Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8544/19.4T8ALM.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: DEFESA DO CONSUMIDOR
VENDA DE BENS DE CONSUMO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO VENDEDOR
DIREITO À REPARAÇÃO
RESOLUÇÃO OU REDUÇÃO DO PREÇO
ABUSO DE DIREITO PELO CONSUMIDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre a matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre os pedidos que nela não foram formulados, pois os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido formulado na 1ª instância, com a matéria de facto nela alegada.
II. As normas contidas na Lei de Defesa dos Consumidores constituem normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil, derrogando estas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação, que é o da relação de consumo, e como lei especial, deverá prevalecer o seu regime, a menos que a disciplina da venda de coisa defeituosa do Código Civil, se revele mais favorável para o comprador/consumidor.
III. A responsabilidade do vendedor, no regime da venda de bem de consumo, aproxima-se de uma responsabilidade objectiva, no âmbito da qual, perante o consumidor, será irrelevante a responsabilidade que o vendedor tenha tido na desconformidade, bastando a prova desta.
IV. No âmbito do diploma aludido eliminou-se por completo a existência de uma hierarquia entre os direitos ou “remédios” legais – a reparação, a resolução ou a redução do preço- cabendo apenas observar caso a caso se o recurso a um destes direitos não é exercido de forma abusiva pelo consumidor.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
L…, identificada nos autos intentou a presente acção declarativa sob a forma comum contra H…, Comércio de Automóveis, Unipessoal, Lda e H…, ambos com os sinais dos autos, pedindo: “a) Nos termos do artigo 4.º do DL n.º 67/2003 de 8 de Abril o contrato de compra e venda celebrado entre A. e RR. ser resolvido, condenando os RR. ao pagamento do valor de €21.747,10 (vinte e um mil setecentos e quarenta e sete euros e dez cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais. b) Subsidiariamente, serem os Réus condenados a procederem à reparação de todos os defeitos apresentados e entregar o veículo automóvel em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, tudo sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados. c) Caso assim não se entenda, que seja reduzido o preço acordado, compensando a Autora no montante necessário para proceder à reparação dos defeitos alegados para que o veículo fique em condições de normal funcionamento e apto a circular em segurança, tudo sem prejuízo dos danos reclamados.
Em abono da sua pretensão alegou, em síntese, que o 2º réu na qualidade de sócio gerente da 1ª ré vendeu à A. o veículo identificado nos autos, o qual pouco tempo após a aquisição apresentou vários problemas, tendo reportado a situação aos RR., sem obter qualquer resposta, tendo assim necessidade de se socorrer de outra entidade para aferir do diagnóstico dos problemas existentes, tendo gasto o valor de 61,50€, concluindo-se por um valor de reparação de 2.757,64€. Alega que comunicou ao réu e solicitou a reparação, não tendo o réu respondido, tendo procedido ao envio de novas comunicações, também sem resposta. Conclui pela resolução do contrato com a devolução do valor do veículo correspondente a 19.185,60€, bem como o valor pago pelo diagnóstico e ainda danos morais no valor de 2.500€, ou subsidiariamente a condenação dos RR. a reparar o veículo, ou a redução do preço acordado no montante necessário para que a A. possa proceder à sua reparação.
Os RR. contestaram, arguindo a ilegitimidade do 2º R., no mais aludem a má fé da A., pois argumentam que o valor da venda foi de 8.400€, e ainda que tenha solicitado crédito no valor de 12.425,00€ (valor mutuado à A. pelo contrato n.º395271, pela Sociedade Financeira …, S.A.), recebeu 3.600,00€, usando-os para seu benefício pessoal, que foi precisamente o valor do desconto da Ré, assumindo a A. reparar a viatura dos defeitos que ela tinha à data da compra, reparações que não fez e que são exactamente aquelas que a mesma reclama. Além do aludido também refere que a reclamação da A. só ocorre um ano após a aquisição, sendo que na identificação da reparação existem discrepâncias que determina que não se reporte ao veículo vendido pela ré à A.. Arrematam quer com a absolvição, bem como com o pedido de condenação da A. como litigante de má fé com indemnização à ré no valor de 2.253€ de honorários a pagar e ainda de 408€ de valor gasto com taxa de justiça, pois a A. ao beneficiar de apoio judiciário não há lugar ao pagamento pela mesma de custas de parte.
A A. notificada para tal respondeu apenas ao pedido de condenação como litigante de má fé, dizendo apenas que não existe prova da entrega dos 3.600€, mas sim um email de mera negociação entre as partes.
No saneador foi julgado procedente a excepção de ilegitimidade do 2º réu, tendo o mesmo sido absolvido da instância. Foi ainda fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou acção parcialmente procedente, e, consequentemente, decidiu: a) Condenar a Ré a pagar à Autora a importância de 2.213,15€, a título de compensação pela redução do preço pela mesma pago, aquando da aquisição do veículo; b) Condenar a Ré ao pagamento à Autora da importância de €1.000,00 a título de danos não patrimoniais; c) Absolver a Ré de indemnização da Autora a título de danos da privação do uso de veículo; d) Absolver a Ré do pagamento à Autora do valor de 61.50€ a título de danos patrimoniais; e) Julgar improcedente o pedido de resolução do contrato de crédito coligado celebrado entre a Autora e a Instituição Financeira de Crédito … Instituição Financeira de Crédito, S.A; f) Absolver a Autora do pedido de litigância de má fé; g) Absolver a Ré dos demais pedidos formulados pela Autora.
A Autora recorreu pretendendo que a sentença seja revogada e substituída por uma que (i) adite/altere os factos provados, (ii) declare resolvido o contrato de compra e venda da viatura Kia Carens com a matrícula … e condene a Apelada a pagar à Apelante
€19.185,60 referentes ao valor total do empréstimo (ou atribua um dos pedidos subsidiários), (iii) declare resolvido o contrato de crédito coligado, (iv) atribua uma indemnização por privação do uso da viatura, de montante a apurar em sede de liquidação de sentença, (v) atribua uma indemnização de €7.500,00 a título de danos não patrimoniais, e (vi) atribua uma indemnização de €67,5 a título de danos patrimoniais.
Apresentou as seguintes conclusões:
« I. Com o devido respeito por opinião diferente, a sentença do Tribunal a quo não valorou
corretamente a prova documental junta aos autos, as declarações de parte e prova testemunhal produzidas em sede de audiência de julgamento e não aplicou corretamente o Direito aos diversos temas em análise, pelo que o presente recurso diz respeito à matéria de facto e de Direito.
A. DOS FACTOS A ADITAR
II. De acordo com a prova documental, testemunhal e Contestação (tudo conforme exposto e transcrito nas alegações) deve ser aditado à matéria de factos provados que a Apelante enviou emails para a Apelada, que os recebeu, em 02.11.2018, 15.04.2019, 06.11.2019 e 9.11.2019, propondo-se a seguinte redação: “Em 2 de novembro de 2018 (para o endereço …), 15 de abril de 2019 (para o endereço …), 6 de novembro de 2019 (para o endereço …) e 9 de novembro de 2019 (para os endereços …) a Apelante enviou emails à Apelada, que os recebeu, onde foram denunciados os vários defeitos da viatura Kia Karens, tendo a Apelante solicitado em todos os emails que a Apelada indicasse uma oficina onde a carrinha pudesse ser colocada para serem avaliados/diagnosticados os defeitos existentes e os mesmos serem posteriormente corrigidos.”
III. De acordo com as declarações de parte e prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento (conforme exposto e transcrito nas alegações), deve ser aditada à matéria de factos provados que a Apelante tomou conhecimento dos diversos defeitos em outubro de 2018, propondo-se a seguinte redação: “Em outubro de 2018 surgiram alguns defeitos intermitentes com a carrinha Kia Karens, nomeadamente luz de airbag acesa e falta de força do motor, sendo que foi no dia 31 de outubro de 2018 que a Apelante notou que existiam defeitos sérios com a carrinha, os quais comunicou à Apelada pela primeira vez, por email, no dia 2 de novembro de 2018, e posteriormente por carta registada, no dia 19 de novembro de 2018.”
IV. De acordo com as declarações de parte e prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento (conforme exposto e transcrito nas alegações), deve ser aditada à matéria de factos provados que a Apelante tomou conhecimento dos diversos defeitos em outubro de 2018, durante o período em que a Apelante teve de utilizar, condicionalmente, a viatura por não ter alternativa, nomeadamente para levar o seu avô com cancro a consultas, exames e tratamentos de quimioterapia, sofreu um elevado desgaste emocional e receio pela sua vida e vida dos ocupantes da viatura que se viu forçada a conduzir, propondo-se a seguinte redação: “Entre outubro de 2018, data em que surgiram os primeiros defeitos na viatura, e 22 de abril de 2019, data em que a Apelante efetuou um diagnóstico completo à viatura na Bosch Car Service, a Apelante sofreu vários transtornos e receios ao conduzir a viatura que apresentava defeitos que não compreendia na totalidade. Após 22 de abril de 2019, data em que lhe foi explicado pelo chefe de oficina da Bosch Car Service a real extensão e perigo dos defeitos da viatura, até Novembro de 2020, data em que faleceu o avô da Apelante, a Apelante apenas utilizou a viatura para transportar o seu avô com cancro a consultas, exames e tratamentos de quimioterapia, por não ter uma alternativa para tal transporte, período de ano e meio em que sofreu um elevado stress, angústia e medo de cada vez que conduziu a viatura”.
V. De acordo com a prova documental, declarações de parte e testemunhas (tudo conforme exposto e transcrito nas alegações) deve ser aditado à matéria de factos provados que após o falecimento do avô da Apelada esta deixou de utilizar a viatura, por não reunir as condições de segurança necessárias para o efeito, propondo-se a seguinte redação: “Após o falecimento do avô da Apelante, em novembro de 2020, a viatura automóvel não mais foi utilizada por esta, com exceção de 44 km para efeitos de levar a viatura à IPO e para levar a viatura para a nova residência da Apelada, o que lhe causou várias angústias, stress e tristeza pois ficou impossibilitada de fazer um uso normal da viatura, a qual lhe fazia muita falta”.
VI. No Facto 4 dado como provado o Tribunal a quo diz que foi realizado um diagnóstico completo à viatura automóvel, no entanto, apenas foi realizado um diagnóstico geral a carros usados (doc. n. 4 junto com a petição inicial), pelo que deverá este facto ser alterado, propondo-se que a sua redação passe a ser:
“No dia 22 de abril de 2019, a Autora deslocou-se a uma oficina Oficial Bosch Car Service onde efectuou um diagnóstico geral, não exaustivo, a carros usados”.
VII. De acordo com a prova documental, declarações de parte e testemunhas o Facto 6 dado como provado deve ser alterado (tudo conforme exposto e transcrito nas alegações), propondo-se que a sua redação passe a ser: “Aquando do diagnóstico detectou-se que o carro carecia das seguintes intervenções/peças, para além de outras que resultem de eventuais defeitos existentes e que só podem ser detectados após o início da reparação:
1- Mão obra;
2- Kit embraiagem;
3- Volante bimassa;
4- Rolamento de embraiagem;
5- Parafusos volante motor;
6- Retentor caixa veloc esq;
7- Valvulina;
8- Gestão óleos usados;
9- Fita de airbag;
10- Bomba de depósito de combustível;
11- Líquido de travões;
12- Gestão óleos usados;
13- Discos travão dianteiros;
14- Pastilhas travão dianteiros;
15- Auto-Radio;
16- Consumíveis Limpeza/Diversos;”.
VIII. No Facto 10 dado como provado consta que desde 27 de outubro 2019 a carrinha apresenta novos problemas que são diferentes e acrescem aos comunicados e dados como provados no Facto 2, no entanto, estes defeitos não constam do diagnóstico e orçamento da Bosch Car Service por terem surgido em momento posterior, mas foram comunicados à Apelada ainda dentro do prazo legal de garantia, pelo que deverá este facto ser alterado, propondo-se que a sua redação passe a ser:
“Desde o dia 27 de outubro de 2019 que a carrinha apresenta novos defeitos que não foram diagnosticados pela Bosch Car Service por se terem evidenciado em momento posterior ao disgnóstico realizado:
- O ralenti muito instável, com o motor frio e quente;
- O veículo automóvel quando parado, começa a tremer;
- Perde toda a sua força;
- A luz do airbag encontra-se sempre acesa;”
B. DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DA VIATURA
IX. A sentença proferida pelo Tribunal a quo violou o Direito da Apelante de resolver o contrato de compra e venda da viatura que adquiriu à Apelada, nos termos do número 4 do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril.
X. Com efeito, estamos perante uma compra e venda de bens de consumo, sendo aplicável a Lei n.º 24/96, de 31 de julho e Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril (Doravante “L 24/96” e DL 67/2003” respetivamente) que determinam que a Apelante tem direito a que a viatura que adquiriu esteja de acordo com o contrato celebrado e apresente as qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo, presumindo-se que todos os defeitos que surjam no prazo de 2 anos existiam à data da compra e venda (alínea a) do art.º 3.º e art.º 4.º da L 24/96 e números 1 e 2 do art.º 2.º e número 1 do art.º 5º do DL 67/2003).
XI. Os vários defeitos foram denunciados dentro dos prazos legais e a Apelante estava no Direito de resolver o contrato dado que, ao longo de 2 anos, tentou por 8 vezes que a Apelada reparasse os defeitos, sem sucesso, o que afasta o alegado abuso de direito.
XII. Com efeito, o instituto do abuso de direito serve apenas de válvula de segurança do sistema, não se podendo defender que um consumidor que num período de 2 anos e por 8 vezes tenta a reparação dos defeitos sem qualquer resposta por parte do vendedor actue em abuso de direito quando decide resolver o contrato:
“Refira-se ainda que, em regra, a não reposição do bem da conformidade do bem com o contrato por parte do vendedor, nomeadamente através de reparação (ou de substituição), afasta a qualificação como abusiva da escolha pelo consumidor de outro direito, por exemplo a resolução do contrato.
Agindo de má-fé, o vendedor não pode, neste caso, paralisar o exercício do direito pelo consumidor. Se o pretender fazer, estaremos perante uma situação de tu quoque.” (Carvalho, Jorge Morais – Manual de Direito do Consumo, 7ª edição, 2020, pág. 327 e 328).
XIII. Note-se que o Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro (não aplicável ao nosso caso), prevê uma hierarquia de direitos mas é claro ao estipular que consumidor poderá sempre exercer o direito à resolução do contrato quando o profissional não tenha procedido à reparação dos defeitos, independentemente da utilização que lhe tenha sido dada pelo consumidor.
XIV. Acresce que, não permitir que a Apelante resolva o contrato de compra e venda transfere para esta, ilegitimamente, todos os riscos inerentes ao incumprimento da Apelada, nomeadamente a insuficiência do valor do orçamento realizado há 3 anos face aos preços atuais, a insuficiência do diagnóstico realizado pela Bosch para detectar todos os defeitos e o facto de terem surgido novos defeitos após o diagnóstico da Bosch, pelo que deverá a decisão de primeira instância ser revogada e substituída por outra que declare resolvido o contrato de compra e venda da viatura automóvel Kia Carens com a matrícula ... e condene a Apelada a devolver à Apelante o valor total do empréstimo, €19.185,60.
XV. Por último, o facto de a Apelante não conseguir devolver a viatura no mesmo estado
em que a recebeu (nomeadamente, os 22870 km circulados) não determina o pagamento de qualquer alegado enriquecimento sem causa desta e o eventual risco de desvalorização do bem deverá correr por conta da Apelada que deu origem à necessidade de resolver o contrato, como nos explica o Professor Jorge Morais Carvalho: “Outra questão consiste em saber se a utilização do bem pelo consumidor durante um determinado período pode levar a uma redução do valor a restituir pelo vendedor. A resolução tem efeito retroativo, nos termos do art.º 434º-1 do CC, e a falta de conformidade presume-se existente no momento da entrega (art.º 3º do DL 67/2003), pelo que a regra é a de que o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela utilização do bem.” (Carvalho, Jorge Morais – Manual de Direito do Consumo, 7ª edição, 2020, pág. 336.)
XVI. Se a Apelante tivesse de ressarcir a Apelada pela eventual desvalorização do bem,
então a Apelada também teria de ressarcir a Apelante pelo enriquecimento sem causa por referência aos frutos que recebeu ao longo de 5 anos devidos ao pagamento do preço da viatura; neste sentido decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, num acórdão com menos de 6 meses: “I – Em consequência da resolução do contrato de venda de bens para consumo, a coisa volta a ser do vendedor e este fica constituído na obrigação de restituir o preço da compra. II – A eventual desvalorização da coisa, por via de um uso prudente e regular, não implica, só por si, a diminuição do preço a restituir (art.º 1269 do CC, por
maioria de razão), tal como o vendedor não será obrigado a acrescentar juros de mora à restituição do preço enquanto não for interpelado para a restituição (art.º 1270/1 do CC). III – Nos casos em que a desvalorização da coisa, por via da utilização dela pelo comprador, for de ter em conta para diminuir o valor da restituição, também terão de ser tidos em conta, para aumentar aquele valor, por força do princípio da reciprocidade e da equivalência das prestações, os frutos que o preço produziu ou podia produzir até à sentença.”(Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.06.2022, Proc. n.º 301/18.1T8ORM, Relator: Pedro Martins.).
XVII. No entanto, este pedido teria de ter sido formulado pela Apelada, pelo que não o fazendo (e ao abrigo do princípio da autorresponsabilização e da concentração da defesa), fica prejudicada esta avaliação; neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça num acórdão com pouco mais de 1 ano: “I. Declarada a resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel com fundamento em defeito que não foi reparado, em regra, o comprador tem o direito de receber a quantia correspondente ao preço que pagou, nos termos dos art.ºs 433º, 434º, nº 1, e 289º, nº 1, do CC. II. A ponderação do eventual enriquecimento do comprador pela utilização do veículo não dispensa o vendedor da alegação oportuna da matéria de facto pertinente, o que deve ser feito nos articulados, sendo extemporânea a alegação dessa questão apenas no recurso de apelação.
III. A apreciação dessa questão por parte da Relação, com efeitos na redução do valor da prestação, afecta o acórdão proferido, na medida em que envolve uma pronúncia sobre matéria de que não podia conhecer, por não integrar o objecto do processo. IV. A eventual ponderação das utilidades extraídas pelo comprador na vigência do contrato de compra e venda que é objeto de resolução não pode deixar de ter em conta as circunstâncias em que ocorreu a utilização e o comportamento do vendedor antes e na pendência da ação.” (Ac. STJ de 14.10.2021, Proc. n.º 2927/18.4T8VCT.G1.S1, Relator: Abrantes Geraldes.
XVIII. Caso se entenda que seria desproporcional o exercício do direito à resolução do contrato de compra e venda da viatura, o que não concedendo, se refere por mera cautela de patrocínio, então deverá ser concedido o primeiro pedido subsidiário da Apelante: ser a Apelada condenada a proceder à reparação de todos os defeitos apresentados e entregar o veículo automóvel em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados.
XIX. Como se viu, a inspeção e orçamento elaborados pela Bosch Car Service não contemplam todos os defeitos que pudessem existir em abril de 2019 (e que apenas poderiam ser detectados aquando do início dos trabalhos de reparação), o valor do orçamento encontra-se desatualizado (por já ter 3 anos e meio e devido às vicissitudes que se têm verificado a nível mundial e que têm aumentado significativamente o valor das peças e mão de obra) e em novembro de 2019 foram detetados novos defeitos que não foram alvo de diagnóstico pela Bosch Car Service.
XX. Assim, sob pena de se prejudicar a Apelante de forma desproporcional e completamente inaceitável, deve a Apelada ser condenada a reparar, na Bosch Car Service onde foi realizado o diagnóstico, todos os defeitos existentes para que a viatura seja entregue à Apelada em perfeitas condições de funcionamento, sem prejuízo do pagamento das restantes indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais.
d)
XXI. Caso não se declare a resolução do contrato nem se condene a Apelada no primeiro pedido subsidiário, conforme exposto supra, então a redução do preço deverá obedecer ao pedido formulado pela Apelante: “que seja reduzido o preço acordado, compensando a Autora no montante necessário para proceder à reparação dos defeitos alegados para que o veículo fique em condições de normal funcionamento e apto a circular em segurança”.
XXII. O Tribunal a quo atribuiu um montante por referência ao orçamento da Bosch Car
Service cujo valor não se consegue compreender (€2.213,15 em vez de €2.513,21), retirou de forma injustificável o valor para a reparação do auto rádio e ignorou todos os factos provados que demonstram que uma redução do preço por referência ao orçamento da Bosch é insuficiente para reparar todos os defeitos alegados.
XXIII. Além das contas estarem erradas (como se demonstrou nas alegações), também não se compreende o motivo para a desconsideração dos defeitos no auto radio dado que
o número 1 do art.º 4.º do DL 67/2003 não os exclui, devendo a redução do montante ser efetuada tendo por base todos os items constantes do orçamento realizado pela Bosch Car Service, ao seu valor à data atual, acrescido dos montantes necessários para debelar os defeitos detetados em novembro de 2019 – tudo a apurar em sede de liquidação de sentença, ou, no mínimo dos mínimos, pelo valor total do orçamento de abril de 2019.
C. DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE CRÉDITO COLIGADO
XXIV. O Tribunal a quo violou o disposto no número 2 do art.º 18.º do DL 133/2009 ao não considerar resolvido o contrato de mútuo coligado ao contrato de compra e venda da
viatura dado que a resolução do contrato de compra e venda de bens de consumo repercute-se, na mesma medida e automaticamente, no contrato de mútuo, neste sentido se pronunciou em 2020 o Tribunal da Relação de Lisboa relativamente a uma resolução extrajudicial de um contrato de compra e venda de um automóvel: “Na realidade, estamos perante uma coligação de contratos, já que o contrato de crédito e o de compra e venda configuram uma função unitária, na qual cada um fornece a razão de ser do outro. O consumidor escolhe o vendedor e o veículo, e o vendedor envia a documentação relativa ao cliente e ao negócio para o Banco. Se aprovar a operação, o Banco faculta ao vendedor a verba correspondente à aquisição do veículo e o consumidor/comprador fica adstrito a pagar tal verba ao Banco, em prestações e acrescida de juros remuneratórios. (…) Como dissemos, entendemos que a esta situação se deve aplicar o já referenciado art.º 18º nºs 2, 3 e 4 do DL 133/2009 de 02/06, até porque os embargantes reúnem as características previstas no art.º 4º nº 1 a) do mesmo diploma, configurando-se como consumidores. Estando provado que o embargante resolveu o contrato com a vendedora APM Motores, tal resolução repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado (art.º 18º nº 2 do mencionado diploma).” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.01.2020, Proc. n.º 831/15.7T8LRS-A.L1-8, Relator: António Valente.) (destaque nosso)
XXV. Assim, se uma resolução extrajudicial do contrato de compra e venda é suficiente para se considerar validamente resolvido o contrato de mútuo coligado, não se antolha qual possa ser o obstáculo para nos presentes autos não se ter considerado este contrato resolvido, uma vez que a resolução do contrato de crédito verifica-se ope legis, como ensina o Professor Jorge Morais Carvalho: “O efeito previsto na norma é automático, tendo o consumidor o dever de informar o financiador da invalidade ou ineficácia do contrato de crédito (...).” (Carvalho, Jorge Morais – Manual de Direito do Consumo, 7ª edição, 2020, pág. 465.)
XXVI. Pelo exposto, sendo declarado resolvido o contrato de compra e venda da viatura
automóvel deverá, na mesma medida, ser declarado resolvido o contrato de crédito ao consumo associado a esta compra e cujos dados constam do processo (documento n. 1 junto com a petição inicial).
XXVII. Mas caso se entendesse que a resolução não é ope legis e automática e que seria
necessária a intervenção da instituição financeira no processo para que se declarasse este contrato de crédito resolvido, o que apenas se refere por mera cautela de patrocínio, então estaríamos perante uma situação de litisconsórcio necessário dado que pela natureza da relação material controvertida, a intervenção de todos os interessados seria essencial para que a decisão produza o seu efeito útil normal.
“Há lugar a litisconsórcio necessário quando a situação em litígio requeira uma pluralidade de interessados sob pena de não se produzirem em toda a sua plenitude aos efeitos que o direito substantivo estabelece.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.2020, Proc. n.º 215/10.3TVPRT.P1.S2, Relator: Jorge Dias.)
XXVIII. Assim, o Tribunal a quo deveria ter proferido despacho destinado a providenciar pelo suprimento de excepção dilatória, em conformidade com o disposto no número 2 do
art.º 6.º e alínea a) do número 2 do art.º 590.º, todos do CPC, concedendo à Apelante a possibilidade de fazer intervir o Réu em falta (a instituição financeira), através da oportuna dedução de incidente de intervenção principal provocada, nos termos do art.º 261.º e número 1 do art.º 316.º “Ainda que esse mecanismo não seja ativado espontaneamente pelas partes, deve o juiz providenciar pelo suprimento da ilegitimidade, formulando o respectivo convite (art.ºs 6º, nº 2 e 590º, nº 2, al. A)).” (Código de processo civil anotado / [anot.] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa. – (Códigos anotados) – 1º v., 2ª Ed., comentário ao artigo 261.º, pág. 313)
XXIX. No mesmo sentido segue a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa: “Incumbe ao juiz, ao abrigo do disposto nos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 1, ambos do CPC, a prolação de despacho vinculado, convidando os autores ao suprimento de um pressuposto processual susceptível de sanação, como é a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados.”( Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.2017, Proc. n.º 3831/15.3T8LSB.L1-2, Relator: Ondina Carmo Alves.)
XXX. Consequentemente, e se assim se entendesse, o que não concedemos ser legalmente exigido, deve ser revogada a sentença sob recurso, e deve ser proferido despacho que providencie pelo suprimento da exceção dilatória de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário natural passivo, convidando a Apelante a deduzir o devido incidente de intervenção principal provocada, nos termos conjugados do número 2 do art.º 6.º e alínea a) do número 2 do art.º 590.º do Código de Processo Civil, após o que prosseguirão os autos os trâmites processuais que no caso couberem e forem legalmente adequados.
D. DA PRIVAÇÃO DO USO
XXXI. O Tribunal a quo decidiu que a Apelante manteve um uso parcial da viatura pelo que apenas sofreu uma “perturbação do uso”, mas dos factos provados (e aditados no presente recurso) resulta que a partir de novembro de 2020 e até ao presente a viatura apenas circulou 44 km pois não reunia as condições de segurança necessárias, pelo que estamos perante um dano patrimonial que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no art.º 1305.º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa. “A mera privação do uso do veículo configura um dano patrimonial específico e autónomo que atinge o direito de propriedade, por retirar ao proprietário lesado a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela quando e como melhor lhe aprouver.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.07.2018, Proc. n.º 3664/15.T8VFX.L1-6, Relator: Manuel Rodrigues )
XXXII. Acresce que o direito que um proprietário tem de usufruir da sua propriedade tem
dignidade e proteção constitucional nos termos do número 1 do art.º 62.º da Constituição
da República Portuguesa. “A privação do uso de um veículo sinistrado constitui um dano patrimonial indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao seu proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado no artigo 62.º da CRP” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2017, Proc. n.º 1817/16.0T8LSB.L1-2, Relator: Ondina Carmo Alves.)
XXXIII. Assim, desde 1 de dezembro de 2020 e até à data de entrada do presente recurso correram 748 dias em que a Apelante esteve privada da utilização da sua viatura por motivos imputáveis, exclusivamente, à Apelada, devendo o valor da indemnização ser calculado utilizando como base o montante necessário para o aluguer de um bem com características semelhantes: “V. Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil. VI. Para este efeito pode tomar-se como ponto de referência, por exemplo, a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes (...).” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.02.2019, Proc. n.º 189/16.7T8CDN.C1, Relator: Falcão de Magalhães.)
XXXIV. Esta jurisprudência dominante nas Relações tem tido o mesmo acolhimento junto do Supremo Tribunal de Justiça: “(…) cabe a ponderação do valor que esta suportaria com o aluguer de um veículo que desempenhasse uma funcionalidade semelhante àquela que desempenhava o veículo sinistrado, com recurso à equidade em face das demais circunstâncias”. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018, Proc. n.º 176/13.7T2AVR.P1.S1, Relator: Abrantes Geraldes.)
XXXV. Assim, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma que declare que o Tribunal a quo deverá estabelecer um montante diário de indemnização, desde o dia 1 de dezembro de 2020 até à data em que se efective a resolução do contrato de compra e venda (com a devolução dos €19.185,60 à Apelante e devolução da viatura Kia Carens à Apelada), arbitrando um valor com recurso à equidade, remetendo para incidente de liquidação para efeitos de apuramento do valor de aluguer de uma viatura com características semelhantes.
XXXVI. Acresce que durante determinado período a Apelante apenas pôde fazer uma utilização parcial da sua viatura, situação que também consubstancia um dano de privação do uso, se bem que de menor monta, pelo que fazendo um paralelo com o número 1 do art.º 1040.º do Código Civil deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma que declare que o Tribunal a quo deverá estabelecer um montante diário de indemnização, desde o dia 23 de abril de 2019 até ao dia 30 de novembro de 2020, num total de 587 dias, arbitrando um valor com recurso à equidade, deduzido da percentagem de uso que foi dada à viatura, remetendo para incidente de liquidação para efeitos de apuramento do valor de aluguer de uma viatura com características semelhantes.
E. DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS
XXXVII. A Apelante peticionou uma indemnização de valor não inferior a €2.500,00 a título de danos não patrimoniais, tendo o Tribunal a quo computado que €1.000,00 seriam
adequados a compensar a Apelante pelo “receio, insatisfação, desgosto e revolta. A estes de aditam os sentimentos e constrangimentos associados à limitação de utilização da viatura”.
XXXVIII. Este valor é manifestamente insuficiente para compensar a Apelante de todo o
sofrimento que passou (e ainda passa atualmente), não se podendo olvidar que esta situação decorre desde novembro de 2018, ou seja, há mais de 4 anos.
XXXIX. Com efeito, de outubro de 2018 a abril de 2019 a Apelante sofreu vários transtornos e receios ao conduzir uma viatura que apresentava defeitos cuja natureza desconhecia, de abril de 2019 até novembro de 2020 a Apelante sofreu um elevado stress, angústia e medo durante os momentos em que era forçada, por não ter alternativa, a conduzir uma viatura que não apresentava as necessárias condições de segurança e após
novembro de 2020 a Apelante deixou de utilizar, por completo, a sua viatura, o que lhe causou várias angústias, stress e tristeza pois ficou impossibilitada de fazer um uso normal da sua viatura, sendo obrigada a recorrer à ajuda de terceiros.
XL. Estes danos não patrimoniais, dada a sua gravidade, merecem a tutela do direito nos
termos do número 1 do art.º 496.º do CC, sendo que jurisprudência tem cada vez mais lançado mão deste preceito para aplicar uma punição civil nos casos em que exista uma atitude merecedora de censura: “A indemnização por danos patrimoniais, assume natureza mista visando compensar o lesado, e punir, civilisticamente, o lesante” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.06.2019, Proc. n.º 1675/18.0T8CTB.C1, Relator: Carlos Moreira.)
XLI. Veja-se que a dificuldade na quantificação destes danos não deve levar a que o montante atribuído seja meramente simbólico (como foi o valor atribuído pelo Tribunal a quo), como nos explica o Tribunal da Relação de Lisboa: “A indemnização por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico (…) A satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, no sentido de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão, antes visa proporcionar ao lesado situações ou momentos de prazer ou de alegria, bastantes para neutralizar, na medida do possível, a intensidade da dor pessoal sofrida”( Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.06.2018, Proc. n.º 13035/15.0T8LSB.L1-8, Relator: Ilídio Martins).
XLII. Há 18 anos, numa situação em que estava em causa um período de privação da viatura inferior ao da Apelante, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu como adequada uma indemnização de €2.500,00 a título de danos não patrimoniais: “VII - A situação vivenciada pelo autor, com sucessivos aparecimentos de deficiências e avarias num veículo novo, ao longo de mais de um ano, com mais de uma dezena de reparações mal sucedidas, com a privação da viatura que utilizava para se fazer transportar e à família, com utilização de outros transportes, com receios permanentes quanto à segurança aquando do uso da mesma, tudo com prejuízo para a sua tranquilidade psíquica, perdas de tempo e de descanso ou lazer, consubstancia um inegável prejuízo da chamada 'qualidade de vida' que, nas actuais condições de organização social, não lhe era exigível que suportasse, pelo que é de concluir pela ressarcibilidade desses danos de natureza não patrimonial, mostrando-se equitativamente adequado fixar a respectiva indemnização em 2.500 Euros.”(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2004, disponível em
https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=18068&codarea=1)
XLIII. Por tudo o que foi exposto e dado como provado, deve a indemnização fixada na sentença pelo Tribunal a quo ser alterada para um valor não inferior a €2.500,00, entendendo-se ser adequado um montante de €7.500,00 para compensar a Apelante pelos danos que sofreu e continua a sofrer e penalizar a Apelada pela sua conduta ilegal.
F. DOS DANOS PATRIMONIAIS
XLIV. A Apelante peticionou uma indemnização de €61,50 a título de danos patrimoniais por ter sido obrigada a despender esta quantia para tomar conhecimento de todos os defeitos que a viatura tinha, tendo o Tribunal a quo entendido que a Apelante efectuou esse diagnóstico de livre e espontânea vontade e que o montante em causa não poderá ser imputado à Apelada.
XLV. Ora, o consumidor tem direito a ser indemnizado pelos danos patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, nos termos do art.º 12.º da L. 24/96, pelo que, sendo certo que todos os custos com a reparação dos defeitos correm por conta do vendedor (aqui se incluindo, naturalmente, o custo com o diagnóstico/orçamento), a Apelante terá direito a ser indemnizada pelos €61,50 (acrescidos de juros de mora desde 07.06.2019, data em que a Apelada foi informada deste custo, facto provado 9.) pois encontram-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil: a recusa ilícita e culposa da Apelante (culpa que se presume por estarmos no âmbito de um contrato) em proceder ao diagnóstico deu origem à necessidade (nexo causal) de a Apelante o efectuar a suas expensas, sob pena de poder ter um acidente por desconhecer a natureza dos defeitos que já tinha denunciado à Apelada em novembro de 2018.
XLVI. Pelo exposto, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma que condene a Apelada a pagar à Apelante, a título de indemnização por danos patrimoniais, os €61,50 que esta despendeu com o diagnóstico/orçamento que realizou na Bosch Car Service.»
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Posto isto, haverá que considerar primeiramente o peticionado na acção pela Autora e o vertido em sede de recurso, apreciando a seguinte:
Questão prévia: Dos pedidos de indemnização pela privação do uso e de resolução do contrato de crédito celebrado com uma entidade financeira
É insofismável que nos termos do art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”, pelo que as questões a conhecer mostram estar balizadas pelos limites que resultam da causa de pedir e das excepções deduzidas, formando o seu conjunto o objecto do litigio ou do processo , e o qual é integrado pelo pedido e pela causa de pedir - cfr. art.ºs 3º, nº 1, e 5º, nº 1, do Código de Processo Civil. Logo, tal como aludia Castro Mendes (in Direito Processual Civil- Vol II, pág. 11) a “causa de pedir é aposta pela lei ao objecto do processo, como elemento delimitador deste, ao lado do pedido. Objecto próximo do processo será então o pedido, delimitado em si e por certa causa de pedir.”
As partes devem deduzir as suas pretensões correlacionando-as com a alegação dos factos que integram a causa de pedir ou que sirvam de fundamento a eventuais excepções, importando ainda ter presente que nos termos do art.º 581º nº4, do CPC, a causa de pedir é o facto jurídico no qual deriva a pretensão pela parte deduzida.
A causa de pedir é, assim, o conjunto dos factos que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido pela parte, e que a esta última incumbe alegar e delimitar (Lebre de Freitas in “A acção declarativa”, 2017, 4.ª ed., pág. 50). Acresce que ainda que o juiz não esteja sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. art.º 5 º, nº 3, do CPC), tal liberdade terá sempre por objecto quer os factos essenciais alegados pelas partes, mas essencialmente nos pedidos formulados, sustentados por tais factos.
Face ao exposto importa assim, aferir do objecto do recurso, tendo por base o pedido formulado pela Autora na acção e o “pedido” ou pretensão recursória final expressa pela recorrente no final das suas alegações e cujas pretensões apresenta junto deste Tribunal de recurso.
No âmbito da sua petição inicial a recorrente alegou nos art.ºs 29º e ss. que:
29.º Em resultado das anomalias da referida viatura e da impossibilidade de poder circular em segurança com o referido veículo, a Autora sente-se insatisfeita e desgostosa, o que lhe causa igualmente graves transtornos.
30.º Sente-se ainda revoltada pelo facto dos Réus se manterem em silêncio após a venda do veículo, não se dignando sequer atender aos vários pedidos da Autora, nem sequer proceder à reparação dos defeitos apresentados.
31.º Os Réus cumpriram defeituosamente o contrato de compra e venda em causa, vendendo à Autora um veículo que cedo começou a apresentar defeitos, que impedem a sua circulação em segurança.
32.º Nesta medida deverão os Réus serem responsabilizados pelos apontados danos morais causados à Autora, os quais, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (cfr. art.ºs 496º, n.º 1 do Código Civil e artigo 12º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho).
33.º Para além desses danos, a Autora viu-se privada do uso do veículo para os fins a que tinha sido adquirido, ficando assim privada do seu uso nas suas deslocações habituais (tanto a título profissional como pessoal), necessitando de pedir ajuda a familiares e companheiro para se deslocar ou para acompanhar o seu filho, nunca tendo obtido por parte dos Réus ajuda nem viatura de substituição.
34.º Tais danos de privação de uso de veículo também se encontram tutelados pelo direito e são igualmente indemnizáveis (AC. RP. 10.02.2000, BMJ, 494, p.396), sendo danos de natureza não patrimonial, previstos e regulados nos artigos 483.º e 566.º do Código Civil.
35.º Sendo que, os Réus deverão indemnizar a Autora por tais danos não patrimoniais.
36.º Sendo assim condenados, a título de danos não patrimoniais, a pagar à Autora um valor nunca inferior a €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).”.
A par desta alegação já a Autora havia alegado que pretendia que o contrato de compra e venda celebrado com a ré fosse declarado resolvido e que a ré fosse condenada a restituir à A. o valor da compra que alude ser de 19.185,60€, acrescendo a esse valor o peticionado a título de danos não patrimoniais que computa em 2.500€ e ainda o valor despendido no diagnóstico das anomalias da viatura, ou seja 61,50€, sendo que a soma de tais parcelas determina o valor de 21.747,10€.
Concretizou a Autora tal pedido (principal, sem cuidar por ora dos subsidiários reportados à obrigação de reparação e de redução do preço) nos seguintes termos: “a) Nos termos do artigo 4.º do DL n.º 67/2003 de 8 de Abril o contrato de compra e venda celebrado entre A. e RR. ser resolvido, condenando os RR. ao pagamento do valor de €21.747,10 (vinte e um mil setecentos e quarenta e sete euros e dez cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.”.
Neste recurso na sua pretensão última conclui da seguinte forma: que a sentença seja revogada e substituída por uma que (i) adite/altere os factos provados, (ii) declare resolvido o contrato de compra e venda da viatura Kia Carens com a matrícula … e condene a Apelada a pagar à Apelante €19.185,60 referentes ao valor total do empréstimo (ou atribua um dos pedidos subsidiários), (iii) declare resolvido o contrato de crédito coligado, (iv) atribua uma indemnização por privação do uso da viatura, de montante a apurar em sede de liquidação de sentença, (v) atribua uma indemnização de €7.500,00 a título de danos não patrimoniais, e (vi) atribua uma indemnização de €67,5 a título de danos patrimoniais.
Manifestamente não há coincidência entre o pedido formulado na acção e no âmbito do recurso, principalmente nos identificados pontos (iii) e (iv), nem sequer quanto ao valor dos danos não patrimoniais cujo valor a atender não será nunca o ora referido no ponto (v) – 7.500€, mas sim o peticionado – 2.500€. A par desta questão não pode ainda pretender que seja apreciado nesta sede que com a resolução do contrato celebrado com a ré, seja esta condenada a pagar à Apelante €19.185,60 referentes ao valor total do empréstimo, pois não desconhece que tal contrato não foi celebrado com a ré, nem tal pedido foi formulado na acção.
É certo que a confusão advém igualmente da sentença recorrida que ao arrepio das mais elementares regras de direito, a que não será alheio a circunstância de no relatório não aludir ao peticionado pela Autora e, logo, não atender ao mesmo, veio a decidir em termos de dispositivo o seguinte: a) Condenar a Ré a pagar à Autora a importância de 2.213,15€, a título de compensação pela redução do preço pela mesma pago, aquando da aquisição do veículo; b) Condenar a Ré ao pagamento à Autora da importância de €1.000,00 a título de danos não patrimoniais; c) Absolver a Ré de indemnização da Autora a título de danos da privação do uso de veículo; d) Absolver a Ré do pagamento à Autora do valor de 61.50€ a título de danos patrimoniais; e) Julgar improcedente o pedido de resolução do contrato de crédito coligado celebrado entre a Autora e a Instituição Financeira de Crédito 321 Crédito Instituição Financeira de Crédito, S.A; f) Absolver a Autora do pedido de litigância de má fé; g) Absolver a Ré dos demais pedidos formulados pela Autora.(sublinhados nossos).
É por demais evidente que a A. não formulou os pedidos identificados em c) e e), nem se vislumbra a referência no dispositivo da sentença contida em g), por inexistência de outros pedidos, apenas subsidiários cujo conhecimento ficou prejudicado, mas tal questão não se coloca em causa neste recurso, mas já será de conhecimento neste recurso aferir do objecto do mesmo.
Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
No caso dos autos nenhuma pretensão foi feita pela Autora no âmbito da acção que suporte tais pedidos, apenas formulados em sede de recurso, como bem defende Miguel Teixeira de Sousa ( in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, lex, pág. 395 e ss.) sob o tema “recurso de reponderação e de reexame”, “no direito português, os recurso ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre a matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre os pedidos que nela não foram formulados(…), pode afirmar-se que os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido formulado na 1ª instância, com a matéria de facto nela alegada”.
Destarte, não pode a recorrente pretender que o Tribunal de recurso aprecie pedidos que inicialmente não formulou. Aliás, nem sequer existem factos que os suportem em concreto, pois não há que olvidar que o pedido da A. assenta na resolução do contrato de compra e venda contra a ré vendedora, única parte no processo, reportar-se-á ao valor da venda e não ao mutuado, desconhecendo-se as parcelas deste, por ausência de factos concretos alegados pela Autora. Acresce que apenas resulta provado que a A. para a aquisição do veículo contratou com uma instituição financeira um empréstimo no valor total de 19.185,60€ (ponto 12. Dos factos provados), mas nada resulta ou foi alegado que tal contrato de crédito automóvel operou por intermédio da Ré ou factos que nos permitam apreciar a coligação de contratos, frise-se, mais uma vez apenas alegado pela Autora neste recurso.
Quanto à alegada privação do uso, que a A. pela primeira vez neste recurso consubstancia como sendo uma componente indemnizatória que lhe é devida como dano patrimonial. Além do mais, ficciona a recorrente que tal lhe é devido desde o dia 1 de dezembro de 2020 até à data em que se efective a resolução do contrato de compra e venda, concluindo que deve ser arbitrado um valor com recurso à equidade, remetendo para incidente de liquidação para efeitos de apuramento do valor de aluguer de uma viatura com características semelhantes. Aliás, é certo que na sua petição inicial e como suporte dos alegados danos morais veio a A. alegar que em data posterior a 19 de novembro de 2018, com receio pela sua vida e da do seu filho menor que levava diariamente à escola, tenha deixado de utilizar o veículo automóvel, ficando assim privada do seu uso, mas tal facto resultou como não provado em e) cuja impugnação concreta foi feita, é certo, mas pretendendo uma redacção que não tem reflexo no alegado na petição inicial. Porém, mesmo que se considere que a recorrente tenha manifestado a intenção de alterar a resposta negativa a tal ponto, sempre faltaria o pedido (inicial), elemento essencial para que este tribunal pudesse conhecer do mesmo em sede de recurso. Não compete a este tribunal conhecer questões novas, pois o ius novorum está arredado das actuais normas adjectivas, pelo que o Tribunal só pode ser chamado a apreciar os pedidos formulados pela Autora.
Logo, não se atenderão às conclusões reportadas a tais pedidos, a saber, conclusões XXIV a XXX.(sob o tema “da resolução do contrato de crédito coligado”), bem como as conclusões XXXI. a XXXVI.( sob o tema “privação do uso”, onde a par da ausência de pedido se alegam factos que nem sequer foram alegados na petição inicial nomeadamente os dias em que alegadamente esteve privada do veículo).
Posto isto, no âmbito do recurso as questões a decidir são as seguintes:
- Se é de alterar os factos a considerar, alterando o facto 4, 6 e 10 e aditando factos nos termos pretendidos pela recorrente Autora;
- Se deve ser de considerada a resolução do contrato de compra e venda, sem redução do valor a devolver por inexistência de pedido da ré;
- Caso se opte pelo afastamento da resolução, saber se é de considerar a condenação da ré a reparar o veículo de todos os defeitos existentes;
- Caso não seja declarada a resolução, nem se conclua pela reparação, se no valor devido a título de redução do preço, devem ser considerados todos os defeitos do veículo à data actual e todos os encontrados posteriormente cujo valor deverá ser apurado em sede de liquidação de sentença;
- Se é de considerar que deverá a Autora ser indemnizada a título de danos morais pelo valor total de 7.500€ e não pelo valor peticionado – 2.500€, ou em que a ré foi condenada – 1.000€;
- Se deve proceder a condenação da ré pelos danos patrimoniais, no valor de €61,50 que a A. despendeu com o diagnóstico/orçamento que realizou junto de terceiros.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
 1. A Ré, H…, Comércio de Automóveis, Unipessoal, Lda, Sociedade Unipessoal por Quotas, vendeu à Autora o veículo automóvel de marca KIA, modelo CARENS, com matrícula…, pelo valor de €12.425,00, o qual foi entregue à Autora no dia 23 de Novembro de 2017;
2. Este começou a apresentar uma série de problemas, nomeadamente: - A luz do motor acendia-se e apagava-se; - Em andamento, provocava solavancos; - Em tempo chuvoso, a Autora ficava sem direção assistida; - Por diversas vezes, o veículo automóvel desligou-se em andamento.
3. A Autora enviou duas cartas registadas com a/r, comunicando os problemas, no dia 19 de novembro de 2018, uma para morada onde se situa o Stand e outra para a sede social registada da sociedade, não tendo estas sido levantadas pela Ré;
4. No dia 22 de abril de 2019, a Autora deslocou-se a uma oficina Oficial Bosch Car Service onde efectuou um diagnóstico completo à carrinha;
5. Tendo nesse dia que despender um valor de € 61,50 por tal diagnóstico;
6. Aquando do diagnóstico, e em virtude dos problemas supra referidos foi entendido que o carro carecia das seguintes intervenções: 1- kit embraiagem; 2- volante bimassas; 3- rolamento de embraiagem; 4- fita de airbag; 5- bomba de depósito de gasóleo; 6- discos travão dianteiros; 7- pastilhas travão dianteiros.
7. No dia 05-06-2019 foi-lhe apresentado um orçamento no valor de €2.757,64;
8. Dos factos 6) e 7) resulta a necessidade de reparação de componentes de elevado desgaste;
9. Esse orçamento foi enviado à Ré no dia 7 de junho de 2019, solicitando à mesma a reparação do veículo automóvel, mas esta nada fez;
10. Desde o dia 27 de outubro de 2019, a carrinha apresenta: - O ralenti muito instável, com o motor frio e quente; - O veículo automóvel quando parado, começa a tremer; - Perde toda a sua força; - A luz do airbag encontra-se sempre acesa.
11. Foi enviada à Ré carta registada com a/r no dia 6 de novembro, mas esta não respondeu;
12. Para aquisição do veículo automóvel, a Autora contratou com a Instituição Financeira de Crédito 321 Crédito- Instituição Financeira de Crédito, S.A, sita na Av. ..., Lisboa, um empréstimo no total de €19.185,60;
13. A Autora sente-se insatisfeita, desgostosa e revoltada;
14. A Autora necessitou de pedir ajuda a terceiros para se deslocar ou acompanhar o seu filho.
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No Tribunal recorrido foram considerados como não provados os seguintes factos:
a. Que o veículo tenha sido vendido pelo valor de €8.400,00, por a Autora ter solicitado desconto de 3.600,00€ à Ré;
b. Que a Autora soubesse que os problemas que careciam de reparação eram orçamentados em 3.600,00€, assumindo esta as reparações necessárias à carrinha;
c. Que a Autora se tivesse comprometido a reparar os problemas do veículo;
d. A Autora, no dia 2 de novembro de 2018, bem como no dia 9 de novembro de 2019, enviou e-mails à Ré a reportar a situação, solicitando a reparação dos problemas;
e. Que a Autora, em data posterior a 19 de novembro de 2018, com receio pela sua vida e da do seu filho menor que levava diariamente à escola, tenha deixado de utilizar o veículo automóvel, ficando assim privada do seu uso.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
A impugnação da matéria de facto em sede de recurso pressupõe o que expõe o art.º 640.º do C.P.C., pelo que: «(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b)  Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
Acresce que se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art.º 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Quanto à alterabilidade em concreto no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, (in ob. cit. pág. 347), “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
 Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal. Todavia, além da problemática referida quanto às regras que permitem a alteração dos factos em sede de recurso, importará ainda aludir que mais uma vez a recorrente não pretende apenas a eventual alteração de factos já alegados, mas sim factos novos, apenas trazidos em sede de recurso, sem que sequer alegue que se socorreu da possibilidade de os aditar no âmbito da instrução da causa (cf. art.º 5º nº 2 b) do Código de Processo Civil), limitando-se a pretender que sejam tidos em conta nesta instância, sem nunca ter evidenciado nos autos tal intenção.
Importante ainda é considerar que a alteração pretendida tenha relevância na alteração para o mérito da demanda.
Com efeito, a impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é susceptível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos actos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de actos inúteis no processo ( neste sentido Acórdão do STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira), Acórdão da Relação de Guimarães, de 15/12/2016 (Maria João Matos) e desta Relação de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco), todos in www.dgsi.pt). Pois, nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Como bem se conclui no Ac. do STJ aludido: “Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”
Logo, não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (art.ºs 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).
Principiemos pelos aditamentos, tendo desde logo como pressuposto que estes apenas serão de apreciar se, por um lado, a matéria factual houver sido alegada pela Autora, por outro lado, tiver sido formulado pedido que tenha relevância para tal aditamento factual.
A recorrente entende que devem ser aditados os seguintes pontos:
(i) “Em 2 de novembro de 2018 (para o endereço …), 15 de abril de 2019 (para o endereço …), 6 de novembro de 2019 (para o endereço …) e 9 de novembro de 2019 (endereços …) a Apelante enviou emails à Apelada, que os recebeu, onde foram denunciados os vários defeitos da viatura Kia Karens, tendo a Apelante solicitado em todos os emails que a Apelada indicasse uma oficina onde a carrinha pudesse ser colocada para serem avaliados/diagnosticados os defeitos existentes e os mesmos serem posteriormente corrigidos.”
(ii) “Em outubro de 2018 surgiram alguns defeitos intermitentes com a carrinha Kia Karens, nomeadamente luz de airbag acesa e falta de força do motor, sendo que foi no dia 31 de outubro de 2018 que a Apelante notou que existiam defeitos sérios com a carrinha, os quais comunicou à Apelada pela primeira vez, por email, no dia 2 de novembro de 2018, e posteriormente por carta registada, no dia 19 de novembro de 2018.”
(iii) “Entre outubro de 2018, data em que surgiram os primeiros defeitos na viatura, e 22 de abril de 2019, data em que a Apelante efectuou um diagnóstico completo à viatura na Bosch Car Service, a Apelante sofreu vários transtornos e receios ao conduzir a viatura que apresentava defeitos que não compreendia na totalidade.
Após 22 de abril de 2019, data em que lhe foi explicado pelo chefe de oficina da Bosch Car Service a real extensão e perigo dos defeitos da viatura, até novembro de 2020, data em que faleceu o avô da Apelante, a Apelante apenas utilizou a viatura para transportar o seu avô com cancro a consultas, exames e tratamentos de quimioterapia, por não ter uma alternativa para tal transporte, período de ano e meio em que sofreu um elevado stress, angústia e medo de cada vez que conduziu a viatura”.
(“Após o falecimento do avô da Apelante, em novembro de 2020, a viatura automóvel não mais foi utilizada por esta, com exceção de 44 km para efeitos de levar a viatura à IPO e para levar a viatura para a nova residência da Apelada, o que lhe causou várias angústias, stress e tristeza pois ficou impossibilitada de fazer um uso normal da viatura, a qual lhe fazia muita falta”.
(iv) “Após o falecimento do avô da Apelante, em novembro de 2020, a viatura automóvel não mais foi utilizada por esta, com exceção de 44 km para efeitos de levar a viatura à IPO e para levar a viatura para a nova residência da Apelada, o que lhe causou várias angústias, stress e tristeza pois ficou impossibilitada de fazer um uso normal da viatura, a qual lhe fazia muita falta”.
A preocupação alegatória de tais factos por banda da autora só ocorre nesta sede, bastando para tanto confrontar os aditamentos pretendidos com o que a Autora alegou na sua petição inicial, momento próprio e único para tal efeito – cf. art.º 552º nº 1 alínea d) e 5º ambos do Código de Processo Civil.
Ora, no que concerne ao aditamento pretendido em (i) já decorre dos factos provados e de acordo com a alegação da Autora os defeitos no veículo, a data e forma como a mesma interpelou a ré – cf. pontos 2., 3., 9. e 11. dos factos provados. Acresce que ainda que a Autora tenha alegado o envio de email a 2/11/2018, esta alegação em nada coincide com o aditamento ora pretendido, dizendo a A. no seu art.º 3º da petição inicial que:”Assim que se apercebeu que o veículo automóvel acusava problemas técnicos, não reunindo condições para apresentar uma condução segura e não estando apto a circular, a Autora, no dia 2 de Novembro de 2018, enviou um e-mail aos Réus a reportar a situação, solicitando a reparação do mesmo. (conforme documento n.º 2 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido).”. Nada mais resulta alegado quanto ao envio de outros emails, mas ainda que tal tivesse resultado alegado, em nada relevaria para a decisão dos autos, mormente para a questão da caducidade do direito da Autora, pois esta questão não foi julgada procedente, sendo irrelevante a data antecipatória de 2/11/2018, pois resultou provada a data de 19/11/2018 no ponto 3. dos factos provados. No mais, inexiste alegação concreta passível de resposta positiva ou negativa pelo Tribunal que procedeu ao julgamento e, logo, a instrução da causa a qual tem por base os factos alegados e não outros hipotéticos, pois mesmo que pudessem resultar da instrução da causa não formulou a Autora intenção de se aproveitar destes, por forma a ser cumprido o contraditório nos termos e para os efeitos do art.º 5º d) do CPC. Pelo que cotejada a petição inicial não resultam alegados os factos cujo aditamento pretende.
É ainda por demais evidente que nenhum dos factos relativamente aos outros pontos resultaram igualmente alegados, sendo que encerram ainda nalguns pontos conclusões e não factos, a saber, “existiam defeitos sérios” e “sofreu vários transtornos e receios ao conduzir a viatura que apresentava defeitos que não compreendia na totalidade”. Pela primeira vez a Aurora vem indicar um facto concreto relativamente ao uso que alegadamente fazia da viatura aliado à doença de um familiar próximo e o seu não uso ligado ao falecimento deste, o que não resulta dos autos. Por outro lado, como deixámos referido a A. não formulou qualquer pedido indemnizatório específico relativamente à alegada privação do uso, nem data concreta em que tal ocorreu, pelo que está arredado do conhecimento por parte deste Tribunal de recurso.
Donde, improcede na integra o pretendido aditamento dos factos em causa.
Quanto à alteração dos factos dados como provados, antecipando, não se alcança a relevância pretendida quanto à alteração ao ponto 4., pois o diagnóstico geral ou completo são equivalentes, sendo irrelevante em termos de subsunção ao direito um ou outro, pelo que improcede tal alteração.
No que diz respeito ao ponto 10., também não lhe assiste razão, pois os problemas elencados no ponto 6. são relativos ao diagnóstico efectuado a 22/04/2022, pelo que os demais problemas elencados em 10. já são relativos a 27/10/2019, donde, manifestamente estes últimos são posteriores e não foram percepcionados anteriormente. Pelo que tal conclusão advém dos próprios factos sem necessidade de se concluir da forma ora defendida, por ser redundante.
Também no que concerne ao ponto 6. olvida a recorrente o que alegou em concreto, pois tal ponto tem na sua génese o alegado no art.º 11º da petição inicial do seguinte teor: “Para que o veículo automóvel reunisse as condições necessárias para uma
condução sem qualquer perigo, deveria ser necessário o arranjo de, entre outros (cfr. doc 4):
1- kit embraiagem;
2- volante bimassas;
3- rolamento de embraiagem;
4- fita de airbag;
5- bomba de depósito de gasolina;
6- discos travão dianteiros;
7- pastilhas travão dianteiros.
O ponto 6. em causa reproduz na integra tais anomalias e não outras que não resultam enunciadas pela Aurora, sendo irrelevante a menção de “entre outras” quando desacompanhada de alegação. Aliás, em momento algum a Autora alega a avaria do auto-rádio ou outro, além do previsto especificamente no art.º 11º e elencados da mesma forma na sentença recorrida. É certo que o valor do orçamento dado como provado em 7., no confronto com o documento que o sustenta contem todos os itens cujo aditamento ora se pretende e sobre os quais o juiz recorrido, erradamente, faz menção, sem que estes resultem dos factos.  Com efeito, o juiz recorrido deduz determinados valores relativos aos problemas encontrados no veículo, mas sem cuidar que tal dedução teria de advir da resposta ao ponto 7. e não na fundamentação dos factos a subsumir ao direito. Logo, o que resulta é que para os problemas elencados no ponto 6. foi apresentado um orçamento no valor indicado no ponto 7., sem que nenhuma das partes ponha em causa tal facto, não sendo assim, passível de alteração, mas também não pode ser deduzido qualquer valor dado que não se encontra plasmado em qualquer factualidade a ter em conta.
Face a tudo o referido improcede na íntegra a alteração e aditamentos dos factos nos termos pretendidos pela recorrente, sendo de apreciar o direito face aos factos que resultam demonstrados.
*
III. O Direito:
A questão essencial a decidir, como deixamos referido supra, prende-se em primeiro lugar, com o pedido formulado pela Autora no âmbito da acção ligado à possibilidade de resolução do contrato de compra e venda, a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, pois tudo o mais está afastado deste recurso, por ausência de pedido. Porém, afastado que seja a possibilidade de resolução importará ainda aferir dos pedidos subsidiários a atender pela ordem em que foram formulados na acção, a saber: a condenação da ré a proceder à reparação de todos os defeitos apresentados e entregar o veículo automóvel em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, ou, caso assim não se entenda, a redução do preço  do veículo, compensando a Autora no montante necessário para proceder à reparação dos defeitos alegados para que o veículo fique em condições de normal funcionamento e apto a circular em segurança.
Na análise da natureza do negócio jurídico nada nos permite afastar-nos do narrado na decisão recorrida quando conclui, quanto à configuração do negócio jurídico em apreço, como sendo um contrato de compra e venda, acertando-se ainda no regime jurídico aplicável ao cumprimento defeituoso. Pois após elencar as normas aplicáveis no âmbito do Código Civil acaba por assumir que face à factualidade apurada, importa invocar o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril, relativo à venda de bens de consumo e garantias a ela relativas, que veio transpor para o ordenamento interno a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio.
Assim, expôs-se na decisão recorrida que: «Efectivamente, este regime, de aplicação especial face ao previsto no Código Civil, prevê a sua aplicabilidade quando em causa esteja um contrato de compra e venda configurável como uma relação de consumo, ou seja, celebrado entre profissionais e consumidores (cfr. artigo 1.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei). Para o que nos ocupa, assume-se como consumidor todo aquele «a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios (...)». Mais se apela, por relevante para o caso em apreço, que se constitui como vendedor «qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional». Face à resenha legal que precede, vê-se esclarecida a aplicação do regime especial relativo à venda de bens de consumo e garantias a ela respeitantes.   Daqui resulta para o vendedor, numa clara lógica de tutela do consumidor, um dever de entrega ao consumidor de bem que seja conforme com o contrato entre as partes celebrado. Ao que acresce presunção de não conformidade com o contrato na hipótese de os bens, nomeadamente, «Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem», cfr. artigo 2.º, n.º 2, alínea d), do referido regime.
Por outro lado, e com relevo acrescido, decorre do artigo 3.º, n.º 2, do referido diploma que «As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data (...)».
Tal presunção de não conformidade surge no contexto de uma responsabilidade objectiva do vendedor. Nestes termos, provada a falta de conformidade do bem objeto de venda, afigura-se prescindível a formulação de qualquer juízo de censurabilidade do vendedor ou o apuramento de qualquer nexo de imputação. Pelo contrário, desde que revelada a existência de desconformidade com o contrato, impende sobre o vendedor a obrigação de responder perante o consumidor, cfr. artigo 3.º, n.º 1. Só assim não ocorrerá, esclareça-se, quando o vendedor logre demonstrar que a desconformidade em causa é «incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade» ou, por outro lado, se «(...) no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor», artigos 3.º, n.º 2, parte final e 2.º, nº 3, respetivamente.».
Com efeito, visando responder às distorções que o regime civil tradicional encerra em casos de cumprimento defeituoso, foi criada a Lei n.º 24/96 de 31 de Julho (LDC), alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas), cuja primeira alteração decorre do Decreto-Lei n.º 84/2008 de 21 de Maio que reconhece ao consumidor um direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo, direito esse que é objecto de uma garantia contratual injuntivamente imposta, no âmbito da qual “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”, assegurando, inequivocamente, a protecção dos interesses dos consumidores nos contratos de transmissão de bens de consumo.
Face a tal regime as normas contidas na Lei de Defesa dos Consumidores constituem normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil, derrogando estas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação, que é o da relação de consumo, e como lei especial, deverá prevalecer o seu regime, a menos que a disciplina da venda de coisa defeituosa do Código Civil, se revele mais favorável para o comprador/consumidor.
Com o desiderato de dar conteúdo concreto à enunciada norma programática atinente ao direito dos consumidores e à qualidade dos bens e serviços consumidos, bem como, à reparação dos danos, tal diploma nos art.ºs 4º e 16º veio conhecer ao consumidor um direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo, direito esse que é objecto de uma garantia contratual injuntivamente imposta, no âmbito da qual “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”, assegurando, inequivocamente, a protecção dos interesses dos consumidores nos contratos de transmissão de bens de consumo.
Logo, tal regime consagra uma manifesta protecção do consumidor, desde logo, ao considerar um critério objectivo - a coisa vendida para ser isenta de “defeito” deve ter aptidão, idoneidade, e as qualidades intrínsecas hábeis a satisfazer os fins e os efeitos a que se destinam, segundo as normas legalmente estabelecidas - e, também, um critério subjectivo, atribuindo relevância às expectativas legítimas do consumidor.
Outrossim a responsabilidade do vendedor, no regime da venda de bem de consumo, aproxima-se de uma responsabilidade objectiva, no âmbito da qual, perante o consumidor, será irrelevante a responsabilidade que o vendedor tenha tido na desconformidade.
Donde, é manifesto que resulta da factualidade dada como provada que o veículo automóvel adquirido pela Autora à ré possuía defeitos elencados em dois momentos distintos que resultam provados em 2. e 10. dos factos provados, o que não permitia que a Autora pudesse usufruir em pleno do veículo adquirido.
Logo, acertada se revela a decisão quando na análise dos itens i) se as faltas de conformidade se revelaram em tempo de gozar da presunção previsto no artigo 3.º, n.º 2, do diploma em apreço, ii) se se encontrava o veículo abrangido por garantia e se iii) foram os direitos exercidos dentro de prazo, aqui de dois meses (cfr. artigo 5.º-A, n.º 2), conclui quanto aos mesmos positivamente, quer no tocante aos prazos, quer ainda quanto à prova das faltas de conformidade susceptíveis de retroagir à data da entrega da coisa móvel corpórea, presumindo-se a responsabilidade do vendedor por entrega de bens desconformes com o contrato.
Acresce que seguimos o entendimento que «estando em causa a compra e venda de veículo usado, importa atentar na natureza dos defeitos assentes. O nosso ordenamento jurídico não prevê distinção entre a compra e venda de veículos novos ou usado. A tutela poderá assumir contornos distintos se os problemas identificados decorrerem da natural e prévia utilização do veículo, do conhecimento da compradora que adquire veículo em estado de usado. Assim ocorre, conforme decorre do facto 8, com a afectação dos elementos de elevado desgaste, que não poderá assumir-se como desconformidade, na medida em que resultem da normal utilização do veículo. Desde logo, é isto que ocorre quanto a defeitos como os relativos à embraiagem do automóvel ou os discos e pastilhas de travão. Porém, não logrou demonstrar-se que se devessem os vícios, em exclusivo, à natureza de usado do veículo. Ademais, este estado de usado, e a venda de veículos usados, não se constitui como subterfúgio para venda de veículos de qualidade diminuída, apresentando vícios desconhecidos ao comprador. Ora, configurando os defeitos verdadeiros vícios, e não particularidades decorrentes da normal utilização do veículo, razões não há para afastar o regime da tutela do consumidor. E isto pode dizer-se quando à necessidade de reparação da fita de airbag, da bomba de depósito de gasóleo, ou quanto aos sintomas como ralenti instável, correspondente a perturbações no motor do automóvel, veículo a tremer quando parado, a perda de força do mesmo ou a sinalização do airbag.».
No entanto, divergimos desde logo de tal análise quando conclui que o ponto 8. dos factos provados permite excluir algumas das intervenções no âmbito dos problemas encontrados no veículo. Com efeito, o foco não se prende com o que se exige para a reparação dos problemas encontrados, mas sim que problemas existem que determinam que possa ser enquadrado o cumprimento defeituoso do contrato, e este é manifesto, pelo que a questão coloca-se sim em saber que meios tem a Autora ao seu dispor, ou que “remédios” a lei faculta ao consumidor, mas sem que se possa retirar dos factos provados que alguns dos danos advêm do desgaste decorrente do uso do veículo, pois nada resulta discriminado quanto ao ponto 6. , nem é feita qualquer correlação entre o valor contido no ponto 7. e tais eventuais “componentes de desgaste rápido” por forma a deduzir determinados valores do orçamento dado à A. após o diagnóstico feito ao veículo, verificados que foram, em determinado momento os problemas descritos no ponto 2., e num segundo momento, os problemas enunciados no ponto 10.
Assim, assiste à A., conforme dita o artigo 4.º, n.º 1 do diploma, o direito à reposição da conformidade sem encargos, por meio de reparação ou de substituição do bem, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
Conforme dispõe o n.º 5 do preceito, o consumidor pode exercer qualquer dos direitos ali previstos, a menos que tal se manifeste impossível ou constitua abuso de direito …”o diploma eliminou por completo a existência de uma hierarquia entre os direitos ou “remédios” legais, cabendo apenas observar caso a caso se o recurso a um destes direitos não é exercido de forma abusiva pelo consumidor (por exemplo, se exige a imediata resolução do contrato quando a conformidade poderia ser reposta por meio de uma reparação rápida e simples)” ( cf. Ac. da Relação de Coimbra de 28/2/2023, proc. n.º 349/21.9T8SRT.C1, in www.dgsi.pt).
Refere João Calvão da Silva que tal acrescida proteção dimana ainda do facto de, versus o que sucede na legislação nacional, os direitos permitidos ao consumidor em caso de incumprimento do contrato, poderem, por via de regra - salvo os casos de intolerável desequilíbrio na composição dos direitos e interesses em presença e, bem assim, os casos  de actuação com  má fé, ou com  abuso de direito -  ser exercidos electivamente, não estando eles sujeitos a um  qualquer exercício sequencial decorrente de uma pré-determinada e fixa  hierarquização de tais direitos (in  “Vendas de Bens de Consumo”, 4ª edição, página 110 e ainda Ac. do STJ de 30.09.2010, endereço da net aludido).
Entende a recorrente que tendo a mesma no âmbito da acção optado pela resolução do contrato não poderia o tribunal recorrido ter afastado tal direito, concluindo que os vários defeitos foram denunciados dentro dos prazos legais e a Apelante estava no Direito de resolver o contrato dado que, ao longo de 2 anos, tentou que a Apelada reparasse os defeitos, sem sucesso, o que afasta o alegado abuso de direito.
Defende ainda que o instituto do abuso de direito serve apenas de válvula de segurança do sistema, não se podendo defender que um consumidor que num período de 2 anos tenta a reparação dos defeitos sem qualquer resposta por parte do vendedor actue em abuso de direito quando decide resolver o contrato.
Na citação de Jorge Morais Carvalho ( in “Manual de Direito do Consumo”, 7ª edição, 2020, pág. 327 e 328) alude que:“Refira-se ainda que, em regra, a não reposição do bem da conformidade do bem com o contrato por parte do vendedor, nomeadamente através de reparação (ou de substituição), afasta a qualificação como abusiva da escolha pelo consumidor de outro direito, por exemplo a resolução do contrato.
Agindo de má-fé, o vendedor não pode, neste caso, paralisar o exercício do direito pelo consumidor. Se o pretender fazer, estaremos perante uma situação de tu quoque.”
Sustenta a recorrente que o Tribunal recorrido ao não permitir que a mesma resolva o contrato de compra e venda transfere para esta, ilegitimamente, todos os riscos inerentes ao incumprimento da Apelada, nomeadamente a insuficiência do valor do orçamento realizado há 3 anos face aos preços actuais, a insuficiência do diagnóstico realizado pela Bosch para detectar todos os defeitos e o facto de terem surgido novos defeitos após o diagnóstico da Bosch, pelo que deverá a decisão de primeira instância ser revogada e substituída por outra que declare resolvido o contrato de compra e venda da viatura automóvel Kia Carens com a matrícula … e condene a Apelada a devolver à Apelante o valor total do empréstimo, €19.185,60.
Discorre de seguida sobre a circunstância de não devolver o veículo no estado em que o recebeu, finalizando por dizer que como a ré nada alude relativamente a uma eventual desvalorização tal não poderá paralisar o direito da Autora.
Por fim, entende que caso se conclua pela desproporcionalidade do exercício do direito à resolução do contrato de compra e venda da viatura, então deverá ser concedido o primeiro pedido subsidiário da Apelante: ser a Apelada condenada a proceder à reparação de todos os defeitos apresentados e entregar o veículo automóvel em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados.
Na decisão recorrida após a afirmação da responsabilidade objectiva do vendedor, bem como a ausência de direitos hierarquizados que advém do regime descrito para o consumidor, acaba por estabelecer na decisão um critério de razoabilidade, critério esse ausente do regime aplicável e que in casu não oferece sustentabilidade face à forma como decorreram os factos e o comportamento da ré.
Senão vejamos.
O Tribunal recorrido na opção que tomou quanto à redução do valor do negócio, solução que também se revela incompreensível face aos pedidos subsidiários formulados e a não sujeição a qualquer hierarquia no âmbito legal, aliás, situação que difere claramente do regime do contrato de compra e venda previsto no Código Civil, defende que: «tendo em conta que a viatura é reparável, não apresenta problemas inultrapassáveis e a autora circulou com a mesma durante quase dois anos após a compra, não se antolha com razoabilidade resolver o contrato de compra e venda, com as suas legais e gravosas consequências, crê-se como excessiva tal pretensão. Antes se afigurando mais razoável, como peticiona a autora, que seja reduzido o preço acordado, compensando-se a Autora no montante necessário para proceder à reparação dos defeitos provados para que o veículo fique em condições de normal funcionamento e apto a circular em segurança (2.213,15€ - do valor global do orçamento referido em 7, retirámos valores como do auto rádio e da escova limpa vidros que nos parecem marginais ao bom funcionamento do veículo).».
Ora, nem a opção última encontra justificação em termos factuais, nem se vislumbra porque motivo não se decidiu, afastada que foi a resolução, pelo menos pela reparação.
Na verdade, percorrida a matéria de facto decorre que a venda do veículo da ré à A. ocorreu em 23/11/2017, pelo preço de 12.425,00€, único que releva nomeadamente para efeitos de resolução, pois nem a entidade mutuante foi chamada à acção, nem foi formulado pedido relativamente  esse contrato, nem sequer se encontram alegados factos atinentes à existência de um contrato coligado nos termos relevantes para ser abrangido quanto à forma e sua cessação e efeitos desta, como deixámos referidos supra.
É certo que o veículo permaneceu na posse da A. desde a data da sua compra e até à presente data, sendo que a acção foi intentada cerca de dois anos após a compra, ou seja, em 2019.
Porém, logo cerca de um ano após a compra a A. denunciou os defeitos encontrados no veículo e ainda que não resulte concretamente a data em que estes surgiram, decorre do facto 2. que o veículo em causa “começou a apresentar uma série de problemas”, elencando-se os mesmos, mas sem carácter taxativo dado o advérbio “nomeadamente” contido em tal ponto. Porém, dúvidas não há que tais problemas foram denunciados à ré, não sendo pertinente em termos jurídicos a ausência de levantamento das cartas dirigidas á ré, quer para sede da mesma, quer para o estabelecimento onde decorreu a venda, face ao disposto no art.º 224º nº 2 do CC. Por outro lado, a Autora após ter aferido quer do diagnóstico dos problemas, quer o custo para os solucionar, remeteu à ré o orçamento apresentado e interpelou a ré a proceder à reparação do veículo, factos já ocorridos em 2019, resultando ainda que a ré nada fez.
Face a novos problemas surgidos em Outubro de 2019 e descritos no ponto 10. veio a Autora intentar a presente acção pedindo a resolução do contrato, direito que lhe assiste, não se encontrando na matéria e facto factos integradores do abuso de direito por parte da mesma.
Aliás, como bem evidencia a recorrente o eventual risco de desvalorização do bem deverá correr por conta da Apelada que deu origem à necessidade de resolver o contrato, pois como nos explica o Professor Jorge Morais Carvalho: “Outra questão consiste em saber se a utilização do bem pelo consumidor durante um determinado período pode levar a uma redução do valor a restituir pelo vendedor. A resolução tem efeito retroactivo, nos termos do art.º 434º-1 do CC, e a falta de conformidade presume-se existente no momento da entrega (art.º 3º do DL 67/2003), pelo que a regra é a de que o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela utilização do bem.”(in ob. cit. pág. 336.).
Igual entendimento resulta enunciado na decisão proferida neste Tribunal, datado de 09/06/2022 (Proc. n.º 301/18.1T8ORM, endereço da net citado) ao sumariar que: “I – Em consequência da resolução do contrato de venda de bens para consumo, a coisa volta a ser do vendedor e este fica constituído na obrigação de restituir o preço da compra. II – A eventual desvalorização da coisa, por via de um uso prudente e regular, não implica, só por si, a diminuição do preço a restituir (art.º 1269 do CC, por maioria de razão), tal como o vendedor não será obrigado a acrescentar juros de mora à restituição do preço enquanto não for interpelado para a restituição (art.º 1270/1 do CC). III – Nos casos em que a desvalorização da coisa, por via da utilização dela pelo comprador, for de ter em conta para diminuir o valor da restituição, também terão de ser tidos em conta, para aumentar aquele valor, por força do princípio da reciprocidade e da equivalência das prestações, os frutos que o preço produziu ou podia produzir até à sentença”.
No caso dos autos, nada resulta em termos factuais que nos permita concluir por um desequilíbrio decorrente dos efeitos da resolução, face ao binómio restituição do veículo com dois anos de uso (data da interposição da acção) e o valor a restituir, pois competia à ré alegar e provar um eventual uso não prudente do veículo por um lado, ou a sua desvalorização concreta a ser tida em conta na decisão, por outro.
Subscrevemos o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da decisão datada de 14/10/2021 (Proc. n. 2927/18.4T8VCT.G1.S1, Relator: Abrantes Geraldes) ao concluir que: “I. Declarada a resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel com fundamento em defeito que não foi reparado, em regra, o comprador tem o direito de receber a quantia correspondente ao preço que pagou, nos termos dos art.ºs 433º, 434º, nº 1, e 289º, nº 1, do CC. II. A ponderação do eventual enriquecimento do comprador pela utilização do veículo não dispensa o vendedor da alegação oportuna da matéria de facto pertinente, o que deve ser feito nos articulados, (…) IV. A eventual ponderação das utilidades extraídas pelo comprador na vigência do contrato de compra e venda que é objeto de resolução não pode deixar de ter em conta as circunstâncias em que ocorreu a utilização e o comportamento do vendedor antes e na pendência da acção”.
A ré nesta acção não logrou provar a matéria que alegou, mormente a venda do veículo já com os problemas enunciados, nem que tenha ficado assente entre as partes que competia à A. a sua reparação, alias, em tal argumentação resulta sim que a ré não desconhecia os defeitos.
Aqui chegados é manifesto que razão assiste à recorrente no que concerne à possibilidade de resolução do contrato de compra e venda celebrado com a ré, opção permitida pela Lei de defesa do consumidor, validamente operada com a citação da ré nestes autos (cf. art.º 436º do CC) e com a consequente devolução reciproca das prestações de cada uma das partes (cf. art.º 433º e 434º do CC), devendo a A. proceder à restituição do veículo e a ré ser condenada a  pagar à Autora o valor recebido pela venda do veículo no valor de 12.425,00€.
Procede, assim o recurso nesta parte, no que concerne à resolução do contrato de compra e venda, ainda que parcialmente quanto ás suas consequências, ficando prejudicados os demais pedidos subsidiários.
Mas que dizer dos alegados danos patrimoniais consubstanciados no valor pago pela A. para aferir do diagnóstico dos problemas do veículo vendido pela ré?
Tal contenda foi resolvida pelo Tribunal a quo desfavoravelmente à Autora, argumentando-se que «relativamente aos danos patrimoniais invocados, no valor de €61,50 (assentes nos termos do facto provado 8), entende-se inadequada a condenação da Ré no pagamento dos mesmos. Cumpre atender ao facto de que a Autora procedeu à realização de um diagnóstico sponte sua, sem que tanto seja imputável à Ré. Não se verificando os pressupostos da responsabilidade civil quanto ao valor despendido pela Autora, inexistindo nexo de causalidade que permita a imputação dos mesmos ao vendedor».
Também aqui divergimos de tal entendimento.
Com efeito, dispõe o artigo 12.º da Lei de Defesa do Consumidor que o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos. Pelo que o direito à indemnização, previsto no referido artigo 12.º, é independente e autónomo dos direitos previstos quer no Código Civil, quer no regime que tutela a venda de bens de consumo; não está assim dependente da sua verificação, cabendo inclusive ao consumidor a opção de exigir ou não uma indemnização, independentemente de recorrer aos restantes remédios protectivos.
Mas é insofismável que para que o comprador tenha direito à indemnização ali prevista, é necessário que se verifiquem provados todos os pressupostos do direito à indemnização, mormente a culpa do vendedor – culpa esta que será presumida, nos termos do artigo 799.º do Código Civil, por estar em causa responsabilidade civil contratual (v. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2022, no proc. 271/20.6T8MLD.P1, no sentido de assistir ao vendedor a possibilidade de ilidir a presunção de culpa prevista no artigo 799.º). 
Como bem se decidiu no Acórdão desta Relação, datado de 12/03/2009 (proc. nº 993/06.4TBCTX.L1-2): Em matéria de venda a consumidor o (re)vendedor final é ainda responsável pelos danos emergentes e lucros cessantes resultantes da entrega de coisa defeituosa a consumidor, salvo se provar que o cumprimento imperfeito da obrigação não procede de culpa sua. O referido direito do consumidor a ser indemnizado, nos termos gerais, pode ser exercido isoladamente ou em conjunto com qualquer dos outros “quatro direitos primários”.
Ora, o que está em causa é a responsabilidade contratual decorrente do negócio celebrado e o cumprimento defeituoso do mesmo nos termos sobreditos, pelo que face à presunção de culpa da ré, a qual não foi ilidida pela mesma, o valor gasto pela ré que perante os problemas surgidos no veículo elencados 2. e, na ausência de resposta da ré, teve necessidade de proceder ao seu diagnóstico para aferir das desconformidades da viatura, apenas podem ser imputados à ré. Pelo que assiste à Autora o direito a ser paga pela ré quanto à despesa em causa no valor de 61,50€.
Procede igualmente, desta forma, o recurso nesta parte.
Resta, por fim, aferir da justeza do valor fixado a titulo de danos morais, pois não estará em causa no âmbito do recurso a sua fixação ou não, matéria arredada do objecto do recurso, por este ter sido apresentado pela Autora que apenas pugna pela condenação da ré num valor muito superior, considerando que este deve ser no mínimo coincidente com o peticionado, ou seja 2.500€ mas que o valor adequado será no valor de 7.500€.
Em primeiro lugar, não pode a recorrente formular um pedido diferenciado do formulado na acção, ainda que na fixação deste esteja subjacente a equidade, pelo que só será de atender o valor indicado na petição inicial, ou seja, 2.500€. Em segundo lugar, não logrou a recorrente alterar os factos cujo aditamento pretendia, pois à semelhança do que ocorre com o valor do pedido também a Autora não havia alegado tais factos, os quais subjectivamente poderiam determinar uma diferente percepção dos danos não patrimoniais sofridos e, logo, a sua eventual quantificação concreta.
Outrossim apenas se logrou provar que existiram transtornos vivenciados pela Autora, que experienciou receio, insatisfação, desgosto e revolta. A estes se aditam os sentimentos e constrangimentos associados à limitação de utilização da viatura, tal como resultou dos factos 13. e 14. Logo, nada nos permite alterar o valor fixado que se revela apropriado à situação em causa, o que determina a improcedência da apelação nesta parte.
Quanto às custas serão na proporção de 80% para a ré e 20% para a Autora, face ao decaimento decorrente da decisão.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, consequentemente, altera-se a decisão recorrida decidindo-se:
a) Declarar resolvido o contrato de compra e venda do veículo da marca Kia Carens com a matrícula …, celebrado entre a Autora e ré, devendo a A. restituir o mesmo à ré sendo a ré condenada a restituir à Autora o valor de 12.425,00€;
b) Condenar a ré a pagar à Autora o valor de 61,50€ a título de danos patrimoniais;
c) Manter a condenação da ré a pagar à Autora o valor de 1.000€ a título de danos não patrimoniais.
Custas pela apelante e apelada, na proporção e 20% para a primeira e 80% para a segunda.
Registe e notifique.

Lisboa, 15 de Junho de 2023
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes