Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
249/14.9PAPTS.L1-5
Relator: FILIPA MACEDO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - Tendo em atenção o bem jurídico protegido, que orienta a interpretação do tipo legal e o caso concreto, para a consumação do crime de violência doméstica, não é necessário que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante, como alega o recorrente.
- Trata-se de um crime específico por pressupor uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo.
- Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), altura em que, se assim suceder, a reiteração (que não é exigível para o preenchimento do tipo legal crime) funciona como elemento constitutivo do crime (por isso o crime consuma-se com a prática do último acto que integra a actividade criminosa em causa).
- No entanto, o crime em apreço também se preenche mesmo que não haja reiteração, quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.
- A nível do tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo, mas tratando-se neste particular situação de um crime de mera actividade - está aqui em causa o infligir de "maus-tratos psíquicos", basta o dolo de perigo de afectação da saúde, aqui o bem-estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo.
- O arguido continuava a dever um especial respeito à sua ex-companheiro e mãe dos seus filhos, pelo que a sua conduta, reiterada no tempo, não integra tão-só a prática de um crime de injúria, pois na verdade as expressões concretamente dirigidas à ofendida visaram perturbá-la no seu bem-estar psicológico, na sua tranquilidade, na sua imagem de si própria, enquanto mulher, companheira e mãe e ainda na imagem, que os outros têm de si e no modo como os outros a vêem, o que é essencial para o seu amor-próprio e da autoconfiança, factores que o arguido quis precisamente atingir.
- A conduta reiterada do agente sobre a vítima não tem de durar anos, conforme parece alegar o recorrente, apenas tem de durar o tempo suficiente para que seja idónea a perturbar a vítima.
- A Sentença recorrida atendeu às finalidades de prevenção especial subjacentes a esta condenação e daí ter também decidido pela pena acessória sobredita e a alegada falta de fundamentação apenas se verificaria se inexistissem ou se mostrassem ininteligíveis as razões do Tribunal “a quo” para aplicação da pena acessória.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
TEXTO INTEGRAL

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA 5ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO:

1. – No processo supra referido da Comarca da Madeira – Funchal - Inst. Central – Sec. Ins. Criminal – Juiz 1, foi proferida Sentença pelo Mm.º Juiz, a fls 166 a 185, em 10/11/2015, que:
- condenou o arguido - J. pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a contar do trânsito em julgado da presente decisão (artigo 50.º n.º s 1 e 5 do Código Penal);
- condenou o arguido J. na pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja directamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, com excepção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, nos termos do artigo 152.º n.º 4 do Código Penal.

É do seguinte teor, tal Sentença:

( … )
I – Relatório
Para julgamento, em processo comum, e com intervenção de Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação contra
- J.,
Imputando-lhe a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal.

O arguido foi regularmente notificado da acusação, tendo apresentado contestação e rol de testemunhas

Após o despacho que recebeu a acusação não ocorreu qualquer nulidade ou excepção de que cumpra conhecer, mantendo-se os pressupostos de validade e regularidade processuais já apreciados, nada obstando à prolação de decisão.

Procedeu-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais, como pode comprovar-se pela respectiva acta.

II – Fundamentação de Facto
Factos provados:
Com relevância para a decisão criminal:
1. M. e J. mantiveram uma relação análoga às dos cônjuges durante cerca de oito anos, a qual terminou em Junho de 2014;
2. Da relação nasceram dois filhos, menores de idade;
3. Após ter tido conhecimento da união da ofendida com o seu actual namorado, JT, que ocorreu em data não concretamente apurada do Verão de 2014, o arguido J. começou a passar de carro em frente à casa da ofendida e a tirar fotografias aos carros que estão estacionados à porta;
4. Entre os meses de Agosto e Novembro de 2014, o arguido enviou através do seu telemóvel para o número de telemóvel da ofendida dezenas de mensagens, onde afirma que a ofendida é falsa, que a vai desmascarar, que estragou a vida dos filhos, que se vai arrepender de tudo o que fez, que vai colher o que semeou, que todas as pessoas falam mal de si, que manipula os filhos contra si, que os filhos estão a sofrer por causa dela, que não acompanha os filhos, que é uma traidora, que não tem respeito, que não tem vergonha, que é vingativa e que é uma puta, nojenta, coirão, mentirosa, falsa e sem vergonha;
5. Naquele período de tempo, além das menagens escritas, o arguido também telefonou dezenas de vezes para o telemóvel da ofendida, durante o dia;
6. Entre os meses de Julho e Agosto de 2014, o arguido enviou dezenas de mensagens escritas para o telemóvel de JT, actual companheiro da ofendida, onde afirma que a ofendida não é uma pessoa séria, que é uma traidora e que também o vai trair, que andou metida com muitos homens e tem muitas histórias para contar, que o traiu e enganou e fez dele um palhaço e que vai colher o que semeou, que toda a gente fala dessa “cabra” e que é “uma puta séria sem vergonha”;
7. No dia 04.10.2014, em hora compreendida entre as 20:00 e as 21:00 horas, a ofendida estava na sua residência, sita na freguesia do Campanário, concelho da Ribeira Brava quando o arguido chegou de carro e parou à porta da casa;
8. Tendo-se então dirigido à assistente e dito a esta, em tom sério e intimidatório: “vou-te apanhar, espera que vais ver!”;
9. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente ao praticar os factos supra descritos;
10. Bem sabendo que a prática de tais factos configura um crime, querendo e conseguindo humilhar, denegrir e aterrorizar a ofendida, sua ex-companheira e mãe dos seus filhos, afectando-a na sua integridade moral e psicológica, na sua saúde e bem-estar, o que fez de forma reiterada ao longo de vários meses, criando na ofendida grande vergonha, humilhação, perturbação e medo;

Mais se provou ainda, que:
1. O arguido é serralheiro de profissão, auferindo o salário mensal de € 600,00;
2. Vive em casa própria e tem dois filhos menores;
3. Completou o 7.º ano de escolaridade;
4. O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados:
- Os factos referidos em 3) dos factos provados aconteceram constantemente, e o arguido com a sua prática pretendia vigiar quem entrava e quem saía da casa da ofendida, monitorizando os horários e rotinas desta e de quem frequenta a sua casa;
- As mensagens a que se alude no facto provado 4) foram enviadas pelo arguido às centenas;
- Que as chamadas telefónicas a que se faz referência no facto provado 5) foram efectuadas durante a noite, e reencaminhadas para a caixa de correio;
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 7) dos factos provados, após avistar a ofendida, o arguido começou a discutir com a assistente e a chamar-lhe de mentirosa, coirão e puta;
- Na situação referida em 8) dos factos provados, o arguido disse à assistente o seguinte: “quando te encontrar na rua vou-te rebentar toda”.

Todos os demais factos aqui não constantes são dados como não provados, ou afiguram-se como conclusivos ou de direito, ou não revestem interesse e relevância para a boa decisão da causa.

Fundamentação da decisão da matéria de facto
Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cumpre indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e proceder ao seu exame crítico.

Assim, não basta enumerar os meios de prova, antes se impondo a “explicação do processo de formação da convicção do tribunal” – Acórdão da Relação de Coimbra n.º 680/98, de 02 de Dezembro, por forma a permitir a decisão “do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 406/99 3AS de 12 de Maio, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Este processo de convicção do Tribunal formar-se-á, não só com os “(…) dados objectivos fornecidos pelos documentos e outros provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas e contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, (…) linguagem silenciosa e do comportamento, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-01-2005, disponível in www.dgsi.pt.

Tendo em conta as considerações que se acaba de tecer, consigna-se que a convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada resultou da conjugação e análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente das declarações da ofendida e da prova testemunhal, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade, bem como da prova documental constante dos autos.

O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

Exceptuando o caso dos documentos autênticos e autenticados, uma vez que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (artigo 169.º do Código de Processo Penal).
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Relativamente às declarações do arguido, importa sublinhar que as mesmas “constituem um meio de prova e/ou o exercício do seu direito de defesa, pelo que se reconhece às declarações do arguido, em qualquer das fases do processo, uma dupla natureza: de meio de prova e de meio de defesa” (neste sentido, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Tomo III, edição 2008, p. 197).
No caso em apreço, o arguido esteve presente em julgamento.

Genericamente, o arguido limitou-se a negar a prática dos factos de que vem acusado, mas fazendo-o sem solidez e convicção, motivo pelo qual as suas declarações não lograram convencer o tribunal.
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Importa notar que neste tipo de criminalidade as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm de se imiscuir na vida privada de um casal (cfr. a propósito do relevo do depoimento da vítima no âmbito do crime de “violência doméstica” vide o Acórdão da Relação de Évora de 09-03-2004, www.dgsi.pt).

Neste sentido, as declarações prestadas em julgamento pela assistente M. revelaram-se essenciais para a formação da convicção do Tribunal. Confirmou o recebimento das mensagens e telefonemas pelo arguido e o respectivo teor, assim como as palavras que o arguido lhe dirigiu pessoalmente no dia 04.10.2014, constantes do facto provado 8.

Assim, a prova do teor das mensagens recebidas no telemóvel da assistente faz-se através da prova testemunhal, e em concreto das declarações da assistente, conjugando-as e articulando-as com as transcrições das mesmas constantes de fls. 48 e ss. dos autos, que lhe confere mais solidez e força probatória.

No mais, a assistente prestou depoimento seguro, enquadrando os factos em julgamento, depondo de forma sentida, sofrida e angustiada, com o que logrou convencer o tribunal. Por isso, o depoimento da assistente afigura-se sério, isento e credível.

Paralelamente, o tribunal ouviu ainda em julgamento as seguintes testemunhas:

JT – É o actual namorado da assistente, e prestou depoimento claro, convicto, espontâneo, sério e isento, logrando convencer o tribunal, justificando a sua razão de ciência pelo facto de ser o actual namorado da assistente e de ter recebido no seu telemóvel mensagens provenientes do telemóvel do arguido, cuja leitura se procedeu em audiência de julgamento.

MT (conhecida do arguido), EN (imã do arguido), PC (mãe da assistente, e que está de relações cortadas com a mesma) e LV (irmã da assistente, e que está de relações cortadas com a mesma) – todas estas testemunhas depuseram de forma nada isenta e credível, não convencendo o tribunal.

Para a formação da convicção do Tribunal, foi ainda valorada toda a prova documental junta aos autos, devidamente analisada e conjugada entre si.
Assim, o tribunal valorou nomeadamente os seguintes documentos:
- Auto de denúncia de fls. 3 e ss.;
-Transcrições das mensagens de fls. 47 a 78.

Os factos provados atinentes ao elemento subjectivo resultam desde logo das presunções ligadas ao princípio da normalidade e das regras gerais de experiência.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 23/02/83, in BMJ, n.º 324, p. 620, “o dolo pertence à vida interior de cada um, sendo, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só sendo possível captar a sua existência através de factos materiais comuns”.

Atento o exposto, ponderando a globalidade da matéria provada nos presentes autos, entendemos que existem factos materiais comuns e objectivos que permitem apreender com relativa clareza que o arguido agiu com o propósito concretizado de persistentemente molestar psiquicamente a ofendida, assim como agiu com intenção de a vexar e de ofender na sua honra e dignidade.

Por outro lado, importa sublinhar que estamos perante um tipo de crime que não é axiologicamente neutro, pelo que a “consciência da ilicitude material” decorre das regras da experiência comum e será de se presumir.

Nesse sentido, escreve Teresa Beleza (in Direito Penal, 2.º Volume) que na problemática do erro sobre a ilicitude “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito (…) o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe a consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume”.

Também no Acórdão do STJ de 14-10-1992, Processo 42.918, disponível in www.dgsi.pt, é dito que “a consciência da ilicitude fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível”.

Conclui-se, pois, que o arguido bem sabia – não podendo desconhecer – que a sua conduta era proibida por lei e penalmente punida.
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Os antecedentes criminais do arguido decorrem do CRC do mesmo junto aos autos.
E as condições económicas e sociais do arguido extraem-se das declarações prestadas em tribunal pelo arguido.

III – Fundamentação de Direito
Determinado o quadro factual de acordo com o teor da acusação e, sem perder de vista o princípio da vinculação temática do Tribunal (artigos 339.º, n.º 4, 358.º e 359.º, todos do Código de Processo Penal), importa agora efectuar o respectivo enquadramento jurídico e, nesse âmbito, apurar se o arguido deverá ou não ser penalmente responsabilizado pela prática dos crimes pelo qual vem acusado.

Do crime de violência doméstica
O arguido vem acusado de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.º n.º s 1, alínea B), e 4 do Código Penal.
O tipo de crime de violência doméstica prevê que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(…)
a) A pessoa (…) com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga ao dos cônjuges (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
O n.º 4 daquele preceito legal estabelece ainda que nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de
uso e porte de armas, pelo período de 6 meses a 5 anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

A actual redacção do Código Penal, embora mantendo a integração sistemática da anterior redacção, autonomizou o anterior crime de maus-tratos, criando um novo tipo legal de crime, previsto e punível igualmente pelo artigo 152.º, mas agora sob a epígrafe “violência doméstica”.

A respeito do congénere crime de maus tratos (p. e p., pelo art. 152º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), dizia Taipa de Carvalho1 que “o bem jurídico protegido é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge”.

Como salientava o mesmo autor, “A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade (…), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que (…) lesam esta dignidade”.

1 In Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Volume I, pág. 332.
Afirma Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305) que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos”.

O normativo em análise, ao punir os maus tratos a pessoas particularmente indefesas, que se tenha à sua guarda ou à sua responsabilidade visa prevenir a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa2, no “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”.

A função do referido artigo 152.º do Código Penal é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e perniciosas formas de violência na família. A criminalização destas condutas, com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou da progressiva consciencialização ético-social da gravidade individual e social destes comportamentos, que não constituem fenómeno recente. Nas palavras de Américo Taipa de Carvalho (3) “a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o direito penal se tinha de abster de intervir”.

Trata-se de um crime específico, na medida em que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação de subordinação existencial. Em bom rigor, o crime de maus-tratos é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar ou de dependência entre o agente e a vítima (neste sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Portuguesa Editora).

O crime de maus-tratos pune os maus-tratos físicos ou psíquicos. As condutas previstas e punidas neste preceito são de várias espécies, aí se prevendo, a título meramente exemplificativo, os castigos corporais, as privações de liberdade e as ofensas sexuais, condutas que em si mesmas seriam susceptíveis de preencherem tipos penais autónomos.
Para o preenchimento do tipo objectivo de ilícito, é necessário que se verifiquem maus-tratos físicos ou maus-tratos psíquicos.
Os maus-tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente em ofensas corporais simples.
Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, BMJ 335-5.
In ob. e loc. citados, pág. 330.

Por maus-tratos psíquicos compreendem-se os actos que ofendem a integridade moral, como as humilhações, provocações, ameaças, injúrias, que se manifestam no facto de o agente dirigir à vítima palavras ofensivas da sua honra ou consideração.

De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus-tratos.

Assim, as condutas que integram o tipo objectivo do crime de violência doméstica podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem outros crimes, pelo que se suscitam questões de concurso de crimes. Pode-se, para o efeito, suscitar-se a questão de saber se, perante a factualidade considerada provada nestes autos, deve entender-se que o arguido praticou o crime de maus-tratos, ou se praticou, antes, uma pluralidade de crimes de tipo comum (nomeadamente de injúrias e de ofensas à integridade física).

De facto, o crime de maus-tratos pode concorrer com o de ofensa à integridade física e injúrias; contudo, este concurso é aparente, ficando, então, consumido aquele que for passível de punição menos gravosa.

Assim, estes últimos ilícitos penais ficarão, por regra, consumidos pelo crime de maus-tratos porque, coincidindo nos seus elementos descritivos, representam em relação a ele um minus.

Deste modo, entre o crime de maus-tratos (artigo 152.º - A, n.º 1, alínea b), do Código Penal) e o crime de ofensas à integridade física simples (artigo 143.º, n.º 1), existe uma relação de especialidade, prevalecendo o primeiro.

O mesmo se diga da relação existente entre o crime de maus-tratos e os crimes de ameaça (artigo 153.º) e de injúria (artigo 181.º), em que também o concurso é aparente, cedendo estes face àquele.

No mesmo sentido se pronunciou Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Portuguesa Editora, ao escrever que “o crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus-tratos, tendo o legislador feito preceder o crime especial (artigo 152.º do CP) ao crime geral (artigo 152.º - A do CP). Por outro lado, ele está numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, com os crimes de ameaças simples ou agravadas, com o crime de coacção simples, com o crime de sequestro simples, com o crime de coacção sexual e com os crimes contra a honra. Portanto, a punição do crime de violência doméstica afasta a punição de qualquer destes crimes.”

Por outro lado, a respeito da anterior redacção, entendia Taipa de Carvalho4 que “O tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime”.

Sobre a questão do elemento reiteração, Leal Henriques e Simas Santos5 observavam que “não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo legal (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige a habitualidade da conduta”.


In ob.cit., pág. 334.

In Código Penal Anotado, 3ª Edição 2º Volume, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 301.

Na senda da longa discussão jurisprudencial que a este respeito se foi desenvolvendo, o legislador entendeu, com a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, fazer constar expressamente que a realização do tipo não exige um comportamento continuado ou duradouro (“de modo reiterado ou não”).

Parece ter sido, pois, intenção do legislador consagrar a tese daquela jurisprudência que vinha entendendo que a reiteração não era elemento essencial do tipo.

De facto, conforme se entendeu no Acórdão da Relação de Coimbra de 29/01/2003, disponível in www.dgsi.pt/trc: “Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus-tratos a cônjuge. O que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibil idade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.”

No mesmo sentido se pronunciou o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de Junho 2007, publicado in www.dgsi.pt, (6) “o crime de maus tratos não é um crime duradouro e permanente, realiza-se através de uma pluralidade de actos ou dum único acto. O artigo 152.º do Código Penal não exige, para a verificação do crime ali previsto, uma conduta plúrima e repetitiva de actos de crueldade.”

Como se depreende hoje da leitura do artigo 152.º do Código Penal, a reiteração da conduta, embora constando explicitamente da sua formulação, não é necessária para que se preencha o tipo objectivo do crime de violência doméstica.

O crime de violência doméstica realiza-se, assim, através de uma pluralidade indeterminada de actos parciais, ou, ao invés, através de um único acto, de uma única conduta, que, pela sua excepcional violência e gravidade, atinja a saúde física, psíquica ou mental do ofendido e afectem a sua dignidade pessoal.

Como se refere no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-03-2009, Processo 624/07.5 GBAND.C1 (Ribeiro Martins), “o tipo definido no artigo 152.º do CP tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflicção de agressões físicas ou psíquicas ao ofendido, como numa só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar”.

Como já sublinhámos, o tipo de crime em causa exige que os maus-tratos físicos e psíquicos tenham sido infligidos “de modo reiterado ou não”. Assim, em abstracto, um acto isolado e único será suficiente para preencher o crime em análise.

Porém, não será qualquer acto isolado que, por si só, tem força suficiente para preencher o conceito de maus-tratos físicos ou psíquicos exigidos pelo crime tipificado no artigo 152.º do Código Penal.

Assim, tem entendido a jurisprudência que o crime de maus-tratos apenas se realiza através de um único acto, de uma única conduta, que, pela sua excepcional gravidade, violência ou intensidade, atinja de forma particularmente grave a saúde física, psíquica ou mental da ofendida e, simultaneamente, afectem a sua dignidade pessoal.

6 No mesmo sentido vejam-se ainda, entre outros, os Acórdãos da R.P. de 11/07/2007 e de 12/05/2004, ambos publicados in www.dgsi.pt.

Neste sentido, se pronunciou o Acórdão do STJ de 12-03-2009, Fernando Fróis, www.dgsi.pt: “A actual redacção mais não significa que do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus-tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente (…) nos casos de especial violência, uma única agressão será suficiente para preencher o tipo legal”.

A mesma posição é sustentada por Maria Elisabete Ferreira (in, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, p. 106-107): “face à nova redacção dada pela Lei o referido crime pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas (…) embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito”.

No que concerne ao elemento subjectivo, a lei exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no artigo 14.º do Código Penal. O dolo deverá estender-se a todos os elementos objectivos do tipo. É sempre necessário que o agente saiba que está a infligir maus-tratos físicos ou psíquicos a terceiro com o qual mantém uma relação de proximidade, e, mais do isso, o queira fazer (7).
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Descendo ao caso dos autos.

Voltando ao caso em apreço, vejamos então se, face à factualidade dada como provada, resultam verificados os elementos típicos do crime de violência doméstica.

Face à factualidade assim considerada assente não persistem dúvidas quanto ao preenchimento dos pressupostos objectivos do tipo em análise.

Em primeiro lugar, consta dos factos provados que o arguido e a ofendida viveram uma relação análoga á dos cônjuges.
Assim, mostram-se preenchidas as qualidades exigidas pela lei quanto ao agente e à vítima deste tipo legal de crime.

Mais se provou que no caso “sub judice” existiu uma pluralidade de condutas agressivas do agente. A reiteração de tais comportamentos ao longo dos anos – com repercussões inevitáveis no bem-estar psíquico da ofendida – integram o crime de violência doméstica.

Nestes termos, decorre da factualidade provada que o arguido injuriou e ameaçou verbalmente a ofendida, sendo que tais agressões são susceptíveis de se enquadrar no conceito típico de “maus-tratos psíquicos”.

Atento o exposto, mostram-se provados os elementos objectivos previstos no n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal. Na verdade, resulta provado que o arguido ofendeu e ameaçou verbalmente a vítima, de modo (Neste sentido Américo Taipa de Carvalho, in ob. e loc. citados, pág. 334.) reiterado, praticando no decurso do tempo uma pluralidade indeterminada de actos que, inevitavelmente, pela sua violência, gravidade e intensidade, atingiram a saúde psíquica e mental da ofendida.

É, pois, manifesto que o arguido, ao praticar repetidamente actos susceptíveis de ofender psiquicamente a vítima, atingiu o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em causa: a dignidade e liberdade da pessoa humana.
Assim, o arguido infligiu à vítima ofensas na sua honra que, pela sua reiteração, permanência, gravidade e intensidade demonstram um total desrespeito para com a dignidade da ofendida.

No tocante ao elemento subjectivo, uma vez que resultou provado que o arguido actuou em livre manifestação de vontade, no propósito concretizado de a atingir na sua honra e consideração, e de atingir e molestar a sua integridade moral, pelo que resulta afirmado o dolo directo do arguido (art. 14.º, nº 1 do Código Penal).

De facto, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que, com as suas condutas, maltratava psicologicamente a ofendida, o que quis, e conseguiu.

De tudo o exposto, somos levados a concluir pelo preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b), do Código Penal.

Porque não existem causas de exclusão da ilicitude dos factos ou da culpa do arguido, conclui-se que também o tipo de culpa do crime de “violência doméstica” se encontra preenchido.

De facto, em sede de culpa, o arguido é imputável, agiu com liberdade de decisão, pois apesar de saber que a sua conduta era punida criminalmente, e que devia adoptar conduta conforme ao Direito, incorreu na prática do crime porque veio acusado.

Assim, atentas as considerações expeditas, conclui-se que, com a sua actuação, o arguido praticou um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

IV – Das consequências jurídicas do crime
Nos termos do artigo 71.º n.º 3 do Código Penal, “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. No mesmo sentido, o n.º 1 do artigo 375.º do CPP prevê que “a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidem à escolha e à medida da sanção aplicada”.
Assim, enquadrada juridicamente a conduta do arguido, e tendo-se concluído pela sua responsabilidade criminal, importa agora expor os fundamentos que irão presidir à escolha e medida da pena a aplicar ao arguido.

Dos Fins das Penas
Feito o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, cumpre agora determinar qual a natureza da pena a aplicar e fixar a respectiva medida concreta, dentro da moldura abstractamente prevista na lei.
Para tanto, tenha-se presente que, nos termos do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de qualquer pena visa não só a protecção de bens jurídicos, mas também a reintegração do agente na sociedade.
Adicionalmente, por força do n.º 2 do mesmo dispositivo legal, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa do agente.
Assim, na referência do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal à protecção de bens jurídicos, descortinamos uma alusão à finalidade de prevenção geral positiva: é através do reforço da consciência comunitária a respeito da validade desse bens jurídicos que se concretiza tal protecção.
A prevenção geral positiva traduz a ideia de que a pena aplicada ao agente deve manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e eficácia das normas jurídico-penais como instrumentos de tutela de bens jurídicos. A pena tem, pois, de corresponder às expectativas da comunidade.

Por sua vez, na referência do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal à reintegração do agente na sociedade, identificamos a finalidade de prevenção especial positiva. Nesse sentido, a pena tem como finalidade reinserir socialmente o agente através da sua adesão aos valores e princípios da comunidade, evitando, deste modo, a prática pelo agente de novos crimes.

Nos termos do n.º 2 do artigo 40 CP, a pena, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa. Consagra-se, pois, o princípio da culpa na sua dimensão unilateral de limite: não há pena sem culpa, a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa. A pena supõe a culpa e não pode ultrapassar a medida da culpa. Ou, por outras palavras, a culpa é o limite inultrapassável da pena e é condição necessária, embora não suficiente, da aplicação da pena.

Na verdade, toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do agente. Por isso, a culpa é não apenas o limite da pena, mas também o seu fundamento, pois só com base num juízo de culpa pode encontrar legitimidade a pena enquanto intervenção estadual na esfera pessoalíssima do delinquente (vide José de Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra, 1992, pág. 373 e ss.).

Do referido artigo 40.º do Código Penal tem a doutrina retirado a ideia de que a pena tem finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral ou especial, positiva ou negativa) e nunca puramente retributivas.

Atento o exposto, e sabendo que a culpa constitui condição necessária de aplicação da pena e limite inultrapassável da sua medida, conclui-se que o ponto de partida para a determinação da medida da pena são as exigências de prevenção geral positiva ou de integração.

Estas exigências representam as necessidades de tutela de bens jurídico-penais no caso concreto, de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada.

É a aplicação de uma pena justa, que a comunidade espera e reclama, que reforça a confiança da comunidade na vigência da ordem jurídica e na validade dos bens jurídicos em questão (vide Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, Coimbra).

Assim, dentro do limite máximo permitido pela culpa, a pena deve ser determinada no interior de uma moldura de prevenção geral positiva, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral positiva a medida da pena será encontrada – e este é o ponto de chegada – em função das exigências de prevenção especial, maxime de socialização.

Determinação da medida legal ou abstracta das penas
A determinação da medida da pena obedece a três fases, a saber: determinação da moldura penal (medida legal ou abstracta da pena) aplicável ao caso; escolha da espécie de pena que efectivamente deve ser imposta; determinação concreta da pena (vide Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, Coimbra, p. 198). No caso concreto, o crime de violência doméstica praticado pelo arguido é punido com pena de prisão de um a cinco anos (artigo 152.º n.º s 1, alínea a), do Código Penal).

Determinação concreta da pena
Na medida em que o crime de “violência doméstica” é punido apenas com pena de prisão, não se coloca ao julgador qualquer tarefa de escolha da pena principal a aplicar.
**
Na determinação concreta da pena, o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal), constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena (artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal).

Como referido supra, culpa e prevenção constituem, pois, o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena, obviamente dentro dos limites (mínimo e máximo) definidos na lei – artigo 71.º, nº 1, do Código Penal.

Foi para fazer ou atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na Jurisprudência a teoria da margem da liberdade, teoria segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta. A pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinada em função da culpa, intervindo nela os outros fins das penas – prevenção geral e prevenção especial – dentro daqueles limites8.

Nos termos do disposto no art.71º n.º 1 do Código Penal a determinação da medida da pena (...) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4-113.

Como referido supra, a medida da pena, dentro da moldura penal abstracta, deve encontrar-se entre exigências de prevenção geral positiva – o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade das normas – e a culpa em concreto do agente, como espaço de resposta às necessidades da sua reintegração social.

Assim, dispõe o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal que, para efeitos de determinação da medida concreta da pena, o Tribunal deverá atender, nomeadamente, ao grau de ilicitude do facto à culpa do agente, à intensidade do dolo ou negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, aos fins ou aos motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente e à sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto e à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas.
**
No caso em apreço, as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa. De facto, a violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade. Só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade humana poderá criar condições de harmonia tão desejadas.

Tendo presente o princípio da proibição da dupla valoração, consagrado no referido artigo 71.º n.º 2 do Código Penal, segundo o qual não devem ser tomadas em consideração, na medida concreta da pena, as circunstâncias que façam parte do tipo de crime, vejamos quais as circunstâncias de depõem contra e a favor do arguido.

Assim, no caso concreto há que ponderar:
- O grau de ilicitude do facto: no crime de violência doméstica praticado pelo agente o grau de ilicitude afigura-se médio-baixo, atenta a natureza do ilícito em causa (com insultos e ameaças, mas sem recurso a ofensas à integridade física) e o curto lapso temporal em que as agressões psíquicas se mantiveram;
- A intensidade do dolo que, in casu, como se viu, na modalidade de dolo directo, de alta intensidade, por ser a forma mais gravosa do dolo e que representa maior desvalor;
- A ausência de antecedentes criminais do arguido;
- Actualmente o arguido e a ofendida não vivem juntos na mesma casa.

Assim, face ao exposto, atendendo às exigências de prevenção especial positiva que se fazem sentir no caso, e considerando as circunstâncias que depõem contra e a favor do arguido, entende o Tribunal ser adequada e suficiente fixar ao arguido a pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.

Das Penas de Substituição
Fixada a pena de prisão ao arguido, cumpre, neste momento, ponderar sobre a aplicação, in casu, de uma pena de substituição
Escreve Anabela Rodrigues, in RPCC, ano I, n.º 2, pág. 257, em anotação favorável ao Acórdão do STJ, de 21/03/1990, que “é hoje unanimemente reconhecido que qualquer das formas de substituição da pena clássica de prisão não deixa de envolver a inflição de um mal que comporta um efeito mais ou menos penoso para quem o sofre, constituindo, nesse sentido, uma verdadeira pena”.
Refere o Acórdão do STJ de 21-06-2007, proferido no âmbito do Processo n.º 07P2059, disponível em www.dgsi.pt que “o tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar penas de substituição, pois não detém uma faculdade discricionária; antes o que está consagrado na lei é um poder/dever ou poder vinculado”.
Haverá, pois, que ponderar a possibilidade de substituição da pena de prisão aplicada ao arguido por qualquer uma das de penas de substituição em sentido próprio (não detentivas): a substituição por multa, por trabalho a favor da comunidade ou a suspensão da execução da pena de prisão, pois que a decisão do tribunal não se pode esgotar com a escolha da sanção a aplicar ao arguido e com a respectiva medida.
Por outro lado, e concluindo-se pela não substituição por qualquer daquelas medidas, deverá ponderar da possibilidade de a pena de prisão ser executada em regime de permanência na habitação (art. 44º do Código Penal), em dias livres (art. 45º do Código Penal) ou em regime de semi-detenção (art. 46º do Código Penal).

O legislador não estabelece critérios a adoptar para a hipótese de no mesmo caso serem aplicáveis diversas penas de substituição. Porém, a decisão de substituição deverá nortear-se por razões de prevenção geral e especial, nos termos definidos no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, e não já por critérios de culpa.

Entre as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, neste momento de escolha da espécie da pena, deve dar-se prevalência à prevenção especial de socialização. A prevenção geral surge aqui unicamente sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização9. 9 Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do crime, pág. 333.

Assim, o julgador, decidindo-se pela substituição da pena de prisão, há-de escolher a medida de substituição que realizar, de forma mais adequada, as finalidades de prevenção especial.

No caso dos autos, tendo em conta que ao arguido foi aplicada uma pena de prisão de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, cabe apreciar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

Da suspensão da execução da pena de prisão
Vejamos, por isso, se o Tribunal deve fazer operar o instituto da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no artigo 50.º do Código Penal.

Nos termos do art. 50.º n.º 1 do Código Penal: "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

Através desta norma o legislador consagrou um poder-dever do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos, sendo esta uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico (neste sentido, vide Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/06/1996).

Assim, do aludido preceito em análise resulta que a suspensão da execução da pena de prisão – medida de conteúdo reeducativo e pedagógico – configura, para o julgador, um poder-dever, isto é, um poder vinculado, na medida em que deverá ser decretada sempre que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição.

Nas palavras de Leal-Henriques e Simas Santos (in Código Penal, em anotação ao artigo 50.º), “a suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo Tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base um juízo de prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime (...) o tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa”.

A verificação dos pressupostos necessários para a suspensão da pena nos moldes descritos, e de acordo com os critérios consagrados, é feita com reporte ao momento da decisão e não ao da prática do crime.

Naquele momento o julgador tem que fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização (neste sentido, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/05/1995, de 17/09/1997 e de 29/03/2001, disponíveis in www.dgsi.pt).

Assim, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, ou seja, a suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime”10.


10 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2007, Conselheiro Santos Carvalho, processo nº 07P1423, acessível in www.dgsi.pt.

Vejamos o caso dos autos.

No que tange ao juízo de prognose a efectuar por este Tribunal relativamente ao comportamento do arguido em causa, a convicção formulada vai no sentido de ser suficiente a simples censura do facto e a ameaça da pena para que sejam atingidas as finalidades da punição.
Por um lado, o arguido revela estar bem inserido socialmente.
Por outro lado, o arguido hoje em dia já não vive com a ofendida.
Por último, o arguido não tem antecedentes criminais.
Ora, tudo isto abona a favor de um juízo de prognose favorável à suspensão da pena.
Nos termos do artigo 50.º n.º 5 do Código Penal, o período de suspensão tem duração igual à pena aplicada.
Atento o exposto, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada em 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, pelo mesmo período (artigo 50.º n.º 1 e 5 do Código Penal).

V – Da pena acessória
Dispõe o artigo 152.º n.º 4 do Código Penal que no caso de condenação pelo arguido num crime de violência doméstica pode ser aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 5 anos.
Atendendo às finalidades de prevenção especial subjacentes a esta condenação, impõe-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses.
Tal pena acessória afigura-se como essencial para estancar as agressões de que a vítima tem sido vítima, sob pena de as mesmas se perpetuarem no tempo
Nestes termos, decide-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima (por qualquer meio, seja directamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, com excepção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, nos termos do artigo 152.º n.º 4 do Código Penal.

VI – Do direito a indemnização
Consigna-se que no caso concreto, apreciando a matéria de facto dada como provada, o tribunal entende que, nos termos do artigo 82.º - A do CPP, devidamente conjugado com o artigo 21.º n.º 2 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, não haverá lugar ao arbitramento de uma indemnização à vítima, porquanto extrai-se da conduta processual da ofendida que a mesma dispensa tal arbitramento.

VII – Responsabilidade pelas custas processuais
Atenta a condenação do arguido, este é responsável pelo pagamento de taxa de justiça e dos encargos ocorridos, na observância do disposto nos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e no artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Judiciais.
Pelo que, em conformidade com as citadas normas, a actividade processual desenvolvida e os limites mínimos e máximos estabelecidos na Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais, fixo em 2 UC a taxa de justiça devida nos presentes autos.
Mais, deverá o arguido ser responsável por todos os encargos e custas do processo a que a sua actividade houver dado lugar, nos termos dos artigos 16.º do Regulamento das Custas Judiciais e 514.º do Código Processo Penal.

VIII – DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, o Tribunal julga a acusação do Ministério Público procedente e, em consequência, decide-se:
- Condenar o arguido J. pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a contar do trânsito em julgado da presente decisão (artigo 50.º n.º s 1 e 5 do Código Penal);
- Condenar o arguido J. na pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja directamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, com excepção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, nos termos do artigo 152.º n.º 4 do Código Penal.
- Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, que se fixam nos seguintes termos: 2 UC de taxa de justiça, acrescida dos encargos a que a actividade do arguido houver dado lugar;
( … )

2. – Desta Sentença, recorreu o arguido – J., tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes “conclusões”:

( … )
1)- Da douta sentença de que ora se recorre, resulta ter o Arguido sido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p e p. pelo artigo 152º n.º1, alínea b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a contar do trânsito em julgado da presente decisão (artigo 50º n.º 1 e 5 do Código Penal), e na pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja diretamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 1 (um ano) e 2 (dois) meses, com exceção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, nos termos do artigo 152º n.º4 do Código Penal.
2)- O Tribunal “a quo” errou notoriamente na qualificação jurídico - criminal por insuficiência de matéria de facto, bem como na aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja diretamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 1 (um ano) e 2 (dois) meses, com exceção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, que é de todo desadequada a prosseguir os fins do direito penal por ser demasiado excessiva (art.410 nº. 2 al a) do C.P.P e art.71 e 72 do C.P).
3)-Dos factos provados não resulta que o arguido tenha agido com o propósito concretizado de persistentemente molestar psiquicamente a assistente na sua honra e dignidade.
4)-Dos factos provados, resulta que a assistente, M. e o arguido J. mantiveram uma relação análoga á dos cônjuges durante cerca de 8 anos, a qual terminou em Junho de 2014.
5)-E que entre os meses de Julho a Agosto de 2014, o arguido enviou mensagens escritas para o telemóvel de JT, atual companheiro da assistente, onde afirma que esta não é uma pessoa séria, que é uma traidora, que também o vai trair, que andou metida com muitos homens e tem muitas histórias para contar, que o traiu e enganou e fez dele um palhaço e que vai colher o que semeou, que toda a gente fala dessa cabra, que é uma puta séria sem vergonha.
6)- As mensagens enviadas, pelo arguido/recorrente, para o telemóvel do JT, ocorreram em Julho e Agosto de 2014, ou seja logo após a assistente ter saído de casa, tendo o arguido confirmado que assistente já mantinha um relacionamento amoroso com o JT.
7)- Aliás numa das mensagens lidas o arguido afirma: “a mim ninguém me chama de mentiroso a M. comigo tem de se ver, ela tem de se ver, ela traiu gozou mentiu enganou e fez de mim um palhaço e tu ajudaste á festa”.
8)-A assistente quando abandonou o lar conjugal, em Junho de 2014, fá-lo porque já mantinha, há algum tempo, um relacionamento com o atual companheiro JT, conforme resulta do depoimento do mesmo.
9)-Depoimento prestado pela testemunha JT, gravado no dia 04/11/2015, gravação digital (ficheiro 20151105121341 – 1502033 - 2871398).
10)-No caso concreto o comportamento do arguido, durante um lapso de tempo muito curto, foi movido pelo sentimento de sofrimento, ego ferido, por se ter sentido traído enganado, ou seja um palhaço na boca das pessoas, e não propriamente em termos de maus tratos psicológicos.
11)-Não existiu por parte do arguido/recorrente um comportamento de crueldade, intensidade, ou de vingança, sendo que os nomes de que apelidou a assistente não foram ditos de forma reiterada e, embora não desprovidos de censura, não assumem a particular gravidade que se exige, por forma a poder concluir-se que, por via deles o arguido tenha atentado contra a dignidade da pessoa humana, que o mesmo tenha tratado de forma cruel e desumana a assistente.
12)-O bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica reside na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana, bem como da própria saúde enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental.
13)-As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus-tratos físicos (isto é ofensas á integridade física simples, maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, tratamento cruel e desumano).
14)-Este normativo penaliza a violência doméstica na família, merecendo a atenção do Conselho da Europa, que a caracterizou como “ ato ou comissão cometida no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado á vida, á integridade física ou psíquica ou á liberdade de um outro membro da mesma família o que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”.
15)-As mensagens enviadas pelo arguido deviam ter sido devidamente apreciadas e valoradas no seu contexto – ou seja a degradação e rutura da relação, o sentimento de desilusão, angustia decorrido do arguido se sentir enganado, traído pela sua companheira e não propriamente em termos de maus tratos psicológicos.
16)-Não existiu por parte do arguido/assistente um comportamento que constitua atentado á vida, á integridade física ou psíquica ou á liberdade da assistente que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.
17)-Não existiu por parte do arguido um comportamento de crueldade ou insensibilidade, ou de vingança, repare-se que as mensagens enviadas ao JT, atual companheiro da assistente datam de Julho e Agosto, ou seja nos dois meses seguintes á rutura do relacionamento do casal.
18)-Não resultou provado que o comportamento do arguido se tenha perpetuado no tempo, e se mantido até a presente data, nem que o mesmo alguma vez pretendeu vigiar e monotorizar os horários da assistente.
19)-Os factos dados como provados não consubstanciam, de forma alguma, uma perpetração de qualquer ato de violência que afetasse, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da assistente, diminuindo ou afetasse, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa.
20)-Os factos dados como provados não revelam a prática do arguido do crime de que vem acusado, apenas evidencia uma situação de conflito, que rapidamente foi ultrapassada pelo arguido, e que foi motivada pelo sentimento de angústia em consequência de se ter sentido traído, enganado pela sua companheira.
21)-Assim, atendendo ao supra exposto, salvo melhor opinião, os factos provados não preenchem o tipo de crime de que foi acusado e condenado o arguido, até porque se trata de um crime de maus tratos físicos e psíquicos, o que afasta as meras injurias proferidas pelo arguido.
22)-Nem houve reiteração do comportamento, dado os factos datarem de Julho e Agosto de 2014, ou seja nos dois meses seguintes ao termino do relacionamento existente entre a assistente e arguido, nem tal comportamento teve a carga suficiente demonstradora de humilhação, provocação e ameaças.
23)-A factualidade provada não consubstancia a colocação da assistente numa situação que se deva considerar de vítima permanente de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade e, não se verificou a perpetração de qualquer ato de violência que afetasse a saúde física, psíquica e emocional da assistente, diminuindo ou afetasse, do mesmo modo, a sua dignidade.
24)-Os factos provados não preenchem o elemento objetivo e subjetivo do tipo de crime, violência domestica.
25)-As palavras proferidas pelo arguido, são desculpáveis, dado terem sido motivadas pelas suspeitas de infelidade, e confirmação da mesma e, embora não desprovidas de censura, tais atuações não assumem a particular gravidade que se exige por forma a poder concluir-se que, por via delas o arguido atentou contra a dignidade da pessoa humana que é a sua ex-companheira, nem se provou que a assistente se tenha sentido amedrontada, nem humilhada de forma grave.
26)-Da conduta do arguido não se retira que este procurou dominar, rebaixar a condição pessoal da assistente, diminuindo-a enquanto pessoa e que tenha atentado contra a sua dignidade pessoal, quanto muito contra a honra e consideração desta, logo passível de integrar a prática de um crime de injúria p e p pelo artigo 181º do Código Penal e não a prática de um crime de violência doméstica.
27)-Deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p e p. pelo artigo 152º n.º1, alínea b) do Código Penal.
28)-Caso assim não seja entendido, o arguido/ recorrente não pode concordar com a aplicação da referida pena acessória, desde logo porque a mesma carece de qualquer fundamentação, referindo-se apenas que “tal pena acessória afigura-se como essencial para estancar as agressões de que a vítima tem sido vítima, sob pena de as mesmas se perpetuarem no tempo.”
29)-A fundamentação da decisão tem uma dupla finalidade, pois permite conhecer os motivos, as razões que determinaram a opção do julgador em certo sentido, concretizando-se o princípio da transparência das decisões judiciais, e por outro lado faculta o controlo da decisão por um tribunal superior, assim assegurando-se o efetivo direito constitucional ao recurso.
30)-Na fundamentação da pena aplicada exige-se assim que o Tribunal explicite as operações lógicas-dedutivas que efetuou para apreciar os factos em conjunto com a personalidade do arguido, ponderando-se factualmente todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo deponham em favor do agente ou contra ele, deste modo se evitando que a decisão surja como arbitrária.
31)-No caso concreto a decisão não explicita o raciocínio que se tem de empreender na fixação da medida da pena acessória.
32)-Por outro lado, a referida pena acessória revela-se desadequado e exagerado á situação dos presentes autos.
33)-Os factos dados como provados na douta sentença datam de Julho e Agosto de 2014.
34)-Não se provou que o arguido e a assistente mantem á data um relacionamento conflituoso, bem como que o comportamento do arguido se perpetua no tempo.
35)-Não se provou que o comportamento do arguido/recorrente não permite a assistente ter sossego e paz interior na sua própria residência.
36)-Os conflitos entre o arguido e a assistente, mantiveram-se apenas nos dois meses seguintes, á rutura do relacionamento do casal, ou seja entre Julho e Agosto de 2014, não se perpetuou no tempo, sendo certo que o próprio arguido referiu na audiência de julgamento que vivia sozinho, mas tinha namorada.
37)-A aplicação da pena acessória ao arguido/recorrente patenteia uma situação de injustiça.
38)-Atento os factos provados a simples censura do facto e a ameaça de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e a integração social do arguido/recorrente, impedindo-o de comportamentos de violência, satisfazendo dessa forma as exigências de prevenção geral e especiais que se fazem sentir.
39)-A douta sentença violou o disposto no artigo 40º, 65º, 71º e 152º n.º 4 todos do Código Penal e, nessa conformidade deverá ser revogada.

Termos em que se requer a V. Exª Venerandos Juízes Desembargadores, perante as razões aduzidas que seja:
a)Revogada a sentença recorrida, devendo substituir-se por outra que declare a absolvição do arguido.

Caso assim não se entenda;
b) Revogar a pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja directamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 1 (um ano) e 2 (dois) meses, com excepção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, nos termos do artigo 152º n.º4 do Código Penal, dada a referida pena se revelar desadequada e exagerada á situação dos presentes autos.
( …)

3. – A Magistrada do M.ºP.º da 1ª instância respondeu, que o recurso deve ser julgado improcedente e mantida a Decisão recorrida.
4. – Neste Tribunal, a Digna P.G.A. aderiu à posição da sua Colega da 1.ª Instância.
5. – Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

6.– O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, é o seguinte:

o recorrente alega:
- errado enquadramento jurídico dos factos dados como provados na Sentença, já que não integram a prática de um crime de violência doméstica, mas tão-só um crime de injúria;
- a configurar um crime de violência doméstica, a pena acessória carece de fundamentação e é excessiva, pois os factos datam de Agosto de 2014 e não se provou, o arguido e a ofendido mantenham um relacionamento conflituoso.

II – CUMPRE APRECIAR:

Como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso se define pelas “conclusões”, que o recorrente extrai da respectiva motivação (artigos 412.°, n.° 1, e 417.°, n.° 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artigo 410.° n° 2 e 3 do Código de Processo Penal), como é, aliás, jurisprudência fixada pelo Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça n.° 7/95, de 19/10 e n.° 1/94, de 2/12, disponíveis em www.dgsi.pt.

***
No âmbito dos presentes autos, o arguido J. foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º n.º1, alínea b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória de proibição de contacto com a assistente pelo período de 1 (um ano) e 2 (dois) meses, com excepção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, nos termos do artigo 152º n.º4 do Código Penal.

Afirma, que dos factos provados resulta, que:

- a assistente, M. e o arguido J. mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges durante cerca de 8 anos, a qual terminou em Junho de 2014.
- Entre os meses de Julho a Agosto de 2014, o arguido enviou mensagens escritas para o telemóvel de JT, actual companheiro da assistente, onde afirma que esta não é uma pessoa séria, que é uma traidora, que também o vai trair, que andou metida com muitos homens e tem muitas histórias para contar, que o traiu e enganou e fez dele um palhaço e que vai colher o que semeou, que toda a gente fala dessa cabra, que é uma puta séria sem vergonha.
- As mensagens enviadas, pelo arguido/recorrente, para o telemóvel do JT, ocorreram em Julho e Agosto de 2014, ou seja logo após a assistente ter saído de casa, tendo o arguido confirmado que assistente já mantinha um relacionamento amoroso com o JT.
- Aliás numa das mensagens lidas o arguido afirma: “a mim ninguém me chama de mentiroso a M. comigo tem de se ver, ela tem de se ver, ela traiu gozou mentiu enganou e fez de mim um palhaço e tu ajudaste á festa”.
-A assistente quando abandonou o lar conjugal, em Junho de 2014, fá-lo porque já mantinha, há algum tempo, um relacionamento com o atual companheiro JT, conforme resulta do depoimento do mesmo, gravado no dia 04/11/2015, gravação digital (ficheiro 20151105121341 – 1502033 - 2871398).
-No caso concreto o comportamento do arguido, durante um lapso de tempo muito curto, foi movido pelo sentimento de sofrimento, ego ferido, por se ter sentido traído, enganado, ou seja um palhaço na boca das pessoas, e não propriamente em termos de maus tratos psicológicos.
-Não existiu por parte do arguido/recorrente um comportamento de crueldade, intensidade, ou de vingança, sendo que os nomes de que apelidou a assistente não foram ditos de forma reiterada e, embora não desprovidos de censura, não assumem a particular gravidade que se exige, por forma a poder concluir-se que, por via deles o arguido tenha atentado contra a dignidade da pessoa humana, que o mesmo tenha tratado de forma cruel e desumana a assistente.
-As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus-tratos físicos (ofensas à integridade física simples), maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, tratamento cruel e desumano).
-Este normativo penaliza a violência doméstica na família, merecendo a atenção do Conselho da Europa, que a caracterizou como “ ato ou comissão cometida no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado á vida, á integridade física ou psíquica ou á liberdade de um outro membro da mesma família o que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”.
-As mensagens enviadas pelo arguido deviam ter sido devidamente apreciadas e valoradas no seu contexto – ou seja a degradação e ruptura da relação, o sentimento de desilusão e angústia, decorrente de o arguido se sentir enganado, traído pela sua companheira e não propriamente em termos de maus-tratos psicológicos.
-Não existiu por parte do arguido/assistente um comportamento que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade da assistente, que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.
-Não existiu por parte do arguido um comportamento de crueldade ou insensibilidade, ou de vingança, já que as mensagens enviadas ao JT, actual companheiro da assistente datam de Julho e Agosto, ou seja nos dois meses seguintes à ruptura do relacionamento do casal.
-Os factos dados como provados não consubstanciam, de forma alguma, uma perpetração de qualquer acto de violência que afetasse, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da assistente, diminuindo ou afectasse, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa.
-Os factos dados como provados não revelam a prática do arguido do crime de que vem acusado, apenas evidencia uma situação de conflito, que rapidamente foi ultrapassada pelo arguido, e que foi motivada pelo sentimento de angústia em consequência de se ter sentido traído, enganado pela sua companheira.
-Assim, os factos provados não preenchem o tipo de crime por que foi acusado e condenado o arguido, até porque se trata de um crime de maus-tratos físicos e psíquicos, o que afasta as meras injúrias proferidas pelo arguido.
-Nem houve reiteração do comportamento, dado os factos datarem de Julho e Agosto de 2014, ou seja nos dois meses seguintes ao término do relacionamento existente entre a assistente e arguido, nem tal comportamento teve a carga suficiente demonstradora de humilhação, provocação e ameaças.
-A factualidade provada não consubstancia a colocação da assistente numa situação que se deva considerar de vítima permanente de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade e, não se verificou a perpetração de qualquer acto de violência que afectasse a saúde física, psíquica e emocional da assistente, diminuindo ou afectasse, do mesmo modo, a sua dignidade.
-Os factos provados não preenchem o elemento objectivo e subjectivo do tipo de crime - violência doméstica.
-As palavras proferidas pelo arguido, são desculpáveis, dado terem sido motivadas pelas suspeitas de infidelidade, e confirmação da mesma e, embora não desprovidas de censura, tais actuações não assumem a particular gravidade, que se exige por forma a poder concluir-se que, por via delas o arguido atentou contra a dignidade da pessoa humana, que é a sua ex-companheira, nem se provou que a assistente se tenha sentido amedrontada, nem humilhada de forma grave.
-Da conduta do arguido não se retira que este procurou dominar, rebaixar a condição pessoal da assistente, diminuindo-a enquanto pessoa e que tenha atentado contra a sua dignidade pessoal, quanto muito contra a honra e consideração desta, logo passível de integrar a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal e não a prática de um crime de violência doméstica.
-Pelo que deverá a sentença ser revogada e substituída por outra, que absolva o arguido da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p e p. pelo artigo 152º n.º1, alínea b) do Código Penal.
-Caso assim não se entenda, o arguido/ recorrente não pode concordar com a aplicação da referida pena acessória, desde logo porque a mesma carece de qualquer fundamentação.
-Na fundamentação da pena aplicada, exige-se, que o Tribunal explicite as operações lógicas-dedutivas, que efectuou para apreciar os factos em conjunto com a personalidade do arguido, ponderando-se factualmente todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo, deponham em favor do agente ou contra ele, deste modo se evitando que a decisão surja como arbitrária.
-No caso concreto, a decisão não explicita o raciocínio, que se tem de empreender na fixação da medida da pena acessória.
-Por outro lado, a referida pena acessória revela-se desadequado e exagerado à situação dos presentes autos.
-Os factos dados como provados na sentença datam de Julho e Agosto de 2014.
-A aplicação da pena acessória ao arguido/recorrente patenteia uma situação de injustiça.
-Atento os factos provados, a simples censura do facto e a ameaça de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e a integração social do arguido/recorrente, impedindo-o de comportamentos de violência, satisfazendo dessa forma as exigências de prevenção geral e especiais que se fazem sentir.
-A sentença violou o disposto no artigo 40º, 65º, 71º e 152º n.º 4, todos do Código Penal e deverá ser revogada.

***

Veio, pois, o arguido interpor recurso, alegando, em síntese, que:
- os factos dados como provados na Sentença não integram a prática de um crime de violência doméstica, mas tão-só um crime de injúria;
- a configurar um crime de violência doméstica, a pena acessória carece de fundamentação e é excessiva, pois os factos datam de Agosto de 2014 e não se provou, que o arguido e a ofendido mantenham um relacionamento conflituoso.

- Quanto ao Crime de Violência Doméstica.

Pratica o crime de violência doméstica previsto no artigo 152.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal:
"Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge", sendo "punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".

A al.ª b) deste artigo refere-se à relação entre sujeitos activo e passivo: “….a pessoa ( … ) com quem o agente mantenha ou tenha mantido ( … ) uma relação análoga à dos cônjuges ( … ).

Está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, como Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332, que "o bem jurídico protegido é a saúde - bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos", tendo em atenção as características do sujeito passivo, neste caso particular, que afectem a dignidade pessoal do ex-cônjuge do arguido.

Trata-se de um crime específico por pressupor uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo.

Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), altura em que, se assim suceder, a reiteração (que não é exigível para o preenchimento do tipo legal crime) funciona como elemento constitutivo do crime (por isso o crime consuma-se com a prática do último acto que integra a actividade criminosa em causa).

No entanto, o crime em apreço também se preenche mesmo que não haja reiteração, quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.

No que aqui interessa, o tipo objectivo de ilícito preenche-se com a acção de infligir "maus-tratos psíquicos" à ex-companheira do agente.

Portanto, tendo em atenção o bem jurídico protegido, que orienta a interpretação do tipo legal e o caso concreto para a consumação do crime de violência doméstica, não é necessário, que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante, como alega o recorrente.

A nível do tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo, mas tratando-se neste particular situação de um crime de mera actividade - está aqui em causa o infligir de "maus-tratos psíquicos", basta o dolo de perigo de afectação da saúde, aqui o bem-estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo.

Os comportamentos do arguido são idóneos a afectar o bem-estar psicológico da assistente, pois além de representarem total desrespeito para com a sua ex-companheira, causaram-lhe medo e ansiedade e eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso com a assistente.

A descrita conduta do arguido é penalmente censurável tendo em atenção o tipo legal em questão e o bem jurídico protegido.

Para além daquele comportamento do arguido em relação à sua ex-companheira ser idóneo a afectar o bem-estar psicológico da ofendida, também é claro, que lesou o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, tendo o arguido agido dolosamente como resulta igualmente dos factos provados.

Na verdade, o facto de o relacionamento do arguido e da assistente ter terminado e de o arguido ter ficado, segundo alega, muito perturbado, não justificado de modo algum que este, durante os dois meses que se seguiram, tenha perturbado a pessoa com quem havia partilhado a sua vida e a pessoa, que deu à luz os seus filhos e de ter tentado denegrir a sua imagem, o seu bom nome junto de terceiras pessoas.

Como admite o recorrente no seu recurso, com o fim da relação o arguido sentiu-se "um palhaço", tendo sentido necessidade de dirigir as expressões que constam dos autos à assistente, referindo, que todas as pessoas falam mal de si, que é “má mãe” e de ter afirmando, junto do seu actual companheiro, factos difamatórios da sua pessoa.

Na verdade, a conduta do arguido, que atacou o carácter da ofendida em todas as direcções possíveis e não se limitou a dirigir-se à questão do fim do relacionamento, visou vingar a sua honra e para demonstrar, que podia e conseguia perturbar mais do que aquilo, que foi perturbado, como conseguiu.

Perturbado ou não, o arguido continuava a dever um especial respeito à sua ex-companheiro e mãe dos seus filhos, pelo que a sua conduta, reiterada no tempo, não integra tão-só a prática de um crime de injúria, pois na verdade as expressões concretamente dirigidas à ofendida visaram perturbá-la no seu bem-estar psicológico, na sua tranquilidade, na sua imagem de si própria, enquanto mulher, companheira e mãe e ainda na imagem, que os outros têm de si e no modo como os outros a vêem, o que é essencial para o seu amor-próprio e da autoconfiança, factores que o arguido quis precisamente atingir.

A conduta reiterada do agente sobre a vítima não tem de durar anos, conforme parece alegar o recorrente.
Tem de durar o tempo suficiente para que seja idónea a perturbar a vítima.

E o comportamento do arguido foi insistente e incisivo e durou quatro meses; durante os quais o arguido quis magoar a vítima naquilo que lhe era mais caro, já que não se limitou a tentar afectá-la, quanto ao fim do relacionamento, mas atacou-a enquanto pessoa, enquanto mulher e enquanto mãe, acusando-a até de estar a prejudicar e fazer sofrer os seus filhos, o que, como resulta do senso comum, mais magoa uma progenitora.

O arguido sabia disso e quis magoá-la.
E é esse ataque à pessoa da ofendida, à sua honra, à sua dignidade, à sua consideração pessoal, ex-companheira e mãe dos filhos do agente, que consubstancia a maior censura sobre os factos e que permitem afirmar a existência de um crime de violência doméstica.

- Quanto à Pena Acessória.

O recorrente não concorda com a aplicação da pena acessória, que o impede de contactar com a assistente com excepção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns do casal, referindo que a Sentença refere apenas, que “tal pena afigura-se como essencial para estancar as agressões de que a vítima tem sido vítima, sob pena de as mesmas se perpetuarem no tempo”, o que não permite compreender o raciocínio a que obedeceu a Decisão “a quo”.

Apesar de não constar das “conclusões”, consta das motivações de recurso, que o arguido entende, que é do “superior interesse das crianças”, que os pais mantenham um bom relacionamento e que nas alturas festivas se possam relacionar.

Se na Sentença se excepciona as situações de contacto necessário para o exercício das responsabilidades parentais e se a participação numa ocasião festiva for importante para os menores, competirá aos progenitores acordar entre si a realização, ou não, de tais contactos ou, não havendo acordo, poderá o arguido levar o conflito à Instância Central de Família e Menores, nos termos da Lei.

É que o bom relacionamento dos progenitores de que o arguido vem agora falar, também era importante na altura em que decidiu injuriar e difamar a mãe deles e dizer-lhes, que a ofendida era uma má mãe e que os filhos sofriam era por causa desta.

Aquilo que o arguido entende ser saudável para si e para os menores - estarem juntos com ambos os progenitores - pode não ser saudável para a ofendida, pelo que competirá a ambos os progenitores avaliar dessa conveniência.

O recorrente – J. afirma também, que a pena acessória não está fundamentada e conforme se decidiu no Ac. do STJ de 12/10/2011, Proc. nº 484/02.2TATMR.C2.S1 (consultável em www.dgsi.pt), a falta de especificação das razões, que subjazem à determinação concreta da pena, constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia - prevista na alínea c), do nº 1 do artigo 379º, do CPP - invalidade que a Lei, aliás, igualmente prevê na al.ª a) do mesmo artigo, posto que um dos requisitos essenciais da Sentença, conforme preceituado no nº 2, do artigo 374º, é o da obrigatoriedade do Tribunal dar a conhecer os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão.

Assim, relativamente a esta questão também há que tomar posição.

O recorrente considera, que a pena principal suspensa na sua execução é suficiente para acautelar as necessidades de prevenção especial, porém o Tribunal recorrido entendeu essencial, que o arguido respeite o espaço da vítima, por um lado, para que esta se possa sentir em segurança e, por outro lado, para que este não caia na tentação de fazer críticas e comentários, que facilmente “resvalam” para discussões e insultos.
Relativamente à insuficiência de fundamentação, dir-se-á ainda o seguinte:
neste caso, especificamente, considerou o Tribunal recorrido, que existe um concreto juízo de imprescindibilidade da aplicação dessa pena acessória para protecção da vítima e evitar os contactos do recorrente com a ofendida - ressalvados que estão os obrigatórios contactos para efeito das suas obrigações parentais, com o que se concorda.

Atentos os factos constantes na matéria dada como provada e os cenários prefigurados, que atestam que facilmente o recorrente se poderá “inflamar” e tornar a incorrer na prática do mesmo crime, por que foi aqui condenado, com esta medida evitar-se-á essa situação, a bem de todos os membros daquela família, em que os menores já terão sofrido os efeitos nefastos e inerentes pela separação dos pais.

Diz o Tribunal “a quo” a este propósito:
“Atendendo às finalidades de prevenção especial subjacentes a esta condenação, impõe-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses.
Tal pena acessória afigura-se como essencial para estancar as agressões de que a vítima tem sido vítima, sob pena de as mesmas se perpetuarem no tempo.”

Verifica-se, que a Sentença recorrida atendeu às finalidades de prevenção especial subjacentes a esta condenação e daí ter também decidido pela pena acessória sobredita.

A falta de fundamentação, no caso em apreço, apenas se verificaria se inexistissem ou se mostrassem ininteligíveis as razões do Tribunal “a quo” para aplicação da pena acessória.

Ora, são perfeitamente perceptíveis as razões do julgador, ainda que explicitadas de forma sucinta, pelo que não se verifica essa nulidade.

Resulta daqui, que só se poderá concordar com a aplicação de tal pena acessória, improcedendo também este segmento do recurso do arguido.


Assim sendo:

- não se mostram violados, como alegado, os art.ºs 410.º n.º 2 al.ª a) do CPP, nem os artigos 40.º (finalidades das penas e das medidas de segurança), 65.º (penas acessórias e efeitos das penas), 71.º (determinação da medida da pena) e 152.º n.º 4 (penas acessórias em caso de violência doméstica), todos do Código Penal;
- mantém-se as penas aplicadas pelo Tribunal recorrido, porque ajustadas e adequadas à situação dos autos e nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido – J..

III – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
a) negar provimento ao recurso, mantendo a Decisão recorrida;
b) custas pelo recorrente, sendo a taxa de justiça – 4 UC – art.º 513.º n.ºs 1 e 3 do CPP.

Lisboa,


Filipa de Frias Macedo;


Artur Vargues.