Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
590/18.1T8CSC.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ACÇÃO JUDICIAL
TRIBUNAL COMPETENTE
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. - A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto , nos termos e para efeitos dos  nºs 2 e 4, do artº 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [ REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ], integra a previsão do artº 122º,nº1, alínea g), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO;
II - É que, ao aludir a referida alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal  expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum,  e  , com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
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1.- Relatório
A  e  B , intentaram – em 20/2/2018 e em Juízo de Família e Menores de Cascais - contra o Estado Português acção declarativa, pedindo que seja judicialmente reconhecido que o Autor manifestou a sua vontade em ser português e, bem assim,  que os Autores vivem em união de facto há mais de três anos.
Para tanto, invocaram os autores, em síntese, que :
- Desde 26/1/2014 que os autores vivem em comunhão de vida, partilhando o mesmo leito, mesa e habitação, como se cônjuges fossem ;
- Ou seja, vivem os AA há mais de três anos em condições  análogas à dos cônjuges ;
- Sendo o autor de nacionalidade brasileira, e, a autora, de nacionalidade portuguesa,  e ao abrigo do disposto no nº3, do artº 3º, da Lei nº 37/81, deve reconhecer-se que o autor manifestou a sua vontade em ser português e, outrossim, que os AA vivem em união de facto, sendo permitido ao autor adquirir a nacionalidade portuguesa nos termos do artº 3º, da Lei nº 37/81, de 3/10.
1.1.- Conclusos os autos ( em 26/2/2018 ) , foi de imediato proferida decisão que pôs termo à acção, sendo a mesma do seguinte teor:
“(…)
Os Tribunais de Família são tribunais de competência especializada, nos termos dos art°s 81°, n° l, al. d), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n° 62/2013, de 26 de Agosto.
Impõe-se averiguar se a LOSJ ou o Código de Processo Civil têm qualquer norma que atribua competência aos Tribunais de Família e Menores para conhecer da presente acção.
Ora, nem o art. 122° da LOSJ nem o C.P.C, atribuem competência ao tribunal de Família para conhecer da presente acção.
Assim, a competência para conhecer da presente acção será dos tribunais cíveis.
Em consequência do que antecede, atento o disposto nos art. 96°, al a), 99°, n° l, e 590°, todos do CPC, julgo esta 3ª Secção de Família e Menores de Cascais incompetente em razão da matéria para conhecer desta acção e, consequentemente, indefiro liminarmente a petição.
Custas pelo autor.
Cascais, d.s.
1.2.- Não concordando com a decisão referida em 1.1., considerando-a incorrecta, e inconformados, da mesma apelaram então os Autores, o que fizeram tempestivamente, alegando e formulando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
A) Propôs o Recorrente e respectiva comparte acção de reconhecimento de União de Facto no Juízo de Família e Menores de Cascais do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste.
B) O Juízo de Família e Menores de Cascais proferiu Despacho a indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pelos Recorrentes por julgar o Juízo de Família e Menores de Cascais incompetente em razão da matéria para conhecer da acção proposta.
C) Dispõe o n.º 1 alínea b) do Artigo 122º da Lei n.º 62/2013 que "compete aos juízos de família e menores preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum."
D) Ora, a acção sub judice é uma acção de reconhecimento da união de facto dos Autores, pelo que, é evidente que a competência para a apreciar e jugar é dos juízos de família e menores.
E) Foi esse, aliás, o entendimento do Juiz 2 do Juízo Local Cível de Cascais do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, onde o Recorrente e a comparte propuseram anteriormente acção com o mesmo fim.
F) Nessa acção que correu termos no Juiz 2 do Juízo Local Cível de Cascais sob o número de processo 3629/17.4T8CSC, o Juízo Cível considerou-se incompetente em razão da matéria para apreciar a acção de reconhecimento de união de facto.
G) Tendo declarado competente para conhecer da matéria sobre a qual versa a acção, os Juízos de Família e Menores de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, conforme certidão de Sentença.
H) Razão pela qual, concordando com a decisão proferida no âmbito do processo supra identificado, o Recorrente e a comparte propuseram acção para reconhecimento de união de facto nos Juízos de Família e Menores de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, o qual, por sua vez, se declarou incompetente, declarando competente para conhecer da presente acção os tribunais cíveis.
I) Assim, deve o despacho proferido ser revogado, considerando-se o Juízo de Família e Menores de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste competente para apreciar a acção de reconhecimento de união de facto proposta pelo Recorrente e comparte.
J) Caso assim não se entenda, o que por mero dever de ofício se admite, requer-se a V. Exas. a aplicação do regime dos conflitos, conforme previsto no n.º 3 do Artigo 101º do Código de Processo Civil.
Termos em que o presente recurso deve ser considerado procedente e, e, em consequência:
a) Ser revogado o Despacho recorrido considerando-se o Juízo de Família e Menores de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste competente para apreciar a presente acção; Ou,
b) Caso assim não se entenda, o que por mero dever de ofício se admite, ser aplicado o regime dos conflitos, conforme previsto no nº 3 do Artigo 101º do Código de Processo Civil,
Como é de Direito e assim se fazendo JUSTIÇA!
1.3. -  Não foram apresentadas contra-alegações.
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Thema decidendum
1.4 - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer  oficiosamente,  a questão a apreciar e a decidir  é a seguinte  :
- Aferir se andou mal - como o consideram os apelantes - o Tribunal a quo em julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta - em razão da matéria - , indeferindo liminarmente a petição;
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2. - Motivação de facto
Para efeitos  de decisão do mérito da instância recursória, importa atender tão só à factualidade que resulta do relatório do presente acórdão.
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3. - Motivação de Direito
3.1.- Se o tribunal a quo é, ou não, o competente em razão da matéria para conhecer da presente acção, e que pelos apelantes foi intentada.
Como vimos supra, considerou o tribunal a quo que, em face do respectivo pedido e respectiva causa petendi, impunha-se considerar que para conhecer da acção não era o tribunal de Família o competente, em razão da matéria, entendimento este que os Autores e ora apelantes não subscrevem, antes sustentam que, em face do disposto no n.º 1 alínea b), do Artigo 122º da Lei n.º 62/2013, forçoso é concluir que é efectivamente o Juízo de Família e Menores de Cascais o competente para conhecer e julgar da acção que intentou .
Já para o tribunal a quo, e em sede de fundamentos invocados a ancorar a decisão proferida, aduz no essencial que “nem o art. 122° da LOSJ, nem o C.P.C, atribuem competência ao tribunal de Família para conhecer da presente acção”.
Por outra banda, e em anterior acção pelos mesmos e ora apelantes intentada com o mesmo objecto e que correu termos em Juízo Local Cível de Cascais, veio o tribunal a considerar-se incompetente em razão da matéria para apreciar a acção de reconhecimento de união de facto, para tanto considerando que para o efeito a competência cabia ao tribunal de Família.
Quid júris ?
Como é consabido, a competência dos tribunais, na ordem jurídica interna, reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território,  e fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei ( cfr. artºs 37º e 38º, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – e artº 60º, do Cód. de Processo Civil ).
Por outro lado, como é entendimento uniforme da “melhor” doutrina (1) e jurisprudência, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos ( causa petendi ) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição inicial ( quid disputatum ou quid dedidendum ), que cabe determinar/aferir da competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer , sendo para tanto irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão. (2)
Depois, nos termos do artigo 40º, nº1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, mister é outrossim não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual ( os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que, a mesma - competência -  fixa-se , como vimos já, no momento em que a acção se propõe. (3)
Ou seja, e em sede de síntese conclusiva (4), sendo em atenção à matéria da lide, ao acto jurídico ou facto jurídico de que a acção emerge, que importará aferir se deve a acção correr termos pelo tribunal comum ou judicial (5), ou , ao invés, por  um tribunal especial , e sendo o primeiro o tribunal regra [ porque goza de competência não discriminada, incumbindo-lhe apreciar e decidir todas as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial, ou outra ordem jurisdicional ], então a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes [isto é,  não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência de algum tribunal especial, cai a mesma inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial ] .
É que, como refere expressis verbis o artº 40º, nºs 1 e 2,  da LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO, “ Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e  ,“A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada  e aos tribunais de competência territorial alargada “.
Logo, também no âmbito dos tribunais comuns ou judiciais ( os quais compreendem os tribunais de competência territorial alargada e os tribunais de comarca, cfr. artº 33º, da LOSJ ), competindo aos juízos locais cíveis e de competência genérica a tramitação e decisão das causas que não sejam atribuídas a outros juízos especializados ou a tribunal de competência territorial alargada ( cfr. artigo 130º da LOSJ ), é outrossim a competência dos juízos cíveis e de competência genérica definida por via residual [ cabendo-lhes a competência material caso a acção não seja da competência dos juízos especializados ].
De resto, pacífico e consensual é que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual, e , segundo o critério referido em segundo lugar, serão da competência dos juízos cíveis e de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado.
Em suma, e no essencial, mostra-se assim a Lei N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO em perfeita consonância [ como se exige ] com a Constituição da República Portuguesa, rezando designadamente o respectivo artº 211º, no seu nº 2, que “ Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinada”,  e  , bem assim, com o Código de Processo Civil, cujo art.º 65.º reza que “ As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
 Isto dito, é consabido que os juízos de família e menores de juízos de competência especializada - dos tribunais de comarca - se tratam, conforme o disposto nos artºs 40º, nº 2 e 81º, nºs 1 e 3, alínea g),  ambos da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO , dispondo v.g. o  artº 122º, do mesmo diploma legal, e sob a epígrafe de “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família “, que :
1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a)  Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b)  Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c)   Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.
2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.
A questão que de seguida importa elucidar é a de saber se pertinente é integrar a presente acção em uma das alíneas do nº1, do artº 122º [ apesar de estar a competência dos juízos de família e de menores, distribuída também pelos artigos 123.º e 124.º, da LOSJ ] , acabado de transcrever.
Ora, antes de mais, e em face do pedido pelos AA atravessado nos autos [ seja judicialmente reconhecido que o Autor manifestou a sua vontade em ser português e, bem assim,  que os Autores vivem em união de facto há mais de três anos ], recorda-se que reza o artº 14º, nos respectivos nºs 2 e 4, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [ REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ], que “ O estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto”, sendo “a declaração  instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto”.
Também a Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro [ LEI DA NACIONALIDADE ], no seu artº 3º, estabelece que “ O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio” (nº1), e que, o mesmo estrangeiro que à data da declaração de nulidade ou anulação do casamento “viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível” ( nº 3).
Ou seja, nos termos estabelecidos na denominada Lei da Nacionalidade, apenas em caso de união de facto e para efeitos de aquisição da nacionalidade, se exige o reconhecimento da referida situação por via judicial, pois que, já no casamento vale o próprio assento como prova documental bastante. (6)
Por sua vez, dispõe o artº 1º, nº2, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio [ diploma que adopta medidas de PROTECÇÃO DAS UNIÕES DE FACTO ], que “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
Perante o acabado de expor, temos assim que a acção pelos apelantes intentada tem subjacente o propósito de ambos de darem cumprimento ao disposto no artº 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [ REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ], que não ao artº 3º, da Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro [ LEI DA NACIONALIDADE ], ou seja, assenta na exigência legal plasmada na parte final do nº2, do aludido artº 14º, relacionada com o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
Ademais, mostra-se ainda a acção intentada em consonância com o disposto no artº 2º-A, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio [ reza o respectivo nº 1, que “ Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível”], sendo necessário o recurso à acção judicial de simples apreciação positiva (ou de mera declaração positiva), como o refere Marta Costa (7).
Será então a referida acção, como supra se questionou, susceptível de integrar a previsão de uma das alíneas do nº1, do artº 122º da LOSJ , maxime da alínea b) ou g) , porque as demais e manifestamente não têm qualquer conexão com a causa petendi da acção pelos AA intentada ?.
Ora, começando pela alínea b) [ Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum ], e  estando o respectivo cerne direccionado para a tramitação de acção com a natureza de Processo de jurisdição voluntária, a verdade é que não se descobre no título XV [ “Dos processos de jurisdição voluntária” ] do Código de Processo Civil, ou em legislação avulsa, um qualquer procedimento de jurisdição voluntária que tenha por objecto a apreciação e o reconhecimento judicial ( a se ) de  uma situação de união de facto.
É que, como com total pertinência esclarece António José Fialho (8), “com excepção das questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto ou daqueles que vivem em economia comum ( art. 3.º, al. a), e 4.º, da Lei n.º 6/2001 e art. 4.º, al. d), e 5.º da Lei n.º 7/2001 ), o exercício de outros direitos previstos nos diplomas que regulam as medidas de protecção da união de facto e da economia em comum não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo Civil ou noutros diplomas estabelecendo procedimentos a que sejam aplicáveis as regras do processo civil previstas para os processos de jurisdição voluntária”.
Acresce que, não se vê sequer qualquer razoabilidade de sujeitar a acção pelos AA intentada e em razão da natureza do seu objecto , ao critério de julgamento a que alude o artº 987º, do CPC [ “Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” ],  ou, também à possibilidade plasmada no artº 988º do mesmo diploma legal, a saber, a  de  as resoluções puderem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.
Restando aferir da pertinência de a acção pelos AA intentada poder integrar a previsão da alínea g), do nº1, do artº 122º da LOSJ, recorda-se que é a jurisprudência de alguma forma consensual que o conceito de estado civil na mesma aposto se tem de entender como usado/empregue no seu sentido restrito. (9)
Ou seja, e como se conclui no aludido Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/4/2016, ao aludir, na alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou essa expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
Mas, mais decisiva na resolução da questão que vimos esmiuçando, é a constatação [ a que chega o STJ no seu Ac. de 13-11-2012 ] de que os  Tribunais de Família [ desde o momento em que foram criados pela Lei nº 4/70 de 29/4 e vieram a ser regulamentados pela primeira vez, pelo Decreto-Lei nº 8/72 de 7/1, e até à LOFTJ ] se mostram pensados/vocacionados para o conhecimento de acções que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família, ou seja, a longa tradição já sedimentada é a de conferir a competência daquele tribunal de competência especializada às acções em que há lugar à aplicação de normas de Direito da Família.
Ora, sendo pacífico que em acções relativas às situações de união de facto se aplicam normas de Direito da Família [ nomeadamente, as previstas nos artºs  1793º ( este ex vi do artº 4º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio ) e  2020º , ambos do Cód. Civil ], “ embora no conceito de família alargada pela evolução das condições sócio-familiares”, daí a pertinência de integrar a presente acção a previsão da alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013.
Por último, e a reforçar o acabado de concluir, pertinente se mostra outrossim o entendimento sufragado no Ac. do Tribunal da Relação do Porto  de 5/2/2015 (10), no sentido de que terá o legislador certamente pretendido abranger o “ carácter fluído e flexível que hoje caracteriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe ao laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável (…)” , e sabendo-se que se está “perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8.º da CEDH “, razão porque “a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (…) de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família.
Em face de tudo o acabado de expor, mal andou, portanto, o tribunal a quo em julgar como julgou, devendo em consequência a decisão apelada ser revogada, e prosseguir a competente tramitação dos autos.
Procedem, portanto, as conclusões recursórias.
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4.- Concluindo e sumariando  ( cfr. nº 7, do artº 663º, do CPC).
4.1. - A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto , nos termos e para efeitos dos  nºs 2 e 4, do artº 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [ REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ], integra a previsão do artº 122º,nº1, alínea g), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO;
4.2 - É que, ao aludir a referida alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal  expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum,  e  , com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
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5.- Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção CÍVEL do Tribunal da Relação de Lisboa, e na sequência dos fundamentos supra explanados, em conceder provimento à apelação e, consequentemente :
5.1.- Revogam a decisão recorrida.
5.2- Determinam o prosseguimento dos autos, pois que é o Tribunal a quo o competente para preparar e julgar a presente acção .
Custas na apelação nos termos que sejam devidos a final.                                             
***
(1) Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 91, e Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, 1970, 379.
(2)  Cfr., de entre muitos outros, o Ac. do STJ de 9/7/2014, Proc. Nº 934/05.6TBMFR.L1.S1, in www.dgsi.pt.
(3) Cfr. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil,  Vol. I , Coimbra 1960 , págs. 146 e segs..
(4) Cfr. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil,  Vol. I , Coimbra 1960 , págs. 146 e segs..
(5) Reza o artº 211º,nº1, da CRPortuguesa, que “ Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais“.
(6) Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 5/5/2015, Proc. nº 1607/13.1TBVIS.C1, in www.dgsi.pt
(7) In Convivência more uxorio na perspectiva de harmonização do Direito da Família Europeu: uniões homossexuais, 1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pág. 387.
(8)  In Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum, in  https://blogippc.blogspot.
(9) Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/4/2016 [ Proc. nº 901/15.1T8LRA.C1], e do STJ de 13-11-2012 [ Processo nº 13466/11.4T2SNT.L1.S1 ], ambos in www.dgsi.pt
(10) Proferido no Processo nº 13857/14.9T8PRT.P1, e in www.dgsi.pt.
                                                        *         
LISBOA, 11/12/2018

António Manuel Fernandes dos Santos  ( O Relator)

Eduardo Petersen Silva ( 1º Adjunto)
          
Cristina Isabel Ferreira Neves ( 2ª Adjunta)