Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL RIBEIRO MARQUES | ||
Descritores: | CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA RECUSA DE CUMPRIMENTO PELO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA ABUSO DE DIREITO DE RECUSA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/04/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Não tendo o contrato promessa eficácia real, pode ser afectado o negócio, podendo ser recusado o cumprimento desse contrato mesmo que se tenha verificado tradição da coisa, conforme disposto no n.º 1 do art.º 106 do CIRE, interpretação "a contrario”. 2. Nada impede que a norma do art.º 102, n.º 4, do CIRE se estenda à opção pela recusa de cumprimento, devendo entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato-promessa, quando o preço está já total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato- prometido). 3. Os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito (art.º 12º, nº 1 do EAJ), esperando-se dos mesmos uma actuação pautada por um critério semelhante ao do bonus pater famílias. 4. Caso o promitente-comprador tenha pago integralmente o preço, a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquele a título de sinal, sob a invocação formal de que este não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constituirá um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa: I. T., LDA., sociedade comercial por quotas, instaurou a presente acção contra a MASSA INSOLVENTE DE AP., requerendo a condenação desta a: “I. Outorgar com a Autora a escritura de compra e venda da fração autónoma «J», destinada a armazém n.º 1.12, sito na Rua (…); II. Restituir à Autora o valor das rendas que recebeu da TE… – TSC, S.A.», pessoa coletiva n.º …, pelo uso da identificada fração autónoma, entre os meses de abril e dezembro de 2021, no montante de €7.174,26 (sete mil cento e setenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos), acrescido do valor das rendas que vierem a ser pagas pela arrendatária à Ré até à data do trânsito em julgado da presente ação e respetivos juros de mora à taxa legal em vigor”. Alegou os seguintes factos: 4. Em 04.08.2005, a autora (na qualidade de promitente-compradora) e a ré (na qualidade de promitente- vendedora) celebraram um contrato-promessa de compra e venda, que tinha por objeto a fracção autónoma designada por 1.12, com cerca de 250m2 de área coberta e 150m2 de logradouro, destinado a comércio/indústria ligeira, sito na Estrada Velha do Pico da Pedra, freguesia de Rosto de Cão, São Roque, Ponta Delgada, a que corresponde o processo de loteamento n.º … - Lote-…/04 que corria na Câmara Municipal de Ponta Delgada e à data não descrita na Conservatória do Registo Predial, por não se encontrarem concluídas a obras de construção (doravante o “Contrato Promessa”, que se junta como Doc. 1). 5. Nos termos da cláusula segunda do Contrato Promessa, a ré prometeu vender à autora, que a prometeu comprar, a referida futura fracção autónoma pelo preço de €150.000,00 (cfr. cláusula quinta do Contrato Promessa). 6. Nessa data, a autora pagou à ré o valor de €15.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, através de cheque com o número …2, que foi debitado na conta bancária da T., Lda. (cfr. Doc. 2). 7. Por força dos atrasos na conclusão das obras de construção do «Retail Parque» e dos constrangimentos financeiros da autora, a r e a autora acordaram que o pagamento do remanescente do preço (€135.000,00) fosse pago em termos diversos dos acordados nas alíneas b) a e) da CLÁUSULA QUINTA do Contrato Promessa. 8 a 17. Nos dias 28.11.2005, 05.04.2006, 12.02.2008, 25.03.2008, 15.07.2008, 06.08.2008, 19.05.2009, 23.09.2009, 26.11.2009 e 20.01.2010 a autora pagou à ré as quantias de €15.000,00 (quinze mil euros), €15.000,00 (quinze mil euros), €6.000,00 (seis mil euros), €10.000,00 (dez mil euros), €10.000,00 (dez mil euros), €20.000,00 (vinte mil euros), €20.000,00 (vinte mil euros), €20.000,00 (vinte mil euros), €5.000,00 (cinco mil euros), €7.000,00 (sete mil euros) e de €5.000,00 (cinco mil euros), respectivamente, a título de reforço de sinal, previsto na alínea b) da CLÁUSULA QUINTA do Contrato Promessa, por transferência bancária e cheque (cfr. Docs . 3 a 12). 18. Com efeito, em 20.01.2010, a autora já havia pago à ré o valor total de €128.000,00. 19. Faltando, portanto, nessa data pagar à ré o valor de €22.000,00. 20. Entretanto, em 2007, a ré procedeu ao registo da propriedade horizontal e à inscrição matricial da mesma, tendo resultado desse ato a descrição da fração objeto do Contrato Promessa como fração autónoma «J», destinada a armazém n.º …, freguesia de Rosto do Cão (São Roque), concelho de Ponta Delgada, descrita na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º … da freguesia de Rosto do Cão (São Roque) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da referida freguesia, a qual tem alvará de licença de utilização n.º …/06 (a “Fração”) (cfr. Doc. 13, que ora se junta). 21. Em função das dificuldades económicas que a Autora atravessava em 2010 e já na posse da fracção, a autora solicitou à ré a autorização de arrendamento da fracção à sociedade comercial com a firma TE... 22. Nessa sequência, em 02.08.2010, a autora (na qualidade de senhoria), a TE…(na qualidade de arrendatária) e a ré (na qualidade de proprietária da fracção), celebraram um contrato de arrendamento para fins não habitacionais a termo certo, pelo qual a autora deu de arrendamento à TE…, que tomou de arrendamento, a fracção, com a expressa autorização da ré, pelo prazo inicial de um ano, início em 01.08.2010 e termo em 31.07.2011, renovável sucessivamente por iguais períodos de um ano (o “Contrato de Arrendamento”) (cfr. Doc. 14, que ora se junta). 23. Nos termos da cláusula 2.ª, ponto 4, do Contrato de Arrendamento, “[a]o valor da venda de 150.000,00 euros, serão deduzidos o valor correspondente ao pagamento das rendas mensais até à data da escritura de compra e venda no montante máximo de 22.000,00 euros (vinte e dois mil euros), que serão entregues à AP…. sendo que o remanescente do valor das rendas reverterá a favor do Senhorio – T., Lda.” (cfr. Doc. 14, junto). 24. Nos termos da cláusula 2.ª, ponto 6, do Contrato de Arrendamento, “[a] escritura de compra e venda realizar-se-á no prazo máximo de 1 (um) ano a contar da data da receção da comunicação, (…), devendo o proprietário proceder à marcação da referida escritura de compra e venda, comunicando a respectiva data ao potencial comprador”. 27. Assim, ao longo de 33 (trinta e três) meses, a TE… pagou à ré as rendas devidas pelo arrendamento da fracção, tendo, durante esse tempo, a autora emitido os respetivos recibos de renda, e a ré recebido o valor das rendas deduzido do valor respeitante à retenção de IRC, realizada pela autora. 28. Nestes termos, entre 13.08.2010 e 11.04.2013, foi pago, através do valor das rendas, o remanescente do preço em falta (€ 22.000,00), conforme quadro infra:
29. A ré emitiu por cada um dos 33 (trinta e três) pagamentos o respetivo recibo de quitação, os quais em todos declarou que o montante recebido era “referente ao pagamento por conta devenda do armazém 1.12 do Retail Parque (…)” (cfr. Docs. 15 a 47, juntos). 30. Com efeito, em 11.04.2013, com o pagamento das rendas à ré pela TE…, o preço acordado entre a autora e a ré para a compra da fracção ficou integralmente pago. 32. Sucede, porém, que a escritura de compra e venda nunca foi marcada pela ré, conforme se encontrava obrigado, não tendo, portanto, sido a mesma celebrada, pese embora a autora tenha, por intermédio do seu gerente e do seu mandatário, o Dr. L…, advogado, tentado marcar a escritura (cfr. Doc. 48, que ora se junta). 33. Em todo o caso, a verdade é que desde Abril de 2013 até Março de 2021, a TE… pagou as rendas vencidas pela utilização da fracção à autora, agindo esta sempre com a convicção que a ré iria voluntariamente outorgar a escritura de compra e venda. 34. Aliás, a autora pagou ao longo dos anos o IMI da fracção à ré (cfr. Doc. 49, que ora se junta). 35. Ademais, em 2015, a empresa JM…, Lda., moveu contra a ré um processo executivo, no qual foi penhorada a fracção, tendo a autora deduzido embargos (apenso «A») e oposição à penhora (apenso «B») tendo o Tribunal reconhecido que a autora se encontrava legitimamente na posse da fracção, no âmbito do processo n.º 479/15.6T8PDL, que correu termos neste Tribunal (cfr. Doc. 50, que ora se junta). 36. Ora, em abril de 2021 a TE… não pagou a renda à autora. 37. Nessa imediata sequência a gerência da autora tomou conhecimento que a ré havia sido declarada insolvente em 28.11.2019. 38. Nesse imediato, a gerência da autora entrou em contacto com o ilustre Administrador da Insolvência da ré, o Dr. P…M…, tentando apurar a forma de celebrar a escritura de compra e venda da fracção. 39. Tendo, nessa sequência, sido a gerência da autora informada de que deveria intentar contra a ré uma acção de restituição e separação de bens prevista no artigo 141.º e seguintes do CIRE. 40. Contudo, sendo a ré a proprietária da fracção, a autora não tinha legitimidade para lançar mão de tal procedimento. 41. Por esse motivo, em 14.05.2021, a autora enviou (por intermédio do seu mandatário) ao Ilustre Administrador da Insolvência da ré uma missiva solicitando a marcação de data e local para a outorga da escritura de compra e venda (cfr. Doc. 51, que ora se junta). 42. Não tendo a autora ou o ora signatário recebido qualquer resposta à missava, o ora signatário, em representação da autora, enviou um email ao Ilustre Administrador da ré, no dia 16.06.2021, solicitando novamente a celebração da escritura (cfr. Doc. 52, que ora se junta). 43. Em 16.07.2021, o Ilustre Administrador da ré respondeu ao ora signatário, reconhecendo que não lhe caberia optar pelo não cumprimento do Contrato. 44. Contudo, na mesma resposta, afirmou que “o cumprimento do negócio por V. Exas. vinculava a insolvente a uma obrigação (de cumprimento de negócio) que teria que ter sido reclamada na sede e momento próprios. E essa reclamação não foi feita. Admitir a pretensão de V. Exas. e celebrar a escritura nesta fase equivaleria a pagar a um credor que não reclamou créditos o que, como compreenderá, é possível.” (cfr. Doc. 52, junto). 45. Com efeito, o Ilustre Administrador da ré recusou cumprir o Contrato Promessa. 47. Desde Abril de 2013 (mês em que o preço pela aquisição da fracção ficou integralmente pago pela autora à ré) até Março de 2021, a TE…pagou as rendas vencidas pela utilização da fracção à autora (cfr. Doc. 53, que ora se junta). 48. Portanto, com o conhecimento da ré, publica e pacificamente, a autora sempre se comportou como proprietária da fracção. 49. Sendo, portanto, a senhoria da fracção e a credora das rendas emergentes do Contrato de Arrendamento. 50. Sucede, porém, que a partir de março de 2021, a TE…deixou de pagar as rendas da fracção à autora. 51. Passando a pagar às mesmas à ré, após ter sido notificada para o efeito pelo Ilustre Administrador da Insolvência da ré. 52. Em Março de 2021, a renda mensal devida pela TE…. à autora pelo uso da fracção era de €797,14 (setecentos e noventa e sete euros e catorze cêntimos). 53. A partir de abril de 2021, a TE…passou a pagar o valor da renda acordado com a autora à ré. 54. Ora, é a autora que figura como senhoria da fracção no Contrato de Arrendamento e não a ré, pois é a autora que, com o consentimento expresso da ré, celebrou o Contrato de Arrendamento, nessa qualidade. 55. Por conseguinte, desde abril de 2021 que a ré se apropriou ilícita e ilegitimamente das rendas mensais devidas pela TE… à autora pelo uso da fracção. 56. Motivo pelo qual a ré se encontra a enriquecer ilicitamente às custas da autora, pois além de se recusar a celebrar a escritura de compra e venda ainda se apropriou das rendas emergentes do Contrato de Arrendamento. 57. Com efeito, na presente data, a ré já se apropriou ilicitamente do montante de €7.174,26 (sete mil cento e setenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos), referentes as rendas dos meses de Abril a Dezembro de 2021. 58. É entendimento unânime da jurisprudência que “o administrador não tem a faculdade de optar pela execução ou não do contrato quando ocorre, a circunstância de uma das partes ter cumprido na íntegra a sua obrigação, como aconteceu nestes casos com a promitente compradora, aqui recorrente que pagou por inteiro o preço” (2). 59. Isto porque, pese embora o Contrato Promessa não tenha eficácia real, o Administrador da Insolvência apenas pode declarar recusar o cumprimento de um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional quando, à data da declaração da insolvência, não haja ainda total cumprimento de ambos os contraentes (cfr. artigo 102.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, à contrário). 60. Neste sentido, GISELA CÉSAR afirma que o disposto no artigo 102.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas abrange “as hipóteses de cumprimento parcial, Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2013, processo n.º 1551/12.0TBBTG-U.G1. Neste sentido, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2011, processo n.º 273/05.2TBGVA.C1.S1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.02.2012, processo n.º 1008/08.3TBOLH-L.E1.S1. sendo excluídos do âmbito de aplicação da norma, por um lado, os contratos que ainda se encontrem em formação e, por outro lado, os contratos que se encontrem, à data da declaração da insolvência, totalmente cumpridos, por uma ou por ambas as partes.” 61. Ora, existindo total cumprimento da obrigação de pagamento do preço pela autora, o Administrador da Insolvência, em representação da ré, encontra-se obrigado a outorgar a escritura de compra e venda. 62. Devendo, por conseguinte, ser a ré condenada a outorgar com a autora a escritura de compra e venda da fracção, formalizando, dessa forma, a compra e venda da fracção, já concretizada em 11.04.2013, data em que o preço foi integralmente pago pela autora à ré. 63. Ademais, nos termos do artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil, “[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo que injustificadamente se locupletou” 64. Ora, considerando que a ré se locupletou, sem causa justificativa, do valor das rendas devidas pela TE…à autora ao abrigo do Contrato de Arrendamento, deve a ré ser condenada a restituir à autora o valor das rendas que recebeu da TE…, bem como aquelas que vier a receber a partir da presente data até à data do trânsito em julgado da presente ação. Citada a ré, a mesma defendeu-se por excepção e por impugnação, pedindo a final a sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, a sua absolvição do pedido. Por excepção, invocou a ilegitimidade activa da autora, dizendo que a acção assenta na tese de que o cumprimento do negócio que alegadamente foi celebrado entre a autora e a ré foi ilicitamente recusado pelo Administrador de Insolvência no decurso do ano de 2021 (cfr. artigos 41.º e seguintes e 58.º e seguintes da petição inicial) e de que, por isso, a autora pode exigir que a ré seja condenada nesse cumprimento; que para a autora poder sequer suscitar a discussão sobre se a suposta recusa do Administrador de Insolvência foi ou não legítima, então a autora teria que ter reclamado créditos no processo de insolvência da ré, o que não fez; que a posição jurídica activa que lhe permitiria, supostamente, interpelar o Administrador de Insolvência a cumprir o negócio não existe neste processo, o que, necessariamente, implica que a posição jurídica activa que lhe permitiria discutir a licitude dessa suposta recusa também não existe e não pode ser aqui apreciada. Por impugnação alegou desconhecer todos os factos trazidos ao processo pela autora, posto que aquando da declaração de insolvência da ré, o Administrador de Insolvência não apreendeu qualquer documento, nem recolheu qualquer informação, atinente ao suposto negócio que foi celebrado entre as partes em 2005; que não encontrou qualquer correspondência que pudesse ter sido trocada entre as partes nos últimos 15 anos; que, além disso, apenas com os presentes autos e com a análise da petição inicial passou a ser conhecida a conta bancária para onde supostamente foram pagas as diferentes parcelas do preço pago pela autora (cuja existência, até ao momento, se desconhecia); que se estranha que a autora tenha celebrado um contrato-promessa com a ré em Agosto de 2005, cujo objecto terá ficado integralmente pago em Abril de 2013, e que apenas tenha interpelado a ré para a celebração do contrato-prometido em Setembro de 2019 (cfr. Documento n.º 48 da petição inicial); que estranha ainda que a autora tenha sido informada, em Setembro de 2019, que a ré se encontrava em PER, mas não tenha diligenciado pelo acompanhamento do referido processo (cfr. Documento n.º 48 da petição inicial), nem tenha reclamado créditos no PER; que, perante este contexto, devem desde já considerar-se impugnados os factos carreados para os autos nos artigos 4.º a 40.º e 46.º a 57.º da petição inicial; que a autora fundamenta a ilicitude da suposta recusa do cumprimento do contrato-promessa no disposto no artigo 102.º do CIRE (cfr. artigo 59.º da petição inicial), entendendo que essa disposição não é aplicável ao caso porque o contrato-promessa já se encontrava integralmente cumprido por parte da autora (cfr. artigos 59.º e 60.º da petição inicial); que, salvo o devido respeito, é esta conclusão que assenta num erro de Direito; que a autora confunde a admissibilidade da escolha do Administrador de Insolvência com o que seria a licitude dessa escolha (caso a mesma fosse admissível), sendo que, no caso, não existem dúvidas de que os mecanismos previstos no Capítulo IV do CIRE (e respetivos artigos 102.º e seguintes) não são aplicáveis, por, a confirmarem-se os factos alegados pela autora, o negócio já estaria cumprido por uma das partes à data da declaração de insolvência; que a circunstância de não serem aplicáveis ao caso as disposições do Capítulo IV do CIRE não determina que a autora possa encetar em apenso à insolvência as prerrogativas que teria num caso de ilicitude da escolha do Administrador de Insolvência, sendo que a jurisprudência citada pela autora no artigo 2.º da petição inicial respeita a um caso em que é aplicável o disposto no artigo 106.º, n.º 1, do CIRE e em que é essa aplicabilidade que impede o administrador de insolvência de recusar, licitamente, o cumprimento do contrato; que com o cumprimento integral das obrigações que para si decorriam do contrato-promessa, a autora constituiu-se no direito de exigir da ré determinadas obrigações (nomeadamente, a celebração do contrato prometido, a transmissão da propriedade e a entrega da posse, cfr. artigo 879.º do Código Civil), mas esse direito, a par dos direitos dos demais credores, deveria ter sido reclamado à Insolvente após a declaração de insolvência (cfr. artigo 128.º do CIRE), visto que o ónus a que estão sujeitos os credores do insolvente no sentido de reclamar direitos não se limita a créditos pecuniários (sem prejuízo do facto de o direito da autora sobre a ré ser quantificável em termos pecuniários, à luz do contrato celebrado); que não tendo a autora reclamado o seu direito no momento e sede oportunos, não pode agora fazê-lo através dos presentes autos; que atribuir ao Administrador de Insolvência ou à ré a possibilidade de pagar à autora, nomeadamente através da celebração do contrato prometido, sem que esta tivesse reclamado créditos a par dos demais credores constituiria uma violação do princípio da igualdade de credores, o que não é admissível. Após a realização da audiência prévia, foi proferido saneador-sentença no qual se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade activa e se decidiu julgar a presente ação improcedente e se absolveu a ré dos pedidos formulados. Exarou-se nessa decisão, além do mais, o seguinte: Quanto à excepçao da ilegitimidade activa: “No presente caso, atendendo à forma como é descrita pela Autora a relação controvertida, nomeadamente a alegação da existência de um contrato de promessa celebrado com a insolvente e que não se mostra cumprido (o que não é posto em causa, quanto ao não cumprimento pela Ré), resta concluir que a Autora tem interesse em demandar a Ré. A Autora, é, pois, parte legítima. Pelo que improcede a alegada exceção de ilegitimidade da Autora”. Quanto ao mérito da causa: “O contrato-promessa foi celebrado em 04.08.2008 e, não obstante o lapso de tempo já decorrido desde então, ainda não havia sido cumprido em Setembro de 2019, data em que houve uma interpelação para o cumprimento. Também decorre dos autos que, em 2010, houve tradição da coisa – do imóvel objecto do contrato de promessa de compra e venda –, tendo inclusive sido celebrado um contrato de arrendamento, com autorização da agora insolvente. Sucede, porém, que, em Novembro de 2019, a promitente vendedora foi declarada insolvente. E, já depois dessa declaração de insolvência, a promitente compradora – ora Autora – solicitou ao Sr. Administrador de Insolvência a celebração da escritura de compra e venda da fracção, o que este recusou, pois não celebrou até hoje a escritura de compra e venda. Como não se exige declaração expressa nem forma especial para a declaração do administrador de insolvência, deve entender-se que se aplicam os princípios da liberdade declarativa do art.º 217.º do CC e da liberdade de forma do art.º 219.º do CC. (…) O princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência, estabelecido no n.º 1 do artigo 102º CIRE, é a suspensão do cumprimento até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. Assim, no que tange aos contratos bilaterais ainda não integralmente cumpridos pelas partes à data da declaração de insolvência, a lei determina um princípio genérico da manutenção daqueles num estado de suspensão até ao exercício do direito de opção pelo administrador. Trata-se de uma suspensão transitória, que tem como função conceder ao administrador da insolvência o período de tempo necessário à ponderação da conveniência do cumprimento do contrato para os interesses da massa. Assim, cabe ao administrador optar pelo seu cumprimento ou pelo seu não cumprimento, consoante o que for tido como mais conveniente para a massa insolvente (cfr. art.º 102.º n.º 3 do C.I.R.E.); se optar pelo não cumprimento, o outro contraente, não pode exigir à massa insolvente a restituição do que prestou [cfr. art.º 102.º n.º 3, alínea a)], mas a outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada [cfr. art.º 102.º n.º 3, alínea c) e d) (III)]. Todavia, o art.º 106.º n.º 1 do C.I.R.E., constitui uma disposição legal especifica para o contrato de promessa, dispondo que “No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.” A ratio do preceito justifica-se pela eficácia meramente obrigacional do contrato promessa, porque, assim sendo, não são oponiveis aos credores da insolvência as obrigações assumidas pela insolvente ao celebrar o contrato-promessa, designadamente a obrigação de outorgar o contrato prometido de compra e venda. No caso concreto, é manifesto que, o contrato-promessa não goza de eficácia real. Pelo que, resulta à contrario do citado preceito legal, que o administrador pode (ainda que tenha existido tradição da coisa e, eventualmente, o pagamento integral do preço, como alegado pela Autora,) optar pelo seu não cumprimento, se o entender como mais conveniente para a massa insolvente. Acompanhamos de perto a posição de Nuno Manuel Pinto Oliveira e Catarina Serra, Insolvência e Contrato Promessa – Os efeitos da insolvência sobre o contrato promessa com eficácia obrigacional, in Revista da Ordem dos Advogados, 2010, I/II, pp. 393 e ss. onde se pode ler o seguinte: “Um dos casos mais discutidos no âmbito dos negócios em curso à data da declaração de insolvência é o do contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional. A hipótese é muito frequente na prática e a sua disciplina legal não é das mais claras, sobretudo quando comparada com a que lhe correspondia no Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência (CPEREF). A questão fundamental é a de saber se um promitente-comprador de edifício ou fracção autónoma, com traditio, cujo contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional não foi cumprido pelo administrador da insolvência, goza do direito ao recebimento do sinal em dobro e da qualificação do seu crédito como garantido por via do direito de retenção (sendo assim graduado acima do credor hipotecário). Em primeiro lugar, não deve haver dúvidas quanto à possibilidade de o administrador da insolvência recusar o cumprimento quando, independentemente de traditio, o contrato-promessa tem eficácia meramente obrigacional. Esta possibilidade resulta evidente do n.º 1, a contrario, do art. 106.º do CIRE, que não permite a recusa de cumprimento apenas quando estejam reunidos três requisitos: o contrato-promessa tenha eficácia real, o promitente-vendedor seja o insolvente e tenha havido tradição a favor do promitente-comprador. Nos casos restantes, pode existir recusa, aplicando-se então o disposto no n.º 2 do art.º 106.º e, por remissão deste, o n.º 5 do art.º 104.º e, finalmente, o n.º 3 do art.º 102.º do CIRE. Segue-se, assim, neste ponto, da posição adoptada por JOÃO CALVÃO DA SILVA, LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, JOSÉ LEBRE DE FREITAS e — implicitamente — LUÍS MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS. Diverge-se, portanto, de LUÍS DE MENEZES LEITÃO, que entende ser inadmissível a recusa de cumprimento de qualquer contrato-promessa sempre que exista tradição. Mesmo quando o contrato-promessa tem eficácia meramente obrigacional — diz o A. —, a transmissão da posse da coisa faz sempre funcionar o art.º 755.º, n.º 1, al. f), do CC: o promitente-comprador torna-se titular de um direito de retenção, que, constituindo uma garantia real, não pode deixar de ser atendida em sede de insolvência. O preceito do art.º 106.º do CIRE deveria, pois, ser interpretado correctivamente de forma a excluir a possibilidade de recusa de cumprimento (também) nesta situação (26/27). Desde logo, e ao contrário do que diz o A., não pode sustentar-se que a disposição “omita” a hipótese de contrato-promessa sem eficácia real em que tenha havido tradição da coisa para o promitente-comprador. Deve presumir-se que o legislador disse precisamente aquilo que queria dizer: se ele regulou no n.º 1 os casos em que o administrador fica impedido de recusar o cumprimento do contrato, limitando-os aos que reúnam aqueles três requisitos, não pode, sem mais, pressupor-se que simplesmente esqueceu os restantes — deve, ao invés, entender-se que ele teve a intenção de os excluir (28). Depois, o fundamento apresentado pelo A. para afastar o direito de recusar o cumprimento nestes casos — de que a transmissão da posse da coisa faz sempre funcionar o art.º 755.º, n.º 1, al. f), do CC e o promitente-comprador fica titular de um direito de retenção — não procede. Admitindo, por momentos, que existe direito de retenção nos casos referidos, como poderia a titularidade do direito de retenção justificar ou exigir que o administrador da insolvência fosse impedido de recusar o cumprimento do contrato-promessa quando o direito de retenção serve justamente para garantir o pagamento da indemnização derivada do incumprimento do contrato? Na realidade, aquela exclusão — das promessas sem eficácia real do n.º 1 do art.º 106.º do CIRE — é deliberada e tem uma causa. Quer dizer: não é por acaso que a lei da insolvência trata distintamente as promessas com eficácia real e as promessas com eficácia obrigacional — salvaguardando as primeiras dos efeitos da declaração de insolvência, mas não as segundas. A impossibilidade de recusa de cumprimento naqueles casos é uma consequência normal da eficácia erga omnes da obrigação. (…) Nada disto poderá apanhar desprevenidos os restantes credores do insolvente. Não poderão invocar, em seu favor, o princípio da segurança jurídica: se não sabiam desta tutela acrescida, deviam saber; o registo visa justamente atribuir estabilidade e cognoscibilidade às situações jurídicas. As coisas são diversas quando o contrato-promessa é destituído de eficácia real. O que bem se compreende: não existe aí possibilidade de o promitente-comprador fazer valer, na acção executiva, a faculdade de adquirir o bem objecto do contrato prometido. E nem se diga que a solução conduz à desprotecção ou ao despojamento do promitente-comprador e a um tratamento desequilibrado face aos restantes credores do insolvente, designadamente os que, como o credor hipotecário, são titulares de garantias reais. Primeiro, e como se disse repetidamente, a declaração de insolvência e o processo subsequente conduzem necessariamente a uma compressão generalizada dos direitos dos credores. Dependendo das circunstâncias, estes podem deparar-se com limitações ou mesmo impedimentos ao exercício de alguns dos seus direitos típicos. Estes são naturais, compreensíveis e, em princípio, necessários e adequados aos fins perseguidos com o processo de insolvência. Depois, o regime em causa não deixa de atender à posição do contraente in bonis: ele não fica — não tem de ficar —, em concreto, por força dele, em pior situação do que ficaria se o contrato viesse a ser cumprido (se o contrato prometido viesse a ser celebrado). Como se verá, a recusa de cumprimento dá origem a um direito de crédito que, o habilita, em princípio, a efectuar uma compra de coisa idêntica (uma compra de substituição). Naturalmente, existe o risco de não ser possível, nos sucessivos rateios, o pagamento — o pagamento integral ou cabal — do montante do crédito ao promitente-comprador. Mas este já não é um risco exclusivo do promitente-comprador; é um risco de todos os credores.” Sendo este o nosso entendimento, que é maioritário na doutrina e na jurisprudência, e ainda que tenha havido o pagamento integral do preço (o que carecia de prova), consideramos que é lícito ao Administrador de Insolvência a recusa da celebração do contrato de compra e venda. Assim, não pode a Autora exigir que a Ré (massa insolvente) seja condenada no que peticionou. Quando muito, a Autora teria um direito de crédito sobre a insolvente, a reclamar em sede e através dos meios próprios, que não a presente acção. Concluindo, a pretensão da Autora é manifestamente inviável, pelo que necessariamente tem de improceder a presente acção. Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões: I. Vem a Autora, ora Recorrente, interpor recurso do douto saneador sentença proferido nos autos em 28.11.2022, com a ref.ª Citius 54281543, que pôs termo ao processo, por não se conformar com o mesmo, em particular na parte em que julgou improcedente a presente ação e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos, com fundamento no entendimento que «ainda que tenha havido o pagamento integral do preço (o que carecia de prova), consideramos que é lícito ao Administrador da Insolvência a recusa da celebração do contrato de compra e venda.» (cfr. penúltimo parágrafo da fundamentação de direito do saneador sentença). II. Com efeito, no entendimento do Recorrente, a decisão do Tribunal a quo violou flagrantemente o disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, devendo ser revogado o saneador sentença, porque o estado do processo, no momento em que a decisão recorrida foi proferida, não reunia as condições para a juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, em sede de saneador, sem necessidade de mais prova, em particular porque os factos ainda controvertidos oferecem um relevo determinante na adoção de outras soluções jurídicas. III. Porquanto, no entender da Recorrente, encontrando-se integral e totalmente pago o preço, pelo promitente comprador (a ora Recorrente), o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato promessa, ainda que o mesmo tenha eficácia meramente obrigacional, na medida em que essa recusa apenas é legítima quando, conforme dispõe o artigo 102.º, n.º 1, do CIRE, o referido direito potestativo é exercido nos casos em que “(…) não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte (…)”; não o podendo, portanto, ser recusado (por abusivo) o seu cumprimento quando o mesmo esteja integral e totalmente cumprido por uma das partes, in casu, a Recorrente. IV. Dito de outra forma: a apreciação imediata do mérito da causa em sede de saneador-sentença não foi tomada segundo critérios meramente objetivos, pois, no entender da Recorrente, os factos ainda controvertidos oferecem um relevo determinante na adoção de outras soluções jurídicas. Senão vejamos: V. A Recorrente propôs a presente ação contra a Recorrida, peticionando a condenação da Recorrida a (i) outorgar com a Recorrente escritura de compra e venda da fração autónoma identificada nosautos (execução específica) e a (ii) restituir o valor das rendas que recebeu da T…devidas pelo uso da mesma fração. VI. Para o efeito, entre outros factos, alega a Recorrente que (i) em 04.08.2005 celebrou com a Recorrida um contrato promessa de compra e venda de bem futuro e que (ii) em 11.04.2013 o preço (€150.000,00) ficou integralmente pago. VII. Na apreciação da matéria de facto, o Tribunal a quo dá como controvertido que a Recorrente tenha pagado à Recorrida entre 04.08.2005 e 20.01.2010 o remanescente do preço (€128.000,00) (cfr. ponto a) e c) a s) dos factos controvertidos). VIII.. Ou seja, não dá como provado que o preço tenha sido integralmente pago, mas também não dá esse facto como não provado. IX. No entanto, era absolutamente indispensável para a boa e correta decisão da causa permitir à Recorrente fazer prova de que fez o pagamento integral do preço. Isto porque: X. Não obstante o contrato promessa de compra e venda ter eficácia meramente obrigacional, não é verdade que em todos os contratos promessa de compra e venda em que a eficácia é meramente obrigacional o administrador da insolvência possa sempre optar pelo seu não cumprimento, se o entender como mais conveniente para a massa insolvente. XI. Porquanto, provado que o preço se encontrava integralmente pago, a solução de direito poderia (e devia no entender da Recorrente) ter sido outra. XII. Neste sentido, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES julgou que, mesmo não sendo o contrato promessa dotado de eficácia real, “[e]ntende-se que o administrador não tem a faculdade de optar pela execução ou não do contrato quando ocorre, a circunstância de uma das partes ter cumprido na íntegra a sua obrigação, como aconteceu nestes casos com a promitente compradora, aqui recorrente que pagou por inteiro o preço.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 1551/12.0TBBRG-U.G1, datado de 11.07.2013, relator Juiz Desembargador Dra. Maria da Purificação Carvalho, integralmente disponível em www.dgsi.pt). XIII. No mesmo sentido, o Supremo Tribunal de Justiça julgou que “só pode haver recusa do seu cumprimento, em virtude da declaração de insolvência, se nenhuma das partes tiver ainda cumprido, integralmente, a sua prestação. (…) No caso de existir tradição da coisa para o promitente-comprador, que já cumpriu, totalmente, a sua contra-prestação, a recusa do cumprimento do contrato promessa, na hipótese de insolvência do promitente-vendedor, por parte do administrador de insolvência, já se não afigura possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 273/05.2TBGVA.C1.S1, datado de 20.10.2011, relator Juiz Conselheiro Dr. Hélder Roque, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/insolvencia.pdf). E que “[n]os casos em que o preço foi integralmente pago pelo promitente-comprador/consumidor, o administrador da insolvência não pode recusar o contrato, em homenagem à forte expectativa do promitente fiel, (…), pouca diferença existindo entre tal realidade e uma consumada compra e venda (…). (Acórdão do Suprimo Tribunal de Justiça, processo n.º 1008/08.3TBOLH-L.E1.S1, datado de 09.02.2012, relator Juiz Conselheiro Dr. Fonseca Ramos, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2012.pdf). XIV. Posição doutrinária defendida por Catarina Serra, que “[d]eve entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato promessa, fundamentalmente, dois casos: quando viola gravemente o direito fundamental à habitação do promitente-adquirente e quando o preço está já total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato-prometido) (…)”. (Cfr. Lições de Direito da Insolvência, 1.ª Edição (2018), Almedina, Coimbra, nota de rodapé 350, págs. 241 e 242). XV. Com efeito, resulta inequívoco que não é, como afirma o Tribunal a quo, indiferente ou sequer irrelevante o facto de o preço se encontrar integralmente pago ou não, pois, como se viu, a prova de tais factos (controvertidos) poderia importar uma diferente solução de direito. XVI. Ora, como defende LEBRE DE FREITAS & ISABEL ALEXANDRE, “[o] juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo. (…) Este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa.” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição (2017), Almedina, Coimbra, pág. 659.). XVII. Na mesma linha, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA julgou que “[a] jurisprudência vem entendendo que será prematuro, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador quando a decisão apenas assenta numa das possíveis soluções da questão de direito. Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes, no que respeita à questão em apreço, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e bem assim reunir no processo os necessários elementos para que possa ser acolhida uma ou outra das soluções plausíveis de direito - O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito; apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertido com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa. (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 449/20.2T8LRA.C1, datado de 05.04.2022, relator Juiz Desembargador Dr. José Avelino Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt). XVIII. Posto isto, resulta evidente que, em face do supra exposto, ao proferir o saneador sentença ora em crise, conhecendo de imediato do mérito da causa nos termos em que a conheceu, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, visto resultar do confronto da posição das partes que existem factos controvertidos relevantes para a apreciação de mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito. XIX. Termos em que, com o mui do suprimento de V.as Ex.as, deve o saneador sentença abolitório ser revogado, por à luz do disposto artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, não poder conhecer-se imediatamente do mérito da causa, porque o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos, e, em consequência, determinar o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto nos artigos 596.º e seguintes do CPC. Termina pedindo a revogação do saneador-sentença recorrido, nos termos peticionados. A ré/Apelada apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões: 1. Bem andou o Tribunal a quo na decisão proferida; 2. Os factos trazidos à presente ação são conhecidos (e provados), maioritamente, através de documentos juntos aos autos pela A., aqui Recorrente. 3. O tribunal sempre teria condições para produzir uma decisão, uma vez que, a discussão em causa é tão-só uma questão de direito. 4. Com efeito, a ação assenta na tese de que o cumprimento do negócio (Contrato-promessa de compra e venda) que alegadamente foi celebrado entre a Autora e a Ré foi ilicitamente recusado pelo Administrador de Insolvência. 5. Não urge razão à Recorrente. 6. Em primeiro lugar, impunha-se à Autora a reclamação dos créditos decorrentes desse negócio após a declaração de insolvência da Ré, mesmo que de forma condicional. 7. Em segundo, a invocada norma do artigo 102.º do CIRE não é aplicável ao caso dos autos. 8. A Recorrente confunde o que é a inaplicabilidade dos mecanismos previstos no Capítulo IV do CIRE ao caso com o que é a suposta impossibilidade de o Administrador de Insolvência da Ré recusar o cumprimento do contrato-promessa. 9. Ou seja, a Autora confunde a admissibilidade da escolha do Administrador de Insolvência com o que seria a licitude dessa escolha (caso a mesma fosse admissível). 10. Ora, no caso, não existem dúvidas de que os mecanismos previstos no Capítulo IV do CIRE (e respetivos artigos 102.º e seguintes) não são aplicáveis. 11. E isto porque, na sequência dos factos alegados pela Autora, conclui-se que o negócio já estaria cumprido por uma das partes à data da declaração de insolvência. 12. Conforme a doutrina de CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA E JURISPRUDÊNCIA no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-01-2016. 13. Ora, a circunstância de não serem aplicáveis ao caso as disposições do Capítulo IV do CIRE não determina que a Autora possa encetar em apenso à insolvência as prerrogativas que teria num caso de ilicitude da escolha do Administrador de Insolvência. 14. As únicas consequências decorrentes da inaplicabilidade dos artigos 102.º e seguintes do CIRE ao caso são (i) a de não caber à contraparte do insolvente o ónus de notificar o administrador de insolvência para aceitar ou recusar o cumprimento do contrato (que já não está em curso) e (ii) a de não caber a este último essa escolha. 15. Não são a de contaminar de ilicitude uma escolha que não era, sequer à partida, admissível. 16. O facto de o caso sub judice não ser subsumível ao Capítulo IV do CIRE determina apenas e tão-só que, com o cumprimento integral das obrigações que para si decorriam do contrato-promessa, a Autora constituiu-se no direito de exigir da Ré determinadas obrigações (nomeadamente, a celebração do contrato prometido, a transmissão da propriedade e a entrega da posse, cfr. artigo 879.º do Código Civil). 17. Direito esse que, a par dos direitos dos demais credores, deveria ter sido reclamado à Insolvente após a declaração de insolvência (cfr. artigo 128.º do CIRE). 18. o ónus a que estão sujeitos os credores do insolvente no sentido de reclamar direitos não se limita a créditos pecuniários (sem prejuízo do facto de o direito da Autora sobre a Ré ser quantificável em termos pecuniários, à luz do contrato celebrado). 19. Sendo assim, não tendo a A. reclamado créditos a par dos demais credores, o cumprimento do contrato, sempre constituiria uma violação do princípio da igualdade de credores, o que não é admissível. 20. Bem andou o tribunal a quo na sentença proferida, 21. Não há contradição, ao contrário do alegado pela Recorrente, 22. O Tribunal alicerçou a sua motivação nos factos alegados pela própria Recorrente, 23. ou seja, ainda que a Recorrente provasse os factos alegados através da produção de prova, o desfecho – decisão - seria igual. 24. Face ao expsoto, deve o Recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente mantendo a decisão proferida. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * II. Em 1ª instância, foram, nos termos do art.º 567º, n.ºs 1 e 3, do CPC, considerados provados os seguintes factos: 1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de comércio por grosso de artigos de proteção, promocionais e outros; fabricação de material de proteção, nomeadamente, máscaras cirúrgicas e não cirúrgicas, batas, cobre-botas e toucas. 2. Em 04.08.2005, a Autora (na qualidade de promitente compradora) e a Ré (na qualidade de promitente vendedora) celebraram um contrato promessa de compra e venda, que tinha por objeto a fração autónoma designada por 1.12, com cerca de 250m2 de área coberta e 150m2 de logradouro, destinado a comércio/indústria ligeira, sito na Estrada…, a que corresponde o processo de loteamento n.º …- Lote-… que corria na Câmara Municipal de Ponta Delgada e à data não descrita na Conservatória do Registo Predial, por não se encontrarem concluídas a obras de construção (doravante o “Contrato Promessa). 3. Nos termos da cláusula segunda do Contrato Promessa, a Ré prometeu vender à Autora, que a prometeu comprar, a referida futura fração autónoma pelo preço de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) (cfr. cláusula quinta do Contrato Promessa). 4. Em 2007, a Ré procedeu ao registo da propriedade horizontal e à inscrição matricial da mesma, tendo resultado desse acto a descrição da fracção objeto do Contrato Promessa como fracção autónoma «J», destinada a armazém n.º … freguesia de Rosto do Cão (São Roque), concelho de Ponta Delgada, descrita na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º … da freguesia de Rosto do Cão (São Roque) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da referida freguesia, a qual tem alvará de licença de utilização n.º …/06 (a “Fracção”) 5. Em 02.08.2010, a Autora (na qualidade de senhoria), a TE… (na qualidade de arrendatária) e a Ré (na qualidade de proprietária da Fracção), celebraram um contrato de arrendamento para fins não habitacionais a termo certo, pelo qual a Autora deu de arrendamento à TE…, que tomou de arrendamento, a Fracção, com a expressa autorização da Ré, pelo prazo inicial de um ano, início em 01.08.2010 e termo em 31.07.2011, renovável sucessivamente por iguais períodos de um ano (o “Contrato de Arrendamento”). 6. Nos termos da cláusula 2.ª, ponto 4, do Contrato de Arrendamento, “[a]o valor da venda de 150.000,00 euros, serão deduzidos o valor correspondente ao pagamento das rendas mensais até à data da escritura de compra e venda no montante máximo de 22.000,00 euros (vinte e dois mil euros), que serão entregues à AP…, sendo que o remanescente do valor das rendas reverterá a favor do Senhorio- T., Lda.” 7. Nos termos da cláusula 2.ª, ponto 6, do Contrato de Arrendamento, “[a] escritura de compra e venda realizar-se-á no prazo máximo de 1 (um) ano a contar da data da receção da comunicação, (…), devendo o proprietário proceder à marcação da referida escritura de compra e venda, comunicando a respectiva data ao potencial comprador”. 8. Entre 13.08.2010 e 11.04.2013, foi pago, pela arrendatária TE… à Ré um valor total de 22.000,00 €, conforme quadro infra:
10. A escritura de compra e venda nunca foi marcada pela Ré, não tendo sido a mesma celebrada. 11. Em 23.09.2019, a Autora, por intermédio do seu gerente e do seu mandatário, o Dr. L…, advogado, tentou marcar a escritura. 12. Em 14.05.2021, a Autora enviou (por intermédio do seu mandatário) ao Administrador da Insolvência da Ré uma missava solicitando a marcação de data e local para a outorga da escritura de compra e venda. 13. O mandatário da Autora enviou um email ao Administrador da Ré, no dia 16.06.2021, solicitando novamente a celebração da escritura. 14. Em 16.06.2021, 19h09m, o Administrador de Insolvência da Ré respondeu à Autora dizendo “Comuniquei o assunto à Comissão de Credores e ainda não me responderam. Nessa medida, considerando que o assunto está pendente há anos (2005 e a insolvência foi decretada em 2019), e considerando, por outro lado, que a massa pode sempre recusar o cumprimento dos negócios ainda não cumpridos, apelo à sua compreensão e boa vontade para promover os seus melhores ofícios junto do seu constituinte no sentido de aguardar mais uns tempos, até que seja possível tomar posição.” *** E foram considerados controvertidos – mas irrelevantes para a decisão da causa - os seguintes factos: a) Em 04.08.2005, a Autora pagou à Ré o valor de €15.000,00 (quinze mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, através de cheque com o número 8184737372, que foi debitado na conta bancária da T., Lda.. b) Por força dos atrasos na conclusão das obras de construção do «Retail Parque» e dos constrangimentos financeiros da Autora, a Ré e a Autora acordaram que o pagamento do remanescente do preço (€ 135.000,00) fosse pago em termos diversos dos acordados nas alíneas b) a e) da CLÁUSULA QUINTA do Contrato Promessa. c) Em 28.11.2005, a Autora pagou à Ré o valor de €15.000,00 (quinze mil euros), a título de reforço de sinal, previsto na alínea b) da CLÁUSULA QUINTA do Contrato Promessa, por transferência bancária. d) Em 05.04.2006, a Autora pagou à Ré o valor de €15.000,00 (quinze mil euros), a título de reforço de sinal, por transferência bancária. e) Em 12.02.2008, a Autora pagou à Ré o valor de €6.000,00 (seis mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …70, que foi debitado na conta bancária da Autora. f) Em 25.03.2008, a Autora pagou à Ré o valor de €10.000,00 (dez mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …76, que foi debitado na conta bancária da Autora. g) Em 15.07.2008, a Autora pagou à Ré o valor de €10.000,00 (dez mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …84, que foi debitado na conta bancária da Autora. h) Em 06.08.2008, a Autora pagou à Ré o valor de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …85, que foi debitado na conta bancária da Autora. i) Em 19.05.2009, a Autora pagou à Ré o valor de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …78, que foi debitado na conta bancária da Autora. j) Em 23.09.2009, a Autora pagou à Ré o valor de €5.000,00 (cinco mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …45, que foi debitado na conta bancária da Autora. k) Em 26.11.2009, a Autora pagou à Ré o valor de €7.000,00 (sete mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …33, que foi debitado na conta bancária da Autora. l) Em 20.01.2010, a Autora pagou à Ré o valor de €5.000,00 (cinco mil euros), a título de reforço de sinal, por cheque com o número …18, que foi debitado na conta bancária da Autora. m) A Ré aceitou que o remanescente do preço em falta (€22.000,00) fosse pago com o valor das rendas devidas pela TE… à Autora. n) Desde abril de 2013 até março de 2021, a TE…pagou as rendas vencidas pela utilização da Fração à Autora, agindo esta sempre com a convicção que a Ré iria voluntariamente outorgar a escritura de compra e venda. o) A Autora pagou ao longo dos anos o IMI da Fração à Ré. p) Em abril de 2021 a TE… não pagou a renda à Autora. q) A partir de março de 2021, a TE… deixou de pagar as rendas da Fração à Autora. r) Passando a pagar às mesmas à Ré, após ter sido notificada para o efeito pelo Ilustre Administrador da Insolvência da Ré. s) Em março de 2021, a renda mensal devida pela TE…à Autora pelo uso da Fração era de € 797,14 (setecentos e noventa e sete euros e catorze cêntimos). *** III. As questões a decidir resumem-se, essencialmente, a saber: - se o estado dos autos permitia o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador; - se, a provar-se ter a autora pago integralmente o preço estipulado no contrato-promessa, esse facto torna ilícita a recusa do cumprimento desse contrato pelo administrador da insolvência; - se, nessa eventualidade, a recusa do adminstrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa é abusiva. * IV. Da questão de mérito: Liminarmente importa desde logo frisar que na contestação a ré impugnou a factualidade descrita nos art.ºs 4º a 40º e 46º a 57º da p.i. e os documentos particulares juntos para a demonstração dos factos atinentes à celebração do contrato-promessa de compra e venda e tradição do bem a favor da promitente-compradora, do contrato de arrendamento e dos alegados pagamentos, razão pela qual, por não confessados, se considera que se não mostram provados nos autos tais factos elencados no despacho saneador/sentença proferido em 1ª instância – art.ºs 567º, n.º 1, e 574º do CPC, e 374º do C. Civil. Posto isto, apreciemos as questões postas na apelação. A apelante começa por sustentar que o estado dos autos não permitia ao tribunal a quo o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, tendo, por isso, o despacho saneador/sentença violado o disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, devendo ser revogado, posto que é absolutamente indispensável para a boa e correcta decisão da causa permitir à recorrente fazer prova de que, conforme oportunamente alegou, antes da declaração da insolvência efectuou o pagamento integral do preço, não podendo nesta situação o administrador da insolvência recusar o cumprimento do contrato promessa, ainda que o mesmo tenha eficácia meramente obrigacional, atento o disposto no art.º 102º, n.º 1, do CIRE. Vejamos se lhe assiste razão. Dispõe o art.º 595º, n.º 1, al. b) que o despacho saneador se destina a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória. Na p.i. a autora alegou que por acordo reduzido a escrito, datado de 4/08/2005, celebrou (na qualidade de promitente compradora) com a AP…(na qualidade de promitente vendedora) um contrato promessa de compra e venda, que tinha por objeto a fração autónoma designada por 1.12, com cerca de 250m2 de área coberta e 150m2 de logradouro, destinado a comércio/indústria ligeira, sito na Estrada …., a que corresponde o processo de loteamento n.º …-Lote-… que corria na Câmara …. e à data não descrita na Conservatória do Registo Predial, por não se encontrarem concluídas a obras de construção. Alegou também que nos termos da cláusula segunda do contrato-promessa, a AP… prometeu vender à autora, que a prometeu comprar, a referida futura fracção autónoma pelo preço de €150.000,00 (cláusula quinta do Contrato Promessa). E que, a 02.08.2010, numa altura em que alegadamente já tinha a posse da fracção, a autora (na qualidade de senhoria), a TE… (na qualidade de arrendatária) e a ré (na qualidade de proprietária da fracção), celebraram um contrato de arrendamento para fins não habitacionais a termo certo, pelo qual a autora deu de arrendamento à TE…, que tomou de arrendamento, a fracção, com a expressa autorização da ré, pelo prazo inicial de um ano, início em 01.08.2010 e termo em 31.07.2011, renovável sucessivamente por iguais períodos de um ano (o “Contrato de Arrendamento”). Nesse escrito exarou-se, além do mais, que até a essa data não fora celebrada a escritura de compra e venda por dificuldades financeiras da autora e que as rendas até ao montante máximo de 22.000,00 euros serão entregues à AP... sendo que o remanescente do valor das rendas reverterá a favor do Senhorio, a ora autora. E, alegadamente, entre 13.08.2010 e 11.04.2013, foi pago, pela arrendatária TE…à AP… um valor total de €22.000,00. A autora alegou ainda na p.i. que a escritura de compra e venda nunca foi marcada pela ré, não tendo sido celebrado o contrato prometido de compra e venda. Já após a declaração da insolvência da AP…, no dia 14.05.2021, a autora enviou (por intermédio do seu mandatário) ao Administrador da Insolvência da ré uma missava solicitando a marcação de data e local para a outorga da escritura de compra e venda. Em 16.06.2021, o Administrador da Insolvência respondeu à autora dizendo “Comuniquei o assunto à Comissão de Credores e ainda não me responderam. Nessa medida, considerando que o assunto está pendente há anos (2005 e a insolvência foi decretada em 2019), e considerando, por outro lado, que a massa pode sempre recusar o cumprimento dos negócios ainda não cumpridos, apelo à sua compreensão e boa vontade para promover os seus melhores ofícios junto do seu constituinte no sentido de aguardar mais uns tempos, até que seja possível tomar posição.” E a 16 de Julho de 20121 comunicou o seguinte: “Consultada a Comissão de Credores, estamos de acordo com a posição de V. Exa. de que, estando o negócio totalmente cumprido pela contraparte, não cabe ao administrador de insolvência optar pelo cumprimento ou não cumprimento do mesmo. Todavia, do nosso ponto de vista, sucede que o cumprimento do negócio por V. Exas. vinculava a insolvente a uma obrigação (cumprimento do negócio) que teria que ter sido reclamada em sede e momento próprios. E essa reclamação não foi feita. Admitir a pretensão de V. Exas. e celebrar a escritura nesta fase equivaleria a pagar a um credor que não reclamou créditos o que, como compreenderá, é possível. A tudo isto acresce que não nos parece usual na prática comercial que uma empresa que conhecia as dificuldades da AP….e que inclusivamente sabia da pendência do PER, só agora tenha vindo dar a conhecer esta situação pelo que, sem prejuízo do que se referiu, esta posição não deve ser entendida como reconhecendo sequer a legitimidade do contrato e/ou dos pagamentos que referem terem sido realizados” (cfr. Doc. 52, junto). Assim, em face do alegado, ao tempo da declaração de insolvência da promitente-vendedora (a 28/11/2019) o contrato-promessa era um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido. Ora, como é sabido, tal declaração de insolvência provoca efeitos nas relações jurídicas que subsistem nessa data. E dúvidas não existem de que o administrador da insolvência recusou o cumprimento daquele contrato-promessa. Efectivamente aquele, através da comunicação de 16 de Julho de 2021, recusou-se a celebrar o contrato definitivo, invocando diversas razões, nomeadamente não ter autora atempadamente reclamado créditos no âmbito do apenso de reclamação de créditos. De resto, essa recusa mostra-se evidenciada pela circunstância de, após ter sido interpelada para cumprir o contrato-promessa (com a citação operada na presente acção) não ter marcado a correspondente escritura pública. Assim, a questão está em saber se essa recusa é lícita, como se entendeu na sentença recorrida, ou se, ao invés, foram alegados factos que, a provarem-se, tornam aquela recusa ilícita, mantendo-se o dever de prestação por parte da Massa Insolvente e, consequentemente, legitima o recurso pela ora autora à acção de execução específica (art.º 830º do C. Civil). No caso, não foi atribuída eficácia real ao contrato-promessa, nem foi adoptada a forma legalmente exigida para o efeito (escritura pública, nos termos do disposto nos artigos 413º e 875º do Código Civil, na redacção vigente à data da celebração do contrato-promessa), tendo, porém, alegadamente, ocorrido a tradição da fracção a favor da autora (promitente-adquirente dessa fracção). Não tendo o contrato promessa eficácia real, mas tendo, alegadamente, havido tradição da coisa a favor da promitente-compradora, tem sido alvo de controvérsia na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se, nestes casos, o administrador da insolvência pode licitamente recusar o cumprimento desse contrato. Em causa está a interpretação do disposto nos art.ºs 102º e 106º do CIRE. Preceitua o artigo 102º, nº 1, do CIRE, que “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”. E estabelece o art.º 106º que: Promessa de contrato 1 - No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador. 2 - À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor. Assim, o princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos expresso no art.º 102º citado fica subordinado às normas subsequentes dos artigos 103º a 119º, todos do CIRE, que consagram os efeitos especiais a respeito de cada uma das situações ou relações jurídicas do devedor. Para que os negócios bilaterais se considerem não cumpridos, para efeitos do art.º 102º, n.º 1, é necessário que se verifiquem 3 requisitos a saber: - a natureza bilateral do contrato (como é, fora de dívida, o caso dos contratos de promessa de compra e venda); - o seu não cumprimento total, por ambas as partes; e - a inexistência de regime diferente para os negócios, especialmente, regulados nos artigos seguintes. Deste modo, o aludido dispositivo legal não se aplica se tiver havido cumprimento total por uma das partes. Ora, no caso, pese embora a autora tenha alegado o pagamento da totalidade do preço estabelecido no contrato-promessa, o certo é que, por falta de celebração do contrato-prometido, para a qual têm de concorrer declarações de ambas as partes, não se pode afirmar que se verifique uma situação de cumprimento total das obrigações assumidas no contrato-promessa. Por outro lado, o art.º 106º, n.º 1, do Código refere-se literalmente a situações em que o insolvente é promitente-transmissor de propriedade e é conferida eficácia real (com registo, portanto) à promessa de compra e venda, existindo ainda tradição da coisa a favor do promitente-comprador. Nestas situações a alineação prometida tem uma eficácia erga omnes (própria dos direitos reais), que não se vê afectada pela insolvência, pelo que, não havendo cumprimento da promessa de venda pelo AI, o promitente-comprador poderá sempre lançar mão do mecanismo coercivo da execução específica (em esp., art.º 830º, 1, 3, CCiv.), em detrimento, portanto, do princípio par conditio creditorum – vide Ac. STJ de 1/03/2023, Ricardo Costa (Relator), acessível em www.dgsi.pt, assim como os adinate citados. Nos casos em que o contrato-promessa tem efeitos meramente obrigacionais (sem eficácia real), mas existindo tradição da coisa a favor do promitente-comprador coloca-se a questão de saber se se verifica uma lacuna da lei e, existindo, se esta deve ser a integrada de modo idêntico ao previsto directamente na lei para os casos em que o contrato tem eficácia real (com tradição da coisa), ou se a lei deve ser alvo de uma interpretação correctiva, como propugna Menezes Leitão (Direito da Insolvência, Almedina, 5ª edição, págs. 172/173); ou se o invés deve entender-se inexistir tal lacuna, carecendo de justificação aplicar aquele regime excepcional a estas situações. Sobre esta matéria pronunciou-se o Ac. do STJ de 12 de Maio de 2011, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora), entendendo-se que: “(…) releva apenas observar que, por esta via, a lei pretendeu tutelar a situação de facto criada com a entrega da coisa ao promitente-comprador. Pode discordar-se desta opção; neste sentido, e para citar os autores invocados pela recorrente, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, Lisboa, 2005, pág. 405, ou Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 4ª ed., Coimbra, 2008, pág. 145. Mas, nem tem fundamento a proposta de interpretação correctiva apresentada por este último autor, como aliás resulta da “perfeita harmonia com o equivalente estatuído no nº 1 do art.º 104º” do CIRE para o caso da recusa de cumprimento de um contrato de compra e venda com reserva de propriedade em caso de insolvência do vendedor (apontada, a pág. 405, pelos autores primeiramente citados), nem a expressa e manifesta alteração legislativa a suporta. No confronto entre os interesses da massa insolvente e do promitente comprador, a lei manteve a exigência da eficácia real da promessa (cognoscível pelos demais credores do insolvente, tendo em conta o registo respectivo), mas restringiu a prevalência da posição do último à hipótese de já ter ocorrido a tradição da coisa.” E assinalou-se no Ac. do STJ de 14 de Junho de 2011, Fonseca Ramos (Relator): “O CIRE regulou a hipótese de ao contrato-promessa ter sido atribuída eficácia real e ter havido traditio – art.º 106º, nº 1, estabelecendo que o administrador não pode recusar o cumprimento, tendo que outorgar o contrato prometido, o que se compreende, considerando a eficácia “erga omnes” do contrato – art.º 413º do Código Civil – e o facto de a isso acrescer a traditio implicar um grau de estabilidade e solidez da posse do promitente-comprador e uma sua expectativa fortemente tutelada juridicamente a justificar a imposição do cumprimento. Mas, no que concerne ao contrato sinalizado sem eficácia real, mas em que houve traditio, o CIRE é omisso. Importa, então, saber se, pura e simplesmente, estamos perante uma lacuna que demanda a aplicação do regime do incumprimento do Código Civil, mormente, do art.º 442º do Código Civil – a integrar segundo os critérios do art.10º do Código Civil. (…) Com o devido respeito, não cremos que se trate de lacuna a que se deva aplicar, analogicamente, o regime do Código Civil. O administrador da insolvência, a quem é dada pela lei a faculdade de cumprir ou não o contrato em curso, aquando da declaração de insolvência, não é parte no contrato estabelecido entre o promitente-comprador e o promitente-vendedor e também não representa qualquer deles, mas apenas os interesses dos credores do insolvente. Por outro lado, o cumprir ou não o contrato radica num poder potestativo conferido pela lei insolvencial, não se podendo considerar que não cumprindo age com culpa e, sequer, que age com culpa presumida, art.º 799º, nº1, do Código Civil, optando por não cumprir. Considerar que quem não cumpre é o promitente-devedor que caiu na situação de insolvência pode ser temerário como regra geral, basta pensar nos casos em que a insolvência foi fortuita; por outro lado, estabelecer um nexo remoto de incumprimento baseado na culpa do insolvente para a transpor para o administrador, parece-nos não ter qualquer apoio na lei”. Já no acórdão do STJ de 20-10-2011, Helder Roque (Relator) citado pelo apelante, entendeu-se que: “(…) é, meramente aparente, a incompatibilidade entre a situação do contrato-promessa, dotado ou sem eficácia real, mas em que aconteceu tradição da coisa, a favor do promitente-comprador, para efeitos de, no primeiro caso, ao contrário do segundo, se justificar a recusa do seu cumprimento, por parte do administrador de insolvência, atento o preceituado pela artigo 106º, nº 1, do CIRE. É que, o exercício do direito de retenção pelo promitente-comprador pressupõe uma situação de incumprimento e, consequentemente, inexiste fundamento para a recusa de cumprimento, por parte do administrador de insolvência, nem para a aplicação do preceituado pelo artigo 102º, nº 1, do CIRE. Por outras palavras: a ratio da lei é a tutela, na promessa sinalizada com tradição da coisa, da posição do promitente-adquirente (na nossa perspectiva, só quando ele seja um consumidor), ou seja, do seu crédito à restituição do sinal em dobro ou (verificados os seus pressupostos) à indemnização pelo aumento do valor da coisa, através de uma garantia, pelas razões apontadas particularmente robusta. Essa carência de protecção, essa necessidade da tutela do promitente-adquirente/consumidor que a norma visa conceder, não existe só no caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, mas verifica-se igualmente, ou melhor, verifica-se principalmente, na insolvência, face ao caso de recusa (lícita) de cumprimento pelo administrador (a quem a lei atribui o poder de decidir o destino do contrato). A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a protecção destes últimos no mercado da habitação”. E mais adiante: “(…) não sendo o direito de retenção, conferido pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC, um direito real de gozo, mas antes um direito real de garantia privilegiado, acaba por revestir, na prática, uma eficácia superior aquela de que goza a promessa com eficácia real, em especial, quando, havendo conflito entre os dois promissários, a tradição da coisa feita a um tenha sido posterior ao registo da promessa com eficácia real a favor do outro. Com efeito, se o promitente-vendedor de um imóvel, ainda que dotada a promessa de eficácia real e tendo o promitente-comprador levado, imediatamente, o seu direito a registo, vier mais tarde a prometer vender o mesmo a um terceiro, permitindo a este a sua imediata ocupação, de nada aproveitará ao primeiro promitente-comprador a eficácia real da promessa e a autoridade do seu direito, nem sequer o registo da sua aquisição definitiva, com vista a desalojar do prédio o segundo promitente-comprador, enquanto este, dotado do direito de retenção, não for, integralmente, pago do seu crédito. Deste modo, não existe uma relação de antinomia entre a promessa, dotada ou não de eficácia real, desde que o promitente-comprador seja beneficiário do direito de retenção que obteve, em consequência da tradição da coisa, por força do disposto pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC”. Refere-se também no citado acórdão: “(…) o contrato-promessa de compra e venda, sem eficácia real, não pode ser objecto de recusa de cumprimento se tiver ocorrido a tradição da coisa, a favor do promitente-comprador, de modo que só poderá haver recusa de execução do contrato se não tiver acontecido a entrega da coisa ao mesmo, ou se, tendo-se a mesma verificado, nenhuma das partes tiver cumprido, integralmente, a sua prestação. Assim sendo, no caso de existir tradição da coisa para o promitente comprador, que já cumpriu, totalmente, a sua contra-prestação, a recusa do cumprimento do contrato-promessa, na hipótese de insolvência do promitente- vendedor, por parte do administrador de insolvência, já se não afigura possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real, devendo, então, ser reconhecida, no âmbito da graduação de créditos, a garantia do direito de retenção, prevista pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC, com base numa interpretação correctiva do disposto pelo artigo 106º, do CIRE”. E na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de Uniformização de Jurisprudência (PAULO TÁVORA VITOR) publicado no DR, 1.ª Série, n.º 95, 19 de maio de 2014, pp. 2882 e seguintes, exarou-se que “ficará o n.º 2 do artigo 106.º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador” e “só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato. Esta orientação não integra, contudo, o segmento uniformizador e não foi sufragada por alguns dos Senhores Juízes Conselheiros que votaram favoravelmente o Acórdão (cfr., designadamente, as declarações de voto dos Conselheiros MOREIRA ALVES, ALVES VELHO, FONSECA RAMOS). Registe-se ainda que nas situações apreciadas no Ac. STJ de 20/10/2011 e no AUJ n.º 4/2014 o promitente-comprador possuía a qualidade de consumidor, assistindo-lhe o direito de retenção pelo crédito resultante da recusa de cumprimento, sendo que nessas situações os demais credores não ficam numa situação substancialmente mais gravosa do que ocorreria se o promitente-comprador exercesse na insolvência o seu direito de crédito, por este gozar do direito de ser pago com preferência sobre os demais credores, nos termos do art.º 759º do C.C. Diversamente, no caso em apreciação, a autora (promitente-compradora) é uma sociedade comercial, a qual pela sua própria natureza, prossegue um escopo comercial, o que afasta a qualidade de consumidora, tanto mais que a mesma alegou ter arrendado a fracção em causa nos autos a um terceiro - Acórdão do STJ de 17-10-2019 (relator José Raínho), no processo n.º 999/12.4TBEPS-G.G2-A.S1 e Acórdão do STJ, de 29.10.2019 (relator Pinto de Almeida), no processo n. 3975/16.4T8VIS-A.C1.S1. E, como se exarou na fundamentação vertida no AUJ n.º 3/2021, de 27/04/2021, Fernando Jorge Dias (relator), publicado no DR, 1.ª Série, n.º 158/2021, de 2021-08-16 (neste uniformizou-se jurisprudência nos seguintes termos: "Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março"): “Não tendo o contrato promessa eficácia real, pode ser afetado o negócio, podendo ser recusado o cumprimento desse contrato mesmo que se tenha verificado tradição da coisa, conforme disposto no n.º 1 do art.º 106 do CIRE, interpretação "a contrario". Este é também o entendimento de vasta doutrina, nomeadamente Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serra in "Insolvência e Contrato Promessa: Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-promessa com Eficácia Obrigacional" e entre outros que citam, os profs. Calvão da Silva, Carvalho Fernandes e João Labareda, e Lebre de Freitas. Entendimento distinto tem Menezes Leitão, in "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas" anotado, pág. 145, que entende como inadmissível a recusa de cumprimento de qualquer contrato promessa (mesmo que tenha eficácia meramente obrigacional) sempre que exista tradição da coisa. Entende que o direito de retenção confere ao titular, ou constitui, uma garantia real que não pode deixar de ser atendida em sede de insolvência. José Carlos Brandão Proença in "Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes adquirentes de bens imóveis (máxime, com fim habitacional)", in "Cadernos de Direito Privado", 2008, n.º 22, pág. 21, sustenta, implicitamente, que essa tese de Menezes Leitão não pode ser sufragada, considerando o direito constituído, mas deveria ser pensada em futuras alterações legislativas, com a preocupação de se buscar uma melhor tutela dos promitentes adquirentes de bens imóveis, maxime, com fim habitacional em que houve tradição da coisa, perante a insolvência do promitente vendedor. O certo é que, de jure constituto, a lei consagra a opção de não ser cumprido o contrato promessa e, tendo a AI declarado optar pela recusa no cumprimento do contrato promessa, por aplicação daquele art.ºs 106 (interpretação "a contrario") e 104 n.º 5, é aplicável, em consequência desse incumprimento, o disposto no art.º 102, nomeadamente no seu n.º 3, todos do CIRE.” E mais adiante, referindo-se ao AUJ n.º 4/2014: “(…) entendeu-se que o n.º 2 do art.º 106 apenas se aplica ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não se verificou a tradição da coisa ao promitente comprador porque "só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato". Em suma, concluiu-se nesse aresto que, "não sendo afetado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442 n.º 2 do Código Civil" e, igualmente, haver imputação de culpa (imputação reflexa) no caso de insolvência pelas causas que determinaram essa mesma insolvência, porque "a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações". Entendemos que assim poderia ser, mas apenas nos casos de insolvência dolosa, em que o devedor age com intenção de prejudicar os credores e por esse modo provoca a insolvência, o que constitui crime, conforme art.º 227 do Código Penal, que o prevê e pune. Mas, na maior parte das ocorrências, as insolvências resultarão de casos fortuitos. O que contraria o conceito de imputabilidade reflexa que assenta na ideia de que o incumprimento do contrato promessa de compra e venda é imputável ao insolvente, pois que foi o promitente vendedor, insolvente, que se colocou em situação de não poder cumprir pontualmente as suas obrigações. Assim, entendemos que não há falta culposa ao cumprimento da obrigação, nem há qualquer presunção de culpa que deva ser ilidida pelo devedor, como realçou o Cons. Fonseca Ramos na declaração de voto que juntou ao AUJ n.º 4/14: "Ligar o incumprimento do contrato promessa à opção (lícita) do administrador da insolvência em cumprir ou não cumprir o contrato em curso, contraria a opção potestativa daquele - art.º 102, n.º 1 do CIRE - ope legis desligada da atuação do insolvente, não sendo tal opção compaginável com o disposto nos art.ºs 798.º e 799.º do Código Civil". A esse propósito, também o Cons. Lopes do Rego referiu na declaração de voto de vencido que apôs ao dito AUJ: "a questão a dirimir no presente recurso de uniformização de jurisprudência consiste apenas em determinar se a garantia real outorgada ao promitente comprador que obteve a tradição do imóvel pela alínea f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC (independentemente do valor do crédito resultante do incumprimento, ou seja, de este se calcular pelos critérios específicos consagrados no art.º 442 do CC ou antes pelos resultantes das normas do Código da Insolvência) é invocável no âmbito do processo de insolvência". É também este o nosso entendimento, em especial nos casos, como o presente, em que o promitente-comprador não possui a qualidade de consumidor e, consequentemente, não goza do direito de retenção para garantia do crédito decorrente da recusa de cumprimento. Assim, assistia ao Administrador da Insolvência o direito de recusar o cumprimento do contrato-promessa. Porém, como sustenta Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, Almedina, págs. 241 e 242, nota 350), nada impede que a norma do art.º 102, n.º 4, do CIRE (estabelece-se aí que “A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável“) se estenda à opção pela recusa de cumprimento, devendo entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato-promessa, fundamentalmente, em dois casos: quando a recusa viola gravemente o direito fundamental à habitação do promitente-adquirente e quando o preço está já total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato- prometido). Efectivamente, a noção de abuso de direito assenta no exercício legal de um direito, que, no entanto, é feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (art.º 334º do C. Civil). Ora, como o STJ já entendeu “(…) nos casos em que o preço foi integralmente pago pelo promitente-comprador/consumidor, o administrador da insolvência não pode recusar o contrato, em homenagem à forte expectativa do promitente fiel (…), já que estando em causa um direito fundamental (à habitação) merece reforçada protecção a parte que viu frustrada a celebração do contrato prometido pelo facto, a si não imputável, da insolvência do promitente-vendedor, que, ademais, tendo arrecadado o preço nenhum prejuízo pode invocar, pouca diferença existindo /à parte as consequências jurídicas) entre tal realidade e uma consumada compra e venda” - Acórdão de 9-02-2012, proferido na revista n.º 1008/08.3TBOLH-L.E1.S1, 6ª Secção (Fonseca Ramos), a que tivémos acesso, cujo sumário consta dos Sumários de Acórdãos do STJ - ano de 2012, acessíveis na internet. Importa ainda ter presente que “os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito” (art.º 12º, nº 1 do EAJ), esperando-se dos mesmos uma actuação pautada por um critério semelhante ao do bonus pater famílias, apanágio do direito obrigacional – cfr. o Ac. STJ de 17 de Abril de 2018, Ana Paula Boularot (Relatora). Assim, caso a autora (promitente-compradora) tenha pago integralmente o preço, a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquela a título de sinal, sob a invocação formal de que esta não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constituirá um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. Deste modo, logrando a autora provar que pagou por inteiro o preço estipulado no contrato-promessa, haverá fundamento para neutralizar a recusa do AI à luz do abuso do direito, com a consequente procedência do pedido de execução específica do contrato-promessa. Conclui-se, por isso, em linha com o sustentado pela apelante, que o estado dos autos não permite conhecer imediatamente do mérito da causa, quer relativamente àquele pedido, quer relativamente ao pedido de restituição do valor das rendas (enquanto alegada dívida da massa – art.ºs 51º, n.º 1, al. i) e 89º, n.º 2, do CIRE), posto que os factos em que assentam esses pedidos se mostram controvertidos nos autos. Consequentemente, impõe-se revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento da acção, devendo em consonância, ser proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (art.º 596º do CPC), seguindo-se após os demais termos até final. Procede, pois, nestes termos, a apelação. Sumário: 1. Não tendo o contrato promessa eficácia real, pode ser afetacdo o negócio, podendo ser recusado o cumprimento desse contrato mesmo que se tenha verificado tradição da coisa, conforme disposto no n.º 1 do art.º 106 do CIRE, interpretação "a contrario”. 2. Nada impede que a norma do art.º 102, n.º 4, do CIRE se estenda à opção pela recusa de cumprimento, devendo entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato-promessa, quando o preço está já total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato- prometido). 3. Os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito (art.º 12º, nº 1 do EAJ), esperando-se dos mesmos uma actuação pautada por um critério semelhante ao do bonus pater famílias. 4. Caso o promitente-comprador tenha pago integralmente o preço, a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquele a título de sinal, sob a invocação formal de que este não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constituirá um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. * V. Decisão: Pelo acima exposto, decide-se: 1. Em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que conheceu do mérito da causa, devendo em consonância, ser proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (art.º 596º do CPC), seguindo-se após os demais termos até final; 2. Custas pela parte vencida a final; 3. Notifique. Lisboa, 4 de Julho de 2023 Manuel Marques Pedro Brighton Teresa Henriques |