2].
       Assim, como estabelecido no artigo 1º deste Decreto, o proprietário do navio ou alguma das pessoas referidas no artigo 6° da Convenção, que pretenda beneficiar do limite da responsabilidade nela consignado, poderá requerer ao tribunal comum competente para a acção a constituição do fundo de limitação, por qualquer das formas de constituição caução admitidas na lei civil.
       Para além do mais estabelecido nesse processo, requerida a constituição do fundo, devendo o requerimento conter as indicações e ser acompanhado dos documentos mencionados no artigo 2º do diploma, nos termos do artigo 3º do Decreto o pedido deve ser indeferido quando se verifique que o montante do fundo de limitação não foi calculado de acordo com o disposto no artigo 3° da Convenção, no caso contrário o juiz fixará a modalidade do fundo, declará-lo-á constituído, depois de efectuado o deposito ou entrega, ou de averbado como definitivo o registo de hipoteca, ou depois de constituída a fiança, sendo caso disso determinará a quantia que deve considerar-se reservada e designará um prazo entre trinta e sessenta dias para a reclamação de créditos, podendo no prazo da reclamação os credores, nos termos do artigo 6º do Decreto, agravar da declaração de constituição do fundo ou opor embargos à constituição do fundo, alegando quaisquer fundamentos que seria lícito deduzir em processo de declaração, seguindo-se à contestação, sem mais articulados, os termos do processo ordinário de declaração. 
       No caso dos autos não chegou a ser declarada a constituição do fundo, nem a sua constituição foi indeferida com fundamento no mencionado erro de cálculo, antes decidiu-se indeferir a requerida constituição do fundo porque se entendeu, em síntese, que havendo contrato de seguro não faz sentido que o proprietário do navio constitua este fundo quando transferiu a sua responsabilidade para uma seguradora, pois assim não vai pagar qualquer indemnização, e competindo à seguradora garantir o pagamento de indemnizações a terceiros, que seriam protegidos pelo fundo, a sua constituição torna-se inútil.
       Deste modo trata-se de apreciar se esta decisão deve subsistir ou deve ser revogada para o processo prosseguir seus termos com a eventual declaração de constituição do fundo sujeita a recurso de agravo ou a embargos com quaisquer fundamentos que seria lícito deduzir em processo de declaração.
      Segundo se explica no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/11/2007[3], importa considerar que a aludida Convenção veio aperfeiçoar um instituto jurídico já regulado em convenções anteriores e que se traduz na possibilidade do proprietário do navio constituir um fundo de limitação de responsabilidade afecto ao pagamento de quase todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de um mesmo acidente, a menos que o motivo que deu origem ao referido pedido tenha resultado de culpa pessoal do proprietário, e, para compreensão dessa limitação de responsabilidade, não pode deixar de se ter em conta a especificidade da actividade comercial marítima, cujo risco, a não poder ser limitado, poderia por em causa a sua sobrevivência. Por isso desde há muito que o direito marítimo concede ao proprietário do navio o privilégio de limitar o montante da sua responsabilidade relativamente aos danos resultantes da condução do navio, seja esta culposa ou negligente, regra esta antiga e comum nos países com tradição marítima, que tem visado, acima de tudo, a promoção do desenvolvimento do transporte marítimo, pois que desde há muito que se vem considerando que um armador não tem que indemnizar integralmente aqueles que sofrerem prejuízos na sequência de um abalroamento, funcionando a tonelagem do navio como o critério limitador da responsabilidade. A pertinência da conservação de tal privilégio, que, aliás, não é exclusivo do proprietário do navio, mesmo num contexto de grande liberalismo económico, onde a concorrência é exacerbada, é crucial para a indústria seguradora, na medida em que a determinação de um limite máximo de responsabilidade permite ao segurador avaliar com maior certeza a extensão do risco a segurar e também é crucial para os proprietários dos navios, na medida em que, se não houvesse a possibilidade dessa limitação, corriam o risco de ficar arruinados sempre que ocorresse qualquer catástrofe marítima.
       Por outro lado também já se ponderou que, embora a citada Convenção não refira que as seguradoras possam pedir a constituição do fundo, como a responsabilidade do segurador perante terceiros não pode ultrapassar a medida da responsabilidade do segurado, facultando a lei a este a limitação da sua responsabilidade, dessa prerrogativa pode prevalecer-se o segurador que acordou com o segurado pagar, até aos limites estipulados, o que este tiver de satisfazer, por isso nenhum obstáculo existe a que o segurador do proprietário do navio requeira o fundo de limitação de responsabilidade previsto na Convenção[4].
       No caso dos autos o recorrente António Justino Ferreira apresenta-se e pode ser considerado como proprietário da embarcação Baía dos Juncos e assim, visto o disposto nos artigos 1º, n.º 1, da referida Convenção, pode requerer a constituição do fundo de limitação de responsabilidade.
       A recorrente Mútua apresenta-se e pode ser considerada como garantindo os prejuízos que legalmente sejam imputados ao recorrente, portanto garantindo a responsabilidade civil dentro do limite da responsabilidade deste e até ao montante do valor seguro ou até ao que dele restar livre, por danos materiais causados a terceiros por abalroamento com outros navios ou embarcações, pelo que podendo beneficiar do limite de responsabilidade do recorrente nenhum obstáculo existe a que requeira o fundo de limitação de responsabilidade.
       Sendo assim, cumprindo concluir que os recorrentes podem requerer o fundo de limitação de responsabilidade, devem os autos prosseguir para apreciação dos demais requisitos de deferimento do pedido de constituição do fundo requerimento.

       III- Decisão
       Pelo exposto os juízes desta Relação julgam procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida para o processo prosseguir nomeadamente para apreciação dos demais requisitos de deferimento do pedido de constituição do requerido fundo.
       Custas pela recorrida: artigo 446º, n.º 1, do Código do Processo Civil.
       Processado em computador.
                                                     Lisboa, 6.5.2008
                         José Augusto Ramos
                         João Aveiro Pereira
                         Rui Moura
____________________________
[1] VD. ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, MANUAL DE PROCESSO CIVIL, 2ª EDIÇÃO, PG. 688.
[2] Vd. sobre este processo SALVADOR DA COSTA, O CONCURSO DE CREDORES, PG. 347
[3] Processo 07B4055 www.dgsi.pt.
[4] Vd. Ac. R.L. de 2/4/ 1992, C.J., 2, PG. 157.