Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7087/15.0T8LRS.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INJUNÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O procedimento de injunção não é meio adequado à obtenção de título executivo contra os sócios de sociedade dissolvida e liquidada, alegadamente responsáveis por passivo social não satisfeito ou acautelado, ao abrigo do disposto no art.º 163.º n.º 1 do CSC.
II Deve ser rejeitada, por falta de título executivo, a execução fundada em fórmula executória aposta em requerimento de injunção instaurado, nos termos do referido em I, contra os sócios de sociedade dissolvida e liquidada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
C –, Lda, exequente em ação executiva, para pagamento de quantia certa, instaurada contra Rute e Bruno, inconformada com o despacho, proferido em 07.01.2017, que rejeitou a execução por falta de título executivo, dele apelou, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I) O presente recurso é admissível, porquanto o mesmo versa sobre o douto despacho que determinou a extinção da execução.
II) O título dado à presente execução foi obtido de acordo com o regime jurídico próprio da injunção, tanto assim é que foi legalmente conferida ao requerimento de injunção a fórmula executória.
III) O título executivo que se formou em nada viola o princípio da taxatividade dos títulos que podem servir de base à instauração imediata de uma acção executiva!
IV) Uma injunção onde tenha sido aposta fórmula executória faz parte do elenco dos títulos a que a nossa lei processual confere força executiva (art.º 703 C.P.C.).
V) A recorrente cumpriu todos os requisitos legais, designadamente, expôs sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão e formulou o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas.
VI) Os executados foram regularmente citados e não deduziram oposição.
VII) O credor de transacções comerciais, nos termos definidos no Dec. Lei nº 62/2013 de 10 de Maio, independentemente do valor da dívida, pode recorrer ao procedimento de Injunção.
VIII) Dúvidas não podem existir de que a recorrente é credora das quantias peticionadas,
IX) Assim como de que os executados são os seus devedores por força do disposto no invocado art.º 163 do Código das Sociedades Comerciais.
X) A causa de pedir indicada tanto no requerimento de injunção, como no requerimento executivo emerge da celebração de um contrato entre as partes já que, in casu, os executados ocuparam a posição contratual da anterior sociedade de que foram sócios e gerentes.
XI) Não está em causa qualquer apuramento de responsabilidade dos executados enquanto ex-sócios.
XII) Os ex-sócios ocuparam a posição contratual da sociedade quando a decidiram dissolver e nos termos em que o fizeram, omitindo perante entidades públicas o activo e o passivo da sociedade.
XIII) Dizer o contrário será coartar os direitos da recorrente enquanto credora, devida e legalmente exercidos.
XIV) Ainda que V. Exas. assim não entendessem, o que se admite por mero raciocínio académico, os próprios executados vieram confessar-se devedores da recorrente, assumindo a posição contratual da sociedade que dissolveram, nos embargos que eles próprios deduziram na presente execução,
XV) Dos quais o Mmo. Juiz a quo fez tábua rasa.
XVI) O Mmo. Juiz a quo proferiu o seu despacho em crise com manifesto prejuízo para os autos e para a pretensão que a recorrente traz a juízo.
XVII) Entende a recorrente que o tribunal a quo violou o disposto no D.L 269/98 de 01/09, o D.L. 62/2013 de 10.05, os art.ºs 195, 703 e outros do C.P.C., devendo, em consequência, e por parte da Veneranda Relação de Lisboa, ser anulado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos.
XVIII) Tal despacho deve ser anulado e substituído por outro que considere válido o título executivo e ordene o prosseguimento dos autos.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão que se suscita neste recurso é se a execução em causa carecia de título executivo, devendo, por conseguinte, ser rejeitada.
Resulta dos autos o seguinte
Factualismo
1. Em 18.02.2015 a ora apelante apresentou no Balcão Nacional de Injunções requerimento de injunção contra os ora apelados, alegando que no âmbito da sua atividade de prestação de serviços de contabilidade e consultoria havia prestado serviços à sociedade Condomínios (…), Lda, dos quais os requeridos eram sócios e que haviam dissolvido em 22.01.2015, pelo que eram responsáveis pelo passivo não satisfeito ou acautelado, ao abrigo do art.º 163.º n.º 1 do CSC, requerendo que os mesmos fossem notificados para pagarem o preço pelos serviços por aquela prestados à sociedade, no valor de € 3 250,09, acrescida de juros de mora liquidados em € 61,41 e outras quantias no valor de € 340,00 e bem assim juros vincendos.
2. Notificados os requeridos, estes não deduziram oposição ao requerimento de injunção.
3. Em 11.5.2015 o respetivo Secretário de Justiça apôs no requerimento a declaração “Este documento tem força executiva.”
4. Em 19.5.2015 a ora apelante apresentou requerimento executivo contra os ora apelados, para pagamento da quantia de € 3 781,69, acrescida de juros de mora vincendos.
5. Foram efetuadas penhoras e, aberta conclusão ao Magistrado Judicial, por este foi proferido, em 07.01.2017, o seguinte despacho:
Os presentes autos reportam-se a ação executiva para pagamento de quantia certa, instaurada em 19 de maio de 2015, e funda-se em requerimento de injunção, ao qual foi aposta fórmula executória.
Ora, e salvo melhor entendimento, o referido título foi obtido clara e inequivocamente à margem do regime jurídico próprio do procedimento de injunção e, como tal, não lhe pode ser reconhecida, materialmente, a força executiva que, só formalmente, aparenta.
Solução contrária desrespeitaria, a nosso ver, o princípio legal da taxatividade dos títulos que podem servir de base à instauração imediata de uma ação executiva, propiciando a criação, ad hoc, por vontade unilateral (válida e eficaz) do credor, de títulos executivos, o que não pode ter estado na mente do legislador, sob pena de quebra da unidade e coerência do sistema jurídico.
Expliquemos, melhor.
O procedimento de injunção, regulado no Decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro, destina-se a facultar a obtenção pelo credor de uma providência – a injunção – que consiste em conferir força executiva a requerimento de injunção, possibilitando, assim, o recurso imediato à ação executiva, com a consequente dispensa da instauração da competente ação declarativa.
Contudo, o direito de recurso àquele procedimento, diversamente do que sucede com o de recurso à ação declarativa, só pode ter por objeto determinados direitos subjetivos, mais concretamente direitos de crédito emergentes de contratos ou de transações comerciais.
É o que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1.º do Decreto-lei n.º 269/98, 7.º do anexo a este diploma legal e 10.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 62/2013, de 10 de maio.
No que concerne, em particular, ao conceito de “obrigações emergentes de transações comerciais”, utilizado no citado artigo 7.º do anexo ao Decreto-lei n.º 269/98, do que se trata, verdadeiramente, é conferir ao credor o direito de recorrer ao procedimento de injunção para exigir o pagamento do montante devido no prazo contratual ou legal, a título de remuneração de transações comerciais (Cf. artigos 2.º, n.º 1, 3.º, alínea a), e 10.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 62/2013).
De referir que, para efeitos de aplicação do regime em causa, entende-se por transação comercial uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração (Cf. artigo 3.º, alínea b), do Decreto-lei n.º 62/2013), sendo que por empresa entende-se uma entidade que, não sendo uma entidade pública, desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, incluindo pessoas singulares (Cf. artigo 3.º, alínea d), do Decreto-lei n.º 62/2013).
A lei exclui, porém, expressamente, do seu âmbito de aplicação, quer os contratos celebrados com consumidores (Cf. artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-lei n.º 62/2013) quer os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros (Cf. artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Decreto-lei n.º 62/2013).
Pois bem, no caso, é manifesto que a obrigação exequenda não corresponde a nenhuma daquelas com relação às quais a lei possibilita ao respetivo credor o direito de recorrer ao procedimento de injunção.
Na verdade, da causa de pedir indicada no requerimento de injunção e replicada no requerimento executivo, decorre que a obrigação exequenda não emerge da celebração de qualquer contrato entre as partes mas da responsabilidade em que se entende que os executados incorrem na qualidade de ex-sócios de uma sociedade com quem a exequente terá celebrado um contrato de prestação de serviços.
Portanto, não se trata, aqui, claramente, de obrigações emergentes de contrato nem de transações comerciais, pelo que o requerimento de injunção exequendo, ao formar-se fora do condicionalismo legalmente previsto para que lhe fosse atribuída força executiva, deve ver-lhe negada esta eficácia jurídica, sob pena de se permitir a proliferação indiscriminada de títulos executivos, em claro desvio do propósito do legislador ao regular esta matéria.
Impõe-se, por isso, rejeitar esta execução, ao abrigo do disposto nos artigos 726.º, n.º 2, alínea a), e 734.º do CPC.
Decisão: pelo exposto, rejeita-se e, consequentemente, extingue-se a presente execução, com o consequente levantamento das penhoras que tenham sido efetuadas.
Custas a cargo da exequente, fixando-se em €3.781,69 (três mil setecentos e oitenta e um euros e sessenta e nove cêntimos) o valor processual da causa.
Notifique-se e comunique-se.
*
Transitada, conclua-se no apenso.”
O Direito
Como refere a apelante, esta pretende ser paga de serviços que, no exercício da sua atividade comercial, prestou a uma outra sociedade comercial, de que os apelados eram sócios. Segundo a apelante, a sociedade foi dissolvida e liquidada, permanecendo por pagar o seu crédito. Assim, demandou os ora apelados ao abrigo do disposto no art.º 163.º do CSC, cujo n.º 1 reza assim:
1. Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.”
Sendo certo que os restantes números do aludido artigo regulam os meios adjetivos que devem ser prosseguidos para se obter a aludida responsabilização dos sócios:
2. As acções necessárias para os fins referidos no número anterior podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários, que são considerados representantes legais daqueles para este efeito, incluindo a citação; qualquer dos sócios pode intervir como assistente; sem prejuízo das excepções previstas no artigo 341º do Código de Processo Civil, a sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado em relação a cada um deles.
3. O antigo sócio que satisfizer alguma dívida, por força do disposto no nº 1, tem direito de regresso contra os outros, de maneira a ser respeitada a proporção de cada um nos lucros e nas perdas.
4. Os liquidatários darão conhecimento da acção a todos os antigos sócios, pela forma mais rápida que lhes for possível, e podem exigir destes adequada provisão para encargos judiciais.
5. Os liquidatários não podem escusar-se a funções atribuídas neste artigo, sendo essas funções exercidas, quando tenham falecido, pelos últimos gerentes ou administradores ou, no caso de falecimento destes, pelos sócios, por ordem decrescente da sua participação no capital da sociedade.”
Ou seja, a cobrança aos sócios do passivo remanescente da sociedade dissolvida e liquidada deverá fazer-se em ação declarativa comum e não nos estreitos e acanhados meios proporcionados pela injunção (art.º 7.º e seguintes do Regime previsto no Anexo do Dec.-Lei n.º 269/98, de 01.9, com as alterações publicitadas).
Por conseguinte, foi utilizado um meio de formação de título executivo (cfr. art.º 14.º do aludido regime) que não quadra ao caso sub judice, como bem se explicita na decisão recorrida.
Sendo certo que a aposição de fórmula executória pelo Secretário Judicial, na sequência de falta de oposição, não tem força constitutiva de caso julgado, não precludindo a apreciação do aludido vício de uso indevido de procedimento injuntivo. Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa, de 15.02.2018, processo 2825/17.9T8LSB.L1-6, consultável em www.dgsi.pt, “não pode ser equiparada a decisão judicial a aposição da fórmula executória por um secretário de justiça. Por isso a rejeição por despacho judicial da execução baseada em injunção não constitui violação de caso julgado.”
Por outro lado, a omissão ou insuficiência de título executivo são de conhecimento oficioso e podem ser apreciadas e declaradas até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados (artigos 734.º n.º 1 e 726.º n.º 2 al. a) do CPC). Sendo irrelevante, para esse efeito, que os executados se tenham abstido de invocar tal vício, nomeadamente em sede de oposição à execução.
Pelo exposto, conclui-se que a apelação é improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 12.7.2018

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Pedro Martins