Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PAULA CRISTINA BIZARRO | ||
Descritores: | CONTRADIÇÃO INSANÁVEL IN DUBIO PRO REO OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA LESÕES INSIGNIFICANTES | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/06/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Na fundamentação da matéria de facto exarada na sentença recorrida menciona-se expressamente que a ofendida AV foi empurrada pela arguida com as duas mãos abertas no seu peito, e não com o braço como consta do facto provado 6., sendo certo que foi esse o depoimento valorado positivamente pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção no sentido vertido na decisão quanto à matéria de facto. No que concerne àquele facto preciso e concreto, o texto da decisão recorrida evidencia de forma notória, facilmente perceptível ao cidadão comum, que ocorreu um erro na valoração da prova, ou seja, que os meios de prova produzidos, no caso o depoimento da testemunha AV, aponta necessariamente em sentido diferente daquele que foi a decisão. Aliás, a contradição entre o que consta da fundamentação quanto a esse ponto em concreto e o julgado provado, consubstancia, não só um erro notório na apreciação da prova, mas igualmente o vício decisório previsto no art.º 410º/2-b) do Código de Processo Penal. 2. A possibilidade de alteração da matéria de facto e sanação dos vícios previstos no citado art.º 410º pelo tribunal de recurso mostrar-se á excluída quando para tal seja necessário o recurso à audição da prova gravada, salvo se tiver sido impugnada a matéria de facto nos termos do art.º 412º/3 do Código de Processo Penal, o que no caso concreto ocorreu. 3. O princípio do in dubio pro reo só poderá ser invocado quando, depois de analisada toda a prova produzida no seu conjunto, de harmonia com a lógica e a normalidade do acontecer, o julgador permanecer num estado de dúvida insanável quanto à realidade ou não do facto sujeito a prova. 4. As lesões insignificantes estarão excluídas do crime de ofensa à integridade física. O direito à integridade física é o direito à intangibilidade do corpo humano, que é intocável, não podendo ser atingido, afectado, intervencionado ou invadido por qualquer forma sem o consentimento do seu titular, independentemente de serem ou não causadas lesões ou dor. O direito à integridade física abrange, assim, o direito a não ser tocado no seu corpo. 5. Nem todos os actos invasivos da integridade física de outrem enquadrarão o tipo legal de crime ora em análise, exigindo-se ao funcionamento da tutela jurídico-penal a significância do acto no que concerne ao seu resultado ofensivo. 6. Essa significância terá de ser aferida em função do desvalor social e ético que o acto em concreto encerra, avaliado objectivamente, de harmonia com os padrões sociais comummente aceites, pois que, sendo a tutela penal restringida à protecção dos bens jurídicos fundamentais, qualquer conduta que atinja a integridade corporal de outrem só será enquadrável no tipo legal de crime de ofensa à integridade física quando seja ético-socialmente rejeitada, censurada e reprovada. 7. Tendo-se provado que a arguida, para desviar e para fechar a porta, empurrou o corpo da ofendida AV e que, ao actuar da forma supra descrita, agiu a arguida AA sabendo que molestava fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo, é inequívoco que o acto perpetrado pela arguida ofendeu o corpo da ofendida AV, a molestou fisicamente, exercendo sobre esta um acto de violência, ainda que não se tenha apurado que lhe tenha causado quaisquer lesões ou dor. 8. Por outro lado, analisada à luz da adequação social, tal conduta, precisamente pela violência que encerra, é manifestamente reprovada do ponto de vista ético-social, atingindo o bem jurídico-penal em causa (a integridade física da ofendida) de forma significante, pois que não é, de todo, destituída de relevância, antes sendo intolerável e rejeitada, porquanto violadora do mínimo ético imprescindível à vida em sociedade, com ressonância social e, por isso, exigindo a intervenção jurídico-penal na sua função tutelar do bem jurídico fundamental violado, na sua vertente preventiva e reintegradora. 9. A factualidade provada integra os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime de ofensa à integridade física. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação I. RELATÓRIO Inconformada com a sentença datada de 11-11-2022, depositada nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular, com o nº 492/21.4PAMTJ, veio a arguida AA, filha de PS e de MS, natural de Almada, nascida em 20-01-1980, solteira, doméstica, titular do cartão de cidadão n.º ..., e residente na ..., Montijo, interpor recurso de tal decisão, na qual se decidiu nos seguintes termos, conforme consta no respectivo dispositivo (transcrição): a) Condenar AA pela prática, como autora material, de um crime de ofensa à integridade física, qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão; b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada, nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1, 3 e 5, e 53.º n.º 1, do Código Penal, pelo período de 1 (um) ano, sujeitando tal suspensão a regime de prova, a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; c) Condenar AA pela prática, como autor material, de um crime de um crime de ofensa à integridade física, qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão; d) Suspender a execução da pena de prisão aplicada, nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1, 3 e 5, e 53.º n.º 1, do Código Penal, pelo período de 1 (um) ano, sujeitando tal suspensão a regime de prova, a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; (…) (fim de transcrição) * As razões da sua discordância encontram-se expressas nas conclusões da motivação do recurso, apresentadas na sequência de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento, que em seguida se transcrevem: 1. Salvo o devido respeito, há pontos de facto que foram incorrectamente julgados e há erro notório na apreciação da prova. 2. O ora recorrente aceita como provados os factos constantes dos pontos nºs. 1 a 5 da douta sentença. 3. A ora recorrente discorda dos factos dados como provados nos nºs. 6, 8 e 9 da douta sentença ora recorrida por terem sido incorretamente julgados. 4. O douto acórdão dá como provado no seu ponto 6 que: “No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV” E, 5. No ponto 8, a douta sentença dá como provado que: “Em consequência da actuação dos arguidos AA e JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho.”. E, 6. A douta sentença dá ainda como provado, no ponto 9, que: “Ao atuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde.” 7. O Tribunal a quo alicerçou a convicção na prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nomeadamente nas declarações dos arguidos e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento, tendo valorado a versão dos factos narrada por AV. e corroborada pelas demais testemunhas, em detrimento da versão dos factos trazida pelos arguidos. 8. Sucede que, se analisarmos as declarações dos arguidos, das testemunhas e quanto a estas de AV, das mesmas não se extrai que a recorrente tivesse uma postura agressiva e que empurrou com o braço o corpo de AV. com intenção de agredir a mesma. 9. Com efeito, a arguida declarou AA: – CD 01:07 a 02:04 ... AA – “... Entretanto eu empurrei-a, é verdade, fiz assim para me livrar. Os meus filhos estavam aqui não agrediram nem nada..." ... - CD - 08:23 a 09:53 AA – “E, entretanto, diz: "Põe-te na rua cigana."E, entretanto, empurrei-a assim para me livrar, este braço, também fui operada a este braço e não tenho muita força, se não paro para a empurrar ela fazia-me ainda outras coisas piores. Entretanto empurrei-a assim e ela começou aos gritos. "Ciganos estão-me a roubar. Ela roubou-me a máscara, está na mala dela. Ladrona...cigana...ponha-se na rua." 11. Por sua vez a testemunha AV declarou: - CD - 10:12 a 11:23 ... AV – “... entretanto a senhora empurra-me para eu sair porque eu era o obstáculo que estava ali, portanto, porque queriam fechar a porta e empurrou-me e o senhor que já estava à porta do gabinete entretanto já tinha chegado.” AV – “Pegou-me pelas 2 mãos e empurrou-me para eu me desviar daquele sítio.” ... - CD - 26:27 a 29:03 AV – “... a senhora empurra-me para fora da ombreira da porta... AV- “A senhora deu-me um empurrão para me desviar da porta.” Defensora Oficiosa – “Ficou com alguma mazela do empurrão, que eu presumo que quando se empurre a tendência pelos menos, eu agora estou a fazer o gesto, é na parte de cima. Ficou com alguma sequela desse empurrão?” AV –“Penso que não.” Defensora Oficiosa – “Como já mencionou aqui, o empurrão era mesmo para a desviar da porta.” AV – “Para desviar e para fechar a porta com certeza.” 12. A testemunha FN declarou: ... CD – 23:30 a 25:00 FN – “Depois disso começou o confronto físico naquela tomada de empurrão para cá...” 13. As declarações da testemunha NR foram: ... - CD – 10:20 a 10:56 Procuradora –“ ... Viu a arguida a agir fisicamente sobre a enfermeira AV?” NR – “Ver, ver não consegui ver porque tinha o segurança à frente mas vi a enfermeira a ser projectada para trás, neste caso, e vi depois já a senhora com o senhor a avançar sobre...” Procuradora – “Quando a enfermeira foi projectada para trás conseguiu perceber qual das pessoas é que fez fazer isso?” NR – “Não consegui, não lhe consigo dizer porque, como disse, tinha o segurança que entretanto também avançou e eu não consegui perceber, mas no momento só estavam estas duas pessoas e a enfermeira.” ... - CD – 20:23 a 21:26 Advogada – “Aí não visualizou nenhuma agressão? Ou nenhum empurrão ou o que quer que fosse?” NR – “Que eu me apercebesse não porque, tal como eu disse, no meu campo de visão, eu só conseguia ver a porta a abrir e a fechar mas só depois é que vejo a enfermeira a ser projectada.” Advogada – “Mas não consegue precisar quem é que foi.” NR – “Quem foi...com que foi...isso não sei. Não consigo dizer.” 14. A testemunha ... declarou: CD – 14:00 a 14:40 ... Procuradora – “Olhe, viu alguma agressão?” Dra. IM – “Ver não vi. Do sítio de onde estava não dava para visualizar. Agressão física. Verbal ouvia-se.” ... - CD – 15:00 a 18:02 Advogada – “E quando ouviu estes gritos não viu nenhuma agressão física?” Dra. IM -“Do sítio onde estava não dava para ver.” 16. Dos depoimentos das testemunhas FN, NR e Dra IM não se pode concluir tout cour que a arguida AA “… empurrou com o braço o corpo de AV.” 17. A testemunha AV é a própria a declarar que a arguida empurrou-a “…para eu sair porque eu era o obstáculo que estava ali, porque queriam fechar a porta... a senhora empurra-me para fora da ombreira da porta... Para desviar e para fechar a porta com certeza. 18. O que é corroborado pelas declarações da arguida. 19. Assim, face aos depoimentos mencionados supra o douto tribunal deveria ter dado como provado que: “No decurso de tal desentendimento, a arguida AA, para desviar e para fechar a porta empurrou com o braço o corpo de AV” 20. O douto tribunal a quo por outro lado não podia dar como provado que “Em consequência da actuação dos arguidos AA e JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho.” e que “Ao atuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde.” 21. Nomeadamente porque é a própria testemunha AV que afirma que o empurrão foi para a desviar da porta e que não ficou com qualquer sequela. 22. A Mmª. Juiz a quo baseou-se assim em meros indícios, uma vez que não foi feita uma prova segura, firme e concreta, antes pelo contrário, reitera-se, é a própria AV que no seu depoimento diz que “… a senhora empurra-me para eu sair porque eu era o obstáculo que estava ali, porque queriam fechar a porta... a senhora empurra-me para fora da ombreira da porta... Para desviar e para fechar a porta com certeza. 23. Constata-se que houve erro na apreciação da prova, vício este que constitui fundamento do presente recurso e que deverá conduzir à modificação da decisão do douto Tribunal a Quo sobre a matéria de facto dada como provada. 24. Acresce que, salvo o devido respeito, a recorrente entende que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento também não é suficiente para imputar à recorrente a prática do crime pelo qual foi condenada, e mesmo que assim não se entenda, 25. Qualquer dúvida, por mais frágil que seja, deve jogar sempre a favor da arguida e impõe ao julgador que aplique de imediato o princípio “in dubio pro reo “. 26. Pelo que, mesmo que se considere, por mera hipótese académica, que “No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV” tal não é suficiente para condenar a recorrente pela prática como autora material dum crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143, nº.1, 145º, nº. 1 al. a) e n.º 2 por referência ao art.º 132º n.º 2 al l) todos do Cód. Penal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, suspensão esta acompanhada do regime de prova a definir pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, porque este crime supõe a produção dum resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa e que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente, de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade. E, 27. Conforme entendimento da doutrina e da jurisprudência dominante das Relações, as lesões insignificantes estarão excluídas deste tipo legal de crime, por exemplo vide a este respeito o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 28/04/2021 no processo nº.1132/18.4PBMTS.P1 in www.dgsi.pt, no qual é mencionado que “ se alguém coloca as mãos nos ombros de outrem, empurrando essa pessoa para trás, mas não lhe provoca quaisquer dores, tal empurrão não pode deixar de considerar-se insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico aqui tutelado.” 28. Efetivamente, no significado mínimo comum às diversas formas de integridade que pode assumir empurrar alguém é susceptível de provocar ofensas no corpo ou saúde de outrem, mas igualmente de acordo com as regras da experiência comum, tal não se verifica necessariamente. 29. Por tudo o exposto supra a arguida/recorrente deveria ter sido absolvida do crime pelo qual vinha acusada. Nestes termos e nos mais de direito deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, alterando-se as respostas à matéria de facto nos termos referidos, e em consequência ser revogada a douta sentença do tribunal a quo e como tal substituindo por outra sentença que absolva a ora recorrente da prática como autora material dum crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143, n.º 1, 145º, n.º 1 al. a) e n.º 2 por referência ao art.º 132º nº. 2 al l) todos do Cód. Penal, pois só assim se fará a digna e costumada JUSTIÇA (fim de transcrição) * O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1) A douta sentença condenatória não enferma de qualquer vício, em especial o alegado erro de julgamento, pois o Tribunal recorrido fundou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em sede de audiência de julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum bem como à livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. 2) A aqui recorrente, prestou declarações em julgamento e circunstanciou os factos no tempo, explicou o motivo da deslocação do arguido JF e da sua prima MJF ao Hospital do Montijo, e elucidou ainda o motivo da sua subsequente deslocação àquele local, narrando aos seus olhos, a dinâmica dos acontecimentos ocorridos no interior do Hospital em causa. 3) Em concreto, alegou que, quando chegou ao Hospital do Montijo, pediu para falar com a médica que havia atendido a sua sobrinha, tendo sido recebida pela Dr.ª IM, a quem pediu que atendesse a menina. 4) Mais alegou que, nesse momento, se aproximou a enfermeira AV, que, dirigindo-se-lhe, lhe disse “ponha-se na rua”, aditando que, após uma breve troca de palavras, esta pontapeou a sua perna esquerda, ao mesmo tempo que afirmou “põe-te na rua cigana”. 5) Por fim, disse que, nessa altura, o arguido JF, seu filho, se aproximou e levou a arguida, para o exterior, continuando a enfermeira a gritar “ladrões, ponham-se na rua”. 6) Sucede que, a testemunha MJF, arrolada pela defesa, quando ouvida em audiência de julgamento, não apresentou versão inteiramente consentânea com a relatada pela arguida, aqui recorrente, e pelo arguido JF. 7) A testemunha explicou que a arguida tentou fechar a porta do gabinete, existente no serviço de urgência do reportado Hospital, tendo nessa altura, surgido a enfermeira AV que lhes demandou que saíssem daquele sítio e desferiu um pontapé na perna da aqui recorrente. 8) Relatou, porém, a testemunha que a arguida desferiu um empurrão no corpo da enfermeira AV, tendo-a projetado contra um armário, o que aquela não relatou! 9) Relatou também que, entretanto, chegou ao local o arguido JF e que nada fez, quando a arguida disse que o filho a segurou pelo braço e acompanhou ao exterior! 10) Tal testemunha descreveu ainda a arguida como sendo uma pessoa calma e que “fala baixinho”, o que não corresponde à verdade, pois que enquanto o julgamento decorreu e esta prestou declarações, o seu tom de voz foi tão elevado que perturbou o normal funcionamento da audiência que decorria, nesse instante, em sala de audiências contígua! 11) Assim, mesmo que não atendesse à prova testemunhal produzida, sempre teria o mui douto Tribunal recorrido de ter como frágil e incoerente a versão dos factos relatada pela arguida, aqui recorrente, já que a mesma não se apresentava conforme às regras da lógica e senso comum, nem consentânea com o relato feito pela própria testemunha que arrolou! 12) Em sede de prova testemunhal, cumpre referir o depoimento de AV, em sede de audiência, apresentou-se circunstanciado, objetivo e claro, donde credível. 13) A ofendida logrou concretizar que, na decorrência do atendimento de AV, na triagem do Hospital, foi transmitido ao arguido JF que aquela não poderia ser atendida na Urgência sem a presença de um dos progenitores ou tutor legal, uma vez que era menor. 14) Concretizou igualmente a ofendida, os gritos escutados na sala de espera pouco tempo depois, o atendimento da arguida e de MJF, pela médica Dr.ª IM, a postura agressiva da primeira e “a gritaria dentro do gabinete médico”, bem como o pedido reiterado da médica para que não fosse fechada a porta do gabinete, o que a recorrente refutava, tendo motivado a deslocação da primeira para junto da ombreira da porta para evitar que a arguida fechasse a porta. 15) Relatou também que a ofendida, que a arguida, dirigindo-se-lhe disse que “quando a apanhasse na rua resolvia a questão” e que “era amante do seu marido”, tendo depois colocado as duas mãos abertas no seu peito, empurrando-a para trás, acabando por ser projetada contra um armário que distava cerca de dois ou três metros, tendo sofrido, em consequência do descrito, várias lesões. 16) Negou a ofendida AV, de forma expressa, ter perpetrado qualquer agressão física e/ou verbal sobre os arguidos. 17) A ofendida narrou de forma espontânea e sincera o sucedido, tendo respondido a todas as questões que foram colocadas, em julgamento, de forma detalhada, não revelando qualquer dúvida ou hesitação. 18) Inquiridos que foram NR e IM confirmaram os mesmos, a versão relatada por AV. 19) O seu depoimento revelou-se espontâneo e isento, pois que, em momento algum, tentaram aqueles forçar as suas declarações de molde a coincidirem com o que foi dito por AV, pelo que bem andou o Tribunal recorrido ao atribuir-lhe credibilidade. 20) Por seu turno, FN, quando inquirido como testemunha, respondeu apenas às questões que lhe foram sendo colocadas, não tendo feito um relato natural e espontâneo, apesar de ter estado presente no desenrolar da situação e ter presenciado os factos. 21) De tal forma se revelou estranho o seu depoimento, que o próprio Tribunal se viu forçado a interpelar NR para “se limitar a relatar o que aconteceu, de uma forma espontânea, (...) conte a história como se estivesse a contar a história a uma criança.” (minuto 12.24 a minuto 12.36 das declarações da testemunha em sede de audiência de julgamento, realizada no dia 26-10-2022). 22) Nessa decorrência, o Ministério Público questionou também a testemunha se tinha algum receio de prestar declarações na presença dos arguidos, pois apresentava-se muito contido a responder às questões colocadas, retorquindo por meias palavras, como se diz na gíria popular, e de forma muito parca em detalhes (minuto 12.37 a minuto 12.51 das declarações da testemunha em sede de audiência de julgamento, realizada no dia 26-10-2022). 23) Assim sendo, ajuizamos que o depoimento desta testemunha suscitou várias dúvidas, pelo menos ao Ministério Público, quanto à sua credibilidade... 24) Em abono da verdade, diga-se ademais, que os excertos do depoimento desta testemunha que foram vertidos no recurso interposto pela arguida, revelaram-se extremamente “redutores” quando comparados com a imensidão de questões a que foi necessariamente sujeito - considerando a forma pouco fluida com que prestou o seu depoimento - tendo sido transcritas apenas na parte que se revelou favorável àquela. 25) Vg. não transcreveu a arguida, a parte em que a testemunha explicou que ela e o arguido entraram no serviço de urgência, com os “ânimos exaltados”, tendo a primeira “pedido satisfações à médica”, que momentos antes havia atendido a sua sobrinha, com um “tom de voz mais elevado (minuto 12.51 a minuto 14.30 das declarações da testemunha em sede de audiência de julgamento, realizada no dia 26-10-2022). 26) Por tudo, entendemos que os argumentos invocados pela recorrente não se revelam procedentes, tendo bem andado o mui Douto Tribunal ao decidir, pela condenação da mesma, como o fez, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, nº 1 alínea a) e n.º 2 por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea 1), todos do Código Penal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, suspensão esta acompanhada do regime de prova a definir pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. 27) O Douto aresto proferido pelo Tribunal a quo não se estribou em qualquer erro de apreciação da realidade ou em qualquer conclusão ilógica, arbitrária ou contraditória, notoriamente violadora das regras de experiência comum. 28) Do que se trata in casu é que a aqui recorrente discordou da posição sustentada pela Meritíssima Juiz de Direito e bem evidenciada na douta sentença proferida, no que concerne ao que foi como provado e aquilo que aquele entende não ter resultado da prova produzida em sede de audiência de julgamento. 29) Com o recurso que propôs, mais não pretendeu a recorrente que contrapor a convicção que ela própria alcançou sobre os factos à convicção que o Douto Tribunal teve sobre os mesmos factos, livremente apreciados segundo as regras do Direito, da experiência e senso comum. 30) Efetivamente, o recurso assenta numa alegada desconformidade entre a decisão de facto do Julgador e aquela que teria sido a da recorrente. 31) Ora, se a recorrente discordou da decisão proferida, reportando-se à sua própria análise da prova, não existe qualquer erro... 32) Destarte e sem mais delongas, sopesando-se os fundamentos aduzidos, temos para nós que não assiste qualquer razão à recorrente, apresentando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo como conveniente e concretamente motivada e sem contradições, não tendo sido ofendida qualquer norma jurídica, pelo que deverá ser mantida nos seus exatos termos. Por conseguinte, face à argumentação expendida, deverá ser negado provimento ao recurso interposto e subsequentemente mantida a douta sentença condenatória que impôs à arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2 por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea 1), todos do Código Penal, a pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, suspensão esta acompanhada do regime de prova a definir pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Porém, V. Exas. apreciarão e farão, como sempre, a inteira e tão costumada JUSTIÇA! (fim de transcrição) * Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, foi emitido parecer nos seguintes termos (transcrição parcial): (…) II - Compulsada a matéria em análise entendemos que à arguida/recorrente não assiste razão. O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso, equacionando de forma bem estruturada e completa a matéria a resolver nesta lide, defendendo a manutenção da decisão recorrida, em termos de facto e de direito que, pelo rigor e propriedade, suscitam a mais completa adesão. * III – Assim, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público, emite-se parecer consonante, no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente, sendo de manter o decidido na douta sentença recorrida. (fim de transcrição) * Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta. * Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. * II. FUNDAMENTAÇÃO 1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que: a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código. Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir são as seguintes: - se se verifica o erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento invocado pela recorrente e violação do princípio in dubio pro reo; - se a recorrente deverá ser absolvida da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada pelo qual foi condenada na sentença recorrida. * 2. DA SENTENÇA RECORRIDA 2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos (transcrição): Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma: 1. No dia 14 de Maio de 2021, a hora não concretamente apurada, mas no período noturno, o arguido JF, deslocou-se às instalações do Hospital do Montijo, sitas na Rua Machado Santos, n.º 54, 2870-351 Montijo, acompanhando uma prima sua, menor de idade, em virtude de a mesma não estar a sentir-se bem. 2. Nesse local e após algum tempo à espera, o arguido JF contactou telefonicamente a arguida AA, a pedido dos clínicos que aí se encontravam. 3. Em anuência ao pedido do seu familiar, a arguida AA deslocou-se ao Hospital em causa, aí chegando pelas 03.50 horas da madrugada do referido dia 14 de Maio de 2021. 4. Quando abordada pelo pessoal clínico, a respeito do estado de saúde da sua familiar, menor de idade, no período que mediou entre as 03.50 horas e as 4.05 horas da madrugada, do mesmo dia, a arguida AA exaltou-se e quis conversar com a médica de serviço, no caso a Dra. IM. 5. Nessa ocasião e para evitar que a arguida AA lograsse fechar a porta do gabinete onde se encontrava tal médica, a ofendida AV, enfermeira naquele Hospital, trocou breves palavras com a primeira, tendo ambas acabado por se desentenderem. 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV. 7. Em seguida e ao aperceber-se da situação, o arguido ... aproximou-se da arguida e de AV, tendo agarrado esta pelo braço esquerdo, lhe tirado a máscara e depois desferido um empurrão no corpo da mesma, pressionando com as mãos o peito, levando-a a cair contra um armário, existente naquele local. 8. Em consequência da actuação dos arguidos AA e JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho. 9. Ao actuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde. 10. Ao agirem nesses moldes, bem sabiam os arguidos que AV era enfermeira no Hospital do Montijo e estava em claro exercício das suas funções, pois que se encontrava devidamente uniformizada e identificada. 11. Actuaram ambos os arguidos livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar. Mais se provou quanto à arguida AA: 12. A arguida recebe rendimento social de inserção no valor mensal de € 425,00. 13. A arguida reside com a filha e duas menores. 14. O agregado familiar tem despesas com os consumos domésticos. 15. O agregado familiar reside em habitação camarária. 16. A arguida tem o 4.º ano de escolaridade. 17. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais. Mais se provou quanto ao arguido JF: 18. O arguido distribui publicidade duas vezes por semana e aufere cerca de €30,00 a €50,00 mensais. 19. O arguido reside com o pai. 20. O arguido não tem despesas e não tem filhos. 21. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade. 22. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais. A.2) FACTOS NÃO PROVADOS Não existem. (fim de transcrição) * 2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição): A.3.1) Quanto ao ilícito penal De acordo com o artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o Código de Processo Penal explicita, nos seus artigos 97.º, n.º 4 e 374.º, n.º 2, que a sentença deve especificar os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: deve o Tribunal lançar-se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca, derivados da(s) finalidade (s) do processo. Conforme decorre do Código de Processo Penal, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação que, como se afere do artigo 355.º, se traduz no facto de a convicção do Tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza. Por seu turno, tal prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, segundo o qual aquela é apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade julgadora (cfr. art.º 127.ºdo CPP). Quer isto significar que a prova deve ser apreciada na sua globalidade, não através do livre arbítrio, mas de acordo com as regras comuns da lógica, da experiência e dos conhecimentos científicos e vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Todavia, não podemos esquecer que, pese embora este princípio seja a regra geral, existem algumas excepções, nomeadamente: o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art.º 169.ºdo CPP), a confissão integral e sem reservas no julgamento (art.º 344.ºdo CPP) e a prova pericial (art.º 163.ºdo CPP). Em suma, a convicção do Tribunal forma-se, não só com base em dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos. Relativamente às declarações do arguido haverá que ter em conta, porém, o princípio da presunção da inocência, o qual se traduz em que até prova em contrário, o arguido deverá ser considerado inocente - cfr. art.º 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. Importa, pois, desta forma, proceder a uma fundamentação de facto que permita alcançar o raciocínio seguido pelo Tribunal na sua decisão. Nesta conformidade, o Tribunal formou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.ºdo Código de Processo Penal. Os arguidos prestaram declarações e circunstanciaram os factos no tempo — dia 14.05.2021, pelas duas horas da madrugada - e no espaço — Hospital do Montijo -, o motivo da deslocação do arguido JF e da sua prima MJF ao Hospital do Montijo — a menor MJF, de visita a casa dos arguidos, sentiu-se mal (crises de ansiedade) e o arguido, maior de idade, acompanhou-a à unidade hospitalar - e, posteriormente, da arguida AA — i.e. a médica solicitou a presença de um adulto, porquanto MJF era menor e residente em Sines — bem como a dinâmica dos acontecimentos ocorridos no interior do Hospital. AA declarou que se deslocou ao Hospital do Montijo a pedido do seu filho, JF, e, ao chegar, encontrou este a sobrinha MJF - na entrada da unidade hospitalar. Aí chegada, a arguida pediu ao enfermeiro para falar com a médica que atendera a sobrinha, pedido que foi atendido e a arguida recebida pela Dr.ª IM. A arguida entrou no gabinete da referida médica e pediu-lhe que atendesse a “menina” (sic). Nesse momento, surgiu a enfermeira AV, que disse à arguida “ponha-se na rua” (sic), ao mesmo tempo que lhe puxava a roupa atrás. A arguida respondeu à enfermeira “estou a falar com a médica e não consigo” (sic) e virou-se. Perante a atitude da arguida, a enfermeira AV pontapeou a arguida na perna esquerda — a qual tinha sido submetida a intervenção cirúrgica — ao mesmo tempo que lhe dizia “poe-te na ma cigana” (sic) e gritava que estava a ser roubada, pois a arguida tirara-lhe a máscara que tinha guardada na sua mala. JF, ao ouvir os gritos da enfermeira AV, aproximou-se e levou a arguida para o exterior, ao mesmo tempo que a enfermeira gritava “ladrões, ponham-se na ma” (sic). A arguida, o seu filho JF e a sobrinha MJF aguardaram no exterior do Hospital pela chegada da Polícia de Segurança Pública e, depois, pelo atendimento médico da sua sobrinha, o qual veio a ocorrer, mas efectuado por outro profissional de saúde. A arguida declarou que, durante a altercação, estavam presentes o segurança e a médica e que conhece a enfermeira AV das idas às urgências no Hospital, nunca tendo ocorrido qualquer situação anómala. Quanto ao arguido JF, a arguida declarou que o “o filho não fez nada” (sic). JF corroborou a dinâmica dos factos relatada pela arguida AA. MJF, testemunha arrolada pela defesa, esclareceu que, enquanto estava com a arguida AA. no interior do gabinete da médica, tentaram fechar a porta porque a testemunha pensou que ia ser observada pela médica. Nesse momento surgiu a enfermeira a dizer à testemunha e à arguida AA que saíssem do gabinete, ao mesmo tempo que desferiu pontapés na perna intervencionada cirurgicamente da sua tia, lhe desferiu empurrões e a acusou de “roubar a máscara” (sic) chamando-os de ciganos. A testemunha afirmou que a arguida AA empurrou a enfermeira AV, projectando-a contra um armário, como resposta aos pontapés que aquela lhe deferiu. Nesse momento, chegou o arguido JF e o segurança, que nada fizeram. Após, abandonaram o Hospital, permanecendo no exterior e tendo sido atendida por outro médico. A testemunha descreveu a arguida AA como uma pessoa calma e que fala baixinho. As declarações do arguido e depoimento de MJF não são consentâneas entre si e são contraditados pela restante prova testemunhal produzida. Desde logo, AA e MJF evidenciaram uma preocupação evidente em afirmar e convencer que JF nada fez. MJF imputa factos a AA que esta não admite — i.e. o empurrão na enfermeira e projecção desta contra o armário. Por outro lado, AA não referiu a vontade manifestada aquando dos factos em fechar a porta do gabinete da médica com quem estava a falar. Mais se diga que a arguida AA não tem um tom de voz baixo e “não fala baixinho” (sic), porquanto durante as suas declarações perturbou o normal funcionamento do julgamento de decorria na sala de audiência de julgamento contigua àquela onde estava a prestar declarações. Por fim, sempre se dirá que algo no comportamento dos arguidos e de MJF obrigou à intervenção da enfermeira AV, a qual não se encontrava inicialmente no gabinete médico, mas sim na sala de enfermagem, localizada em frente àquele gabinete. Veja-se, então, a demais prova testemunhal produzida. AV, enfermeira em exercício de funções no Hospital do Montijo, circunstanciou no tempo e no espaço os factos ocorridos, o atendimento a MJF na triagem, a informação prestada de que não poderia ser atendida na Urgência sem a presença de um dos progenitores ou tutor legal, uma vez que era menor, a chamada de MJF para ser atendida pela médica Dr.ª IM, onde permaneceu sozinha no gabinete, o pedido da médica para falar com o acompanhante — JF -, a saída do arguido e de MJF, os gritos escutados na sala de espera pouco tempo depois, o atendimento da arguida AA e de MJF pela médica Dr.ª IM, a postura agressiva de AA, “a gritaria dentro do gabinete médico” (sic) — i.e. a arguida questionava a médica da razão pela qual não atendeu MJF e queria fechar a porta do gabinete -, o pedido reiterado da médica Dr.ª IM para que não fosse fechada a porta do gabinete, deslocação da testemunha para o gabinete, onde se colocou na ombreira da porta para evitar que a arguida fechasse a porta, o comportamento da arguida — i.e. a arguida insultou a testemunha e a médica, disse à testemunha que não devia estar ali, que quando a apanhasse na rua resolvia a questão e que a enfermeira era amante do seu marido, e colocou as duas mãos abertas no seu peito, empurrando-a para trás para afastá-la da porta -, a abertura da porta de segurança (pelo segurança) para entrada do arguido JF, o comportamento do arguido — i.e. agarrou a testemunha por um braço, arrancou- lhe a máscara e empurrou-a contra um armário que distava cerca de dois ou três metros -, o comportamento de MJF — i.e. a menor filmava os acontecimentos com o telemóvel -, e as lesões que sofreu — i.e. hematomas na perna, tratamento médico recebido, do qual teve alta na semana passada, alteração do departamento onde exercia funções para evitar situações futuras. Por fim, a testemunha negou qualquer agressão física e/ou verbal aos arguidos. FN, vigilante em exercício de funções, à data dos factos, no Hospital do Montijo, circunstanciou no tempo e no espaço os factos ocorridos, a entrada de JF e MJF para atendimento médico após triagem, a saída de ambos aborrecidos porque não tinham sido atendidos, a saída de ambos do Hospital, o regresso de ambos, acompanhados por AA, todos eles chateados, o comportamento de AA — i.e. estava exaltada, falava alto, mas era cordial -, a entrada dos arguidos e de MJF no Serviço de Urgência, a exaltação dos ânimos da arguida AA enquanto falava com a médica, a sua deslocação para junto do gabinete médico, o surgimento junto daquele gabinete da enfermeira CT e do auxiliar NN, o comportamento da médica — i.e. permaneceu no interior do gabinete, junto à porta, em silêncio, o pedido da enfermeira AV para acompanhar os arguidos à saída, o comportamento dos arguidos — i.e. mantiveram-se exaltados enquanto a testemunha tentava tirá-los do local -, o pedido reforçado da enfermeira AV - i.e. “ponha já estes senhores na rua” (sic) -, a crescente exaltação dos ânimos, com ofensas verbais e provocações reciprocas da enfermeira e dos arguidos, e o início do confronto físico — i.e, empurrões, pontapés e “tentativa de chegar à cara” (sic) -, o empurrão desferido pelo arguido JF na enfermeira AV, a qual embateu contra um armário e o apaziguamento dos ânimos e saída dos arguidos do local. A testemunha não conseguiu concretizar quem iniciou as agressões físicas, mas afirmou que estava no meio dos intervenientes para tentar apaziguar os comportamentos NR, assistente operacional no Serviço de Urgência do Hospital do Montijo, confirmou que a arguida AA chegou ao Hospital exaltada, pois gritava porque razão não tinham atendido a sua sobrinha, o atendimento da mesma pela médica, a tentativa da arguida de fechar a porta do gabinete médico, a qual nunca é fechada por razões de segurança dos médicos, o impedimento do fecho da porta pela enfermeira AV, a nova tentativa da arguida para fechar a porta, a troca de palavras entre a enfermeira e a arguida e a projecção da enfermeira AV contra um armário e o avanço dos arguidos “sobre ela” (sic). A testemunha afirmou que não viu quem empurrou a enfermeira AV porque o segurança estava no seu campo de visão e avançou na direcção dos arguidos, tendo a testemunha avançado na direcção da enfermeira para socorrê-la. A testemunha ainda referiu que MJF filmava e/ou tirava fotografias após a enfermeira ter sido empurrada contra o armário. IM, médica em exercício de funções no Hospital do Montijo, circunstanciou no tempo e no espaço os factos ocorridos, a observação da jovem MJF, a informação que chamaria a Polícia de Segurança Pública não comparecesse no local, pois a jovem era menor e não podia avançar nos procedimentos de diagnóstico sem a presença do representante legal e o motivo apresentado para a jovem se encontrar no Montijo, pela própria e por JF, não era convergente, a informação de JF de que ia chamar o pai, a saída de ambos os jovens do Serviço de Urgência, a audição de gritos na sala de espera momentos depois, o surgimento da arguida a questionar a testemunha da razão pela qual não passou uma receita a MJF, a explicação dada para essa omissão — i.e. não tinha concluído a observação -, a insistência da arguida pela receita e para fechar a porta do gabinete médico, o seu pedido para que a porta do gabinete não fosse fechada (pois tem receio devido a situações anteriores), o surgimento da enfermeira AV, a qual não permitiu que a porta do gabinete fosse fechada, os gritos da arguida para que a porta do gabinete fosse fechada, a negação da enfermeira, o surgimento de JF à porta do gabinete, as palavras ditas pela arguida — i.e. “eu conheço-te muito bem, lá fora faço-te a folha, andas metida com o meu marido” (sic) -, a audição de barulhos e gritos dos arguidos e da enfermeira, a filmagem feita pela jovem MJF, e as queixas da enfermeira a posteriori (i.e. dores num braço e perna e estado de nervosismo). A testemunha afirmou que não conseguiu ver o que aconteceu no exterior do gabinete porque o seu campo de visão não lhe permitiu e que o segurança não interveio por receio da sua integridade física. Por fim, a testemunha afirmou que teve receio pela sua integridade física. A prova testemunhal foi objectiva, circunstanciada, directa e, ao contrário daquilo que os arguidos afirmaram e quiseram convencer o tribunal, não foi persecutória, tanto mais que as testemunhas apenas relataram os factos que observaram e não fizeram qualquer esforço de confirmar entre si os depoimentos prestados ou acrescentar factos não presenciados. Acresce que, conforme afirmado pela arguida AA, tanto a enfermeira AV, como a médica IMadaleno, já a atenderam noutras circunstâncias, antes e posteriores aos factos, e nada ocorreu. Assim, considerando as contradições das declarações dos arguidos entre si e com o depoimento de MJF, e a demais prova testemunhal produzida, o tribunal valorou a versão dos factos narrada por AV e corroborada pelas demais testemunhas, em detrimento da versão dos factos trazida pelos arguidos. As circunstâncias de tempo e lugar dos factos extraem-se ainda do auto de notícia de fls. 2 e verso. O propósito intencional dos arguidos, sendo um facto íntimo, subjectivo, sobre o qual não foi, como é normal, produzida prova, infere-se da materialidade objetiva dada por provada de acordo com as regras da lógica e da experiência comum. A.3.2) Quanto aos antecedentes criminais A ausência de antecedentes criminais dos arguidos resulta da análise do teor dos certificados de registo criminal, juntos a fls. 102 (AA) e 103 (JF). A.3.3) Quanto à situação pessoal e sócio-económica Os factos provados quanto à situação pessoal e sócio-económica dos arguidos resultam das suas declarações, as quais foram tidas como reveladoras de factos verídicos inexistindo elementos nos autos que as infirmem e não sendo as mesmas excluídas pelas regras da experiência. (fim de transcrição) * 2.3. Na sentença recorrida, o enquadramento jurídico-penal dos foi motivado nos seguintes termos (transcrição): «(...) o conceito material de crime é essencialmente constituído pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal; mas que a esta noção tem de acrescentar ainda um qualquer outro critério que torne a criminalização legítima. Este critério adicional é (...) o da necessidade (carência) de tutela penal. A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção o direito penal constitui, na verdade, a 'ultima ratio” da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária.» (Figueiredo Dias, “Direito Penal — Parte Geral”, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 121). Atenta a matéria de facto apurada, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal visando determinar se a conduta dos arguidos consubstancia uma efectiva negação do valor ou bem jurídico criminalmente tutelado por via do crime que lhes é imputado nestes autos. § Os arguidos vêm acusados da prática, cada um deles, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nºs 1, al. a) e 2, por referência aos art.ºs 132º, nº 2, al. l), do Código Penal. Estabelece o artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Por sua vez, o artigo 145.º, do citado diploma legal dispõe, à data da prática dos factos, que «1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144.º 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º2 do artigo 132.º», nomeadamente «praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas» (al l). Note-se que, neste ilícito penal, o bem jurídico tutelado é tão-só, a integridade física, deixando-se de parte a ofensa puramente psíquica (a injuria, a humilhação, o insulto) — neste sentido, Paula Ribeiro Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 251. O bem jurídico protegido por este tipo legal é a integridade física da pessoa humana. Este é um crime material e de dano, ficando o respectivo tipo legal preenchido com a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente da dor ou do sofrimento causados. No que respeita ao tipo objectivo de ilícito, importa salientar que a lei distingue duas modalidades de realização do tipo: ofensas no corpo ou ofensas na saúde. Como bem esclarece Paula Ribeiro Faria, «o tipo legal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente da dor ou sofrimento causados (...), ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (...). Não relevam para aqui os meios empregues pelo agressor ou a duração da agressão se bem que, como é evidente, todas estas circunstâncias sejam de ter em conta pelo Juiz nos termos do artigo 71º, para a determinação da medida da pena» (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 205). Devendo entender-se por ofensa no corpo “todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante» e como lesão da saúde «toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a» (ob. cit., págs. 205 e 207). Com efeito, a ofensa no corpo associa-se a um ataque à integridade corporal, que tanto pode consistir no prejuízo ou perda da substância corporal, como no simples corte do cabelo ou da barba. Com frequência, a ofensa corporal constituirá uma lesão, mas pode não se chegar a infligir dor ou sofrimento. Haverá dano da integridade corporal, designadamente, quando o agressor provoca equimoses, arranhadelas, ferimentos, fracturas, mutilações ou outras lesões do mesmo género na vítima. Contudo, nem o derramamento de sangue (hemorragia), nem a solução de continuidade dos tecidos são indispensáveis à existência de uma ofensa no corpo. Deste modo, integra uma ofensa no corpo da vítima todo o mau trato através do qual o ofendido é prejudicado no seu bem-estar físico de forma não insignificante. Neste sentido, refere-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Junho de 2001 (in CJ, 2001, ano XXVI, tomo III, p. 150) que «por ofensa no corpo deve entender-se toda a perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas, todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem-estar físico de forma não insignificante (...) Entendimento que se mantém na linha definida pela jurisprudência. Começando pelo acórdão de fixação de jurisprudência de 28.11.1991 que considerou integrar o crime do art.º 142ºdo CP, versão primitiva, a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre outra pessoa, ainda que esta não sofra por via disso, de lesão, dor ou incapacidade para o trabalho, e citando-se, a título exemplificativo, os acórdãos da RC de 6.10.88 (integra a materialidade correspondente ao crime de ofensas corporais voluntárias a conduta daquele que agarra a ofendida pelas roupas, junto ao pescoço, dando-lhe fortes abanões) e de 5.4.89 (crime previsto e punido no art.º 142º, nº 1 do CP, versão primitiva, pode ser cometido através de uma conduta, nomeadamente um empurrão, que não deixe marcas ou consequências no corpo do ofendido).” Na ofensa à integridade física qualificada “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: “a especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos aos factos, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem a mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificado”.[1] “A qualificação da ofensa à integridade física, tributária qualificação do homicídio no C. Penal, é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº1 do art.º 132º— a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou seja, um especial tipo de culpa — com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº2 do mesmo artigo. Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles. A verificação, no caso concreto, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio ou qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que, a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo porque o uso, no nº 2 do art.º 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos, ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão. A especial censurabilidade — e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa — prende-se com a atitude do agente relativamente aformas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente” (Ac. Do TRC, de 10-12-2008, proc. 220/07.7GCACB.C1, relator: Venerando Desembargador Exmo. Senhor Dr. Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt) Efectivamente, “no caso das ofensas corporais, o tipo legal fundamental é o de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143ºdo C. Penal e todos os outros são derivados, na medida em que resultam de um acrescentamento de outros elementos ao tipo base. Todavia, não se trata apenas de acrescentamento de elementos que agravam a pena; a qualificação do art.º146ºdo C. Penal “não é determinada por raives de ilicitude ligadas à gravidade do resultado das ofensas, mas antes por razões de agravamento de culpa, derivado da especial censurabilidade ou perversidade do agente” — Ac. do STJ de 1/3/2000, in CJ, Acs. do STJ, ano VIII, tomo 1, pg. 219. O agravamento da pena é resultante, pois, do juízo que se faça à conduta do agente no sentido de se concluir que aquela revela especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Ac do TR.G, de 09-05-2005, proc. 319/05-1, relator: Venerando Desembargador Exmo. Senhor Dr. Anselmo Lopes, disponível em www.dgsi.pt). Assim, não basta o preenchimento objectivo da alínea l) do n.º 2, do artigo 132.ºdo Código Penal, ou qualquer outra circunstância descrita no n.º 2 ou ainda, substancialmente análoga a alguma das aí descritas, para que o tipo esteja preenchido. Essencial ao preenchimento deste, enquanto tipo de culpa, é a autónoma comprovação de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Do ponto de vista subjectivo, trata-se de um crime essencialmente doloso, pelo que, de acordo com a conceitualização da doutrina hoje dominante, se exige que o agente tenha conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do tipo objectivo de ilícito. De um lado, impõe-se que, ao actuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.ºdo Código Penal (Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 328 e ss). Do que ficou dito resulta que a afirmação do dolo do tipo exige, antes de tudo, a apreensão do sentido ou significado, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, da totalidade dos elementos constitutivos do respectivo tipo de ilícito objectivo, da factualidade típica. Atento o enquadramento jurídico supra e os factos provados em 6) a 8) os elementos objectivos de um crime de ofensa à integridade física qualificada estão preenchidos, pois, quer a arguida AA, quer o arguido JF, empurraram a enfermeira AV, enquanto a mesma estava em exercício de funções no Serviço de Urgência do Hospital do Montijo, facto que era do conhecimento dos arguidos. O local onde os factos ocorreram, o motivo fútil para a sua comissão, os dois arguidos contra uma única pessoa, demonstram a especial censurabilidade do seu comportamento. Face aos factos provados em 9) a 11) os arguidos agiram com dolo directo (artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal). Todavia, para que se possa considerar como preenchido o ilícito criminal em análise, é necessário apurar se não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Tem-se por ilícito todo o comportamento típico no âmbito penal, que seja contrário à ordem jurídica vigente, podendo essa contrariedade ser afastada se se verificar qualquer causa de exclusão da ilicitude, prevista nos artigos 31.ºe seguintes do Código Penal. Por outro lado, a culpa verificar-se-á quando o arguido, ao agir de forma típica e ilícita, possua consciência da ilicitude da sua conduta e vontade de se motivar de acordo com essa consciência. De igual modo, a culpabilidade do arguido poderá ser afastada se existir uma causa de exculpação, pois nesse caso a sua conduta não merece censura ético-jurídica (cfr. art.ºs 20º, 35º, 37º, todos do Código Penal). No caso sub judice, não se lograram provar factos que excluam a culpa ou a ilicitude da conduta. Nos termos do artigo 26.ºdo Código Penal, «é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução». Atenta a factualidade provada, afigura-se que a responsabilidade do arguido pela prática do crime em causa lhe deve ser imputada a título de autoria material. (fim de transcrição) * III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO 3.1. Do erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento, e violação do princípio in dubio pro reo No introito do requerimento de interposição de recurso, refere a recorrente que: a douta sentença ora recorrida enferma dos seguintes vícios: há pontos de facto que foram incorrectamente julgados e há erro notório na apreciação da prova. Por outro lado, na conclusão 1ª da sua motivação, invoca a recorrente que: Salvo o devido respeito, há pontos de facto que foram incorrectamente julgados e há erro notório na apreciação da prova. Assim, a recorrente reporta-se simultaneamente ao vício previsto no art.º 410º/2-c) do Código de Processo Penal e ao erro de julgamento a que se refere o art.º 412º/3 e 4 do mesmo Código. Preceitua aquele art.º 410º que: 1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. Dispõe o art.º 412º, nºs 1 a 4, do Código de Processo Penal que: Motivação do recurso e conclusões 1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…) É sabido que a impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição do vício previsto no art.º 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, norma que prevê o reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto previsto no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo Código. No primeiro caso, a divergência consubstancia a invocação de um vício da decisão, sendo este recurso considerado como sendo ainda recurso da matéria de direito; no segundo caso, o recorrente vale-se de provas produzidas em audiência, que deverá especificar. Assim, nos termos do n.º 3 do citado art.º 412º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente terá de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida na decisão recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Por outro lado, por força do disposto no n.º 4 do mesmo dispositivo legal, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Na hipótese de ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012 publicado no D.R. n.º 77/2012, Série I, de 2012-04-18), visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas. O incumprimento das formalidades exigidas no citado art.º 412º/3 e 4, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla. Por outro lado, os vícios previstos no art.º 410º/2, do Código Penal, como vícios da decisão, mostram-se directamente conexionados com os requisitos da sentença previstos no art.º 374º/2 do mesmo Código, designadamente com a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal (v. Ac. STJ de 9-02-2012, proferido no processo nº 233/08.1PBGDM.P3.S1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais acórdãos que se citarão infra). Como resulta expressamente de tal preceito legal, os vícios da matéria de facto fixada na sentença, a que se refere o citado art.º 410º/2, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo. No que respeita ao erro notório na apreciação da prova, este ocorre quando se julgam provados factos que, face às regras da experiência comum, às regras da lógica, e à normalidade da vida, não se poderiam ter verificado em face dos concretos meios probatórios produzidos ou, ao invés, quando se julgam não provados factos que, face aos meios probatórios e àquelas regras da experiência, necessariamente teriam de ser tidos como verdadeiros. Trata-se de um vício atinente ao raciocínio na apreciação das provas, exigindo-se, como referido, que tal vício seja evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, ou seja, que se trate de um erro evidente: as provas enunciadas na decisão apontam para um sentido e a decisão conclui de forma manifestamente contrária. Existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”. (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, no citado “Recursos em Processo Penal, pág. 77). Invoca a recorrente que há erro notório na apreciação da prova. Contudo, a recorrente não fundamenta minimamente na sua motivação a verificação de tal vício decisório. Na verdade, da análise da motivação de recurso, o que se constata é que, depois de reproduzir trechos das declarações da arguida e depoimentos da ofendida e outras testemunhas inquiridas, a recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto julgada provada por ela impugnada. Argumenta a recorrente que: - se analisarmos as declarações dos arguidos, das testemunhas e quanto a estas de AV, das mesmas não se extrai que a recorrente tivesse uma postura agressiva e que empurrou com o braço o corpo de AV com intenção de agredir a mesma; - não tendo qualquer testemunha presenciado um empurrão por parte da arguida a AV e face às declarações supra mencionadas da própria AV não pode o douto tribunal dar como provado que “Ao atuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF., de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde.”; - a Mmª. Juiz a quo baseou-se em meros indícios, uma vez que não foi feita uma prova segura, firme e concreta, antes pelo contrário; - a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não foi suficiente para imputar à recorrente a prática do crime pelo qual foi condenada. É pois uma evidência que a recorrente confunde o erro notório na apreciação da prova com a incorrecta valoração da prova, sendo esta subsumível já a um erro de julgamento da matéria de facto. A recorrente simplesmente discorda do sentido da decisão recorrida relativamente à matéria de facto provada face aos meios de prova produzidos que indica ao longo da sua motivação. Sucede que constata este tribunal de recurso que se verifica efectivamente um erro notório na apreciação da prova quanto ao facto provado descrito sob o ponto 7., não especificamente invocado pela recorrente, designadamente na parte em que naquele ponto se julgou provado que foi com o braço que a arguida empurrou a ofendida AV. Consta, com efeito, daquele ponto 6. dos Factos Provados o seguinte: 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV (destacado nosso) Veja-se, contudo, o que consta a esse respeito da motivação da matéria de facto, plasmada na sentença recorrida: AV, enfermeira em exercício de funções no Hospital do Montijo, circunstanciou no tempo e no espaço os factos ocorridos, (…), o atendimento da arguida AA e de MJF pela médica Dr.ª IM, a postura agressiva de AA, “a gritaria dentro do gabinete médico” (sic) — i.e. a arguida questionava a médica da razão pela qual não atendeu MJF e queria fechar a porta do gabinete -, o pedido reiterado da médica Dr.ª IM para que não fosse fechada a porta do gabinete, deslocação da testemunha para o gabinete, onde se colocou na ombreira da porta para evitar que a arguida fechasse a porta, o comportamento da arguida — i.e. a arguida insultou a testemunha e a médica, disse à testemunha que não devia estar ali, que quando a apanhasse na rua resolvia a questão e que a enfermeira era amante do seu marido, e colocou as duas mãos abertas no seu peito, empurrando-a para trás para afastá-la da porta. (…) Assim, considerando as contradições das declarações dos arguidos entre si e com o depoimento de MJF, e a demais prova testemunhal produzida, o tribunal valorou a versão dos factos narrada por AV e corroborada pelas demais testemunhas, em detrimento da versão dos factos trazida pelos arguidos. (destacados nossos) Ou seja, na fundamentação da matéria de facto exarada na sentença recorrida menciona-se expressamente que a ofendida AV foi empurrada pela arguida com as duas mãos abertas no seu peito, e não com o braço como consta do facto provado 6., sendo certo que foi esse o depoimento valorado positivamente pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção no sentido vertido na decisão quanto à matéria de facto. Assim, no que concerne àquele facto preciso e concreto, o texto da decisão recorrida evidencia de forma notória, facilmente perceptível ao cidadão comum, que ocorreu um erro na valoração da prova, ou seja, que os meios de prova produzidos, no caso o depoimento da testemunha AV, aponta necessariamente em sentido diferente daquele que foi a decisão. Aliás, a contradição entre o que consta da fundamentação quanto a esse ponto em concreto e o julgado provado, consubstancia, não só um erro notório na apreciação da prova, mas igualmente o vício decisório previsto no art.º 410º/2-b) do Código de Processo Penal. Com efeito, o vício de contradição insanável da fundamentação, nos termos previstos no art.º 410º/2, alínea b), do Código de Processo Penal verifica-se, designadamente, sempre que do texto da decisão recorrida resulte que um mesmo facto seja julgado como provado e não provado, quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si e que mutuamente se excluem, ou quando, do conteúdo da decisão recorrida, seja de concluir que a fundamentação nela exposta determina inevitavelmente conclusão oposta àquela que aí foi acolhida. Assim, como se decidiu no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24-04-2013, proferido no processo nº 1800/10.9TAVLG.P1: O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão. Dispõe o art.º 431º do Código de Processo Penal que: Modificabilidade da decisão recorrida Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova. Preceitua o art.º 426º/1 do mesmo Código que: Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio. Da conjugação de tais normativos resulta que o Tribunal da Relação só deverá reenviar o processo para novo julgamento quando não possa decidir a causa, devendo os vícios previstos no art.º 410º citado serem sanados quando tal resulte possível face aos elementos que constem do processo e ao texto da decisão recorrida. A possibilidade de alteração da matéria de facto e sanação dos vícios previstos no citado art.º 410º mostrar-se-á excluída quando para tal seja necessário o recurso à audição da prova gravada, salvo se tiver sido impugnada a matéria de facto nos termos do art.º 412º/3 do Código de Processo Penal, o que no caso concreto ocorreu. Ora, para sanação do vício decisório detectado, basta a eliminação da expressão “com o braço” constante daquele ponto 6. dos Factos Provados. No entanto, importando ainda apreciar o erro de julgamento invocado, relega-se para momento ulterior a decisão sobre o conteúdo daquele facto provado 6., o qual foi objecto de impugnação por parte da recorrente, ainda que não o tenha sido especificamente quanto à circunstância de ter sido com o braço que a ofendida foi empurrada. Em conformidade, ainda que com fundamento diverso, procede o recurso no que respeita ao erro notório na apreciação da prova do art.º 410º/2 do Código de Processo Penal. * Cumpre agora apreciar o erro de julgamento invocado. Como atrás explicitado, nos termos do n.º 3 do art.º 412º do Código de Processo Penal, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, invocando erro de julgamento, o recorrente deverá individualizar de forma especificada os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida, sendo que a omissão de cumprimento de tais ónus processuais inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso. Conforme resulta da motivação de recurso e da sua 1ª conclusão, a recorrente apenas impugnou os factos provados sob os pontos 6., 8. e 9., pelo que, por imposição daquele normativo legal, a apreciação do erro de julgamento por parte deste tribunal ad quem se restringe aos factos assim particularizados pela recorrente e que são os seguintes: 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV. 8. Em consequência da actuação dos arguidos AA e JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho. 9. Ao actuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde. Há erro de julgamento quando o tribunal julgue como provado determinado facto que, face às provas produzidas, deveria ter sido julgado como não provado, ou quando, inversamente, se julgue como não provado um certo facto, o qual, de harmonia com os meios probatórios produzidos, deveria ser julgado como provado. Relativamente à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, importa referir, como é jurisprudência firmada, que esta não se destina à realização de um segundo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (in Ac. da Relação de Guimarães de 4-06-2018, proferido no processo nº 121/15.5GAVFL.G1). Em sede de reapreciação da matéria de facto, ao tribunal de recurso importará apreciar se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...). Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Ac. da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo nº 245/09.8 GBACB.C1). No mesmo sentido, pronunciou-se o Ac. da Relação de Évora de 16-12-2021, proferido no processo 60/20.8GBETZ.E1: A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3 do referenciado artigo 412º). É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade (…). Também no Ac. do STJ de 19-05-2010, proferido no processo nº 696/05.7TAVCD.S1, se decidiu que: O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. Ou seja, as provas indicadas pelo recorrente quanto aos pontos da matéria de facto impugnados terão necessariamente de impor decisão diferente da proferida, não bastando que sugiram ou permitam diversa convicção, na medida em que, como se salienta no Ac. do STJ por último citado: A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração. Dispõe o art.º 127º do Código de Processo Penal, que: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. No entanto, livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária dos meios de prova, nem se confunde com a impressão que estes geram no espírito do julgador, pressupondo o respeito pelos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio (v. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 17ª ed., pág. 354). Consequentemente, existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (in Ac. Relação de Évora de 13-07-2021, proferido no processo 149/19.9PBSTR.E1). Como se decidiu no Ac. da mesma Relação de Évora de 6-06-2006, proferido no processo nº 384/06-1: As provas são apreciadas pelo julgador de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção – não uma convicção puramente subjectiva, baseada em imprecisões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de tal modo que, sendo uma convicção pessoal, há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável. Daí a exigência da motivação na sentença quanto ao sentido da decisão sobre a matéria de facto, a qual terá de consubstanciar o percurso lógico- dedutivo e o raciocínio desenvolvido pelo julgador para concluir como concluiu, impondo o dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido (in Ac. do STJ de 23-02-2011, proferido no processo nº 241/08.2GAMTR.P1.S2). O procedimento da valoração probatória empreendida pelo tribunal a quo vem descrito na motivação da sentença recorrida acima transcrita de forma minuciosa e criteriosa, nela sendo explicitado o percurso lógico-dedutivo da julgadora para formar a sua convicção nos termos em que o fez. No entanto, tendo-se procedido à audição integral da prova produzida em audiência, desde já se adianta assistir parcialmente razão à recorrente quanto ao erro de julgamento que invocou. Passemos então a analisar os concretos pontos de facto provados impugnados pela recorrente. Quanto ao ponto 6. dos Factos Provados, conclui a recorrente que: 16. Dos depoimentos das testemunhas FN, NR e Dr.ª IM não se pode concluir tout cour que a arguida AA “… empurrou com o braço o corpo de AV.” 17. A testemunha AV é a própria a declarar que a arguida empurrou-a “…para eu sair porque eu era o obstáculo que estava ali, porque queriam fechar a porta... a senhora empurra-me para fora da ombreira da porta... Para desviar e para fechar a porta com certeza. 18. O que é corroborado pelas declarações da arguida. 19. Assim, face aos depoimentos mencionados supra o douto tribunal deveria ter dado como provado que: “No decurso de tal desentendimento, a arguida AA, para desviar e para fechar a porta empurrou com o braço o corpo de AV.” Contudo, o facto que a recorrente pretende ver acrescentado àquele ponto 6. (para desviar e para fechar a porta) não consta da acusação deduzida. O que consta do despacho de acusação de 29-03-2022 (ref..ª citius 414174992) nessa parte, corresponde precisamente ao facto 6. julgado provado na sentença recorrida, ou seja: 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV. Preceitua o art.º 358º do Código de Processo Penal, no que aqui releva, que: Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. Não se tratando de factos alegados pela defesa em sede de audiência de julgamento, mas resultando do depoimento de uma testemunha de acusação, aquele aditamento pretendido pela recorrente não integra a previsão do nº 2 do citado art.º 358º. Contudo, tal aditamento apenas explicita mais pormenorizadamente o facto constante da acusação, não implicando qualquer alteração ao facto histórico ali enunciado, sendo meramente circunstancial, não contendendo negativamente com o direito de defesa, motivo pelo qual a recorrente pretende o seu aditamento. Não enquadra assim uma alteração não substancial dos factos nos termos previstos naquele art.º 358º, pelo que nada obsta a que seja considerado nos termos pretendidos pela recorrente. É que, como evidenciam as transcrições do depoimento da ofendida AV constantes das conclusões da motivação de recurso, efectivamente resulta das mesmas, de forma inequívoca, que a arguida a empurrou para a desviar da porta. Assim, sensivelmente ao minuto 11:05 do seu depoimento, a ofendida AV afirmou que a arguida a “empurrou com as duas mãos para me desviar” e ao minuto 12:00 “eu fui empurrada para fora”. Asseverou igualmente a mesma testemunha, sensivelmente a partir do minuto 24:50 do seu depoimento que: “pus-me na ombreira da porta e fiquei ali parada, essa Senhora achava que eu não tinha que estar ali, eu era o obstáculo para a porta ser fechada”. Aquela afirmação foi reiterada pela mesma testemunha sensivelmente a partir do minuto 26:15 do seu depoimento: “a Senhora empurrou-me para fora da porta, para desviar da porta”, e a partir do minuto 28:00: “o empurrão era para me desviar da porta com certeza”. Assim, impõe-se a alteração do ponto 6. da matéria de facto provada, o qual, devendo ainda ser eliminada a expressão “com o braço” que dele consta face ao vício decisório nessa parte atrás apontado, passará a ter a seguinte redacção: 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA, para desviar e para fechar a porta, empurrou o corpo de AV.” Passará, em consequência, a constar dos Factos Não Provados o seguinte: - Que foi com o braço que a arguida empurrou AV. * No que se refere aos pontos 8. e 9. dos Factos Provados, conclui a recorrente que: 20. O douto tribunal a quo por outro lado não podia dar como provado que “Em consequência da actuação dos arguidos AA e JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho.” e que “Ao atuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF., de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde.” 21. Nomeadamente porque é a própria testemunha AV que afirma que o empurrão foi para a desviar da porta e que não ficou com qualquer sequela. 22. A Mmª. Juiz a quo baseou-se assim em meros indícios, uma vez que não foi feita uma prova segura, firme e concreta, antes pelo contrário, reitera-se, é a própria AV que no seu depoimento diz que “… a senhora empurra-me para eu sair porque eu era o obstáculo que estava ali, porque queriam fechar a porta... a senhora empurra-me para fora da ombreira da porta... Para desviar e para fechar a porta com certeza. Sob o ponto 8. consta como provado, repete-se, que: 8. Em consequência da actuação dos arguidos AA e JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho. Ora, tal conclusão fáctica não encontra qualquer sustentação na prova produzida no que à recorrente diz respeito, sendo, aliás, por ela manifestamente contrariada. Na verdade, sensivelmente a partir do minuto 28:00 do seu depoimento, é a própria ofendida AV que declara que em consequência do empurrão da Senhora (aqui arguida) “não embati em lado nenhum” e, questionada sobre se ficou em resultado dele com alguma mazela, respondeu “penso que não”, esclarecendo que as nódoas negras que referiu foram consequência “da parte seguinte”, isto é, dos factos em seguida perpetrados pelo co-arguido e julgados provados. Da audição da prova produzida em audiência, verifica-se que nenhum meio de prova, nem o depoimento da própria ofendida, sustenta a conclusão fáctica vertida naquele ponto de facto 8. de que, como consequência da actuação da arguida/recorrente a ofendida padeceu de intensa dor e sofrimento. Impõe-se, por isso, nesta parte, a eliminação da referência à actuação da arguida naquele ponto 8. dos Factos Provados, pelo que aquele ponto 8. passará a ter a seguinte redacção: 8. Em consequência da actuação do arguido JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho. Passará, em consequência, a constar dos Factos Não Provados o seguinte: - Que em consequência da actuação da arguida AA, AV tenha padecido de intensa dor e sofrimento. * Quanto ao ponto 9. dos Factos Provados, o mesmo tem o seguinte teor: 9. Ao actuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si e com o intuito concretizado de maltratarem e molestarem fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde. Atente-se novamente no que a este respeito se consignou na motivação da decisão da matéria de facto na sentença recorrida: O propósito intencional dos arguidos, sendo um facto íntimo, subjectivo, sobre o qual não foi, como é normal, produzida prova, infere-se da materialidade objetiva dada por provada de acordo com as regras da lógica e da experiência comum. Tendo sido eliminada a intensa dor e sofrimento como consequência provada da conduta da arguida, bem como considerando-se agora provado que esta empurrou o corpo da ofendida AV para desviar e para fechar a porta, nos termos atrás decididos, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, não é possível extrair da prova produzida e do circunstancialismo do empurrão em questão, que o intuito da arguida fosse maltratar fisicamente a ofendida, ofendendo-a no seu corpo e na sua saúde. No entanto, o empurrão perpetrado pela arguida para a desviar da porta não poderá deixar de envolver, como consequência necessária, que a ofendida fosse assim molestada no seu corpo, pois que um empurrão empreendido com a força suficiente para afastar uma pessoa de uma porta, implicando a sua deslocação no espaço em que se encontra, inevitavelmente atinge o corpo dessa pessoa. Contudo, a prova produzida não se mostra suficiente para extrair daí a conclusão de que com esse empurrão seria afectada a saúde da ofendida. Acresce que se encontra provado sob o ponto 11. da sentença recorrida que: Actuaram ambos os arguidos livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar. Tal facto não foi impugnado pela recorrente. Em conformidade, extrai-se da factualidade apurada, quando analisada de acordo com as regras da experiência, que a arguida não podia deixar de saber que com aquele empurrão atingia o corpo da ofendida, a molestava fisicamente e que, ainda assim, não se absteve de prosseguir a sua conduta, querendo esse resultado. Em conformidade, o ponto 9. dos Factos Provados deverá ser desdobrado em dois pontos, reportando-se cada um deles a cada um dos arguidos, mantendo-se o seu conteúdo quanto ao co-arguido não recorrente, e aditando-se o ponto 9-A. respeitante à arguida/recorrente. Assim, o ponto 9. passa a ter a seguinte redacção: 9. Ao actuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si, agindo o arguido JF com o intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde. Adita-se o ponto 9-A. aos Factos Provados com o seguinte teor: 9-A. Ao actuar da forma supra descrita, agiu a arguida AA sabendo que molestava fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo. Em consequência, passa a constar dos Factos Não Provados o seguinte: - Que a arguida AA agiu com o intuito de maltratar fisicamente AV, ofendendo-a na sua saúde. A matéria de facto provada e não provada passa, em consequência, a ser a seguinte (destacando-se a negrito as alterações introduzidas): Factos Provados: 1. No dia 14 de Maio de 2021, a hora não concretamente apurada, mas no período noturno, o arguido JF, deslocou-se às instalações do Hospital do Montijo, sitas na Rua Machado Santos, n.º 54, 2870-351 Montijo, acompanhando uma prima sua, menor de idade, em virtude de a mesma não estar a sentir-se bem. 2. Nesse local e após algum tempo à espera, o arguido JF contactou telefonicamente a arguida AA, a pedido dos clínicos que aí se encontravam. 3. Em anuência ao pedido do seu familiar, a arguida AA deslocou-se ao Hospital em causa, aí chegando pelas 03.50 horas da madrugada do referido dia 14 de Maio de 2021. 4. Quando abordada pelo pessoal clínico, a respeito do estado de saúde da sua familiar, menor de idade, no período que mediou entre as 03.50 horas e as 4.05 horas da madrugada, do mesmo dia, a arguida AA exaltou-se e quis conversar com a médica de serviço, no caso a Dr.ª IM. 5. Nessa ocasião e para evitar que a arguida AA lograsse fechar a porta do gabinete onde se encontrava tal médica, a ofendida AV, enfermeira naquele Hospital, trocou breves palavras com a primeira, tendo ambas acabado por se desentenderem. 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA, para desviar e para fechar a porta, empurrou o corpo de AV.” 7. Em seguida e ao aperceber-se da situação, o arguido JF aproximou-se da arguida e de AV, tendo agarrado esta pelo braço esquerdo, lhe tirado a máscara e depois desferido um empurrão no corpo da mesma, pressionando com as mãos o peito, levando-a a cair contra um armário, existente naquele local. 8. Em consequência da actuação do arguido JF, AV padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho. 9. Ao actuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si, agindo o arguido JF com o intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo e saúde. 9-A. Ao actuar da forma supra descrita, agiu a arguida AA sabendo que molestava fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo. 10. Ao agirem nesses moldes, bem sabiam os arguidos que AV era enfermeira no Hospital do Montijo e estava em claro exercício das suas funções, pois que se encontrava devidamente uniformizada e identificada. 11. Actuaram ambos os arguidos livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar. Mais se provou quanto à arguida AA: 12. A arguida recebe rendimento social de inserção no valor mensal de €425,00. 13. A arguida reside com a filha e duas menores. 14. O agregado familiar tem despesas com os consumos domésticos. 15. O agregado familiar reside em habitação camarária. 16. A arguida tem o 4.ºano de escolaridade. 17. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais. Mais se provou quanto ao arguido JF: 18. O arguido distribui publicidade duas vezes por semana e aufere cerca de €30,00 a €50,00 mensais. 19. O arguido reside com o pai. 20. O arguido não tem despesas e não tem filhos. 21. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade. 22. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais. Factos Não Provados: - Que foi com o braço que a arguida empurrou AV; - Que em consequência da actuação da arguida AA, AV tenha padecido de intensa dor e sofrimento; - Que a arguida AA agiu com o intuito de maltratar fisicamente AV, ofendendo-a na sua saúde. * Contudo, invocou ainda a recorrente o princípio in dubio pro reo, argumentando, em síntese, que: - Salvo o devido respeito, a recorrente entende que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não foi suficiente para imputar à recorrente a prática do crime pelo qual foi condenada; - Acresce ainda que qualquer dúvida, por mais frágil que seja, deve jogar sempre a favor da arguida e impõe ao julgador que aplique de imediato o princípio “in dubio pro reo”. Porém, a decisão da matéria de facto acima decidida não importa qualquer violação do princípio in dubio pro reo, enquanto emanação do princípio da presunção de inocência consagrado no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, o princípio do in dubio pro reo só poderá ser invocado quando, depois de analisada toda a prova produzida no seu conjunto, de harmonia com a lógica e a normalidade do acontecer, o julgador permanecer num estado de dúvida insanável quanto à realidade ou não do facto sujeito a prova. O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa (Ac. STJ de 12-03-2009, proferido no processo nº 07P1769). Como lapidarmente se esclarece no Ac. do STJ de 5-07-2007, proferido no processo nº 07P2279: o princípio in dubio pro reo (…) é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido. No caso concreto, como resulta do conteúdo da fundamentação constante da decisão recorrida, é inequívoco que nenhuma dúvida subsistiu no espírito do tribunal a quo ao julgar como provados os factos impugnados pela recorrente. A violação do princípio in dubio pro reo, só se verificaria caso se concluísse ter existido erro na valoração da prova de forma a que, ao condenar a recorrente com base na prova e na sua valoração, o tribunal a quo teria contrariado as regras da lógica e da experiência comum, na medida em que deveria ter permanecido num estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor da recorrente. Contudo, face ao que decorre do supra mencionado, o tribunal recorrido decidiu de acordo com a sua livre convicção, de forma objectivamente fundada e sustentada nos concretos meios probatórios que apreciou e valorou, pelo que se mostra afastada a hipótese de que deveria ter permanecido num estado de dúvida razoável, fundada e insanável em termos de valoração da prova, em relação aos factos que deu como provados. É inequívoco que nenhuma dúvida subsistiu no espírito da M.ma Juíza que decidiu em primeira instância. Igualmente nenhuma dúvida tem este tribunal ad quem quanto aos factos provados acima descritos e alterados em função da reapreciação da prova a que se procedeu. Assim, nenhuma violação do princípio in dubio pro reo ocorreu nos termos invocados no recurso. * De harmonia com o exposto, procede parcialmente o recurso quanto ao invocado erro de julgamento. * 3.2. Se a recorrente deverá ser absolvida da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada pelo qual foi condenada na sentença recorrida Argumenta a recorrente, concluindo que: - mesmo que se considere, por mera hipótese académica, que “No decurso de tal desentendimento, a arguida AA empurrou com o braço o corpo de AV” tal não é suficiente para condenar a recorrente pela prática como autora material dum crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143º, nº.1, 145º, nº. 1 al. a) e nº. 2 por referência ao art.º 132º nº. 2 al l) todos do Cód. Penal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, suspensão esta acompanhada do regime de prova a definir pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, porque este crime supõe a produção dum resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa e que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente, de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade; - conforme entendimento da doutrina e da jurisprudência dominante das Relações, as lesões insignificantes estarão excluídas deste tipo legal de crime; - efetivamente, no significado mínimo comum às diversas formas de integridade que pode assumir empurrar alguém é susceptível de provocar ofensas no corpo ou saúde de outrem mas igualmente de acordo com as regras da experiência comum, tal não se verifica necessariamente. A recorrente insurge-se quanto à sua condenação, argumentando que as lesões insignificantes estarão excluídas deste tipo legal de crime. Preceitua o art.º 143º/1 do Código Penal, que prevê o tipo de legal base de ofensa à integridade física, que: Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Como é entendimento pacífico e bem se assinala na sentença recorrida: O bem jurídico protegido por este tipo legal é a integridade física da pessoa humana. Este é um crime material e de dano, ficando o respectivo tipo legal preenchido com a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente da dor ou do sofrimento causados”. (…) integra uma ofensa no corpo da vítima todo o mau trato através do qual o ofendido é prejudicado no seu bem-estar físico de forma não insignificante. As lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor (Figueiredo Dias, Direito Penal, 2004, pág. 277). A integridade física constitui um direito de personalidade constitucionalmente protegido. Assim, o art.º 25º/1 da Constituição da República Portuguesa dispõe que: A integridade moral e física das pessoas é inviolável. Tal direito encontra-se igualmente tutelado na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, cujo art.º 3º preceitua: Direito à integridade do ser humano 1. Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental. 2. (…) O direito à integridade física é o direito à intangibilidade do corpo humano, que é intocável, não podendo ser atingido, afectado, intervencionado ou invadido por qualquer forma sem o consentimento do seu titular, independentemente de serem ou não causadas lesões ou dor. O direito à integridade física abrange, assim, o direito a não ser tocado no seu corpo. Porém, ainda que ilícitos, nem todos os actos invasivos da integridade física de outrem enquadrarão o tipo legal de crime ora em análise, exigindo-se ao funcionamento da tutela jurídico-penal a significância do acto no que concerne ao seu resultado ofensivo. E essa significância terá de ser aferida em função do desvalor social e ético que o acto em concreto encerra, avaliado objectivamente, de harmonia com os padrões sociais comummente aceites, pois que, sendo a tutela penal restringida à protecção dos bens jurídicos fundamentais, qualquer conduta que atinja a integridade corporal de outrem só será enquadrável no tipo legal de crime de ofensa à integridade física quando seja ético-socialmente rejeitada, censurada e reprovada. Como se decidiu no acórdão desta Relação de Lisboa de 12-04-2011, proferido no processo nº 3705/08.4TDLSB.L1-5: a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, deve assumir um grau mínimo de gravidade, descortinável segundo uma interpretação do tipo legal à luz do critério de adequação social. As condutas atípicas, em virtude da cláusula de adequação social, advêm muitas vezes de uma certa intimidade ou proximidade corporal entre as pessoas, considerando-se aceites e toleradas, não assumindo relevância suficiente para serem consideradas lesões na integridade física enquanto tal. Ora, concretamente quanto ao acto de empurrar outrem, a jurisprudência vem decidindo em função da concreta conduta apurada e seu contexto. Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 09-10-2012, proferido no processo nº 466/07.8GESTB.E1, decidiu-se que: 1. As lesões insignificantes estão excluídas do tipo de crime do artigo 143.º do Código Penal. 2. O acto de “empurrar” envolve, em princípio, uma certa violência sobre o corpo de outra pessoa, e pode situar-se na fronteira da (i)licitude penal. 3. Assim, um empurrão num transporte colectivo, ou um empurrão para afastar alguém que se aproxima demasiado, não serão condutas típicas; mas já o será o “desferir empurrões nos ombros de outra pessoa na sequência de discussão que se gerou entre ambas”. Decidiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6-10-2010, proferido no processo nº 66/09. 8GAOHP.C1 que: um empurrão pressupõe sempre a necessidade de utilização de violência (…) sobre a pessoa, constituindo desse modo uma agressão à integridade física da vítima. No acórdão da mesma Relação de 21-01-2009, proferido no processo nº 525/06.4GCLRA.C1, foi decidido que: No léxico comum o verbo “empurrar” contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto. Logo, na representação e valorização colectiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem constitui uma forma de violência. (no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-03-2012, proferido no processo nº 486/10.5GBAND.C1). No caso concreto, encontra-se provado além do mais que: 5. Nessa ocasião e para evitar que a arguida AA lograsse fechar a porta do gabinete onde se encontrava tal médica, a ofendida AV, enfermeira naquele Hospital, trocou breves palavras com a primeira, tendo ambas acabado por se desentenderem. 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA, para desviar e para fechar a porta, empurrou o corpo de AV. 9-A. Ao actuar da forma supra descrita, agiu a arguida AA sabendo que molestava fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo. 10. Ao agirem nesses moldes, bem sabiam os arguidos que AV era enfermeira no Hospital do Montijo e estava em claro exercício das suas funções, pois que se encontrava devidamente uniformizada e identificada. 11. Actuaram ambos os arguidos livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar. Face a tal factualidade, é inequívoco que o acto perpetrado pela arguida ofendeu o corpo da ofendida AV, a molestou fisicamente, exercendo sobre esta um acto de violência, ainda que não se tenha apurado que lhe tenha causado quaisquer lesões ou dor. Por outro lado, analisada à luz da adequação social, tal conduta, precisamente pela violência que encerra, é manifestamente reprovada do ponto de vista ético-social, atingindo o bem jurídico-penal em causa (a integridade física da ofendida) de forma significante, pois que não é, de todo, destituída de relevância, antes sendo intolerável e rejeitada, porquanto violadora do mínimo ético imprescindível à vida em sociedade, com ressonância social e, por isso, exigindo a intervenção jurídico-penal na sua função tutelar do bem jurídico fundamental violado, na sua vertente preventiva e reintegradora. Conclui-se, assim, não assistir razão à recorrente quando defende a irrelevância da sua conduta, dada a sua alegada insignificância. Por outro lado, a alteração à matéria de facto acima decidida apenas releva quanto ao elemento subjectivo do crime, sendo certo que os factos ora provados na sequência daquela alteração, ao invés de integrarem o dolo directo que foi considerado demonstrado pelo tribunal a quo, integram o dolo necessário nos termos do art.º 14º/2 do Código Penal, o que se afigura irrelevante para efeitos do preenchimento dos elementos típicos do crime pelo qual a arguida foi condenada. Em conformidade, a alteração da matéria de facto nos termos supra decididos não importa qualquer alteração ao enquadramento jurídico-penal dos factos a que se procedeu na sentença recorrida, na medida em que a factualidade provada integra os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime pelo qual a recorrente foi condenada em primeira instância. Improcede, em consequência, o recurso quanto à pretendida absolvição da arguida pela prática do crime que lhe foi imputado. * Assim, e nenhuma outra questão tendo sido colocada no presente recurso, resta confirmar no mais o decidido na sentença recorrida. * IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso, e consequência: 4.1. Modificam a matéria de facto provada e não provada conforme acima decidido, designadamente: 4.1.1. Alteram os pontos 6., 8. e 9. dos Factos Provados, bem como aditam o facto provado 9.-A, nos termos e com a seguinte redacção: 6. No decurso de tal desentendimento, a arguida AA, para desviar e para fechar a porta, empurrou o corpo de AV.” 8. Em consequência da actuação do arguido JF, AA padeceu de intensa dor e sofrimento, sem que, todavia, tivesse tido necessidade de receber tratamento e sem que tivesse sofrido qualquer período de doença ou de incapacidade para o trabalho. 9. Ao actuarem da forma supra descrita, agiram os arguidos AA e JF, de forma independente entre si, agindo o arguido JF com o intuito concretizado de maltratar e molestar fisicamente ..., ofendendo-a no seu corpo e saúde. 9-A. Ao actuar da forma supra descrita, agiu a arguida AA sabendo que molestava fisicamente AV, ofendendo-a no seu corpo. 4.1.2. Eliminam dos Factos Provados, passando a não provados, os factos seguintes: - Que foi com o braço que a arguida empurrou AV; - Que em consequência da actuação da arguida AA, AV tenha padecido de intensa dor e sofrimento; - Que a arguida AA agiu com o intuito de maltratar fisicamente AV, ofendendo-a na sua saúde. 4.2. Confirmam quanto ao mais a sentença recorrida. Sem custas, atento o vencimento parcial (art.º 513º/1 do Código de Processo Penal). Notifique. Lisboa, 6 de Julho de 2023 (anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original) Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º 2 do C.P.Penal) Paula Cristina Bizarro Antero Luís João Abrunhosa _______________________________________________________ [1] Jorge de Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 25 e 26, referente ao homicídio qualificado, mas com aplicação ao caso concreto uma vez que o artigo 145.º remete para a sua disciplina (Paula Ribeiro Faria, idem, pág. 250) |