Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5684/22.6T8ALM-B.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTOS PARTICULARES
INCONSTITUCIONALIDADE
CASO JULGADO
EXTINÇÃO DA FIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. A Recorrente ao não estabelecer a correspondência de cada um dos documentos que indica com cada um dos factos que quer ver aditados aos factos provados, que são extensos, antes o fazendo de forma genérica e não concretizada, não permite que o tribunal de recurso avalie a sua pretensão, atenta a exigência do art.º 640.º n.º 1 al. b) do CPC.
2. O atual Código de Processo Civil ao limitar o elenco dos títulos executivos, veio a determinar que a partir daí a força executiva dos documentos que titulam créditos da CGD atribuída pelo n.º 4 do art.º 9.º do DL n.º 287/93 constituísse uma descriminação relativamente a outros credores, designadamente instituições bancárias, violadora do principio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP, já que antes disso a situação se apresentava igual para todos, na medida em que eram admitidos como título executivo os documentos particulares assinados pelo devedor.
3. Não obstante esta alteração legislativa, há que ressalvar a circunstância de poderem estar em causa documentos apresentados à execução emitidos antes da entrada em vigor do novo CPC, caso em que a salvaguarda das expectativas dos credores determina que se continue a ter em conta o art.º 46.º do anterior CPC e como válidos os títulos executivos apresentados ao abrigo de tal previsão, não obstante não se integrarem agora no elenco dos títulos executivos previstos no art.º 703.º do CPC.
4. Este entendimento é sufragado pelo Tribunal Constitucional que no seu Acórdão n.º 408/2015 de 23 de Setembro de 2015, veio declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que aplica o art.º 703.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC anterior, por violação do princípio da confiança.
5. Uma decisão proferida num processo que incidiu sobre a relação processual, avaliando um seu pressuposto formal – a falta de título executivo quanto aos fiadores - tem força obrigatória apenas no âmbito daquele mesmo processo, nos termos do art.º 620.º n.º 1 do CPC, não adquirindo força de caso julgado material.
6. A insolvência e a exoneração do passivo restante concedida ao devedor principal, nos termos do art.º 244.º e 245.º do CIRE leva à extinção da sua obrigação perante o credor, mas não vai afetar a obrigação dos demais garantes, designadamente dos fiadores, por força do disposto no art.º 217.º n.º 4 do CIRE.
7. A extinção da fiança por impossibilidade de sub-rogação dos fiadores no direito do credor na verificação da previsão do art.º 653.º do C.Civil, apenas pode ter lugar se tal impossibilidade for imputável ao credor e já não se este for totalmente alheio a tal impossibilidade, sem que lhe seja apontado qualquer comportamento que a possa ter determinado.
8. O recurso ordinário de apelação constitui uma forma de impugnação de uma decisão judicial e tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes ou a ponderação de novos factos, pelo que não tendo a Embargante invocado anteriormente uma situação de mora do credor suscetível de inviabilizar o vencimento de juros de mora, nos termos dos art.º 813.º e 814.º do C.Civil, não compete agora a este tribunal apreciar e decidir esta questão apenas suscitada em sede de recurso.
9. Qualquer valor que o credor tenha recebido do devedor principal no âmbito do processo de insolvência em que o seu crédito foi reclamado e reconhecido tem de ser imputado no pagamento da dívida, com reflexo na obrigação garantida pela fiança, em face do disposto no art.º 634.º do C.Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Vem a Executada C… deduzir oposição mediante embargos à execução que contra si é intentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. na qualidade de fiadora.
Alega, em síntese, que não existe título executivo, por o documento apresentado não estar assinado pelo devedor, o que não é suscetível de aperfeiçoamento; que já correu termos uma outra execução com o mesmo título, em que foi extinta a execução por falta de título executivo, não podendo ser aceite um título que já foi rejeitado pelo tribunal; que a fiança se encontra extinta por o devedor principal ter sido declarado insolvente, em processo que já foi encerrado, tendo sido declarada a exoneração do passivo restante e onde a Exequente reclamou o seu crédito e recebeu € 4.949,13, estando os executados impossibilitados de reclamar o seu crédito sobre o insolvente e estando extinto o crédito da CGD junto do devedor principal. Mais alega que a Exequente tem de imputar o valor recebido no pagamento do seu crédito, o que não sucedeu e que só podem ser exigidos os juros vencidos a partir de 10 de agosto de 2017, atento o prazo de prescrição de cinco anos. Conclui pela procedência dos embargos e pela extinção da execução.
Notificada a Embargada, veio a mesma deduzir oposição, concluindo pela improcedência dos embargos.
Aceita que correu termos um processo executivo em que foi apresentado o mesmo contrato de mútuo como título executivo, não tendo o documento sido corretamente digitalizado, o que ocorreu com a cláusula da fiança, razão pela qual a Embargante foi absolvida da instância. Junta agora o contrato completo assinado pela Embargante do que resulta a sua responsabilidade como fiadora. Refere que a relação material controvertida não foi apreciada naquele processo, não havendo qualquer obstáculo à presente execução. Mais refere que interpelou a Embargante para efetuar o pagamento da dívida em outubro de 2017, não tendo a mesma apresentado qualquer proposta para o efeito; que a mesma renunciou ao benefício da excussão, pelo que a fiança não se extinguiu com a insolvência do devedor principal; que os juros não prescreveram uma vez que o contrato foi resolvido com base no seu incumprimento pelo mutuário, aplicando-se o prazo de prescrição de 20 anos.
A Embargante veio pronunciar-se sobre o documento junto, considerando não ser admissível a junção do título executivo com a oposição aos embargos, não sendo caso de qualquer aperfeiçoamento, o que contraria os princípios do processo executivo e prejudica os seus direitos de defesa.
Ouvidas as partes e entendendo o tribunal que dispunha de todos os elementos para conhecer do mérito da causa foi proferida sentença que julgou os embargos totalmente improcedentes.
É com esta decisão que a Embargante não se conforma e dela vem interpor recurso pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue procedentes os embargos e determine a extinção da execução, apresentando para o efeito e após aceder ao convite do tribunal para o seu aperfeiçoamento, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A. A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto.
B. Deve o facto provado 3 ter a seguinte redacção:
3. Na acção executiva 3184/18,8T8ALM, foi proferido despacho no dia 25 de Outubro de 2019, transitado em julgado, que rejeitou e extinguiu a execução, nos termos do disposto no artigo artigos 734.º e 726.º n.º 2 al. a) do CPC, por entender que no contrato junto não constava a constituição da fiança pelos executados (ora embargante e ora executado M…).
C. Em cada uma das secções definidas pela Embargante na petição de embargos, ora Recorrente, procurou-se alegar os factos constitutivos da sua causa de pedir, que constitui, na verdade, em termos substantivos, um conjunto de excepções, dilatórias e peremptórias, face à demanda apresentada pelo Exequente.
D. Tais factos são fundamentais à adequada decisão de Direito e devem, por isso, ser seleccionados e objecto de julgamento.
E. Assim, quanto à questão DA INEXISTÊNCIA DE TÍTULO EXECUTIVO, devem ser seleccionados e julgados provados os seguintes factos:
1. O Exequente apresenta título executivo um documento com o timbre da Caixa Geral de Depósitos (doravante CGD), denominado Contrato de Mútuo, datado, de acordo com expressão aposta, de 31 de Dezembro de 2012.
2. O documento não se encontra numerado mas resulta patente que se encontram em falta as cláusulas 8ª a 11ª, e 18ª a 21ª, sendo certo que termina na cláusula 26ª sem que se saiba se terá mais cláusulas.
3. Não consta do documento qualquer assinatura da Executada, tendo apenas o que parecem ser assinaturas dos representantes da CGD.
4. A Embargada juntou como Doc. 1 da contestação à petição de embargos o contrato de mútuo completo, composto por 30 cláusulas e tendo as assinaturas dos executados a final.
5. O Documento 1 da Contestação não consta do processo principal.
6. A Embargante pugnou pela inadmissibilidade da junção do Documento 1 da Contestação.
F. Tais factos estão suportados documentalmente nos presentes autos.
G. Quanto às questões da EXTINÇÃO DA FIANÇA, DA IMPUTAÇÃO DO RATEIO E DA PRESCRIÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE JUROS, importará considerar os seguintes factos provados:
7. A Embargante foi interpelada ao pagamento da fiança por carta de 30 de Outubro de 2017
8. Após a recepção das cartas de interpelação os Executados contactaram os serviços da CGD de Setúbal.
9. Em 22 de Novembro de 2017 os Executados e o seu mandatário, tiveram uma reunião com o Sr. C…..., da Direcção de Acompanhamento de Particulares - Contencioso Particulares/ENI – Setúbal.
10. Entre outros, temas, foi discutida a questão a invocada fiança dos executados a obrigação do Sr. D…, pai do Executado.
11. Foi solicitada a cópia do contrato de mútuo com fiança, já que os executados não dispunham de qualquer exemplar, desconhecendo os termos e condições da fiança invocada pela CGD.
12. Tal pedido nunca foi satisfeito pela CGD.
13. Sem qualquer aviso prévio, veio a CGD, em 24 de Abril de 2018, apresentar a execução autuada sob o nº 3184/18.8T8ALM.
14. A referida execução esteve pendente até 22 de Fevereiro de 2021, data em que foi arquivada pelo Agente de Execução.
15. Não constava, à data da apresentação da presente execução, da Central de Riscos de Crédito do Banco de Portugal qualquer dívida a respeitante a fiança.
16. Foi criada, através da publicidade constante da referida Central de Riscos de Crédito, a convicção que nada era devido pela Executada a esse título.
17. O senhor D… apresentou-se a Insolvência De Pessoa Singular com Incidente de Plano de Pagamentos, em 19 de Maio de 2015, a qual foi autuada sob o nº 4355/15.4T8STB, e correu termos no Juízo de Comércio de Setúbal - Juiz 2.
18. Consta do seu requerimento a CGD como credora.
19. O Senhor D… foi considerado insolvente em 14 de Julho de 2015.
20. Em 12 de Junho de 2015, a CGD apresentou a sua reclamação de crédito, da qual consta expressamente o crédito resultante do contrato nº 0035074500…, correspondente ao que surge na primeira página do título executivo.
21. Em 29 de Setembro de 2015 foi publicado anúncio do proferimento de despacho inicial no incidente de exoneração do passivo restante.
22. Em 12 de Novembro de 2015, foi apresenta lista de créditos reconhecidos, nos termos do artigo 129º CIRE.
23. Em 20 de Abril de 2016, foi anunciado o encerramento o processo de insolvência por insuficiência da massa.
24. Em 29 de Setembro de 2021, foi proferida sentença que concede ao insolvente a exoneração do passivo restante, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 244º, n.º 1, com os efeitos previstos no art. 245º, n.º 1, do CIRE e excluindo os créditos previstos no n.º 2 do art. 245º do CIRE. – Doc. 14.
25. Tal sentença transitou em 20 de Outubro de 2021.
26. Foi notificada à CGD, através da mandatária que também patrocina a presente execução, em 30 de Setembro de 2021.
27. Todos os actos supra referidos respeitantes à insolvência foram notificados às mandatárias da CGD.
28. Dessa mesma sentença consta a aprovação do rateio final, através do qual a CGD recebeu da insolvência o montante de 4.949,13 €.
29. A execução da qual os presentes embargos são apenso foi apresentada em 10 de Agosto de 2022.
H. Estes factos estão provados através dos documentos 1 a 16 da petição de embargos.
I. O Tribunal recorrido incorreu igualmente em erro de julgamento quanto à matéria de Direito.
J. Antes de mais, e tal bastaria para a extinção da presente execução, estamos perante uma inexistência de título executivo, nos termos e para os efeitos do disposto na al.a) do artigo 729º CPC e no artigo 731º CPC, ou, noutra perspectiva, uma manifesta falta ou insuficiência do título, nos termos e para os efeitos da al. a) do nº 2 do artigo 726º CPC.
K. Em face da Lei, o documento junto como doc. 1 do requerimento executivo nunca poderia ser admitido como título executivo.
L. Deveria o Tribunal recorrido, tal a evidência do vício do título, nos termos do disposto do artigo 726º nº 2 al. a) indeferido liminarmente o requerimento executivo.
M. Por outra banda, não é possível a sanação do vício do título executivo através de documento junto com a contestação aos embargos de executado.
N. A sentença recorrida, ao considerar sanado o vício do título executivo invocado pela Embargante, não só incorre em erro de julgamento sobre a interpretação e aplicação estritas das normas referidas na própria sentença, como violenta, de forma legal e constitucionalmente sindicável, o regime processual da oposição à execução.
O. A falta ou inexistência de título é manifesta. Sendo apresentado um título sem qualquer assinatura dos executados e sem qualquer cláusula que pudesse constituir título contra os mesmos, tal documento nunca poderia constituir título executivo ao abrigo do disposto da al. c) do nº 1 do artigo 46º CPC 1961.
P. Em face do disposto nos artigos 726º nº 2 al. a) e nº 4 e 734º CPC, não pode ser admitido qualquer aperfeiçoamento do título executivo, e muito menos quanto tal aperfeiçoamento é efectuado no apenso de oposição à execução.
Q. A sentença incorre igualmente em erro de julgamento por violação do disposto nos artigos 728º e 732º, 3º e 4º todos do CPC e 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
R. Ao admitir título executivo um documento superveniente, e no apenso de Oposição à Execução, a sentença subverte toda a lógica do processo executivo, comprimindo de forma ilegal e inconstitucional os direitos processuais da executada.
S. A Embargante não pode exercer, nessa fase posterior do processo de embargos, os direitos que lhe caberiam ao abrigo dos artigos 728º a 731º CPC, os quais se revelam destarte deficientemente interpretados e aplicados pelo Tribunal recorrido.
T. Qualquer interpretação do disposto no artigo 726º e 734º CPC que permita a admissão de novo título ou título aperfeiçoado no apenso de oposição à execução viola o direito das partes à igualdade e ao contraditório, previstos nos artigos 3º e 4º CPC, e ainda o artigo 20º nº 4 CRP,
U. Ademais, e noutra perspectiva, tal aperfeiçoamento constitui, materialmente e por identidade de razão, uma alteração da causa de pedir, que sempre careceria de acordo do Executado.
V. Assim, a admissão de um novo ou aperfeiçoado título em sede de processo de oposição à execução constitui, destarte, para além de uma violação do regime fixado nos artigos 726º nº 2 e 4 CPC, uma violação do disposto nos artigos 728º e 732º CPC, quando ao regime da oposição à execução; nos artigos 3º e 4º CPC, porquanto tal admissão coloca o Embargante numa posição diminuída em face dos direitos que lhe são conferidos em sede de oposição, e no artigo 10º 5 e 260º CPC que impõem a estabilidade da instância.
W. Sendo qualquer interpretação dos preceitos indicados que permita tal junção contraria o disposto no artigo 20º nº 4 da CRP.
X. Assim, deve ser a execução extinta por inexistência do título, nos termos do disposto na al. a) do artigo 729º al. a) e 731º CPC. Sem conceder,
Y. Vem a sentença afirmar que o contrato de mútuo em causa é título executivo bastante relativamente ao fiador – arts. 9.º, n.º 4, do DL n.º 287/93, de 20 de Agosto, e 703.º, n. 1, al. d), do CPC.
Z. O artigo 9º nº 4 do Decreto-lei nº 287/93, de 20 de Agosto, é inconstitucional porquanto viola o princípio da igualdade consignado no artigo 13º da CRP, conforme já foi julgado pelo o Tribunal Constitucional no Acórdão 670/2019, de 13 Novembro de 2019, Processo nº 260/2019.
AA. Assim, sob pena de violação do artigo 13º CRP, não pode o título executivo apresentado ser admitido nos termos do Decreto-lei nº 287/93. Sem conceder,
BB. Entendeu o Tribunal recorrido que a insolvência e posterior exoneração do passivo do invocado afiançado não determina a extinção da fiança, invocando para o efeito o disposto nos artigos 245º nº 1 in fine e 217 nº 4 CIRE, complementado pela referência aos artigos 236º nº 1 e 244º nº 1 CIRE, 638º, 640º al. a) e 653º CC.
CC. Entende a Recorrente que o Tribunal recorrido não interpretou e aplicou devidamente estes preceitos.
DD. Estamos perante uma contradição intra-sistemática inultrapassável entre o disposto no artigo 245º nº 1 CIRE e o disposto no artigo 217º nº 4 CIRE, porquanto a aplicação deste se mostra inviável por força da extinção das obrigações do insolvente exonerado.
EE. Impõe-se, destarte, uma interpretação ab-rogante ou revogatória da parte final do disposto no artigo 245º nº 1 CIRE, que remete para o artigo 217º nº 4 CIRE, devendo aplicar-se, na ausência de tal remissão, o disposto no artigo 651º CC.
FF. Resultando na extinção da invocada fiança prestada pela Embargante.
GG. De todo o modo, e para os devidos efeitos, alega-se expressamente que a interpretação do artigo 217º nº 4 CIRE, por remissão do artigo 245º nº 1 CIRE in fine que vede ao fiador que cumpra a obrigação do devedor insolvente a sub-rogação prevista no artigo 644º e pressuposto na parte final do nº 4 do artigo 217º é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, consignado no artigo 13º CIRE. Sem conceder
HH. É evidente que a quantia exequenda não é exigível na sua totalidade, porquanto não pode a Executada, ora Recorrente, suportar o agravamento da dívida do invocado afiançado por inércia ou mora da Recorrida, nos termos do disposto no artigo 813º e 762º CC.
II. De acordo com a doutrina mais autorizada e com consagração na jurisprudência, o credor tem o ónus de informar o fiador logo que se verifique uma quebra de pagamentos.
JJ. Se o não fizer, este, quando instado para pagar, pode opor ao credor a excepção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda, argumentando com o facto de não lhe ser eficaz o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveria ter sido informado da quebra de pagamentos»
KK. Não é razoável exigir aos embargantes que suportem o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveriam ter sido informados da quebra de pagamento, que, no caso, situar-se-á, no limite, em 12 de Junho de 2015.
LL. Também não é razoável que os executados suportem tal agravamento após interpelação, quando a CGD não exibiu qualquer título válido para a invocada fiança, avançado para duas execuções sucessivas com um documento que sabia não satisfazer qualquer critério razoável de demonstração do crédito, seja de natureza adjectiva, seja substantiva.
MM. Quem se constituiu em mora foi a CGD que omitiu o seu dever de informar os fiadores da quebra de pagamento por parte do devedor principal, bem como não satisfez uma obrigação primária, que é a demonstração do seu título.
NN. O credor incorre em mora quando não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813.º CC) sendo certo que durante a mora, a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionais (artigo 814.º, 2 CC).
OO. Assim, e sem conceder, os executados apenas poderiam ser interpelados ao pagamento do montante de € 57.721,13, correspondente ao montante reclamado na insolvência. Por fim,
PP. Conforme se alegou de facto (artigo 49º do requerimento de embargos de executado), a Recorrida CGD recebeu nos autos de insolvência o montante de 4.949,13 €.
QQ. Não se encontra demonstrado, seja em sede de interpelação, seja nos dois processos executivos apresentados, que a CGD tenha imputado tal pagamento ao valor devido pelo invocado afiançado e reclamado aos executados.
RR. O Tribunal recorrido entendeu não se pronunciar sobre tal facto – provado documentalmente – mantendo, na íntegra, o valor reclamado pela Exequente CGD.
SS. A excepção de pagamento pode ser invocada pelo fiador, pelo que deve o montante de € 4.949,13 € ser imputada ao montante resultante da secção anterior.
A Embargada/Exequente vem responder ao recurso pronunciando-se pela sua improcedência.
II. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da impugnação e aditamento da matéria de facto;
- da (in)existência de título executivo e (im)possibilidade do seu aperfeiçoamento em sede de embargos de executado;
- da (não) verificação do caso julgado;
- da extinção da fiança em razão da insolvência e declaração da exoneração do passivo restante do devedor principal;
- da mora do credor que inviabiliza o vencimento dos juros de mora;
- da imputação do pagamento da quantia recebida na insolvência no crédito reclamado.
III. Fundamentos de Facto
O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 28 de Abril de 2018, a embargada propôs contra a embargante e contra M… acção executiva, a que foi atribuída o n.º 3184/18.8T8ALM, para pagamento do valor em dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com D… (mutuário) e com a embargante e o M… (fiadores) e juntou, como título executivo, um documento “Contrato de Mútuo” idêntico ao que foi junto com o requerimento executivo da acção executiva n.º 5684/22.6T8ALM (a que estes autos de embargos estão apensos).
2. Na acção executiva 3184/18.8T8ALM, a executada ora embargante foi citada no dia 25 de Outubro de 2018 (data da assinatura do A/R).
3. Na acção executiva 3184/18,8T8ALM, foi proferido despacho no dia 25 de Outubro de 2019, transitado em julgado, que rejeitou e extinguiu a execução por entender que no contrato junto não constava a constituição da fiança pelos executados (ora embargante e ora executado M…).
4. No dia 29 de Setembro de 2021, nos autos de insolvência n.º 4355/15.4T8STB, foi proferida decisão, transitada em julgado, que concedeu a exoneração do passivo restante do mutuário D….
- da impugnação e aditamento da matéria de facto
Vem a Recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, alegando que o ponto 3 dos factos provados deve ter uma diferente redação e defendendo que a matéria de facto tida como provada é manifestamente insuficiente para a apreciação das questões por si suscitadas nos presentes embargos, requerendo em consequência o aditamento de novos factos.
O art.º 662.º n.º 1 do CPC sobre a modificabilidade da decisão de facto, estabelece que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
De acordo com o disposto no art.º 662.º n.º 1 do CPC a alteração da decisão da matéria de facto pela Relação deve ter lugar quando a mesma se mostra errada, em razão dos meios de prova produzidos no processo e da avaliação que dos mesmos foi feita pelo tribunal recorrido, impondo os mesmos uma diferente decisão.
O art.º 640.º do CPC impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto dispondo:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o Recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
b) (…)
3. (…)
De acordo com o disposto no art.º 640.º n.º 1 do CPC, além da indicação concreta dos factos que considera mal avaliados, é necessário que o Recorrente individualize as divergências relativas a cada facto que impugna com referência aos concretos meios de prova que constam do processo que determinam uma diferente resposta do tribunal, exigência prevista na al. b) do n.º 1, sob pena de imediata rejeição do mesmo.
O art.º 640.º do CPC ao impor estes ónus a cargo do Recorrente, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados, relativamente aos quais a parte manifesta e concretiza a sua discordância, com fundamento nos meios de prova concretos que indica que, em se tratando de depoimentos gravados devem estar bem delimitados na parte considerada relevante por identificação no excerto da gravação; deve ainda indicar a decisão que entende dever ser proferida sobre os factos contestados.
Estas mesmas exigências devem ser cumpridas pelo Recorrente quando pretenda que sejam aditados novos factos provados à decisão, devendo nesse caso concretizar quais sejam, bem como indicar os concretos meios de prova que constam do processo que determinam que se considerem tais factos como provados.
Diz-nos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 126, a propósito deste requisito a observar na impugnação da matéria de facto que: “Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.” Acrescenta a pág. 129: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.
É à luz destes requisitos legais que importa avaliar a impugnação da decisão de facto apresentada.
- Quanto ao ponto 3 dos factos provados é a seguinte a sua redação:
3. Na acção executiva 3184/18,8T8ALM, foi proferido despacho no dia 25 de Outubro de 2019, transitado em julgado, que rejeitou e extinguiu a execução por entender que no contrato junto não constava a constituição da fiança pelos executados (ora embargante e ora executado M…).
Entende a Recorrente, que em face da exceção que suscitou na petição de embargos, este ponto 3 dos factos provados deve ter a seguinte redação:
3.Na acção executiva 3184/18,8T8ALM, foi proferido despacho no dia 25 de Outubro de 2019, transitado em julgado, que rejeitou e extinguiu a execução, nos termos do disposto no artigo artigos 734.º e 726.º n.º 2 al. a) do CPC, por entender que no contrato junto não constava a constituição da fiança pelos executados (ora embargante e ora executado M…).
Para fundamentar a alteração pretendida invoca como meio de prova o despacho que extinguiu a execução, que constitui o doc. 1 junto com a petição de embargos.
Na verdade, a única coisa que a Recorrente propõe é que fique a constar deste ponto “nos termos do disposto no artigo 734.º e 726.º n.º 2 al. a) do CPC”.
A indicação destas normas jurídicas que constam do despacho proferido permitem melhor perceber que aquela execução foi declarada extinta pela manifesta falta ou insuficiência do título executivo.
Assim sendo, defere-se a requerida alteração da redação do ponto 3 dos factos provados, que passa a ser a proposta pela Recorrente.
- Quanto ao aditamento de novos factos provados à decisão
A Recorrente vem requerer o aditamento de 6 novos pontos aos factos provados, que considera fundamentais para a decisão que suscitou relativa à inexistência de título executivo, limitando-se a dizer que tais factos estão documentalmente provados nos autos, sem fazer referência em concreto a qualquer documento junto aos autos.
Vem ainda requerer o aditamento de mais 23 pontos aos factos provados, “quanto às questões da extinção da fiança, da imputação do rateio e da prescrição da obrigação de juros”, concluindo genericamente que estes factos se encontram provados pelos documentos 1 a 16 da petição de embargos, pretendendo também com os mesmo contrariar o juízo que é feito na sentença sob recurso, quando afirma a hipótese inverosímil da Embargante desconhecer a fiança que prestou no contrato de mútuo.
Constata-se que a Embargante, ao propor o aditamento de 29 pontos aos factos provados, não distingue com referência a cada um deles os meios de prova constantes do processo que os fundamentam, limitando-se a fazer uma menção genérica aos documentos que constam do processo quanto aos pontos 1 a 6 e aos documentos juntos com os n.º 1 a 16 com a petição de embargos quantos aos pontos 7 a 29, sem fazer qualquer correspondência entre cada um dos documentos e cada um dos factos que os mesmos se destinam a provar.
A Recorrente não estabelece a correspondência de cada um dos documentos que indica com cada um dos factos que quer ver aditados aos factos provados, que são extensos, antes o fazendo de forma genérica e não concretizada, o que não permite que o tribunal de recurso avalie a sua pretensão, atenta a exigência do art.º 640.º n.º 1 al. b) do CPC.
Neste sentido e a título de exemplo, pronunciou-se o Acórdão do STJ de 5 de setembro de 2018 no proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S1 in www.dgsi.pt nos seguintes termos: “Efectivamente, o recorrente impugna a factualidade apurada pela primeira instância fazendo-o em relação a blocos de factos, não individualizando os meios de prova que em relação a cada um dos factos impugnados impõem uma decisão diversa. Ora, esta forma de impugnação não satisfaz as exigências formais da alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC (…)”.
Não tendo sido dado cumprimento pela Recorrente ao disposto no art.º 640.º n.º 1 al. b) do CPC, quanto à indicação dos concretos meios de prova que impõem a alteração da decisão de facto com o aditamento de 29 pontos aos factos provados, impõe-se a imediata rejeição da impugnação quanto a tal matéria, atenta a cominação aí prevista para tal inobservância, o que se determina.
*
Tendo em conta o acordo das partes e os documentos juntos aos autos que constituem certidão de peças processuais a que se fará menção, e atento o disposto no art.º 662.º n.º 1 do CPC procede-se ao aditamento de diversos factos que estão provados e que que se considera relevantes para a apreciação das questões suscitadas pela Embargante.
São os seguintes os factos que se encontram provados com interesse para a decisão da causa, sendo que apenas os quatro primeiros integram a sentença do tribunal 1ª instância:
1. No dia 28 de Abril de 2018, a embargada propôs contra a embargante e contra M… ação executiva, a que foi atribuída o n.º 3184/18.8T8ALM, para pagamento do valor em dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com D… (mutuário) e com a embargante e o M… (fiadores) e juntou, como título executivo, um documento “Contrato de Mútuo” idêntico ao que foi junto com o requerimento executivo da ação executiva n.º 5684/22.6T8ALM (a que estes autos de embargos estão apensos).
2. Na ação executiva 3184/18.8T8ALM, a executada ora embargante foi citada no dia 25 de outubro de 2018 (data da assinatura do A/R).
3. Na ação executiva 3184/18,8T8ALM, foi proferido despacho no dia 25 de outubro de 2019, transitado em julgado, que rejeitou e extinguiu a execução nos termos do disposto no artigo 734.º e 726.º n.º 2 al. a) do CPC, por entender que no contrato junto não constava a constituição da fiança pelos executados (ora embargante e ora executado M…). (alterado)
4. No dia 29 de setembro de 2021, nos autos de insolvência n.º 4355/15.4T8STB, foi proferida decisão, transitada em julgado, que concedeu a exoneração do passivo restante do mutuário D….
5. Os títulos executivos a que alude o ponto 1 dos factos provados correspondem a um documento denominado Contrato de Mútuo, que identifica como 1º contratante D… designado por devedor ou cliente, como segundos contratantes M… e C… designados como fiadores e como terceiro contratante a Caixa Geral de Depósitos, constando do seu ponto 5 o montante de € 57.000,00 – doc. 6 junto com a petição de embargos e título executivo da execução a que se reportam os presente embargos.
6. Tal título é composto por 4 páginas: a 1ª página termina no ponto 7, a 2ª página começa no ponto 12 e termina no ponto 17, a terceira página começa no ponto 22 e termina no ponto 26 e a 4ª página contém apenas a assinatura do representante da CGD – doc. 6 junto com a petição de embargos e título executivo da execução a que se reportam os presente embargos.
7. Com a contestação de embargos veio a Embargada/Exequente juntar o contrato de mútuo completo, como doc. 1, composto por mais 3 páginas, onde constam os pontos do contrato em falta bem como as assinaturas do devedor e dos fiadores – doc. 1 junto com a contestação dos embargos.
8. Os Executados foram interpelados para o pagamento da fiança por carta de 30 de outubro de 2017, após o que contactaram os serviços da CGD, tendo havido lugar a uma reunião entre eles – doc. 2 e 3 juntos com o requerimento executivo e acordo das partes – art.º 21.º da petição de embargos e art.º 32.º e 33.º da oposição.
9. D… apresentou-se à Insolvência em 19 de maio de 2015, tendo corrido termos processo de insolvência de pessoa singular com o n.º 4355/15.4T8STB – doc. 8 junto com a petição de embargos.
10. Em 12 de Junho de 2015, a CGD apresentou a sua reclamação de créditos no processo de insolvência, identificando o crédito resultante do contrato de mútuo nº 0035074500…com o valor total de € 57.721,13 sendo € 54.575,29 de capital, € 2.992,46 de juros de mora vencidos entre 10.01.2015 e 05.06.2015 à taxa de 17,798% e comissões de € 153,38 – doc. 10 junto com a petição de embargos.
11. A CGD ali reclamou outro crédito resultante de um contrato de abertura de crédito com o valor total de € 20.243,01 sendo € 20.147,85 de capital, € 94,16 de juros de mora vencidos entre 01.06.2015 e 05.06.2015 à taxa de 8,598% e comissões de € 1,00 – doc. 10 junto com a petição de embargos.
12. Em 20 de Abril de 2016, foi anunciado o encerramento o processo de insolvência por insuficiência da massa- doc. 13 junto com a petição de embargos.
14. Foi reconhecido o crédito da CGD sobre o insolvente no valor total de € 79,477,03 e do rateio final resulta que a CGD recebeu na insolvência o montante de € 4.949,13 – doc. 16 da petição de embargos.
15. A Exequente não imputou a quantia recebida no crédito que reclama na execução - acordo das partes – art.º 49.º e 67.º da petição de embargos não impugnados pela Embargada.
IV. Razões de Direito
- da (in)existência de título executivo e (im)possibilidade do seu aperfeiçoamento em sede de embargos de executado
Alega a Recorrente que no título dado à execução não se descortina qualquer cláusula sobre a invocada fiança, não estando também o documento assinado pela Executada, só aparecendo no final do contrato a assinatura do representante da CGD, pelo que não existe título nos termos do art.º 731.º e 729.º al. a) do CPC o que devia ter determinado o indeferimento liminar da execução, não sendo caso de qualquer convite ao aperfeiçoamento, nem podendo tal falta considerar-se suprida com o contrato de mútuo completo junto com a contestação aos embargos, sob pena de preterição do seu direito de defesa.
A sentença recorrida considerou que foi apresentado um título executivo incompleto, suscetível de admitir o convite ao aperfeiçoamento, entendendo que ficou sanado o vício com a junção do documento completo pela Embargada/Exequente.
A ação executiva tem por finalidade a realização coativa da prestação que ao credor é devida e tem por base um título executivo pelo qual se determinam o fim e os limites da execução, como estabelece o art.º 10.º n.º 5 do CPC e era igualmente previsto no art.º 45.º do anterior CPC.
Na ação executiva não está em causa a definição de um qualquer direito do Exequente, mas apenas a obtenção coerciva de uma prestação titulada num documento a que a lei atribui as características necessárias para constituir título executivo.
Não há ação executiva sem título. Quando o exequente pretende dar início à ação executiva não lhe basta invocar a existência de um título, sendo necessária a sua apresentação no processo.
Diz-nos Lebre de Freitas, in. A Acção Executiva depois da Reforma, pág. 70: “O título executivo é um documento que constitui o meio legal de demonstração da existência do direito da exequente ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito.
É o art.º 703.º do CPC que vem enunciar de forma taxativa as espécies de títulos executivos, prevendo ainda no seu n.º 1 al. d) que por disposição especial seja atribuída força executiva a outros documentos. Aí são considerados título executivo além das sentenças condenatórias (al. a)) e dos títulos de crédito (al. c)), os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (al. b)).
O art.º 703.º do CPC procede ao elenco dos títulos executivos dispondo sobre os documentos que podem servir de base à execução, sendo que o princípio da taxatividade dos títulos executivos determina que o seu elenco não é suscetível de ser ampliado, por via de interpretação extensiva ou de analogia – neste sentido vd. Rui Pinto, in A Ação Executiva, pág. 145.
Compreende-se esta opção do legislador, em razão da natureza e finalidade do processo executivo, ficando nas suas mãos a definição dos casos em que se está perante um documento que se reveste da certeza mínima necessária para constituir um título executivo, já que dessa forma vai ser viabilizada a agressão do património do Executado, o que exige cautelas ou garantias mínimas.
Dizem-nos a este respeito Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 78 ss: “A lei considera como ponto de interesse público que não se recorra às medidas coactivas próprias do processo executivo contra o património do executado sem um mínimo de garantia (prova) sobre a existência do direito do exequente”.
A sentença recorrida considerou o contrato de mútuo título executivo bastante quanto ao fiador, por força do disposto no art.º 9.º n.º 4 do DL 287/93 de 20 de agosto e do art.º 703.º n.º 1 al. d) do CPC, norma que confere força executiva aos documentos a que tal seja atribuído por legislação especial.
No caso em presença, verifica-se que quando é intentada a execução é junto como título executivo um documento denominado contrato de mútuo, que se apresenta incompleto, já que manifestamente nele se constata a falta de algumas páginas, entre as quais aquela que contem a assinatura dos primeiros e segundos outorgantes nele identificados – cliente e fiadores.
Não pode dizer-se, como pretende a Recorrente que está em falta o título executivo, mas tão só que o mesmo está incompleto por estar em falta uma parte do documento que foi junto, o que no contexto facilmente até se concebe ter-se tratado de um erro ou lapso da Exequente.
A questão que se põe então é a de saber se pode admitir-se a junção do documento completo pela Exequente apenas com a oposição aos Embargos, já que foi proferido despacho liminar na execução em que foi ordenada a citação dos Executados, sem que antes disso aí tivesse sido feita a notificação da Exequente para sanar a falta, nos termos do disposto no art.º 726.º n.º 4 do CPC.
Nas execuções ordinárias, o art.º 726.º do CPC impõe a necessidade de despacho liminar do juiz que antes de determinar a citação do executado deve proceder à avaliação prévia dos requisitos do título executivo, bem como das exceções dilatórias de conhecimento oficioso, prevendo o n.º 4 deste artigo, numa manifestação do princípio da cooperação processual, que fora dos casos previstos no n.º 2 que impõem o indeferimento liminar do requerimento executivo, o juiz convida o exequente a sanar as irregularidade do requerimento executivo ou a falta de pressupostos, aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no art.º 6.º n.º 2 do CPC.
Este art.º 6.º n.º 2 do CPC prevê: “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância, ou quando a sanação dependa de ato que deve ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”.
Na situação em presença, não se nos oferece dúvidas considerar que o juiz, ao constatar que o documento junto como título executivo está incompleto, deve convidar a parte a apresentar o documento completo, de modo a sanar tal irregularidade, nos termos previstos nos art.º 726.º n.º 4 e 6.º n.º 2 do CPC, uma vez que estamos perante uma manifesta irregularidade ou lapso que é suscetível de sanação.
O facto de tal não ter sido logo feito e ter sido antes proferido despacho liminar de citação não constitui impedimento a que o tribunal mais tarde possa tomar posição sobre essa questão, uma vez que como expressamente prevê o art.º 734.º n.º 1 e 2 do CPC, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados o juiz pode conhecer das questões que podem levar ao indeferimento liminar ou ao aperfeiçoamento do requerimento executivo e diligenciar pela sanação do vício se for caso disso.
O legislador prevendo a possibilidade do juiz não detetar qualquer vício no momento do despacho liminar, optou por consagrar expressamente a possibilidade de em momento posterior a tal despacho poderem ser apreciadas e decididas as questões suscetíveis de poderem determinar o indeferimento liminar da execução ou o convite à parte para suprir o vício, estabelecendo apenas como limite temporal o da transmissão dos bens penhorados, para proteção da boa fé dos terceiros adquirentes.
No despacho liminar em que o juiz se limita a determinar a citação dos executados, não é apreciado e tomado conhecimento em concreto de qualquer das situações previstas no art.º 726.º n.º 2 do CPC que podem levar ao indeferimento liminar da execução ou que impõem o seu aperfeiçoamento, limitando-se tal despacho a permitir o prosseguimento do processo sem decidir qualquer questão no âmbito da relação processual concreta, não constituindo por isso caso julgado relativamente a questões que aí pudessem ter sido apreciadas e não foram.
 Este entendimento tem sido aliás pacífico na nossa jurisprudência, invocando-se apenas a título de exemplo o Acórdão do TRL de 12 de janeiro de 2023 no proc. 3141.0TBLLE-Z.L1-2 in www.dgsi.pt
É aliás no pressuposto ou no acolhimento desta posição que o art.º 734.º n.º 1 e n.º 2 do CPC permite que o juiz tome conhecimento das questões que podem determinar o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo, em momento posterior à prolação do despacho liminar a que alude o art.º 726.º, rejeitando a execução ou convidando a parte a suprir o vício.
Assim sendo, podendo ser suprida a irregularidade do título, por intervenção oficiosa do tribunal, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, mal se compreenderia que não pudesse ser atendida a intervenção espontânea da parte que vem pretender regularizar o vício até esse momento, como foi o caso quando a Exequente vem juntar o título completo com a oposição aos embargos.
É evidente que na sequência de tal procedimento não podem ser postergados os direitos de defesa da parte contrária, tendo sempre de ser observado o contraditório previsto no art.º 3.º do CPC.
Avaliando o caso em presença à luz destes princípios, já se vê que tem de admitir-se o contrato de mútuo completo apresentado pela Exequente com a oposição aos embargos, com as páginas em falta, no que corresponde à correção do título irregular apresentado inicialmente na execução, tal como entendeu a sentença sob recurso.
Não tem razão o Recorrente quando refere que dessa forma ficaram postergados os seus direitos de defesa, até porque veio efetivamente exercer o contraditório nos embargos, apresentado uma resposta sobre o documento junto, tendo tido a possibilidade de pronunciar-se não só sobre a admissibilidade do mesmo, o que fez, mas também sobre o seu teor.
Verifica-se aliás que sempre poderia fazer valer os seus direitos, nos termos previstos no art.º 728.º n.º 2 do CPC, sendo que no caso, nenhum direito de defesa lhe foi limitado ou retirado, na sequência da junção do título executivo completo com a oposição aos embargos.
Vêm ainda os Recorrentes, a propósito da inexistência do título executivo, pôr em causa a sentença na parte em que decide que “o contrato de mútuo em causa é título executivo bastante relativamente ao fiador – art.º 9.º n.º 4 do DL n.º 287/93 de 20 de agosto e 703.º n.º 1 al. d) do CPC” invocando a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP.
Esta norma insere-se no diploma que veio a transformar a anterior Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, passando a denominar-se Caixa Geral de Depósitos, S.A. e aprovou os seus estatutos, prevendo o seu art.º 9.º n.º 4: “Os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela A., prevejam a existência de uma obrigação de que a A. seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.
Trata-se de uma norma especial que vem atribuir força executiva a documentos específicos emanados da CGD, S.A., integrando-se por isso na previsão da al. d) do n.º 1 do art.º 703.º do CPC que inclui no elenco dos títulos executivos os documentos a que seja atribuída força executiva por disposição especial.
A verdade é que o Tribunal Constitucional tem vindo a reconhecer a inconstitucionalidade do n.º 4 do art.º 9.º do DL n.º 287/93 de 20 de agosto, por conferir um estatuto diferenciado e privilegiado à CGD relativamente a outras instituições bancárias, em violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP – vd. designadamente o Acórdão do TC n.º 670/2019, retificado pelo Acórdão n.º 710/2019 in. www.tribunalconstitucional.pt
Contudo, no caso, importa ter em conta que o título executivo apresentado à execução é um contrato de mútuo celebrado em 31.12.2012, numa altura em que o Código de Processo Civil em vigor, na versão do DL 329-A/95 de 12 de dezembro, admitia no seu art.º 46.º al. c) que servissem de base à execução os documentos particulares assinados pelo devedor, o que o atual Código de Processo Civil deixou de prever.
O novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de junho, veio introduzir alterações significativas no âmbito da ação executiva procedendo, designadamente, à redução do elenco dos títulos executivos, como decorre dos art.º 703.º a 708.º.
O art.º 703.º do atual CPC corresponde, ainda que com alterações ao art.º 46.º do anterior CPC que também dispunha sobre as espécies de títulos executivos. Este art.º 46.º na redação do DL 226/2008 de 20 de Novembro, permitia na sua al. c) que viessem a servir de base à execução os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou prestação de facto.
Com a alteração do Código de Processo Civil, foi entendimento do legislador que os documentos particulares a que aludia a referida al. c) por um lado, não ofereciam uma grande segurança e por outro lado, ficavam sujeitos com uma grande frequência à dedução de embargos à execução com os mais diversos fundamentos, tendo por isso optado por retirar tais documentos do elenco dos títulos executivos, que atualmente se apresenta mais restrito.
O atual Código de Processo Civil ao limitar o elenco dos títulos executivos, veio a determinar que a partir daí a força executiva dos documentos que titulam créditos da CGD atribuída pelo n.º 4 do art.º 9.º do DL n.º 287/93 constituísse uma descriminação relativamente a outros credores, designadamente instituições bancárias, violadora do principio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP, já que antes disso a situação se apresentava igual para todos, na medida em que eram admitidos como título executivo os documentos particulares assinados pelo devedor.
Esta alteração legislativa é desde logo evidenciada como relevante pelo TC no Acórdão citado em que conclui pela inconstitucionalidade desta norma por violação do principio da igualdade, onde se refere: “De acordo com o quadro legal em vigor, os demais credores, designadamente as outras instituições de crédito que não a A., não gozam de tal vantagem, e os correlativos devedores não sofrem a desvantagem simétrica. Com efeito, ao contrário do «velho» Código de Processo Civil, na versão que resultou da aprovação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, o «novo» Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não atribui força executiva à generalidade dos documentos particulares assinados pelo devedor. (…) Com a alteração legislativa, a norma sindicada nos presentes autos deixou de constituir uma redundância, por conter uma solução individual substancialmente idêntica à solução geral de atribuir força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor, para passar a consubstanciar um benefício específico da A. e um prejuízo específico para os respetivos devedores. Coloca-se, assim, a questão de saber se o tratamento privilegiado da A. relativamente aos demais credores, nomeadamente instituições de crédito, ou – o que é dizer o mesmo sob o ponto de vista simétrico – o tratamento prejudicial dos devedores da A. relativamente aos demais devedores, nomeadamente os devedores de instituições de crédito, ofende o princípio da igualdade.”
Não obstante esta alteração legislativa, há porém que ressalvar a circunstância de poderem estar em causa documentos apresentados à execução emitidos antes da entrada em vigor do novo CPC, caso em que a salvaguarda das expectativas dos credores determina que se continue a ter em conta a previsão do art.º 46.º do anterior CPC e como válidos os títulos executivos apresentados ao abrigo de tal previsão, não obstante não se integrarem agora no elenco dos títulos executivos previstos no art.º 703.º do CPC.
Este entendimento é sufragado pelo Tribunal Constitucional que no seu Acórdão n.º 408/2015 de 23 de Setembro de 2015, veio declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que aplica o art.º 703.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC anterior, por violação do princípio da confiança.
À luz do que se expôs, já se vê que o contrato de mútuo que consta do documento apresentado pela Exequente como título executivo sendo anterior a 1 de setembro de 2013 e por ter sido emitido antes da entrada em vigor do atual CPC constitui título executivo nos termos do art.º 46.º al. c) do anterior CPC que admitia como título executivo o documento particular assinado pelo devedor.
Resta concluir que o contrato de mútuo constitui título executivo quanto ao fiador, improcedendo a exceção da falta de título executivo.
- da (não) verificação do caso julgado
Alega a Recorrente que o presente processo devia ter sido decidido de forma coincidente com o proc. 3184/18.8T8ALM que reconheceu a inexistência de título executivo perante um documento que não está assinado pelo devedor e não prevê qualquer obrigação para a executada.
A sentença sob recurso considerou que a decisão proferida naquele processo que rejeitou a execução por falta de título não fez caso julgado material, não se impondo nestes autos.
O art.º 613.º do CPC com a epígrafe “extinção do poder jurisdicional e suas limitações” dispõe no seu n.º 1: “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.” Este princípio apenas comporta as exceções previstas no n.º 2, que admitem que o juiz possa retificar erros materiais, suprir nulidades ou reformar a sentença nos termos dos artigos seguintes. Estas regras são aplicáveis aos próprios despachos, até onde seja possível, conforme acrescenta o n.º 3 do artigo em questão.
Sobre o caso julgado formal, diz-nos o art.º 620.º n.º 1 do CPC que: “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
Daqui decorre uma limitação para o juiz da causa que o impede, oficiosamente, ou mesma a pedido das partes, de rever as decisões que anteriormente proferiu sobre determinada questão ou sobre os seus fundamentos enunciados – uma vez proferida a decisão não pode o juiz alterá-la fora das estreitas balizas previstas no n.º 2 do art.º 613.º, não obstante a mesma possa, naturalmente, ser alterada por via de recurso se a decisão o admitir.
Na situação em presença está em causa uma decisão proferida num processo que incidiu sobre a relação processual, avaliando um seu pressuposto formal – a falta de título executivo quanto aos fiadores - pelo que a sua força obrigatória apenas se faz sentir no âmbito daquele mesmo processo, nos termos do art.º 620.º n.º 1 do CPC, não adquirindo força de caso julgado material, não estando o juiz desta execução obrigado a decidir da mesma forma.
Sobre situação semelhante pronunciou-se o Acórdão do TRP de 2 de fevereiro de 2015 no proc. 5901/13.3YYPRT-B.P1 in www.dgsi.pt nos seguintes termos: “Dito de outro modo: a possibilidade de uma decisão transitada em julgado produzir efeitos jurídicos fora do processo em que foi proferida pressupõe, necessariamente, que tenha força de caso julgado material, o que, ostensivamente não se verifica no caso em apreço. Assim, face ao exposto, porque a decisão proferida no processo nº 695/13.5YYPRT-A, da 3ª secção, do 2º Juízo de Execução do Porto apenas recaiu sobre a relação processual, tendo força de caso julgado formal, não é passível de estender a produção de efeitos a estes autos, seja pela via do caso julgado implícito, seja por força da figura da autoridade do caso julgado.”.
O Recorrente limita-se a referir a este propósito que o tribunal recorrido devia ter rejeitado a execução como foi feito no proc. 3184/18.8T8ALM, sem invocar a violação de qualquer norma jurídica pelo tribunal a quo que na sentença proferida refere a este respeito: “O título executivo é um pressuposto processual específico da acção executiva – art. 10.º, n.º 5, do CPC, pelo que a decisão, transitada, que rejeitou a acção executiva n.º 3184/18.8T8ALM por falta de título executivo, recaiu sobre a relação processual e tem força de caso julgado formal apenas – art. 620.º, n.º 1, do CPC e Acórdão da Relação do Porto de 10-10-2022, Processo n.º 846/18.3T8OVR-C.P1., in www.dgsi.pt. A falta de força de caso julgado material – art. 619.º, n.º 1, do CPC – impede que a decisão proferida naquela acção executiva se imponha nesta acção executiva n.º 5684/22.6T8ALM. Pelo exposto, improcede a excepção de caso julgado material.”.
Sem necessidade de outras considerações, já se vê que a Recorrente não tem razão ao pugnar pela verificação de caso julgado.
- da extinção da fiança em razão da insolvência e declaração da exoneração do passivo restante do devedor principal
Alega a Recorrente que sendo a obrigação do fiador acessória da que recai sobre o devedor principal a extinção da obrigação do devedor principal nos termos do art.º 245.º do CIRE determina a extinção da fiança, até porque não se torna possível exercer o direito a sub-rogação de acordo com o art.º 644.º do C.Civil.
A sentença recorrida entendeu que a insolvência do devedor principal e a exoneração do passivo restante não determinou a extinção da fiança.
A fiança cuja noção vem prevista no art.º 627.º do C.Civil constitui uma garantia pessoal de satisfação de um direito de crédito que é dada por um terceiro – fiador – perante o credor, que assim responde com o seu património pela dívida que garante, tratando-se de uma obrigação acessória da que recai sobre o principal devedor, como estabelece o n.º 2 deste artigo, característica que tem o sentido da fiança ficar subordinada e acompanhar a obrigação principal.
Como nos dizem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, pág. 82: “A fiança implica que haja um segundo património, o património de um terceiro (fiador), que vai, cumulativamente com o património do devedor, responder pelo pagamento da dívida. (…) Da parte do fiador há uma responsabilidade pessoal pelo cumprimento de uma obrigação alheia.”
A vontade de prestar a fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal, como refere o art.º 628.º do C.Civil e como negócio jurídico que é, o seu conteúdo pode ser livremente estipulado pelas partes, desde que se situe no âmbito dos limites legais e desde que corresponda a um interesse do credor digno de proteção legal, como é exigência do art.º 398.º do C.Civil.
Com a epígrafe “obrigação do fiador” o art.º 634.º do C.Civil estabelece: “A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.”
Em anotação a esta norma, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Vol. I, pág. 467: “O fiador é responsável, portanto, não só pela prestação devida, como pela pena convencional (cfr. art. 810.º), ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor (cfr. art. 798.º) salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do artigo 631.º, n.º 1, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.
Ainda sobre o âmbito da fiança, diz-nos o Acórdão do TRP de 5 de março de 2018 no proc. 43/14.7T8PFR.P1 in www.dgsi.pt : “O fiador não tem de admitir só que venha a ter de entregar ao credor o equivalente pecuniário da prestação devida pelo devedor principal, mas, como já se acentuou, também a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento, pela mora ou pelo cumprimento imperfeito da obrigação». No mesmo sentido, veja-se o comentário de Joana Farrajota à norma citada: «Esta relação entre as duas obrigações significa que o fiador responde não só pela prestação principal, mas por quaisquer prestações que venham a surgir – por efeito da lei ou do contrato – na esfera jurídica do devedor em resultado do incumprimento – temporário, defeituoso ou definitivo – da obrigação.”.
A circunstância da extinção da obrigação principal determinar a extinção da fiança, como previsto no art.º 651.º do C.Civil, não exclui a responsabilidade do fiador pelas consequências da mora ou culpa do devedor em resultado da fiança anteriormente prestada, como expressamente salvaguardado pelo já mencionado art.º 634.º do C.Civil.
De acordo com o disposto no art.º 644º do C. Civil, o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.
Refira-se ainda que o art.º 654.º do C.Civil prevê a liberação do fiador por impossibilidade de sub-rogação, mas apenas quando tal impossibilidade resulta de facto positivo ou negativo do credor.
No caso, o devedor principal foi declarado insolvente e foi-lhe concedida a exoneração do passivo restante, nos termos do art.º 244.º do CIRE, por força do que se extinguiu o crédito da Exequente sobre ele, como dispõe o art.º 245.º do CIRE que rege sobre os efeitos da exoneração.
A insolvência do devedor principal não vai afetar a obrigação dos demais garantes. Neste sentido vd. o Acórdão do STJ de 25 de maio de 2023 no proc. 19002/19.7T8SNT-A.L1.S1 in www.dgsi.pt onde se diz: “(…) a declaração de insolvência nenhum efeito tem quanto aos demais obrigados ou garantes – in casu, os embargantes/fiadores, mantendo-se na íntegra a obrigação que assumiram perante o credor.”.
O art.º 245.º n.º 1 do CIRE quando determina a extinção dos créditos sobre a insolvência, ressalva o disposto no art.º 217.º n.º 4 do CIRE que rege nos seguintes termos: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra eles os seus direitos.”.
Na interpretação destas normas, diz-nos com toda a pertinência o Acórdão do TRL de 08.11.2022 no proc. 28463/16.5T8LSB-A.L1-7 in www.dgsi.pt : “O que significa, de forma cristalina, que o efeito extintivo da exoneração do passivo restante, previsto na primeira parte do nº 1 do art. 245º do C.I.R.E., não se repercute na esfera jurídica dos condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, por força da aludida remissão para a norma do nº 4 do artigo 217º do mesmo diploma. Ou seja, pese embora a extinção de dívida na esfera jurídica do devedor insolvente, os credores poderão exigir o cumprimento dos seus créditos aos condevedores ou a terceiros garantes da obrigação. Por outras palavras, ainda: esta extinção, legalmente consagrada, da obrigação do devedor insolvente não é comunicável, não afecta, a existência, nem o montante dos direitos dos credores contra os condevedores ou terceiros garantes daquela obrigação. Em suma, os créditos de que sejam titulares os credores da insolvência contra condevedores ou os terceiros garantes mantêm-se; os direitos dos credores quanto aos co-obrigados ou terceiros garantes do devedor insolvente são intocáveis. (…) Como norma especial que é, sobrepõe-se – para o que aqui interessa, face ao concretamente invocado a este propósito nas alegações de recurso - às regras constantes dos arts. 627º, nº 2 (“A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”); e 651º (“A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança”), ambos do Cód. Civil. Cfr., neste sentido, o já citado Ac. do TRC de 12/12/2017, Alberto Ruço.”.
Como se referiu em face do disposto do art.º 653.º do C.Civil os fiadores apenas podiam ficar desonerados da obrigação que contraíram perante o Banco credor, se a este fosse imputável o facto de se verem impedidos de exercer a sub-rogação nos seus direitos.
A este propósito diz-nos o Acórdão do STJ de 10 de dezembro de 2019 no proc. 2481/16.1T8CSC.L1.S1 in www.dgsi.pt : “Para que a desoneração dos devedores, neste caso dos aqui fiadores, possa operar, a Lei impõe que ocorra um facto voluntário, positivo ou negativo, mesmo que não seja culposo, produzido pelo credor e que lhe seja imputável, o qual impeça aqueles de poderem ficar suficientemente sub-rogados nos direitos que àquele credor competiam.”.
Com referência ao regime da insolvência também Pestana de Vasconcelos, in As garantias Especiais das Obrigações, pág. 92, admite a extinção da fiança por impossibilidade de subrogação dos fiadores no direito do credor na verificação da previsão do art.º 653.º do C.Civil, mas apenas no caso deste não ter reclamado o seu crédito no processo de insolvência.
Na situação em presença, é certo que por força da exoneração do passivo restante os fiadores vêm prejudicada a possibilidade de agir contra o devedor, mas a tal circunstância é totalmente alheia a credora CGD, sendo que nem a Embargante lhe aponta qualquer comportamento que possa ter vindo a determinar a impossibilidade de sub-rogação nos seus direitos.
Refere-se com toda a pertinência no Acórdão do STJ de 12 de fevereiro de 2019 no proc. 6354/16.0T8VNG.P1.S1 in www.dgsi.pt : “O facto positivo ou negativo do credor terá de ser um facto voluntário, mas não necessariamente culposo. Nesta sede, o que deve exigir-se é que “o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável.”(…) Tal como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21.1.2014, proferido no proc. nº 6466/05.5TVLSB.L1.S1, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, “a fiança, sendo embora, caracteristicamente, a nível de fisionomia e regime, uma garantia de cumprimento, é também uma garantia de solvência do devedor: é uma garantia de consecução do resultado do cumprimento. Um exemplo dessa consideração do fim de garantia ou de segurança está na tendencial insensibilidade dos termos da responsabilidade fidejussória à sobrevinda impotência económica do devedor. Não faria qualquer sentido que o fiador, que garante a solvência do devedor, pudesse escusar-se a satisfazer o crédito no caso de o devedor não estar em condições, por incapacidade económica, de solver o crédito. A fiança seria, então, uma mera figura de decoração que em nada aproveitaria ao credor.”. Acolhendo esta doutrina, impõe-se, assim, concluir que a insolvência do devedor principal em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo, traduzindo-se diversamente numa potencial impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.”
No caso, a CGD reclamou o seu crédito no processo de insolvência, onde o mesmo foi reconhecido, não lhe sendo imputável nem a insolvência do devedor, nem a exoneração do passivo restante que foi pedida pelo insolvente e deferida pelo tribunal, não podendo por isso ser prejudicada pelo facto dos fiadores verem inviabilizado o seu direito de regresso para com o devedor principal.
Resta concluir que, tal como entendeu a sentença sob recurso, a fiança não se extinguiu por força da insolvência e da admissão da exoneração do passivo restante.
- da mora do credor que inviabiliza o vencimento dos juros de mora
Alega ainda Recorrente que foi o comportamento da CGD que deu origem a um crescimento do seu crédito por via do vencimento de juros e agravamento da dívida, não interpelando os fiadores para o pagamento da dívida, não praticando dessa forma os atos necessários ao cumprimento, incorrendo em mora, pelo que a dívida deixou de vencer juros nos termos do art.º 814.º n.º 2 do C.Civil.
Verifica-se que esta questão da mora do credor é apenas invocada pela Recorrente em sede de recurso.
O recurso ordinário de apelação constitui uma forma de impugnação de uma decisão judicial e tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes ou a ponderação de novos factos.
Decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC e é jurisprudência pacífica, que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal a quo e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, Acórdão do TRL de 14 de fevereiro de 2013, no proc. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in www.dgsi.pt
Não tendo a Embargante invocado anteriormente uma situação de mora do credor suscetível de inviabilizar o vencimento de juros de mora, nos termos dos art.º 813.º e 814.º do C.Civil, não compete agora a este tribunal apreciar e decidir desta questão apenas suscitada em sede de recurso.
Sempre se adianta, no entanto, que os factos que resultaram provados também nunca seriam suficientes para que pudesse concluir-se nesse sentido.
- da imputação do pagamento da quantia recebida na insolvência no crédito reclamado
Alega ainda a Recorrente que a Exequente recebeu a quantia de € 4.949,13 no âmbito do processo de insolvência do devedor principal, não tendo imputado tal pagamento na quantia em dívida, o que tem de ser feito.
A sentença sob recurso não se pronunciou sobre esta questão invocada pela Embargante, sendo certo que, tendo sido questão por ela suscitada no requerimento de embargos, também a Embargada/Exequente omitiu qualquer pronuncia sobre ela na sua oposição aos embargos, registando-se igualmente que, também em sede de recurso, tendo vindo responder às alegações da Embargante, omite mais uma vez qualquer resposta sobre esta questão.
É evidente que qualquer valor que o credor tenha recebido do devedor principal no âmbito do processo de insolvência tem de ser imputado no pagamento da dívida, com reflexo na obrigação garantida pela fiança, em face do disposto no art.º 634.º do C.Civil.
Na situação em presença, resultou provado que a CGD apresentou a sua reclamação de créditos no processo de insolvência do devedor principal, identificando o seu crédito resultante do contrato de mútuo nº 0035074500…, que corresponde ao contrato de mútuo apresentado como título executivo, com o valor total de € 57.721,13 sendo € 54.575,29 de capital, € 2.992,46 de juros de mora vencidos entre 10.01.2015 e 05.06.2015 à taxa de 17,798% e comissões de € 153,38.
Este não foi o único crédito que a CGD reclamou na insolvência, já que aí reclamou outro crédito resultante de um contrato de abertura de crédito com o valor total de € 20.243,01 sendo € 20.147,85 de capital, € 94,16 de juros de mora vencidos entre 01.06.2015 e 05.06.2015 à taxa de 8,598% e comissões de € 1,00.
No âmbito do processo de insolvência acabou por ser reconhecido um crédito da CGD sobre o insolvente no valor total de € 79,477,03, sendo que no rateio final aquela veio a receber o montante de € 4.949,13.
A Exequente CGD não imputou a quantia recebida no crédito que reclama na execução o que, naturalmente, estava obrigada a fazer. Isso é desde logo evidente, quando se verifica que no requerimento executivo a quantia que a Exequente reclama é a de € 54.575,29 de capital e juros vencidos de 10/01/2015 a 28/07/2022 no total de € 73.563,14, constatando-se que o valor do capital é o mesmo que foi reclamado e reconhecido no processo de insolvência e são pedidos em ambos os casos os juros vencidos desde 10/01/2015.
Assim sendo, já se vê que nesta parte importa dar razão à Recorrente, determinando-se que à quantia exequenda seja deduzido o valor recebido pela Exequente no âmbito do processo de insolvência, na proporção do respetivo crédito ali reconhecido relativo ao contrato de mútuo, devendo igualmente os juros de mora ser contabilizados por referência ao valor do remanescente do capital em dívida após imputação daquele pagamento.
V. Decisão:
Em face do exposto decide-se julgar o parcialmente procedente o recurso interposto pela Embargante, determinando-se que à quantia exequenda seja deduzido o valor recebido pela Exequente no âmbito do processo de insolvência, na proporção do respetivo crédito ali reconhecido relativo ao contrato de mútuo, devendo igualmente os juros de mora ser contabilizados por referência ao valor do remanescente do capital em dívida após imputação daquele pagamento
Custas da ação e do recurso por ambas as partes na proporção do decaimento- art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 12 de outubro de 2023
Inês Moura
Orlando Nascimento
Laurinda Gemas