Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL INSTRUÇÃO CRIMINAL AUTO DE NOTÍCIA FACTOS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/10/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Salvo quanto à intervenção jurisdicional durante o inquérito, a determinação da competência dos tribunais criminais é sempre feita por referência aos factos e não à notícia deles ou aos seus indícios.
II - A competência do tribunal para proceder à instrução tem que ser aferida em face da acusação ou do requerimento para a abertura de instrução, conforme os casos, porque são estes que fixam o objecto do processo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No Tribunal Central de Instrução Criminal[i], por despacho de 12/11/2013, constante de fls. 156/163, relativamente ao Arg.[ii] AAA, com os restantes sinais dos autos (cf. fls. 85), foi decidido o seguinte: “…Fls. 2288 a 2290 – Veio o arguido AAA, a douto punho, requerer que seja reconhecida e declarada a incompetência deste TCIC para a realização da requerida instrução e, bem assim, arguir a nulidade processual decorrente da aceitação da competência, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento, que aqui se dá por integralmente reproduzido, por mera economia processual. Cumpre apreciar e decidir: Os presentes autos, ainda na sua fase de inquérito, foram remetidos pela primeira vez a este TCIC em 29/05/2009. Na mesma data, não obstante os autos ainda se encontrarem numa fase embrionária, foi proferido despacho, tendo em conta que os crimes em investigação nos termos então delimitados pelo detentor da acção penal, pertenciam ao catálogo de crimes que convocam a competência deste TCIC, no sentido de se aceitar a competência deste Tribunal para praticar os actos jurisdicionais até à eventual remessa do processo para julgamento. Pese embora, um dos requisitos para aceitação da competência do TCIC, mormente o da dispersão geográfica da actividade criminosa (transdistritalidade), se tenha mostrado apenas indiciado, também não foi possível, à altura, delimitar qual o espaço geográfico onde se desenrolava a indiciada actividade criminosa sob investigação. Não tendo sido possível negar a competência do TCIC, tão pouco foi o momento para afirmar taxativamente a competência de outro tribunal. Compulsados os autos e com o próprio evoluir da investigação, forçoso é verificar que os actos foram sucessivamente praticados por este TCIC, por se achar competente para os exercer, em fase de inquérito. Com efeito, entendemos que este TCIC, foi o competente para praticar os actos jurisdicionais em fase de inquérito, por força dos princípios do juiz natural e da estabilidade processual, enquanto garantia processual do cidadão. Essa competência verifica-se também na fase de instrução, não obstante a redefinição do objecto do processo, entretanto ocorrida. Com efeito, em resultado da redefinição do objecto do processo, decorrente da dedução de acusação, deixou de estar em causa qualquer dos crimes previstos no artigo 47º nº1 da LOMP. Não obstante o TCIC continua a ser competente para processar os autos como se passa a expor. A análise desta questão subdivide-se noutras duas: A primeira que se prende com a determinação do momento em que se fixa a competência A segunda que se prende com o momento em que, em processo-crime, se considera instaurada a acção. Relativamente à primeira questão suscitada diz o seguinte o artigo 25.º da LOFTJ, que regula a matéria das competências: “1-A competência fixa-se no momento em que a acção é proposta em Tribunal, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente. 2- São ainda irrelevantes as modificações de direito, salvo se for suprimido o órgão a que a causa está afecta ou lhe for atribuída a competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa” Dispõe ainda o artigo 26.º do mesmo diploma: “ Nenhuma causa pode ser deslocada do Tribunal competente para outro, excepto nos casos especialmente previstos na Lei” Estes princípios são efectivamente a consequência do disposto no artigo 32º da CRP, segundo a qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao Tribunal cuja competência esteja fixada em Lei anterior” Daqui se extraem duas regras fundamentais: A competência fixa-se à data da propositura da acção; Instaurado o processo em Tribunal competente, não pode ele ser daí deslocado, subtraído ou removido, a não ser em casos especiais previstos da lei. Resulta portanto que fixada a competência de um Tribunal para conhecer de determinado processo, essa competência não lhe pode ser retirada ainda que ocorram alterações de facto ou de direito, salvo nos casos especialmente previstos na Lei. Com efeito, o estabelecimento destas regras relativas à competência em matéria penal tem uma finalidade essencial, que é a de permitir determinar “ex ante” o Tribunal que há-de decidir um caso penal, evitando-se o risco de manipulação da competência e especialmente, que a acusação possa escolher o tribunal que lhe parecer mais favorável, assim se respeitando o princípio do juiz natural, com dimensão constitucional na formulação do artigo 32º, nº 9, da CRP. Resolvida a primeira questão enunciada, cumpre agora analisar a seguinte, que se prende com o momento em que deve considerar-se instaurado o processo-crime. Com efeito, o processo tem início com a notícia do crime, ou seja no momento em que é dado conhecimento do facto criminoso ao MºPº que assim instaura inquérito, que é logo considerado processo pendente. E quando a lei processual penal fala em processo refere-se indiferentemente a procedimento já a correr, qualquer que seja a sua fase, na medida em que todas elas são englobadas numa mesma actividade De facto, processo é a cadeia de actos teleologicamente concatenados com vista à obtenção da justiça. E, na verdade, basta percorrer o CPP, quer na sua actual redacção quer na anterior, para se concluir que a palavra processo é utilizada no sentido de abranger qualquer das fases que engloba o procedimento concreto, vejam-se, designadamente, os artigos 24º, 51 nº1, 53 nºs1 e 2b) 58ºnº1 alínea a), 62º nº1, 65º e 68 nº1. Assim, para a Lei, o inquérito é uma fase do processo, com a mesma dignidade da instrução, devendo, por isso, ser considerada proposta a acção para efeitos da definição da competência, quando o inquérito é instaurado. Por conseguinte, na situação em apreço, como referimos, no momento em que foi instaurado o presente inquérito, estavam presentes os requisitos do artigo 47º da LOMP, sendo o mesmo da competência do TCIC. Portanto, não obstante as alterações de facto entretanto ocorridas relativamente ao objecto do processo, essa competência mantém-se, como impõe o artigo 25.º da LOTJ, sob pena, isso sim, de se pôr em causa o princípio de Juiz Natural, consagrado no artigo 32 nº9 da CRP. Em todo o caso e sem conceder, sempre se dirá mesmo que se entendesse doutro modo, ainda assim não estaríamos perante uma situação de nulidade dos actos praticados durante o inquérito pelo Exmo. Sr. Juiz do TCIC. Com efeito, os Tribunais Judiciais, nos termos da Constituição e da Lei (artigo 202 nº1 e 2 da CRP e artigo 1º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. No exercício da função jurisdicional cabe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. A função jurisdicional (a jurisdição), que pertence aos diferentes Tribunais previstos na Constituição e na Lei está distribuída entre os mesmos conforme regras e critérios que definem para cada Tribunal os limites ou o âmbito da sua jurisdição, isto é, a sua competência, que se reparte de acordo com a matéria, a hierarquia, o valor e o território cf. artigo 17º da LOFTJ. Ora, tal repartição de competências, designadamente, no que diz respeito à matéria, visa também garantir uma maior eficiência e garantia dos direitos do cidadão, resultante da especificidade de cada Tribunal, assim melhor habilitado e apetrechado a dirimir o conflito respeitante à sua área de jurisdição. Na situação concreta temos o confronto de dois Tribunais que ocupam a mesma posição na hierarquia, têm como objecto a mesma jurisdição e estão vocacionados para intervir na mesma fase processual: o inquérito e a instrução. Consequentemente, da intervenção de um ou de outro não resultam diminuídas as garantias de qualquer dos arguidos, sendo que, também por esta razão não são postas em causa as finalidades garantisticas com que foram definidas as funções jurisdicionais de cada um deles. Portanto, na situação em apreço, ainda que tivesse ocorrido violação das regras da competência no decurso do inquérito, no que se não concede, atendendo a que não foram postas em causa as razões que determinaram essa diferente distribuição de funções, tal violação nunca poderia ser cominada com a nulidade. Com efeito, tal cominação só se aplica quando da violação das regras da competência resultem prejudicados direitos garantísticos, o que não é o caso. Quando muito, estar-se-ia perante uma mera irregularidade, sanada por todos os arguidos que, desde que passaram a intervir no inquérito, logo aceitaram como competente para processar os autos o TCIC a quem sempre dirigiram os seus requerimentos e formularam os seus pedidos, incluindo o de abertura de instrução. Conclui-se assim, pelas razões expostas que tendo em conta o tipo de crimes em causa e a aparente dispersão territorial dos factos, à data da instauração do inquérito era o TCIC o competente para tramitar o presente inquérito. Conclui-se também que a competência de um Tribunal se fixa no momento da instauração do processo, o que em processo-crime ocorre com a apresentação da queixa ou do auto de notícia e correspondente instauração do inquérito. Portanto, no caso dos autos a competência do TCIC fixou-se no início do inquérito, com o despacho de fls. 61 confirmado na parte em que era reticente, pelas sucessivas intervenções daquele TCIC que se lhe seguiram. Por conseguinte e considerando o atrás referido quanto ao momento da fixação da competência que mais não é do que a expressão do Juiz Natural e da proibição do desaforamento e processos, entendemos que o TCIC que foi na fase do inquérito o Tribunal competente para intervir, o continuará a ser na fase de instrução, por força dos princípios do juiz natural e da estabilidade processual, enquanto garantia processual do cidadão.” Entendemos assim, serem irrelevantes, para a definição da competência, alterações subsequentes, quanto aos crimes sob investigação, já que a determinação da competência se fixa no momento da instauração do processo, com a aquisição pelo Mº Pº da notícia do crime e instauração do respectivo inquérito – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/01/01 – Proc. 00110065, Acórdão de 03/07/90 do Tribunal da Relação de Lisboa – Proc. 0001855 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/01/92 – Proc. 0038516. Subscrevemos assim o entendimento vertido no AC. TRL de 09/05/01 – Proc. 2129/01 – 3ª Secção, onde se propugna: “I – Em processo criminal, por razões de coerência processual e por razões de melhor aplicação das garantias constitucionais do juiz natural e de não desaforamento do processo, a “acção” deve considerar-se proposta no momento em que há notícia do crime. É aí que o processo nasce e é então que se começam a colocar as questões de competência. II – Decidiu-se no Acórdão do STJ de 14.3.90, citado no CPP, anotado, de Maia Gonçalves, de 1996, pág. 64, que: “A estrutura acusatória do processo penal não significa, de modo algum, que a acção penal apenas se inicie com a acusação. Com esta, o que se começa é a fase acusatória, mas, no processo criminal, a acção penal desencadeia-se logo com a entrada em juízo do denunciado crime ou com a instauração por dever de ofício, pelo MºPº e não se circunscreve àquela fase – artº 48º do CPP.” III – A lei reguladora da competência em processo criminal, fixa-se no momento em que há notícia do crime.” E no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-10-2004: “I – A competência em processo penal – a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial – é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural.” Face ao supra exposto, julga-se improcedente a excepção de competência do tribunal, deduzida pelo arguido e, outrossim, se considera que o TCIC, que foi na fase de inquérito o tribunal competente para intervir, continuará a ser competente para praticar os actos jurisdicionais na fase de instrução, para tramitar os autos até à decisão instrutória, não se reconhecendo a nulidade processual invocada. …”. * Não se conformando, o Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 11/19, com as seguintes conclusões: “…1ª) Nos termos do disposto no n° 1 do art. 79° da mencionada Lei n° 3/99, " compete aos tribunais de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito ". 2ª) O art. 80° do mesmo diploma legal, fixa, porém, casos especiais de competência, cometendo aquelas competências ao Tribunal Central de Instrução Criminal, quando a actividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes distritos judiciais e quanto aos crimes enunciados no n° 1 do art. 47° da Lei n° 60/98 de 27 de Agosto. 3ª) A competência do Tribunal Central de Instrução Criminal depende, assim, da verificação cumulativa de dois requisitos: primeiro, que os crimes em causa pertençam ao elenco taxativo do n° 1 do art. 47° deste diploma legal; segundo, que os crimes - ao menos indiciariamente - hajam sido praticados em comarcas pertencentes a diferentes distritos judiciais. Sucede que 4ª) Compulsado o n° 1 do art. 470 daquela lei e confrontado o seu teor com o da acusação pública de fls. 2100 e seguintes indubitavelmente se constata não pertencerem os crimes de falsificação ( pelos quais o arguido vem acusado ) aquele elenco taxativo; de igual modo não se verificando a necessária dispersão da sua alegada actividade criminosa por comarcas pertencentes a diferentes distritos judiciais. 5ª) De onde a incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para conhecer da instrução requerida pelo arguido, sendo, outrossim, competente para a mesma o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. 6ª) Decidindo de forma diversa violou do douto tribunal a quo as acima citadas disposições legais. Mais 7ª) Essas mesmas normas, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, apenas porque, na fase de inquérito, é cometida ao Tribunal Central de Instrução Criminal a competência para a prática dos atinentes actos jurisdicionais deve essa competência estender-se à fase de instrução, mesmo que não verificados quaisquer dos pressupostos ( cumulativos, aliás) ali mencionados – isto é, mesmo que no processo não haja sido deduzida acusação por qualquer dos crimes do catálogo do n° 1 do art. 47° da LOMP, nem se verifique qualquer dispersão territorial da actividade criminosa -, são MATERIALMENTE INCONSTITUCIONAIS, porque violadoras, designadamente, do disposto no art. 32°, n° 9 da Constituição da República Portuguesa ( Principio do Juiz Natural ou Juiz Legal) – inconstitucionalidade esta que aqui se deixa expressamente arguida, para todos os efeitos legais. Respondeu a Exm.ª Magistrada do MP[iii], nos termos de fls. 21/59, com as seguintes conclusões: “…O processo-crime inicia-se no momento em que é dado conhecimento do facto criminoso ao Ministério Público, o qual, sequencialmente, instaura inquérito, passando o mesmo a considerar-se pendente. Em processo-crime, para efeitos da definição do Tribunal competente, considera-se a acção proposta no momento em que o inquérito é instaurado. Instaurado o presente processo, ainda em fase de inquérito, o Tribunal Central de Instrução Criminal foi chamado a intervir, tendo aceite a competência, por considerar verificados os requisitos legais a que alude o art° 80º da LOFTJ, com referência ao art° 47º da LOMP. Entretanto, findo o inquérito, foi deduzida acusação, no âmbito da qual não foi imputado ao arguido qualquer dos crimes previstos no art° 47º da LOMP. É também certo que se não evidencia que os referidos crimes se tenham desenvolvido em território que abranja diversos distritos judiciais. Não obstante, manteve-se a competência do Tribunal Central de Instrução Criminal para tramitar o processo em fase de instrução. De acordo com o art° 25º da LOFTJ a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente. Ainda de acordo com aquela mesma disposição legal, são igualmente irrelevantes as modificações de direito, salvo se for suprido o órgão a que a causa estiver afecta ou lhe for atribuída a competência de que inicialmente carecia para conhecimento da causa. Decorre ainda do art° 260 da mesma LOFTJ que nenhuma causa pode ser deslocada do Tribunal competente para outro, excepto nos casos especialmente previstos na Lei. Destas regras, que são também uma decorrência do princípio do juiz natural, consagrado no art° 32 da CRP resulta o seguinte: A competência fixa-se à data da propositura da acção; Instaurado o processo em Tribunal competente, não pode ele ser daí deslocado, subtraído ou removido, a não ser em casos especiais previstos na Lei. Estamos, ao fim ao cabo, em presença da prorrogação da competência material. Ou seja, trata-se de situações em que, uma vez fixada a competência de um Tribunal para conhecer determinado processo, essa competência não lhe pode ser retirada ainda que ocorram alterações de facto ou de direito, salvo nos casos especialmente previstos na Lei, ou no caso de essas alterações importarem agravamento da situação do arguido, quando esse agravamento reclame, de acordo com as regras da competência, a intervenção de outro Tribunal. A prorrogação da competência nas circunstâncias e condicionalismos acabados de descrever não viola as respectivas regras ou o princípio do juiz natural. E não viola porque foram respeitadas regras objectivas da competência fixadas antes do facto, assim melhor se garantindo a imparcialidade do julgador. Consequentemente, também não viola o disposto no art° 32º nº 9 da CRP. Portanto, e de acordo com o exposto, sendo o Tribunal Central de Instrução Criminal competente para tramitar o presente processo na fase de inquérito, de acordo com as normas e princípios acima referidos essa competência prorrogou-se para a fase de instrução. Improcede assim a invocada incompetência do Tribunal Central bem como nulidade dela decorrente. Sem conceder, sempre se dirá que mesmo que estivesse em causa a incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal, ainda assim não se verificaria a invocada nulidade. A definição da competência consiste precisamente na delimitação da jurisdição atribuída a cada Tribunal. A repartição de competências, no que diz respeito à matéria, visa sobretudo garantir uma maior eficiência através da especialização, o que melhor serve os interesses dos cidadãos. Essa mesma repartição, no que diz respeito à hierarquia visa assegurar uma relação de proporcionalidade entre o grau de jurisdição e a relevância do pleito. Paralelamente, o princípio do juiz natural, como se referiu, visa essencialmente impedir a manipulação das competências e assim melhor garantir a imparcialidade do julgador. A nulidade prevista na alínea e) do artº 119 do CPP só se verifica quando forem postas em causa as razões que determinaram essa diferente atribuição de funções decorrente da distribuição de competências, o que nos autos se não verifica. Porque estamos ante dois Tribunais que ocupam a mesma posição na hierarquia, têm como objecto a mesma jurisdição e estão vocacionados para intervir nas mesmas fases processuais: o inquérito e a instrução. Acresce que o Tribunal Central de Instrução Criminal vocacionado para as situações de maior complexidade e impacto económico-social, está necessariamente em tão boas ou melhores condições que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, para apreciar e decidir a questão em apreço, com contornos muito próximos da criminalidade económico financeira, matéria esta para a qual este TCIC está especialmente habilitado. Daqui decorre que em termos de especificidade o Tribunal Central de Instrução Criminal estava em melhores condições para tramitar a instrução nestes autos. Por outro lado, em termos de hierarquia, ocupa precisamente a mesma posição que o Tribunal Central de Instrução Criminal. Acresce também que da sua intervenção não decorre qualquer limitação dos direitos e garantias do arguido, mostrando-se estes até, mais acautelados. Portanto, no caso dos autos não foram postas em causa as razões que determinaram a diferente atribuição de funções ao Tribunal Central de Instrução Criminal e ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Por consequência, na situação em apreço, ainda que tivesse ocorrido violação das regras da competência, no que diz respeito à intervenção do TCIC na fase de instrução, no que se não concede, atendendo a que não foram postas em causa as razões que determinaram essa diferente distribuição de funções entre o TCIC e o TC nem foram comprometidos os direitos do arguido por qualquer forma, nunca se poderia estar perante uma nulidade, mas, quando muito, perante uma mera irregularidade. Sucede que a estar em causa a referida irregularidade teria de ter sido arguida nos três dias que se seguiram notificação do despacho que declarou aberta a presente instrução, ou seja, até 23.10.2013, o que se não verificou. Assim e face ao disposto no art° 123 n01 do CPP a referida irregularidade mostra-se sanada. Ou seja, a estar em causa a alegada incompetência, sempre estaríamos perante uma irregularidade já sanada, improcedendo também por isso a sua invocação. O despacho recorrido é assim Válido e Legal, devendo, por isso, ser mantido nos seus precisos termos. No entanto de Vossas Excelências espera-se, como sempre, a costumada JUSTIÇA. …”. * O Exm.º Juiz sustentou a sua decisão, nos termos de fls. 176. * Neste tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 197, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância, e pronunciando-se pela improcedência do recurso. * A este parecer respondeu o Recorrente, nos termos de fls. 199/202, em suma, reafirmando a posição assumida na motivação do seu recurso. * Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a única questão fundamental a apreciar no presente recurso é a de saber se o TCIC tem competência material para a realização da instrução nestes autos. * Cumpre decidir. I – Entende o Recorrente que, uma vez que os crimes pelos quais foi acusado não são dos constantes do art.º 47º da LOMP, o TCIC é incompetente para a realização da instrução que requereu, sendo competente o Tribunal de Instrução Criminal[vii] de Lisboa. O entendimento do despacho recorrido é o de que a competência do TCIC se fixa no momento da instauração do inquérito, a partir da notícia do crime, e que as modificações de facto posteriores não podem modificar essa competência, donde conclui que se mantém a sua competência para a realização da instrução aqui em causa. Não concordamos com este entendimento. Em primeiro lugar, sendo verdade que o CPP quando se refere a processo engloba o inquérito, a instrução (quando haja) e o julgamento[viii], no processo penal, diferentemente do que acontece no processo civil, há uma competência para cada uma destas fases. Na verdade, existe a competência do MP, no inquérito, a competência do TIC, na instrução, e a competência do tribunal do julgamento. Durante o inquérito só está definida a competência territorial do MP (art.º 264º do CPP). A competência do JIC[ix] para intervir no inquérito só está definida em termos de reserva de jurisdição (art.ºs 17º, 268º e 269º do CPP), não havendo qualquer norma que defina a competência do JIC no inquérito, já que a norma do art.º 288º/2 do CPP, pela sua inserção sistemática se refere à competência para a instrução. Por outro lado, a competência territorial do MP pode-se ir modificando em face dos resultados da investigação (art.º 264º/2 do CPP), sendo, nesse caso, os autos transmitidos ao MP competente (art.º 266º do CPP). Isto acontece porque a realidade dos factos pode divergir da constante da notícia do crime. Por isso é que o objecto do processo só se fixa com a acusação[x] ou com o RAI[xi] (no caso de arquivamento pelo MP)[xii]. Até lá podemos dizer que o objecto do processo está em aberto. Consequência dessa fixação do objecto do processo é que, posteriormente, só se podem fazer alterações nos casos dos art.ºs 358º e 359º do CPP. Podemos assim dizer que os elementos constantes da notícia do crime são irrelevantes para a determinação do objecto do processo. O mesmo terá que se dizer dos indícios existentes aquando da primeira intervenção do JIC no inquérito. Por isso, não podemos aceitar a jurisprudência abundante[xiii] que faz equivaler a instauração do inquérito à propositura da acção. Esta equivalência à propositura da acção, a haver, será com a acusação ou o RAI. Na verdade, o disposto no art.º 24º/1[xiv] da LOFTJ[xv] refere-se às acções cíveis, uma vez que a determinação da competência dos tribunais criminais é sempre feita por referência aos factos e não, como no cível, onde pode ser feita pela residência do autor, pela residência do réu, pela situação ou pelo valor dos bens, etc[xvi]. Mas mesmo que se entendesse que a instauração do inquérito equivalia à propositura da acção, o que havia que levar em conta eram os factos existentes a essa data e não a notícia deles ou os seus indícios, porque uma coisa são os factos, outra os seus indícios e notícia. Por assim ser é que, em geral, durante o inquérito, a competência do JIC que nele desempenha as funções jurisdicionais reservadas é feita por referência ao MP que é titular do mesmo[xvii], não devendo o JIC interferir com essa competência, que só pode ser posta em causa nos termos dos referidos art.ºs 264º e 266º do CPP. A não se entender assim, chegaríamos a soluções absurdas. Vejamos o seguinte exemplo: o MP do Porto teve notícia de um crime de homicídio qualificado, com indícios de que o mesmo ocorrera na área dessa comarca. Em face disso, uma vez que o suspeito tinha sido detido, promoveu a sua audição pelo JIC do Porto e a aplicação de prisão preventiva, o que veio a acontecer. Na semana seguinte são recolhidas provas inequívocas de que, afinal, o homicídio ocorreu em Lisboa e que há que realizar naquela comarca várias diligências de prova. Por isso, nos termos do art.º 266º/1 do CPP, transmite os autos ao MP de Lisboa, que os aceita e vem a deduzir acusação pelo referido crime. Neste caso, se o Arg. requerer a abertura de instrução, o tribunal competente é o TIC do Porto? Mas, ainda mais absurdo: entendendo-se que as alterações de facto posteriores à instauração do inquérito são irrelevantes e que esses factos são os que constam do auto de notícia, o tribunal de julgamento seria o das Varas Criminais do Porto? E se o MP, viesse a acusar o Arg. por homicídio negligente, por disso ter recolhido fortes indícios, competente para o julgamento seria o tribunal colectivo, neste caso as Varas Criminais, uma vez que os factos constantes do auto de notícia correspondiam a homicídio qualificado? Ora, o legislador não quis seguramente estas soluções absurdas e, por isso, entendemos que não é essa a solução consagrada na lei. A competência do tribunal para proceder à instrução tem que ser aferida em face da acusação ou do RAI, conforme os casos, porque são estes que fixam o objecto do processo. Por isso, no presente caso, uma vez que o Arg. foi acusado de crimes que não constam do catálogo do art.º 47º/1 de LOMP, nos termos do art.º 112º/1 da LOFTJ, o TCIC não é materialmente competente para proceder à requerida instrução, sendo-o o TIC de Lisboa. As consequências desta incompetência estão fixadas nos art.º 33º e 119º/e) do CPP, isto é, o despacho que declarou aberta a instrução é nulo e o processo deve ser remetido ao TIC de Lisboa. Contrariamente ao que consta da decisão recorrida, esta nulidade verifica-se pela mera violação das regras da competência, independentemente de essa violação ter prejudicado os direitos do Arg. ou comprometer a realização da justiça, como decorre inelutavelmente do teor do dispositivo legal. Procede, pois, o recurso. ***** * Notifique. D.N.. ***** Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). ***** Lisboa, 10/04/2014
(Abrunhosa de Carvalho) (Maria do Carmo Ferreira) _______________________________________________________
[xiii] Além da citada no despacho recorrido, ver, por todos, o acórdão da RL de 09/07/2013, relatado por Trigo de Mesquita, no processo 10454/05.3TDLSB-9, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…De acordo com o art. 19º, nº 1 CPP é competente para conhecer de um crime o tribunal da área em cuja comarca se tiver verificado a consumação desse mesmo crime. À data da prática dos factos, a competência para o julgamento em face do local onde ocorreram pertencia aos Juízos Criminais de Lisboa. De acordo com o art. 24º, nº 1 da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto (JusNet 1769/2008) (actual LOFTJ) a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente. A jurisprudência, por seu turno, vem entendendo que a acção penal se inicia no momento em que é dado conhecimento do facto criminoso à autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédios dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. O que significa que o processo se inicia com a aquisição da notícia do crime, nos termos do art. 241º e ss CPP, pelo que a partir daí existe inequivocamente uma acção penal pendente. Nesse sentido decidiram v. g. e entre muitos outros: - Ac. Rel. Coimbra de 89.06.21, CJ 3/89-102, com recensão de variada jurisprudência; - Ac. STJ de 90.03.28, CJ 2/90-16; - Ac. STJ de 90.05.09, BMJ 397-354; - Ac. STJ de 90.10.03, BMJ 400-544; - Ac. Rel. Lisboa de 97.02.18, CJ 1/97-160; - Ac. Rel. Lisboa de 00.04.13, no Proc. nº 1501/00 (9ª S); - Ac. Rel. Lisboa de 2000.05.11, no Proc 2118/00 (9ª S); - Ac. Rel. Lisboa de 00.05.25, no Proc. nº 3079/00 (9ª S); - Ac. Rel Lisboa de 2000.06.28, no Proc 3023/00 (3ª S); - Ac. Rel. Lisboa de 2000.11.09, no Proc 7396/00 (9ª S); - Ac. Rel Lisboa de 2001.05.03, no Proc 3168/01 (9ª S) [xvii] Nesse sentido, ver o acórdão da RP de 28/02/2007, relatado por Custódio Silva, no processo 0646073, in JusNet 1229/2007, do qual citamos: “…Deve-se dizer, já, numa primeira aproximação à solução, que estando intrinsecamente ligada ao inquérito a competência do juiz de instrução para a prática ou autorização dos actos jurisdicionais a ter aí lugar, sempre se teria de ver como ajustado que a competência em relação ao inquérito determinasse a competência relativamente a essa precisa intervenção do juiz de instrução; de outra maneira, sempre seria um autêntico absurdo, visto em si e por si mesmo, deferir a competência ora em causa, havendo-o, a juiz de instrução que não exercesse as suas funções no local onde Ministério Público que tem competência (e enquanto a mantiver) para o inquérito as exerce. Nesta sede, o que releva é a competência do juiz de instrução para a prática e determinação ou autorização de actos jurisdicionais num determinado inquérito; nada mais, isto é, nada tem a ver com a competência territorial, que não pode definir por estar definida, digamos assim, pela do inquérito. E, finalmente, nada se perfila, na lei orgânica dos tribunais, que imponha diverso entendimento, até porque, o que, de certo modo, se repete, aí se define a competência por referência ao inquérito - v. o que dispõem os arts. 77º, n.º 1, al. b), 79º, n.º 1, e 95º, al. c), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro. …”. Contra este entendimento decidiu o acórdão da mesma Relação, de 27/06/2007, relatado por José Piedade, no Processo 0741079, in JusNet 4209/2007, mas sem rebater os seus argumentos. Entendemos que o exemplo citado - “…Suponha-se - ab absurdo - que, num Inquérito a correr termos na Comarca de Marco de Canavezes, e pretendendo efectuar-se uma busca num estabelecimento bancário de Viana do Castelo, a sua realização é solicitada ao Juiz de Instrução da Comarca de Faro.…” – uma vez que, correndo o inquérito termos em Marco de Canavezes e pretendendo o MP pedir uma busca em Viana do Castelo, nunca poderia solicitá-lo, por si próprio, em Faro, por não ter competência para actuar fora da sua comarca(art.º 264º/1 do CPP). Seria, pois, uma questão de incompetência do MP e não do JIC. |