Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1189/16.2T8BRR.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
IN ITINERE
LOGRADOURO DE MORADIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: 1 – Os acidentes ocorridos no trajeto de ida para o local de trabalho, podem qualificar-se como acidentes de trabalho.
2 – Ocorrendo o acidente no logradouro de uma moradia, quando já havia sido transposta a porta de casa e se desciam os degraus em direção ao local de trabalho, o acidente ali ocorrido é de trabalho.
Decisão Texto Parcial:Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

AAA, residente na (…), A. nos autos à margem referenciados, não se conformando com o teor da sentença neles proferida, vem dela interpor recurso.
Pede a revogação da decisão recorrida.
Formulou as seguintes conclusões:
1. Em virtude de os factos em apreciação terem ocorrido em 29 de Janeiro de 2016, a Lei aplicável, no que respeita ao regime dos acidentes de trabalho, é a Lei n.º 98/2009 de 4/09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do art. 284º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02.
2. A residência da ora recorrente é uma moradia independente, com rés-do-chão e 1.º andar, com logradouro, delimitada por um muro.
3. A porta de saída da residência habitualmente utilizada pela recorrente dá acesso ao logradouro através de um lanço de escadas com 4 degraus.
4. No dia 29.01.2016, pelas 7:50, quando já havia transposto a porta de casa e descia aqueles degraus em deslocação para o seu local de trabalho – adotando o procedimento habitual sempre que sai de casa em deslocação para o local de trabalho e no tempo em que habitualmente o faz -, a recorrente colocou mal o pé, escorregou e caiu desamparada.
5. O acidente aconteceu no trajeto normalmente utilizado pela trabalhadora para se deslocar da sua residência para o seu local de trabalho e durante o período de tempo habitualmente gasto nessa deslocação.
6. O acidente dos autos deve assim ser considerado como acidente de trabalho, concretamente «acidente in itinere», de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 e n.º 2 alínea b) do art.º 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (Lei que regulamenta o regime de reparação dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
7. Com efeito, o artigo 9º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, prevê uma extensão do conceito de acidente de trabalho a determinadas situações, considerando-se também acidente de trabalho, entre o demais, o ocorrido “No trajeto de ida para o local de trabalho ou no regresso deste, nos termos referidos no número seguinte” (cfr. alínea a) do nº1), concretizando o nº2 que “A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
(…) b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.”
8. A atual norma que resulta do artigo 9º nº2 b) da Lei 98/2009 de 4 de Setembro (LAT) deve ser interpretada no sentido de abranger os acidentes ocorridos entre a porta da residência do trabalhador, que dá para o pátio/logradouro da mesma, e o portão de acesso à via pública, seja aquela residência um prédio ou uma moradia unifamiliar (Cfr. Acórdão do TRL, de 11.10.2017, proferido no processo n.º 13157/14.4T2SNT.L1-4).
9. Deve assim entender-se, que, a partir do momento em que o trabalhador transpõe a porta da residência, ou habitação, onde normalmente vive e permanece, inicia o trajeto para o local de trabalho (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/06/2017, proferido no proc. n.º 797/15.3Y2GMR.G1; Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 22/04/2013, proferido no proc. n.º
253/11.0TTVNG.P1).
10. Deve interpretar-se o disposto nos artigos 8º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), e 9ª, n.ºs 1, alínea a) e 2, alíneas b) e e), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores da habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, independentemente de se tratar de espaço próprio deste ou de espaço comum a outros condóminos ou comproprietários, bastando que para tal já tenha sido transposta a porta de saída da residência, desde que a vítima se desloque para o local de trabalho, segundo o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (Cfr. Acórdãos do STJ, de 18.02.2016, 13.07.2017 e de 05/12/2018).
11. Consequentemente, o acidente dos autos, ao ter ocorrido quando a recorrente já havia transposto a porta de saída da sua residência, em deslocação para o local de trabalho, segundo o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para aquele efeito, constitui acidente in itinere, devendo assim ser reconhecido e qualificado como acidente de trabalho, e reconhecendo-se à recorrente o direito à sua reparação, nos termos legais.
BBB contra-alegou defendendo a confirmação da sentença.
O MINISTÉRIO PÚBLICO consignou nos autos que adere à fundamentação do recurso, pelo que se pronuncia pela respetiva procedência.
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Para melhor compreensão segue-se um breve resumo da discussão:
AAA, trabalhadora de serviços gerais, intentou a presente ação emergente de acidente de trabalho, sob a forma do Processo Especial, contra “BBB.” alegando, em síntese, ter sofrido um acidente de trabalho no dia 29 de Janeiro de 2016, quando trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da Santa Casa da Misericórdia de Canha, como “trabalhadora de serviços gerais I” quando já tinha iniciado a sua deslocação para o seu local de trabalho, tendo o acidente ocorrido no trajeto entre a sua residência e o seu local de trabalho. Em consequência do acidente sofreu lesões que enumera. A ré, que inicialmente prestou assistência clínica à autora através dos seus serviços clínicos, veio a declinar qualquer responsabilidade.
Peticiona, a final, que seja o acidente dos autos reconhecido como acidente de trabalho, que se reconheça a existência de nexo causal entre o acidente e as lesões, que seja atribuída à autora uma IPP não inferior a 4%, seja a ré condenada a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual devida face à desvalorização que lhe vier a ser atribuída, uma indemnização legal por ITA e despesas que a mesma suportou.
A Ré, mantendo a posição assumida na tentativa de conciliação, não reconheceu a existência do acidente de trabalho, a sua caracterização como acidente de trabalho e o nexo de causalidade entre aquele e as lesões apresentadas. Reconhecendo, apenas, a celebração de um contrato de seguro de acidente de trabalho com a entidade empregadora do autor.
Pugna, a final, pela improcedência da ação.
Procedeu-se à realização da Audiência de Discussão e Julgamento, a que seguiu a sentença que julgou a ação improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados.
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As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, é a seguinte a questão a decidir, extraída das conclusões:
- O acidente dos autos deve ser considerado como acidente de trabalho?
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os FACTOS PROVADOS são os seguintes:
1- No dia 29 de Janeiro de 2016, a A. detinha a categoria de “Trabalhador de Serviços Gerais I”, exercendo funções de operadora de lavandaria, sob as ordens, direção e fiscalização da (…), cuja responsabilidade emergente de acidentes de trabalho se encontrava totalmente transferida para a R., BBB., através da apólice n.º 6400693009 (alínea A) dos Factos Assentes).
2- Nessa data, a A. auferia a remuneração mensal de € 505,00, acrescida de complemento de retribuição, no valor de € 75,75, em virtude do exercício de funções de coordenação (do pessoal da lavandaria), perfazendo a remuneração base mensal de € 580,75, correspondente à remuneração anual de € 8.130,50 (salário base: € 580,75 x 14 meses) (alínea B) dos Factos Assentes).
3- A residência da A. é uma moradia independente, com rés-do-chão e 1.º andar, com logradouro, delimitada por um muro (alínea C) dos Factos Assentes).
4- A porta de saída (da residência) habitualmente utilizada, dá acesso ao logradouro através de um lanço de escadas com 4 degraus (alínea D) dos Factos Assentes).
5- O acidente de trabalho foi imediatamente comunicado à entidade empregadora, sendo que esta o participou de imediato à R., BBB., com indicação de que o acidente ocorreu no trajeto casa-trabalho, referindo que a trabalhadora sinistrada «estava a sair de casa para o trabalho, escorregou nas escadas e caiu» (alínea E) dos Factos Assentes).
6- A A. padeceu de Incapacidade Temporária Absoluta a partir de 29.01.2016 até 04.04.2016 (alínea F) dos Factos Assentes).
7- A última vez que a A. se apresentou nos serviços clínicos da R. foi no dia 04.04.2016, tendo sido mantida em situação de ITA, e tendo sido agendada nova consulta de Ortopedia para o dia 02.05.2016, à qual já não se apresentou, em face da comunicação da R. – de que teve conhecimento através da sua entidade empregadora -, recusando assumir qualquer responsabilidade pelo acidente (alínea G) dos Factos Assentes).
8- A R. veio a declinar qualquer responsabilidade no âmbito deste acidente de trabalho, alegando que «o acidente não ocorreu num percurso coberto por esta apólice», aduzindo o seguinte: - «após a análise dos elementos reunidos acerca deste sinistro, concluímos que o acidente não ocorreu no percurso entre o local de trabalho e aliás, conforme ficou provado das diligências que levámos a cabo, teve lugar antes deste se ter ainda iniciado não sendo assim aplicável a extensão do conceito de acidente de trabalho a que alude o art. 9.º da Lei 98/2009; - Não iremos atribuir indemnização: considerando que este sinistro não reúne os requisitos para que o mesmo seja caracterizado como acidente de trabalho nos termos da Lei n.º 98/2009, informamos que não poderemos assumir a responsabilidade pelo acidente, nem responder pelo pagamento de quaisquer despesas ou indemnizações» (alínea H) dos Factos Assentes).
9- A partir desta comunicação, não mais a R. prestou à A. qualquer assistência médica (alínea I) dos Factos Assentes).
10- A A. recorreu à sua médica de família, a qual veio certificar a sua incapacidade temporária para o trabalho desde 29.01.2016 até 06.10.2016 (alínea J) dos Factos Assentes).
11- Entretanto, chamada ao Serviço de Verificação de Incapacidades (do ISS, I.P. – Centro Distrital de Setúbal), pela respetiva Comissão de Verificação foi deliberado que “não subsistia a sua incapacidade temporária para o trabalho a partir de 19.10.2016” (alínea K) dos Factos Assentes).
12- A R. não liquidou à A. qualquer quantia a título de reembolso de despesas ou indemnização por incapacidade temporária absoluta (alínea L) dos Factos Assentes).
13- A A. nasceu em 24.12.1966 (alínea M) dos Factos Assentes).
14- A A. cumpria um horário de trabalho fixo, no que concerne à hora de entrada e de saída (das 08:00 às 17:00), estando sujeita a um regime rotativo relativamente aos dias em que presta trabalho (artigo 1º da Base Instrutória).
15- A A. reside a cerca de 550 metros do seu local de trabalho (artigo 2º da Base Instrutória).
16- Deslocando-se habitualmente a pé entre a sua residência e o seu local de trabalho (artigo 3º da Base Instrutória).
17- A deslocação a pé, entre casa e o trabalho, demora menos de dez minutos (artigo 4º da Base Instrutória).
18- No dia 29.01.2016, pelas 7:50, quando já havia transposto a porta de casa e descia os degraus referidos em 4), em deslocação para o seu local de trabalho – procedimento habitual sempre que sai de casa em direção ao local de trabalho – a A. colocou mal o pé, escorregou e caiu desamparada (artigo 5º da Base Instrutória).
19- Em consequência, ficou cheia de dores, tendo gritado pelo seu filho, (…), que se encontrava no interior da habitação, ainda a dormir (artigo 6º da Base Instrutória).
20- Na sequência, o filho saiu de casa e ajudou a mãe a deslocar-se para o seu interior (artigo 7º da Base Instrutória).
21- Ato contínuo, a A. contactou telefonicamente a sua superior hierárquica, a Encarregada, (…), contando-lhe que havia caído nas escadas ao sair de sua casa, e que estava com muitas dores, dizendo-lhe que não iria trabalhar (artigo 8º da Base Instrutória).
22- Seguidamente telefonou à sua colega, (…), a contar-lhe o sucedido e a dizer-lhe que não iria trabalhar (artigo 9º da Base Instrutória).
23- Só depois destes telefonemas – e dado que as dores estavam a intensificar-se -, contactou o INEM, pedindo assistência médica, o que aconteceu por volta das 8:55 (artigo 11º da Base Instrutória).
24- Foi transportada pelo INEM ao  (…) E.P.E., o que corresponde ao episódio de urgência (episódio de urgência n.º 16011560, de 29.01.2016, pelas 10:05) (artigo 12º da Base Instrutória).
25- A A., em consequência daquele acidente, «sofreu fratura do maléolo peronial esquerdo e diáfise do perónio» (artigo 13º da Base Instrutória).
26- A A. padeceu de ITA a partir de 04.04.2016 até 02.05.2016 (artigo 14º da Base Instrutória).
27- Na sequência do descrito acidente e de a R. ter deixado de prestar assistência, e porque se encontrava totalmente incapacitada para o trabalho, a A. recorreu à sua médica de família como especificado em 10) (artigo 15º da Base Instrutória).
28- Na sequência do acidente, a A. suportou ainda despesas com tratamentos de fisioterapia na  (…): fatura n.º 2016/521, de 20.05.2016, no valor de € 75,25 (artigo 17º da Base Instrutória).
29- Taxas moderadoras relativas à assistência médica prestada pelo  (…), EPE, nos dias 29.01.2016 e 15.05.2016, no âmbito de diversos episódios de urgência, no valor de € 24,10 (artigo 18º da Base Instrutória).
30- Taxa moderadora relativa a episódio de urgência no  (…), EPE, no dia
15.05.2016, no valor de € 16,00 (artigo 19º da Base Instrutória).
31- Rx realizado na Clínica RX Montijo, fatura n.º 12870/A, de 22.08.2016, no valor de € 30,00 (artigo 20º da Base Instrutória).
32- Ecografia realizada na  (…), fatura n.º 13638/R2016, de 24.06.2016, no valor de € 40,00 (artigo 21º da Base Instrutória).
33- Tratamentos de fisioterapia realizados no Centro  (…) Lda., no valor total de € 437,75 (artigo 22º da Base Instrutória).
34- Taxas moderadoras relativas a consultas na Extensão de Saúde  (…) (Centro de Saúde do Montijo), no valor total de € 58,50 (artigo 22º da Base Instrutória).
35- Aquisição de medicação – fatura n.º 84564/ de 17.03.2016, no valor de € 35,00 (artigo 23º da Base Instrutória).
36- A autora está afetada de uma IPP de 2% desde 02.05.2016 (sentença proferida no apenso de fixação da incapacidade para o trabalho).
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O DIREITO:
A dirimir no âmbito deste recurso a questão da qualificação do acidente sofrido.
Pretende a Apelante que o mesmo deve considerar-se como acidente de trabalho in itinere.
Na sentença recorrida, analisou-se a questão e veio a concluir-se que “tendo a queda da autora, ocorrido no lanço de escada existente no logradouro da sua moradia, ou seja, em espaço privado da trabalhadora e subtraído, por qualquer forma, ao controlo da entidade empregadora, cremos que tal evento não é qualificável como acidente in itinere.”
   Para o efeito ponderou-se o seguinte:
A este respeito é possível recensear decisões jurisprudenciais distintas quanto à questão.
Assim, fundando-se na circunstância dos artigos 8º e 9º da atual Lei não conterem previsão similar à da alínea a) do número 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº. 143/99, de 30.04, que considerava acidente “in itinere” o verificado no trajeto habitual entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública até às instalações que constituem o seu local de trabalho, alguma jurisprudência sustentou que o legislador teria pretendido alargar mais o conceito de acidente “in itinere”, aceitando agora que fossem tidos como tal os sinistros verificados ainda dentro do espaço privado do trabalhador sinistrado (vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22.04.2013 e da Relação de Guimarães de 26.02.2015- este último a propósito de uma situação similar à dos presentes autos, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Cremos não poder acolher tal entendimento, fundado, como já se disse, na não transposição para o novo regime dos acidentes de trabalho do texto do citado nº. 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº. 143/99. Importando, ao invés, segundo se julga colocar a tónica da questão na noção jurídica de acidente de trabalho.
A esse respeito, colhe citar o que se lê no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 07.10.2015, disponível em www.dgs.pt, no âmbito da análise que aí se faz aos citados Arestos “ Permitir uma tal abrangência ao regime dos acidentes in itinere é, no fundo, transferir para a esfera económica das entidades empregadoras – e, por força do contrato de seguro válido, das seguradoras – a obrigatoriedade de reparação de muitos acidentes domésticos, de pura e exclusiva responsabilidade das pessoas neles envolvidas, por só elas poderem, em princípio, prevenir, fiscalizar e atuar no seio das suas vivendas, andares, apartamentos ou quartos, de maneira a diminuírem os riscos existentes em qualquer ambiente interior, pessoal, privado, caseiro”.
Prosseguindo, depois, com a seguinte conclusão “ Julgamos, assim, que a tónica delimitadora do que é acidente in itinere ou não passa necessariamente pela perda de controlo, ainda que meramente parcial, das condições e circunstâncias que afetam o espaço onde o trabalhador circula, quando se desloca de casa para o trabalho ou vice-versa, sujeitando-se assim aos perigos a que os locais públicos ou explorados pelo empregador ou clientes deste último estão expostos e que escapam, no todo ou em parte, ao seu domínio, vigilância e capacidade de modificação e reação”.
Tal entendimento que é possível encontrar noutros Acórdãos ainda que proferidos ao abrigo do anterior regime dos acidentes de trabalho (cfr. Acórdãos da Relação de Évora de 02.05.2013 e da Relação de Coimbra de 05.07.2007), merece-nos inteira concordância.
Vejamos!   
Conforme emerge do acervo fático acima exposto, a porta de saída (da residência) habitualmente utilizada, dá acesso ao logradouro através de um lanço de escadas com 4 degraus (cfr. facto 4). No dia 29.01.2016, pelas 7:50, quando já havia transposto a porta de casa e descia os degraus referidos, em deslocação para o seu local de trabalho - procedimento habitual sempre que sai de casa em direção ao local de trabalho – a A. colocou mal o pé, escorregou e caiu desamparada (cfr. facto 18).
Atenta a data em que ocorreu o sinistro, é aplicável o regime de reparação de acidentes de trabalho decorrente da Lei 98/2009 de 4/09 em vigor desde 1/01/2010.
É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
A lei estende, porém, o conceito e todo o regime aplicável a acidentes de trabalho aos acidentes ocorridos no trajeto de ida para o local de trabalho (Artº 9º/1-a)).
Dispõe o nº 2/b) do Artº 9º da Lei que ali se compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual… e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Na génese da extensão do conceito aos acidentes in itinere esteve, conforme bem elucida Júlio Manuel Vieira Gomes, ou a ideia de risco de autoridade – defendeu-se que, em determinadas situações, subsistia a situação de dependência ou subordinação do trabalhador – ou a ideia de risco profissional – o acidente é tido como resultado de um risco ocorrido por força do trabalho, porquanto o trabalhador se exporá ao risco em maior grau do que a generalidade das pessoas (O Acidente de Trabalho, Coimbra Editora). É a ideia de risco específico ou genérico agravado.
Ocorre, porém, que conforme explica aquele autor, a tutela do trajeto não depende hoje daquela distinção. “O trabalhador pode expor-se, designadamente, da sua residência para o seu local de trabalho, a um risco idêntico ao que se expõe a generalidade das pessoas que com ele partilham as mesmas vias de comunicação ou até os mesmos meios de transporte públicos, muitas delas também trabalhadores subordinados, que tal em nada afetará a sua tutela” (ob. Cit.,pg. 165).
Acautelam-se, agora, situações que estão completamente fora do alcance do poder do empregador e, por outro lado, também situações em que não se pode falar de agravamento do risco.
Assim, o trajeto tutelado é “aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho…” (idem, pg. 177).
No caso que nos ocupa a questão que se coloca é saber em que exato local começa o trajeto protegido, porquanto, ao que tudo indica, a A. ainda estava dentro do espaço particular (no logradouro).
Na verdade, tratava-se de uma moradia independente, com rés-do-chão e 1.º andar, com logradouro, delimitada por um muro (alínea C) dos Factos Assentes), sendo que a porta de saída (da residência) habitualmente utilizada, dá acesso ao logradouro através de um lanço de escadas com 4 degraus (alínea D) dos Factos Assentes).
No âmbito da Lei precedente – a Lei 100/97 de 13/09, regulamentada pelo DL 143/99 de 30/04 – consignava-se que estava abrangido o trajeto desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública até às instalações que constituam o local de trabalho.
Na atual lei esta especificação desapareceu, reportando-se, agora à proteção ao trajeto entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituam o local de trabalho.
Parece, assim, que, encontrando-se o trabalhador ainda dentro da área envolvente da residência, como seja o logradouro, ainda não estará entre a residência e o local e trabalho, mas sim na residência.
Ora, os acidentes ocorridos na residência do trabalhador não encontram tutela neste regime por, conforme ensina ainda Júlio Gomes, “se situarem numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por este controlado e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem trabalho” (idem, pg. 181).
E neste sentido a ora Relatora já se pronunciou recusando a ideia de acidente in itinere num caso muito semelhante, porquanto encontrando-se a sinistrada fora do espaço público, num local onde domina, não pode dizer-se que o acidente ali sofrido encontre proteção no regime da sinistralidade laboral. (Voto de Vencida, Procº 437/11.0TUGMR, www.dgsi.pt). No mesmo sentido, os Ac. da RLx. de 7/10/2015, Procº 408/13.1TBV e RP de 19/10/2015, Procº 643/13.2T4AVR.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores vem, contudo, afirmando repetidamente que o acidente, para ser qualificado como de trabalho in itinere, não tem de ocorrer na via pública, bastando que ocorra em qualquer ponto do trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho, seja a via pública, sejam as partes comuns do edifício se o sinistrado habitar numa das suas frações, seja no logradouro se a habitação for uma moradia.
Neste sentido, podem ver-se os Ac. da RLx. de 25/10/2017, Procº 1870/15.3T8BRR, 11/10/2017, Procº 13157/14.4T2SNT, RG de 21/09/2017, Procº 460/14.2TTVCT e 11/0172019, Procº 1489/17.4T8VCT, RC de 10/09/2015, Procº 135/16.8T9GRD e RP de 22/04/2013, Procº 253/11.0TTVNG e 26/06/2019, Procº 2311/17.7T8VFR.
Sobre a dessintonia de correntes, esclareceu-se no Ac. do STJ de 18/02/2016, Procº 375/12.9TTLRA, recorrendo à lição de Júlio Gomes, que a questão « (…) é de resposta delicada, não só porque o direito comparado mostra que as duas soluções são possíveis e defensáveis – compare-se a situação alemã que, em princípio, considera que o trajeto tutelado relativamente a acidentes de trabalho, só tem início quando se acede à via pública, com a francesa que opta por considerar que o condómino inicia o trajeto protegido já quando sai da sua fração para se deslocar nas áreas comuns do prédio – mas e sobretudo porque já teve resposta expressa na nossa lei, em norma entretanto revogada, sem que tenha sido substituída por outra em que o legislador tome expressamente posição sobre esta questão.»
Efetivamente, perante o Artº 6.º/ 2- a) do DL 143/99 de 30 de Abril, considerava-se acidente in itinere o ocorrido nas partes comuns do edifício em cuja fração habitasse o sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, dispositivo que não se manteve na atual Lei.
Perante tal evidência, o STJ, lançando mão do critério que se extrai do disposto no Artº 9º/3 do CC, veio a considerar que “A norma atualmente em vigor mostra-se redigida em termos que permite desde logo excluir do conceito os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador.
Mas já não permite que se conclua, de imediato, no sentido de que não abarca os que se verifiquem entre a residência, após transposição da porta desta, e o local de trabalho.”
Neste pressuposto o STJ vem a concluir que “o critério que conduz à caracterização de um acidente como ocorrido in itinere, nos termos previstos nos arts. 8º e 9.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, deve bastar-se com a saída (“ultrapassagem”/transposição) da porta da residência por parte do trabalhador sinistrado, para um espaço exterior à sua habitação, quer esta se situe num edifício condominial, quer numa moradia unifamiliar, podendo o acidente in itinere ocorrer ainda antes de se entrar na via pública, para se dirigir ao seu local de trabalho, através do respetivo trajeto que utiliza nessa ida.”
Ponderando toda a evolução jurisprudencial registada a este propósito e, bem assim, os argumentos que foram equacionados no referido aresto, não se vê razão para nos afastamos deste entendimento e manter aquela que era a posição defendida conforme acima demos nota.
Donde, em presença dos factos e em sintonia com a jurisprudência produzida nos últimos anos, se responde à questão em apreciação pela positiva ou seja, o acidente dos autos, ocorrido quando a trabalhadora já havia transposto a porta de casa e descia os degraus, em deslocação para o seu local de trabalho – procedimento habitual sempre que sai de casa em direção ao local de trabalho – deve considerar-se como acidente de trabalho.
*
Importa, assim, retirar consequências da qualificação supra operada.
A Apelante reclamou na sua petição inicial:
c) Atribuir-se à A. uma incapacidade permanente parcial a fixar em valor não inferior a 4%;
d) Condenar-se a R. a pagar à A. o capital de remição correspondente à desvalorização que lhe vier a ser atribuída;
e) Condenar-se a R. a pagar à A. a devida indemnização legal por ITA;
f) Condenar-se a R. a pagar à A. as despesas que a mesma suportou, documentadas nos autos.
O trabalhador tem direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho (Artº 283º/1 do CT), direito que compreende prestações em espécie e em dinheiro, ali se incluindo prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do seu estado de saúde e da sua capacidade de taralho ou de ganho e á sua recuperação para a vida ativa, e traduzindo-se as segundas em indemnizações, pensões, prestações e subsídios devidos em razão da incapacidade de que ficou a padecer (Artº 23º da Lei 98/2009 de 4/09).
Decidiu-se no apenso a natureza e o grau de incapacidade, dali emergindo que a sinistrada ficou afetada de IPP de 2% desde 2/05/2016 (ponto 36).
Não vindo esta decisão impugnada, dela partiremos para fixação da pensão devida[1].
Dispõe o Artº 48º/3-c) da Lei 98/2009 que se do acidente resultar redução na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado, este tem direito a pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho ou capital de remição da pensão nos termos previstos no Artº 75º.
O Artº 75º/1 obriga à remição da pensão anual vitalícia por incapacidade permanente inferior a 30%... desde que o valor da pensão anual não seja superior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida em vigor no dia seguinte à data da alta.
Considerando que na data do acidente a A. auferia a remuneração mensal de € 505,00, acrescida de complemento de retribuição, no valor de € 75,75, em virtude do exercício de funções de coordenação (do pessoal da lavandaria), perfazendo a remuneração base mensal de € 580,75, correspondente à remuneração anual de € 8.130,50 (salário base: € 580,75 x 14 meses) (alínea B) dos Factos Assentes), a pensão anual cifra-se em 113,83€, pensão essa obrigatoriamente remível.
Para além disso, a sinistrada esteve em ITA desde 29/01/2016 até 2/05/2016 (pontos de facto 6, 7 e 26), não lhe tendo sido paga a indemnização respetiva (ponto 12).
A incapacidade temporária absoluta confere direito a indemnização diária igual a 70% da retribuição nos primeiros 12 meses e de 75% nos subsequentes (Artº 48º/3-d)).
Considerando que a mesma esteve incapacitada de modo absoluto durante 94 dias, é-lhe devida a quantia de 2.123,00€.
Por fim, considerando as despesas reveladas a partir dos pontos de facto 28 a 35, a Apelante tem ainda direito à quantia de 716,60€.
O capital de remição é devido desde o dia seguinte ao da data da alta – 3/05/2016 (data que inferimos a partir da decisão que fixou a IPP) (Artº 50º/2).
A indemnização por IT começa a vencer-se no dia seguinte ao do acidente (Artº 50º/1), devendo ser paga mensalmente (Artº 72º/3).
Sobre os valores em dívida incidem juros de mora à taxa anual de 4% desde a data de vencimento de cada uma das prestações, exceto quanto às despesas, cujos juros são devidos desde a data da citação (Artº 805º/1 do CC).
É responsável pelo pagamento a Apelada Seguradora, porquanto a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho fora transferida para a sua titularidade mediante contrato de seguro.
***
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, e na revogação da sentença:
a) Declara-se que o acidente dos autos é de trabalho e
b) Condena-se a R. a pagar à A.:
-o capital de remição de uma pensão anual vitalícia no valor de cento e treze euros e oitenta e três cêntimos (113,83€) desde 3/05/2016, acrescida de juros de mora à taxa anual de 4% desde então até integral pagamento;
-a quantia de dois mil cento e vinte e três euros (2.123,00€), acrescida de juros de mora à mesma taxa anual desde a data de vencimento de cada uma das prestações que integram o montante global e
-a quantia de setecentos e dezasseis euros e sessenta cêntimos (716,60€), acrescida de juros de mora á taxa anual de 4% desde a citação até integral pagamento.
Custas pela Apelada.
Notifique.

Lisboa, 2020-02-12
MANUELA BENTO FIALHO
FRANCISCA MENDES
SÉRGIO ALMEIDA
(Vencido.
O acidente em causa ocorreu nestes termos:
A sinistrada vive numa moradia independente, com rés-do-chão e 1.º andar, com logradouro, delimitada por um muro (n.º 3 dos Factos Assentes). A porta de saída (da residência) habitualmente utilizada, dá acesso ao logradouro através de um lanço de escadas com 4 degraus (n.º 4). No dia 29.01.2016, pelas 7:50 h, quando já havia transposto a porta de casa e descia os ditos degraus para se deslocar para o seu local de trabalho – procedimento habitual sempre que sai de casa em direção ao local de trabalho – a A. colocou mal o pé, escorregou e caiu desamparada (n.º 18).
Como refere o acórdão, a lei amplia o conceito de acidente de trabalho aos infortúnios ocorridos no trajeto de ida para o local de trabalho (artº 9º/1-a da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro), dispondo o dispondo o art.º 9/2/b) abrange o acidente ocorrido nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Quando começa a deslocação? Há aqui uma lacuna da lei atual - já que não há critério consagrado -, mas não do Direito, porquanto não vemos que tenha sido intenção do legislador afastar a aplicação da bitola consagrada no DL. 143/99 de 30/04, em regulamentação da Lei 100/97 de 13/09, que consignava-se no n.º 2 do art.º 6º, que o trajeto tutelado vai “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via publica, até às instalações que constituem o seu local de trabalho”.
Ora, qual a razão de ser desta proteção, enfim, a ratio do preceito?
É proteger o trabalhador dos infortúnios ocorridos na deslocação de e para o trabalho, infortúnios que ele não sofreria se não tivesse de prestar a sua atividade.
Com efeito, ao efetuar deslocações, o trabalhador é exposto à possibilidade de acidentes que, de outro modo, nunca ocorreriam.
E é exposto pelo facto de não controlar as circunstâncias em que se desloca, o que ocorre imediatamente desde que entra em áreas que não controla, de que não tem o domínio: a rua, mas também as partes comuns de edifícios em propriedade horizontal (por exemplo, as escadas interiores podem estar molhadas ou ter detritos que afinal se verificam estar a montante de uma eventual queda).
Mas já não é o que acontece se se trata do logradouro do seu edifício, do qual o trabalhador tem o domínio (e que amiúde até é vedado; e mesmo que o não seja, continua a ter o domínio, como tem o domínio da sua casa ainda que, por descuido ou não, deixe a porta da rua aberta). Nem vejo como defender que, se não fosse pela necessidade de laborar, o trabalhador deixaria de frequentar o seu quintal/logra-douro. A verdade é que nem todos os infortúnios estão protegidos, pois nem todos têm conexão com a prestação da atividade (como acontecerá se o trabalhador cai a tomar duche em sua casa, ainda que, porventura, tenha sido a premência de fazer a sua higiene antes de ir laborar que o haja levado a banhar-se àquela hora).
A interpretação razoável da lei, atento o seu escopo, é, salvo melhor opinião, a de que não há acidente in itinere no logradouro do trabalhador, porquanto verdadeiramente só sai da sua habitação quando entra numa área de que não tem o domínio total, passando a estar exposto à ocorrência de infortúnios, exposição que não teria lugar se não tivesse de se deslocar em função do seu trabalho. Só então se inicia a viagem propriamente dita.
Não é esse o caso, pelo que confirmaria a sentença recorrida.)
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[1] A factualidade cuja prova se obteve não reporta qual a data da alta. Na fase conciliatória a mesma foi apontada para 2/11/2016. Porém, não foi registado acordo quanto a esta matéria, vindo a decidir-se no Apenso para fixação de incapacidade que a sinistrada está afetada de IPP desde 2/05/2016. Daqui inferimos que a data da alta terá então ocorrido.
Decisão Texto Integral: