Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
178/17. 4T8MTJ.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: FURTO DE VEÍCULO
RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art. º 663º nº 7 do CPC)

1. No nosso direito predomina o princípio da livre apreciação das provas, consagrado no artigo 607º, nº 5, 1ª parte do CPC): o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

2. Na reapreciação das provas pelo Tribunal da Relação também se impõe a obediência à regra constante do artigo 414º do CPC que estabelece que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto, ela se terá de resolver contra a parte à qual o facto aproveita, tendo em consideração, segundo o que se dispõe no artigo 346º do Código Civil, o efeito da dúvida que a contraprova consiga suscitar.

3. Existe sobresseguro quando o interesse segurado tem um valor inferior ao do capital seguro. Tal situação acarreta duas consequências: por um lado, se não se reduzir o montante do contrato, o tomador ver-se-á na circunstância de pagar um prémio superior àquele que, atento o interesse seguro seria necessário; por outro lado, e em contrapartida, no caso de se verificar um sinistro, poderia ocorrer um enriquecimento do segurado à custa do segurador, uma vez que o dano sofrido seria inferior ao valor da indemnização que aquele viria a receber.

4. O sobresseguro não exonera a seguradora de responsabilidade, a qual responde em função do princípio indemnizatório até ao valor do dano determinado em função do valor do bem segurado.


5. O ónus de alegação e prova do valor real do bem cabe à seguradora.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

MANUEL, residente na. . . intentou, em 21. 02. 2017, contra SEGURADORAS, S. A. , com sede na. . . , acção declarativa comum, pedindo que se declare a existência e a validade do contrato de seguro celebrado com a ré e, por conseguinte, que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 47. 370,51, acrescida de juros de mora, no valor de €2. 529,49, a título de capital de seguro do veículo e extras contratados.
Fundamentou o autor, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de ter celebrado com a ré um contrato de seguro de veículo automóvel para cobrir os riscos da circulação do seu veículo, com a matrícula 99-. . . -. . . . Tal veículo veio a ser furtado, tendo interpelado a ré para proceder ao pagamento do valor do capital seguro, na medida em que a eventualidade de furto ou roubo do veículo estava incluída na apólice contratada, tendo a ré recusado proceder ao pagamento desse valor.
Citada, a ré apresentou contestação, em 11. 05. 2017, impugnando, em síntese, a ocorrência do furto, uma vez que, através de diligências efectuadas, concluiu que este não tinha revestido as características de um evento aleatório e imprevisto, pelo que se recusou a pagar ao autor o valor contratualmente determinado para a eventualidade de furto de veículo.
Peticionou ainda, a ré, a responsabilização do autor como litigante de má -fé.
Foi levada a efeito a audiência prévia, em 10. 10. 2017, na qual foi proferido o despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os Temas da Prova. Foi também determinada a realização de prova pericial, no que respeita à leitura as chaves do veículo em questão.
A informação sobre a perícia realizada veio a ser proferida, em 14. 11. 2017, afirmando o perito nomeado, o seguinte:
“(…)
Após efetuadas as leituras das duas chaves, verifica-se o seguinte:
1ª chave
Última atualização: Quilometragem: 113311km Data: 28-01-13 17h34
2ª chave
Última atualização: Quilometragem: 89213km Data: 11-10-12 01h39
As chaves dos veículos BMW registam vários parâmetros no âmbito da manutenção. Assim, os dados registados não visam ser provas concretas mas sim um auxílio para os concessionários identificarem com mais facilidade as necessidades de serviços de manutenção de uma determinada viatura.
Desta forma, a chave não regista cada utilização da viatura. De uma forma aleatória a chave vai registando os dados de determinados momentos sendo que poderá passar dias sem que este registo seja efetuado na chave. Atendendo a que a atualização da chave serve para efeitos de manutenção, em concessionário, antes da leitura da chave, está estabelecido um procedimento de atualização manual de dados de chave, a efetuar na viatura, por forma a garantirmos que a leitura que está a ser efetuada é a do momento.
Sempre que é feita uma atualização automática ou manual dos dados da chave, a data e hora registadas na chave, são a data e hora que se encontram registadas na viatura. Data e hora essas, que são parametrizadas pelo utilizador na própria viatura, no respetivo calendário e relógio da mesma.
Assim, e atendendo ao anteriormente explanado, segundo os registos das chaves lidas, a última atualização da chave com mais quilómetros, foi efetuada em 28 de Janeiro de 2013 às 17h34, sendo que não nos é possível aferir se a data e horas registadas são reais. Para além disto, e sendo esta uma atualização automática, pelo atrás exposto, não nos é possível garantir que esta atualização foi efetuada na última na última utilização da viatura”.
Foi levada a efeito a audiência final, em 13. 12. 2017, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, em 11. 02. 2018, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte:
Nestes termos, e de acordo com o exposto e de harmonia com o consagrado nos preceitos legais supra citados, decido:
1. Julgar a acção totalmente procedente e, em consequência:
- Condeno a Ré SEGURADORAS, S. A. , no pagamento ao autor da
quantia de €44. 319,01 Euros (quarenta e quatro mil, trezentos e dezanove euros e um cêntimo) acrescida dos juros de mora calculados à taxa legal sucessivamente em vigor desde a citação até efectivo e integral pagamento.
2. Julgar o pedido de litigância de má-fé totalmente improcedente e, em
consequência:
- Absolvo o Autor MANUEL, do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Custas pela Ré.
Registe e notifique.
Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs, em 20. 03. 2018, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.
São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:
i. Em cumprimento do ónus que decorre para a Recorrente do disposto no art. º 640. º, n. º 1 do C. P. C. , os concretos pontos da matéria de facto que se consideram incorrectamente julgados são os pontos 7), 8) e 10) dos factos provados, sendo que, em seu entender os mesmos deveriam ter sido dados como não provados, por ausência de prova por parte do Recorrido sobre os mesmos.
ii. Pretende-se também impugnar o facto não provado sob o ponto 15), ao qual deveria ter sido dada a resposta de provado.
iii. A pretensão do Recorrido foi a de ser ressarcido pela Recorrente do prejuízo sofrido pelo alegado furto do veículo seguro por esta, furto esse que constitui um dos riscos assumidos no âmbito do contrato de seguro celebrado entre as partes, pelo que, de acordo com as mais elementares regras de distribuição do ónus da prova, parece-nos evidente que sempre caberia ao Recorrido a prova do facto que sustenta a sua pretensão – ou seja, do furto -, conforme decorre líquido da lei, nomeadamente do art. º 342 do C. C. , e de ampla jurisprudência da qual citamos, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22. 11. 2012, proferido no âmbito do processo 118/11. 4TVLSB. L1-6 e disponível em www. dgsi. pt.
iv. Sendo o furto o facto essencial que integra a causa de pedir e sendo esse facto que, uma vez provado, fundamenta a procedência da pretensão do Autor, se este não lograr provar a sua efectiva ocorrência, a acção não poderá proceder, impossibilidade que em nada depende da prova produzida pela Ré a respeito dos factos que fundamentaram a sua posição de recusa da responsabilidade.
v. A Recorrente também tem presente as dificuldades que decorrem para os segurados da aplicação da regra geral de distribuição do ónus da prova quando o facto constitutivo do direito à indemnização se trata do furto de veículo; no entanto, esta dificuldade não pode servir simplesmente para afastar a obrigação de o Autor provar os factos constitutivos do seu direito.
vi. Não é expectável que o Autor esteja em condições de alegar e provar que o furto foi praticado por determinado indivíduo porque as regras da experiência comum demonstram que se trata de acto não presenciado por terceiros, porém, entende-se que ao Autor ainda caberá a prova de um conjunto de circunstâncias que integram o tal quadro fáctico do furto e que foram por si alegadas em sede de petição inicial, como sejam a hora e o local do estacionamento do veículo, não se encontrando no âmbito do que se considera ser a prova diabólica.
vii. O entendimento inverso conduz ao perverso resultado de ao Autor só se pode exigir a simples alegação do furto, desacompanhada da prova de qualquer outro facto, por mais simples que seja essa prova.
viii. Assim, e ao A. cabia a prova do furto (ou dos elementos circunstanciais do mesmo) e que, de acordo com o entendimento da Recorrente, tal ónus não foi por si cumprido, pelo que mal andou o Tribunal recorrido ao dar como provado os factos acima impugnados (pontos 7), 8) e 10) da matéria de facto provada), conforme se passará a demonstrar.
A2. Da prova da ocorrência do furto - pontos 7), 8) e 10) dos factos provados
ix. Para a prova de tais factos contribuíram as declarações de parte do Autor, bem como os depoimentos das testemunhas Pedro e Fernando; por outro lado, o Tribunal desconsiderou o relatório pericial de fls. 97, subscrito pelo Sr. António funcionário da BMW Caetano Baviera, perito nomeado para o efeito, bem como o depoimento das testemunhas da Recorrente Hugo e Ricardo.
(i) Da prova testemunhal
x. As testemunhas Pedro e Fernando, nada puderam confirmar quanto ao quadro circunstancial alegado pelo Recorrido no sentido de ter estacionado o veículo seguro no dia 28. 01. 2013, pelas 14h30, na Praceta dos Cravos, e de no dia 29. 01. 2013, pelas 07h30, o Autor ter constatado que o veículo não se encontrava no local.
xi. Tais testemunhas apenas puderam confirmar que, determinada manhã, o Autor andava à procura do seu veículo.
xii. O depoimento da testemunha Pedro, amigo do Recorrido, revelou-se algo titubeante e com demasiadas hesitações em relação a tudo o que fugisse ao assunto do furto do veículo, como seja a data da aquisição, o valor, se foi adquirida em nova, e mesmo em relação às circunstâncias do furto, conforme se disse, apenas pôde confirmar o que lhe foi transmitido pelo Autor, nada sabendo de conhecimento directo, conforme decorre do depoimento prestado entre os minutos 00:03:16. 10 e 00:05:01. 06, e 00:08:22. 18 a 00:08:28. 13 – transcrição efectuada no corpo das alegações.
xiii. Ora, esta testemunha apenas e só pôde confirmar que, em data que não conseguiu precisar, se cruzou com o Autor e que este estava aborrecido por, alegadamente, lhe terem furtado o veículo.
xiv. Ao contrário do que alega o Tribunal recorrido, esta testemunha jamais referiu ter conhecimento de que o Autor costumava estacionar o veículo nas proximidades da casa dos pais, nem sequer que este lhe tenha dito de onde desapareceu o veículo, como resulta inequívoco da audição integral do respectivo depoimento, cuja transcrição se junta em anexo por facilidade de percepção.
xv. Do facto de esta testemunha ter confirmado que o Recorrido se encontrava aborrecido nada se pode retirar quanto à ocorrência do furto, nem às circunstâncias que a integram, uma vez que é evidente que a manifestação de um estado de espírito nada prova quanto à real ocorrência dos factos que, de acordo com o sujeito, estiveram na base de tal estado de espírito.
xvi. E o mesmo se diga em relação à apresentação da queixa-crime – não é pelo facto de o Recorrido ter participado o furto às autoridades que se pode deduzir que o mesmo ocorreu: quer a participação do furto às autoridades, quer a manifestação, perante terceiros, de um estado de espírito compatível com o que seria expectável de alguém que se viu privado de um bem, são elementos aos quais se poderão recorrer para dar credibilidade ao furto e, desse modo, não se poderão ter como suficientes para dar o furto como provado.
xvii. No que concerne à testemunha Fernando, conhecido do Recorrido por este frequentar um bar de um clube recreativo explorado pela testemunha, apenas pôde confirmar que o Recorrido se encontrava aborrecido, que lhe disse que tinha o veículo estacionado em determinado sítio e que lhe o haviam de lá roubado. Foi também o Recorrido que lhe disse que ali morava o seu pai (quem a testemunha não conhece) e que teria ido a casa dele quando o veículo foi furtado. Também foi o Recorrido que lhe disse que costumava ali estacionar o veículo, tudo conforme depoimento prestado entre os minutos 00:04:22. 26 e 00:04:47. 17, 00:10:54. 27 e 00:11:33. 23, e 00:24:27. 11 e 00:24:46. 21 - – transcrição efectuada no corpo das alegações.
xviii. Da audição integral do depoimento desta testemunha resulta evidente que a sua maior preocupação era dizer que o Autor lhe tinha dito que lhe haviam roubado a carrinha, o que repete várias vezes, decorrendo da audição integral do seu depoimento que todos os demais factos não passam de deduções, opiniões, incertezas e até incongruências.
xix. Assim, também esta testemunha não referiu ter conhecimento de que o Autor estacionasse habitualmente o veículo nas proximidades da casa dos pais.
(ii) Das declarações de parte do Autor
xx. Expostas as fragilidades de tais depoimentos, não se pode entender que o declarado pelo Recorrido tenha sido corroborado por aquelas testemunhas pois que nenhuma delas pôde confirmar, por conhecimento directo, circunstâncias declaradas pelo Recorrido no que concerne à hora e local de estacionamento do veículo; assim sendo, as Declarações de Parte do Recorrido encontram-se desacompanhadas de qualquer outro meio de prova que as corrobore, e não se poderão ter como bastantes para a prova dos factos impugnados – neste sentido, entre muitos os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 20. 11. 2014 e de 15. 09. 2014, ambos disponíveis em www. dgsi. pt.
xxi. Salvo o devido respeito pela opinião Tribunal recorrido, e cientes de que goza de liberdade de apreciação das declarações de parte, crê-se ser evidente que não poderia o mesmo dar como provado o furto, nem os factos instrumentais com ele relacionados (a hora e o local do alegado estacionamento do veículo ou o não aparecimento do mesmo até à presente data) exclusivamente com base nas declarações de parte do Recorrido (dizemos, exclusivamente, porque já demonstrámos que do depoimento das duas testemunhas do Recorrido também nada se pode extrair a este respeito).
xxii. Sendo o Recorrido parte na causa e, como tal, tendo interesse no desfecho da mesma, designadamente na procedência do pedido por si formulado, não poderão as respectivas declarações ser colocadas ao mesmo nível das declarações de testemunhas desinteressadas no desfecho da acção, pelo que aquela liberdade de apreciação das declarações de parte que a lei atribui ao julgador deverá ser temperada com uma necessária dose de ponderação acerca de interesse da parte na causa, impedindo que qualquer facto - seja ele qual for mas ainda menos factos essenciais que integram a causa de pedir -, seja provado única e exclusivamente com base em tais declarações, tanto mais, quando se trate de factos que, pela sua natureza, permitem a respectiva prova por outra via.
xxiii. Afastando-se o encargo diabólico de o Recorrido apresentar prova, seja ela testemunhal ou documental, do momento concreto do desaparecimento do veículo - não sendo expectável, pela natureza das coisas, que tal facto tivesse sido presenciado por terceiros -, já o mesmo não se poderá dizer quanto aos factos instrumentais alegados: ora, se o Recorrido alegou que estacionou o veículo nas proximidades de casa dos seus pais e que ali se deslocou para almoçar, o mínimo que lhe seria exigido, em termos probatórios, seria que tivesse arrolado os seus pais para que pudessem confirmar que tal aconteceu, ou que, pelo menos, era hábito o Autor ter aquele comportamento e deixar ali o veículo, conforme o mesmo alegou entre os minutos 00:02:58:18 e 00:02:55:19 do seu depoimento (transcrição efectuada supra no corpo das alegações).
xxiv. Parece-nos que o facto de o Recorrido ter abdicado de arrolar os seus pais como testemunhas não se coaduna minimamente com o ónus que sobre ele Recorrido recaía da prova dos factos por si alegados.
xxv. Se o veículo foi estacionado nas traseiras da residência dos pais do Autor, não é minimamente credível que este, dando pela falta do veículo, a primeira diligência que tomasse não fosse a de perguntar aos seus pais, ou até a alguns vizinhos moradores do mesmo prédio, senão teriam ouvido algum ruído ou qualquer outro elemento estranho que pudesse confirmar o furto; ao invés, alega o Autor que apenas se deslocou ao café, que andou as voltas pelo Montijo e que foi até um clube desportivo a cerca de 3 kms de distância, tendo apresentado queixa nas autoridades apenas pela hora do almoço, conforme depoimento prestado entre os minutos 00:05:51. 25 e 00:07:43. 21, e 00:08:28. 05 e 00:08:35. 21, e 00:12:28. 22 e 00:12:57. 22 (transcrição efectuada no corpo das alegações).
xxvi. Não obstante a idade dos pais do Recorrido, a qual se desconhece porque, saliente-se, apenas foi por este alegada e de forma nenhuma provada, estava na sua disponibilidade tê-los arrolado como testemunhas para que, por conhecimento directo, confirmassem que (i) o Autor estacionou ali o veículo em determinado dia (o que costumava fazer frequentemente, (ii) foi a sua casa almoçar, (iii) que saiu com outro veículo de trabalho, (iv) que deixou ali o veículo seguro durante a noite (o que também faria habitualmente) e que (v) no dia seguinte, o Recorrido deu pela falta do mesmo.
xxvii. Estes são os parâmetros da prova exigível ao Recorrido sem que se entre no domínio da prova diabólica ou excessivamente onerosa.
xxviii. Mal andou o Tribunal ao bastar-se com as Declarações de Parte do Autor, quando nenhuma testemunha ou documento foram apresentados por forma a corroborar tais declarações.
xxix. É que, repare-se, até o facto provado sob o ponto 10) o foi de acordo com as declarações de parte do Autor e das testemunhas que alegaram que nunca mais viram aquele com o veículo.
xxx. Com efeito, a prova de que o veículo não foi encontrado apenas poderia ser feita por declaração das autoridades que confirmasse que o mesmo ainda se encontra para apreensão - novamente, um meio de prova que estava na simples disponibilidade do Autor apresentar e que não se pode considerar excessivamente oneroso de obter.
xxxi. Saliente-se que as testemunhas em causa apenas confirmaram que nunca mais viram o Recorrido com tal veículo, afirmação da qual não se pode extrair que o mesmo não foi localizado, pelo que não poderia ser dado como provado o facto sob o ponto 10) sem suporte em prova documental, prova essa que, repita-se, cabia ao Recorrido efectuar.
(iii) Da prova pericial - relatório da Caetano Baviera de fls. 97
xxxii. O Tribunal recorrido desconsiderou tal documento, incorrendo em diversos equívocos que se passam a esclarecer.
xxxiii. A leitura das chaves foi requerida em sede de audiência prévia, pelo que não é verdade que o Recorrido não tenha tido qualquer domínio, controlo ou intervenção no processo de leitura - ou melhor, se o não teve, foi porque não quis pois estava na sua disponibilidade acompanhar a realização da perícia.
xxxiv. Acresce que a ausência das partes na perícia sobre qualquer objecto nunca poderá ser considerada como factor descredibilizador do resultado de tal perícia.
xxxv. Quanto à possibilidade de manipulação dos dados constantes das chaves, dir-se-á que o Tribunal também incorreu em sério equívoco ao tomar tal possibilidade como elemento descredibilizador do resultado da perícia: é evidente que qualquer suporte de dados electrónico, ou informatizado, é passível de ser manipulado por pessoas com conhecimentos técnicos para o efeito.
xxxvi. Foi isso que explicou a testemunha Ricardo no depoimento prestado entre os minutos 00:33:15. 12 e 00:36:19. 07 – transcrição efectuada no corpo das alegações.
xxxvii. Ao contrário do que alega o Tribunal, não foram ambos os averiguadores da Recorrente que mencionaram esta possibilidade (Hugo e Ricardo), mas apenas e só este último.
xxxviii. De igual modo anda enganado o Tribunal ao afirmar que ambas as testemunhas afirmaram que os próprios técnicos poderiam alterar os dados das chaves - a inexistência de tal afirmação é facilmente apreendida da audição integral do depoimento das testemunhas Hugo e Ricardo cuja transcrição se junta em anexo às presentes alegações por questões de facilidade de apreensão do seu teor.
xxxix. Também a testemunha Cátia, gestora de sinistros da Recorrente que teve intervenção directa na gestão deste sinistro, explicou qual o percurso da referida chave desde que a mesma foi remetida pelo Recorrido à Recorrente, o que fez entre os minutos 00:19:04. 18 e 00:19:59. 19 do seu depoimento – transcrição efectuada no corpo das alegações.
xl. Ora, se o Tribunal ficou com algumas dúvidas sobre a eventualidade de aquelas chaves em concreto terem sido manipuladas, ou alterados os seus dados de alguma forma, caber-lhe-ia ter convocado o perito que procedeu à sua leitura para confirmar se tal teria, ou não, ocorrido.
xli. O que o Tribunal estava impedido de fazer, como fez e sem suporte em qualquer prova material e objectiva, era insinuar que os dados da chave lida pelo perito poderiam ter sido alterados pela Recorrente, ou pelos seus funcionários, tanto mais quando foi explicado, de forma séria e credível, que as chaves se mantiveram na posse da gestora de sinistros e que dali foram levadas ao concessionário para serem lidas.
xlii. É por demais abusivo insinuar que poderia ter sido a Recorrente a manipular os dados da chave apenas e só para ter um elemento no qual sustentar a sua posição de recusa da responsabilidade.
xliii. Quanto à questão da entrega de ambas as chaves pelo Recorrido, e também para efeitos de esclarecimento do equívoco em que incorre o tribunal, sempre se dirá que tal comportamento não é bastante para afastar a força deste meio probatório: recorde-se que as chaves foram solicitadas ao Recorrido em contexto de regularização do sinistro, ou seja, o Recorrido sabia que apenas entregando ambas as chaves do veículo, a Recorrente lhe poderia pagar a indemnização devida.
xliv. Quando o Recorrido enviou as chaves à Recorrente, acompanhadas da documentação do veículo e na sequência do envio da carta de assunção de responsabilidade que depois ficou sem efeito, fê-lo para receber a indemnização, desconhecendo que a Recorrida iria proceder à leitura das chaves no concessionário da marca.
xlv. Donde, afirmar, como faz o Tribunal recorrido, que se o Autor estivesse de máfé e se tivesse, de facto utilizado uma das chaves em momento posterior àquele em que alega ter estacionado o veículo seguro, carece de todo o e qualquer sentido neste contexto: é evidente que, mesmo tendo usado a chave principal do veículo em momento posterior àquele em que alega ter estacionado o veículo seguro, o Recorrido iria sempre facultar tal chave à Recorrente pois sabia que tal é condição essencial para o pagamento da indemnização.
xlvi. Quanto ao teor do documento em si, é importante salientar que o Autor alegou que estacionou o veículo pelas 14h30 do dia 28. 01. 2013, resultando da leitura das chaves que a chave principal do veículo foi utilizada pelas 17h34 daquele mesmo dia.
xlvii. Esclarece-se em tal documento que (i) o registo de cada utilização da chave na viatura é feito aleatoriamente, ou seja, vezes pode haver em que a chave é utilizada e essa utilização não é registada electronicamente, e que (ii) a data e hora registadas na chave são as que se encontrem registadas na viatura à data daquela utilização.
xlviii. Ora, não tendo o Recorrido alegado, ou sequer provado, que o veículo poderia estar a registar uma hora distinta da hora real, terá que se concluir que a chave principal foi utilizada (referida 1. ª chave no relatório pericial) no veículo em 28. 01. 2013, pelas 17h34.
(vi) Da prova testemunha produzida pela Recorrente e desvalorizada pelo Tribunal
xlix. Conforme se disse, a falta de prova, por parte do Recorrido, do facto essencial consubstanciado no furto do veículo, faz falecer, desde logo, a sua pretensão.
l. No entanto, não se pode deixar de assinalar a incorrecta avaliação probatória que o Tribunal recorrido fez da prova produzida pela Recorrente e, consequentemente, do erro de julgamento da matéria de facto em que incorreu ao não atender aos factos por si alegados em sede de contestação.
li. Em resumo, e para fundamentar a sua convicção de que o furto não teria ocorrido de forma inesperada, alegou a Recorrente que (i) da leitura das chaves decorre que o Recorrido circulou com o veículo seguro em momento posterior àquele em que situa o alegado furto do mesmo; (ii) o Recorrido se encontrava perante uma situação de dívida perante uma instituição de crédito relativa a um outro veículo adquirido anteriormente; (iii) o valor do capital seguro encontrava-se sobrevalorizado face ao valor real do bem e mesmo ao valor que o Recorrido confirmou ter despendido na sua aquisição, ao que acresce o facto de o Recorrido ainda ter contratado uma cobertura facultativa de complemento de valor venal; (iv) foge às regras da experiência comum o Recorrido ter demorado 4 anos a reagir judicialmente à recusa de responsabilidade por parte da Recorrente; (vi) apólice subscrita cerca de três meses antes da ocorrência.
lii. Ao desconsiderar o depoimento das testemunhas Hugo e Ricardo sobre estes elementos, o Tribunal recorrido incorreu na adopção de uma visão absolutamente limitadora que não se coaduna com o propósito maior de ter em conta todos os factos relevantes para a boa decisão da causa.
liii. Tendo sempre presente que, no caso em apreço, o facto essencial em discussão é a ocorrência do furto, também os factos alegados pela Recorrente, e nos quais a mesma fundou a sua posição de recusa da assunção da responsabilidade pelo sinistro participado, são relevantes na medida em que pretendem estender a visão do Tribunal a um alcance muito maior do que a mera do que a simples alegação do desaparecimento de um veículo.
liv. Dos elementos recolhidos pela Recorrente durante a averiguação - os quais o Tribunal entendeu desconsiderar para a conclusão de que o Recorrido obteria uma vantagem patrimonial com a participação e regularização do furto -, não se pode esperar uma prova directa e imediata, porquanto este tipo de condutas são propositadamente dissimuladas tendo em vista criar uma aparência de verdade.
lv. Mas os elementos de prova devidamente conjugados são abundantes e não suscitam dúvidas sobre a existência daquele benefício – estamos, conforme se verá, perante uma hipótese clara, coerente, provável e demonstrada (elevada quantidade e diversidade de provas).
lvi. Ora, todos os elementos que sustentaram a convicção da Recorrente de que não estaríamos perante um real furto, mas sim sobre um alegado sinistro participado com o intuito de o Recorrido obter uma mais-valia financeira, foram cabalmente explicados e enquadrados pelas testemunhas da Recorrente, Hugo e Ricardo, depoimentos que o Tribunal desconsiderou, recorrendo, mais uma vez, a uma argumentação que se considera abusiva e injuriosa: a de que os averiguadores “recebem bónus por cada leitura de chaves e por cada caso resolvido a favor da Ré” e que teria sido a própria testemunha Ricardo que o afirmou.
lvii. Não é de todo verdade que tal testemunha tenha afirmado tal coisa, como aliás decorre límpido da integral transcrição do seu depoimento que acima se juntou.
lviii. É igualmente falso que a testemunha Cátia tenha explicado qual a função dos prémios e quais os pressupostos do seu recebimento: o que esta testemunha explicou foi que existem inúmeros factores que desencadeiam o pagamento dos serviços dos averiguadores, mas que não são os averiguadores que recusam a responsabilidade da Recorrente, como seguradora.
lix. Esta posição é tomada pelos gestores, ainda que com base no trabalho dos averiguadores e no que foi por estes apurado no âmbito do combate à fraude.
lx. Donde, é absolutamente limitadora a visão adoptada pelo Tribunal recorrido ao ignorar todos os outros elementos relevantes explicados pelas testemunhas em causa e em ater-se a um mero critério económico para dele extrair a falta de credibilidade e de isenção das testemunhas da Recorrente.
lxi. Com efeito, a testemunha Ricardo explicou detalhadamente os motivos que levantaram suspeitas quanto à veracidade do sinistro participado.
lxii. Sem prejuízo de decorrer da sua audição integral uma melhor e mais abrangente compreensão do seu depoimento, refira-se que (i) quanto à antiguidade da apólice, releva o que foi dito entre os minutos 00:04:05. 13 e 00:05:55. 12; (ii) quanto ao fraccionamento do prémio, releva o que foi dito entre os minutos 00:06:00. 23 e 00:07:40. 18; (iii) quanto à sobrevalorização: valor venal do veículo, valor alegadamente despendido pelo Recorrente na sua aquisição e escolha da Recorrente para seguradora do veículo, releva o que foi dito entre os minutos 00:08:46. 10 e 00:16:53. 25; (iv) quanto à contratação da cobertura de complemente de valor venal, releva o que foi dito entre os minutos 00:16:59. 00 e 00:18:30. 29; (v) quanto ao facto de o Recorrido ter demorado 4 anos a reagir judicialmente, releva o que foi dito entre os minutos 00:30:24. 01 e 00:31:39. 10 – tudo conforme excertos transcritos no corpo das alegações.
lxiii. Conjugando tal depoimento com o da testemunha Hugo, facilmente se compreende qual o interesse do Recorrido em participar o furto do veículo em causa.
lxiv. A testemunha Hugo chegou mesmo a explicar o peso que teve a análise da condição económica do Recorrido no trabalho desenvolvido pela averiguação, especialmente a partir do momento em que se constatou existirem penhoras sobre o veículo em causa - o que também resulta documentalmente nos autos -, o que fez entre os minutos 00:18:13. 24 e 00:20:48. 20 do seu depoimento, conforme transcrição efectuada no corpo das alegações.
lxv. Atentas estas explicações parece-nos que mal andou o Tribunal recorrido ao ignorar estes elementos que, sendo instrumentais em relação ao furto, ajudam a compreender as suspeitas sentidas pela Recorrente e a enquadrar a intenção do Recorrido ao participar tal sinistro.
lxvi. Mal andou o Tribunal recorrido ao não valorar tais depoimentos prestados por testemunhas que sempre responderam activa e justificadamente a tudo a que lhes foi questionado e sempre de forma espontânea, imediata, aberta e livre, com um elevado grau de convencimento.
lxvii. Não obstante a livre apreciação da prova de que goza o julgador, a convicção da Recorrente é a de que, conforme acima se referiu, deverá o julgador adoptar uma visão dos factos que não se baste com a mera aparência de verdade, tantas vezes conseguida através de manobras documentais, e atentar em detalhes que, ainda que numa primeira abordagem se possa situar distantes do âmago da questão a discutir, apontam para que o facto essencial – no caso, o furto do veículo -, seja absolutamente duvidoso.
lxviii. Donde, requer-se a reapreciação da prova gravada, em concreto dos excertos acima transcritos, entendendo a Recorrente que, também por via deles, não se poderia dar como provado o teor dos factos 7), 8) e 10).
Do valor comercial do veículo - ponto 15) dos factos não provados
lxix. A questão da sobrevalorização do veículo, não só por via do elevado valor do capital seguro, mas também por via da contratação da cobertura de complemente de valor venal, foi determinante para sustentar a convicção da Recorrente de que não nos encontramos perante um evento fortuito.
lxx. Também neste âmbito, mal andou o Tribunal Recorrido ao valorar a prova produzida, nomeadamente as Declarações de Parte do Autor: foi o próprio Autor que declarou que despendeu € 32. 000,00 pelo veículo, conforme declarações prestadas entre os minutos [00:10:02. 19 e 00:11:44. 24 – transcrição efectuada no corpo das alegações.
lxxi. Ora, se o próprio Autor que este veículo em concreto - e não qualquer outro em abstrato - lhe custou € 32. 000,00 (ainda que não o tenha comprovado documentalmente), como pode o Tribunal entender que não se provou que o valor de mercado do veículo fosse inferior a € 42825,01?!
lxxii. Ainda que não se tenha provado o valor venal alegado pela Recorrente, a verdade é que se provou o valor de mercado do veículo seguro por via das declarações de parte do Autor a este respeito, nomeadamente da confirmação de que despendeu € 32. 000,00 na sua aquisição, valor que muito longe gravita do valor do capital seguro.
lxxiii. Nestes termos, mal andou o Tribunal recorrido ao dar como não provado que o valor do veículo seguro fosse inferior a € 42. 825,01.
lxxiv. Face ao que se deixou exposto, nomeadamente a necessidade de reapreciação da prova testemunhal e pericial produzida, é forçoso concluir pela alteração da resposta à matéria de facto, nos seguintes termos: dar-se como não provado que no dia 28/01/2013, pelas 14:30h, o Autor estacionou o veículo “99-. . . -. . . ” na Praceta dos Cravos, no Montijo, junto à residência dos seus pais; no dia seguinte, pelas 07:30h, o Autor constatou que o veículo “99-. . . -. . . ” não se encontrava no local referido no ponto 7) supra, tendo-lhe sido subtraído e que o veículo “99-. . . -. . . ” não foi encontrado; dar-se como provado que o valor comercial do veículo “99-. . . -. . . ” é inferior a € 42. 825,01 Euros, situando-se nos € 32. 000,00.
B. DO RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
lxxv. A alteração à matéria de facto, nos termos acima requeridos, impõe nova decisão de direito.
lxxvi. Tal como se deixou evidenciado ab initio, o Tribunal violou as regras gerais de distribuição do ónus da prova, nomeadamente o disposto no art. º 342. º do C. , na medida em que o Recorrido não logrou provar o facto constitutivo do seu direito.
lxxvii. A alteração que se requer à resposta dada à matéria de facto impõe que o furto – facto constitutivo do direito do Recorrido – não se possa considerar como provado, o que, por sua vez, redunda, na não verificação do risco assumido pela Recorrente, na qualidade de seguradora.
lxxviii. Como tal, não se pode considerar a Recorrente constituída na obrigação de indemnizar o Recorrido, motivo pelo qual deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por decisão que absolva a Recorrente do pedido.
Sem conceder,
lxxix. Também, que o Tribunal incorreu em manifesto erro de aplicação do direito decorrente da resposta de não provado ao facto sob o ponto 15).
lxxx. Ao considerar como não provado que O valor comercial do veículo “99-. . . -. . . ” fosse inferior a € 42. 825,01 Euros, o Tribunal foi levado a entender que o valor do bem era equivalente ao valor do capital seguro, afastando a aplicação do regime do sobresseguro e incorrendo na violação do disposto no art. º 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
lxxxi. Ao dar-se como provado que o veículo seguro tem um valor inferior ao do capital que foi fixado no contrato, estamos perante uma situação de sobresseguro – neste sentido, o que se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2012 (disponível em www. dgsi. pt).
lxxxii. Dispõe o artigo 132. º do Decreto-lei n. º 72/2008, de 16 de Abril, que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128. º, podendo as partes pedir a redução do contrato”; por sua vez, consagra o artigo 128. º citado o princípio do indemnizatório, estabelecendo que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
lxxxiii. Assim, por força do princípio do indemnizatório, dever-se-á́ considerar ferido de invalidade o contrato de seguro na parte excedente, ou seja, na parte em que o valor exceda o do objecto segurado, de acordo com o disposto nos artigos 128. º e 132 n. º 1 do Decreto-Lei n. º 72/2008, de 16 de Abril.
lxxxiv. Ora, no caso em apreço, apurou-se que o Recorrido despendeu € 32. 000,00 na aquisição do veículo, não obstante ter aceite segurá-lo por um valor substancialmente mais elevado mas que não tem correspondência com o valor real do bem seguro.
lxxxv. Donde, sem prejuízo de a Recorrente entender que não se encontra reunidos os pressupostos para a sua condenação pelo simples facto de o Recorrido não ter logrado provar os factos constitutivos do seu direito, sempre se dirá que, a haver condenação da Recorrente, a mesma deveria ter em conta o disposto nas normas acima citadas, não podendo exceder os € 32. 000,00.
lxxxvi. Ora, sendo tais normas ignoradas pelo Tribunal recorrido, incorreu o mesmo num manifesto erro na aplicação do direito, o qual urge corrigir em sede de recurso, sob pena de se permitir que o Recorrido seja indemnizado por um valor substancialmente superior ao do bem seguro, o que configura uma situação ilegítima de enriquecimento sem causa.
lxxxvii. Face a tudo o que se deixou exposto, não se pode considerar a Recorrente constituída na obrigação de indemnizar o Recorrido, motivo pelo qual deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por decisão que absolva a Recorrente do pedido.
Pede, por isso, a apelante, que a sentença recorrida seja alterada nos termos acima peticionados, dando-se provimento ao recurso.
O autor apresentou contra-alegações, em 16. 05. 2018, propugnando pela improcedência da apelação e formulou as seguintes CONCLUSÕES:
i. Deverá ser mantida a decisão do Tribunal ao quo quanto ao julgamento que fez da matéria de facto, mantendo-se julgados como provados os factos 8, 9) e 10) e julgado como não provado o facto 15).
ii. O recorrido cumpriu o seu ónus da prova, artigo 342º do Código Civil, quanto à ocorrência do furto e fê-lo com base nas suas declarações de parte que foram integralmente conformadas pelos depoimentos prestados em audiência de julgamento por todas as testemunhas, inclusive pelos depoimentos das testemunhas da Ré, depoimentos esses cuja reprodução áudio acompanha as alegações da Ré e que se dá por integralmente reproduzida para sustentar esta nossa conclusão.
iii. Nunca foi colocada em causa pela Recorrente a ocorrência do furto tal qual a mesma foi transmitida pelo recorrido, dão-se por reproduzidos os registos áudio das testemunhas Hugo e Ricardo, funcionários e peritos da Recorrente.
iv. A Recorrente num primeiro momento, sendo este o momento em que não questionou a ocorrência do furto, chegou a emitir o recibo de pagamento do sinistro e a enviá-lo ao Recorrido e só reverteu a sua posição porque entendeu que havia uma sobrevalorização do veículo em causa na apólice de seguro, foi a parte económica da apólice, que após análise pelos peritos da Recorrente, é que obstou ao não pagamento do sinistro e não a dúvida sobre a ocorrência fáctica do sinistro.
v. Com o que, provado que está a ocorrência do furto de veículo, o recorrido provou os factos constitutivos do seu direito à indemnização.
vi. O recorrido provou o conjunto das circunstâncias que integraram o quadro fático do furto e que foram por ele alegadas na sua petição inicial, como sendo a hora e o local do estacionamento do veículo (depoimentos das testemunhas arroladas pelo recorrido que suportaram a declaração de parte documentos da apresentação da queixa crime e da decisão judicial de arquivamento do processo crime).
vii. A prova da ocorrência do furto que o recorrido fez nos autos não foi única e exclusivamente suportada pelas suas declarações de parte, mas antes corroborada pelo depoimento de todas as testemunhas (deste e das da recorrente).
viii. O recorrido cumpriu os parâmetros da prova que lhe era exigível, tendo satisfeito o ónus da prova que lhe incumbia processualmente.
ix. A prova de que o veículo nunca foi encontrado foi realizada pelo depoimento global das testemunhas arroladas nos autos e tanto assim é que a recorrente manifestou um comportamento consentâneo com este facto, pois, num primeiro momento da avaliação do sinistro emitiu o recibo de pagamento, só se furtando ao mesmo por questões, que entendeu, erradamente, de irrazoabilidade económica exageradamente vantajosa para o lado do tomador.
x. Não poderá ser valorada a perícia feita à leitura das chaves pela recorrente, porque feita à revelia, sem a participação e acompanhamento do tomador do seguro e, ainda, porque é contrária ao resultado da perícia ordenada pelo Tribunal a quo.
xi. O factor que descredibiliza a perícia feita pela Recorrente à leitura das chaves do veículo entregues pelo tomador do seguro, o aqui recorrido, é ser completamente oposta ao resultado da perícia obtida e ordenada pelo Tribunal a quo.
xii. O Tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a leitura feita das chaves do veículo pelo perito avaliador nomeado, como quer fazer parecer a Recorrente, antes pelo contrário, ficou esclarecido e apurou que o resultado da perícia judicial era oposto ao da perícia da Recorrente, conclusão esta a que chegou sem qualquer dúvida.
xiii. A Recorrente não provou que o valor comercial o veículo era inferior a € 42. 825,01.
xiv. Com o que, deverá ser mantido na íntegra o julgamento feito pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, sem qualquer reparo a fazer à douta sentença colocada em crise pela Recorrente.
xv. Não sendo devida e justa haver alteração à matéria de facto não deverá ser alterada a decisão de direito.
xvi. O Tribunal a quo não violou as regras gerais de distribuição do ónus da prova, nomeadamente o disposto no artigo 342º do Código Civil, tendo o Recorrido provado o furto, este o facto constitutivo do seu direito à indemnização a que Recorrida ficou obrigada.
xvii. A Recorrente está constituída pela decisão do Tribunal a quo, na obrigação de indemnizar o Recorrido, cumprindo-se todas as regras de direito.
xviii. O Tribunal a quo não incorreu em qualquer erro de aplicação do direito ao julgar como não provado o facto sob 15.
xix. A sentença em crise não viola o disposto no artigo 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
xx. No caso vertente nos autos não há uma situação de sobresseguro porque não foi provado que o veículo seguro tenha um valor inferior ao do capital que foi fixado no contrato de seguro, ónus da prova que a Recorrente não satisfez.
xxi. Não há qualquer invalidade do contrato de seguro, devendo o mesmo manter-se válido na íntegra, bem como deverá ser mantida na íntegra a sentença recorrida, não se concedendo provimento ao recurso interposto pela Recorrente.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da
matéria de facto
E, caso venha a ser alterada a decisão de facto, ponderar sobre:
ii) DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA QUE VIER A SER APURADA E À PRETENSÃO FORMULADA PELA RÉ.

III. FUNDAMENTAÇÃO

A –
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:

1. O veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 99-. . . -. . . , da marca BMW com o modelo Serie 5, Touring LCI Diesel (doravante veículo “99-. . . -. . . ”), encontra-se registado a favor do Autor, pelo n. º 02. . . do “Registo de Propriedade”, desde o dia 15/10/2012.
2. No dia 04/10/2012, o Autor e a Ré subscreveram um escrito denominado de “contrato de seguro automóvel”, titulado pela Apólice n. º 701. . . .
3. No escrito referido no ponto 2) supra consta o veículo “99-. . . -. . . ” enquanto “veículo seguro”.
4. O valor do capital seguro do veículo “99-. . . -. . . ” foi de €42. 825,01 Euros.
5. O valor do capital seguro dos extras foi de €1. 494,00 Euros.
6. O escrito referido no ponto 2) supra cobria, entre outras, a ocorrência de “furto ou roubo”, com capital garantido de €44. 319,01 Euros e com franquia de 0%.
7. No dia 28/01/2013, pelas 14:30h, o Autor estacionou o veículo “99-. . . -. . . ” na Praceta dos Cravos, no Montijo, junto à residência dos seus pais.
8. No dia seguinte, pelas 07:30h, o Autor constatou que o veículo “99-. . . -. . . ” não se encontrava no local referido no ponto 7) supra, tendo-lhe sido subtraído;
9. Nesta sequência, o Autor apresentou queixa-crime por “furto” contra desconhecidos junto das autoridades policiais, que deu origem ao Inquérito NUIPC 72/13. 8GBMTJ.
10. O veículo “99-. . . -. . . ” não foi encontrado.
11. O Autor participou o referido nos pontos 7) a 10) supra à Ré.
12. A Ré, na sequência da comunicação referida no ponto 11) supra, atribuiu ao sinistro relatado os n. ºs 704. . . e 7040. . . .
13. No dia 16/04/2013, a Ré emitiu um recibo em nome do Autor no valor de € 47. 370,51 Euros, referente ao sinistro identificado no ponto 12) supra.
14. No dia 03/05/2013, a Ré enviou ao Autor uma missiva no qual fez constar o seguinte: “serve a presente para informar V. Exa. que após terminada a instrução às circunstâncias do referido processo, concluímos que o mesmo não ocorreu conforme participado. Assim sendo, informamos que não iremos proceder a qualquer indemnização pela via extrajudicial”.


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i. DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto

Os poderes do Tribunal da Relação, relativamente à modificabilidade da decisão de facto, estão consagrados no artigo 662º do CPC, no qual se estatui: (…)

No que concerne ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelece o nº 1 do artigo 640º do CPC que o recorrente deve, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Acresce que, nos termos do n. º 2 alínea a) do artigo 640. º do CPC, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Considerando que, no caso vertente, a prova produzida em audiência foi gravada, e a recorrente cumpriu o preceituado no supra referido artigo 640º do CPC, pode este Tribunal da Relação proceder à sua reapreciação, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.
A recorrente está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos Nºs 7, 8 e 10 dos factos dados como provados, por entender que deveriam ter sido dados como não provados. Tal como entende, a recorrente, que o facto dado como não provado – Nº 15 – se deveria considerar provado.

Há que aferir da pertinência da alegação da apelante, ponderando se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas, conduzindo necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.

Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Exma. Juíza do Tribunal a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto directo com a prova testemunhal que, em regra, melhor possibilita ao julgador a percepção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.

Há, pois, que atentar na prova gravada e na supra referida ponderação, por forma a concluir se a convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância é, ou não, merecedora de reparos.

Þ Vejamos:

Consta do nº 7 dos Factos dados como Não Provados:
No dia 28/01/2013, pelas 14:30h, o Autor estacionou o veículo “99-. . . -. . . ” na Praceta dos Cravos, no Montijo, junto à residência dos seus pais.
Consta do nº 8 dos Factos dados como Não Provados:
No dia seguinte, pelas 07:30h, o Autor constatou que o veículo “99-. . . -. . . ” não se encontrava no local referido no ponto 7) supra, tendo-lhe sido subtraído.
Consta do nº 10 dos Factos dados como Não Provados:
O veículo “99-. . . -. . . ” não foi encontrado.
Consta do Facto dado como Não Provado:
O valor comercial do veículo “99-. . . -. . . ” fosse inferior a €42. 825,01 Euros.

Fundamentou a Exma. Juíza do Tribunal a quo, da seguinte forma a decisão sobre a matéria de facto: (…)

Defende, em suma, a apelante, que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, no que concerne aos depoimentos das testemunhas do autor, Pedro e Fernando, depoimentos esses que, no entender da apelante, revelaram muitas fragilidades, sobrevalorizando, ao cabo e ao resto, o Tribunal a quo, as declarações de parte do autor, Manuel, as quais, segundo a apelante, se encontram desacompanhadas de outro meio e prova que as corrobore e, desconsiderando os depoimentos das testemunhas por si indicadas.

Importa, então, analisar os depoimentos prestados em audiência, indicados pela recorrente como relevantes, a propósito dos factos aqui em causa, em confronto com a restante prova produzida, para verificar se tal factualidade deveria merecer uma decisão em consonância com o preconizado pelo apelante, ou se, ao invés, tal decisão não merece censura, atenta a fundamentação aduzida pela Exma. Juíza do Tribunal a quo.

É relevante, no entanto, relembrar, desde já, que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial.

De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.

Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396. º do C. C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do CPC, o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.

A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.

É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente.

Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24. 01. 2012 (Pº 1156/2002. L1. S1).

No caso vertente, ouvido e analisado, exaustiva e detalhadamente, o suporte áudio, com os depoimentos gravados, há que concluir que a minuciosa fundamentação elaborada pela Exma. Juíza do Tribunal a quo se mostra perfeitamente concordante com os depoimentos das testemunhas, bem como com o que decorre das declarações de parte prestadas pelo autor.

Como é sabido, a prova por declarações de parte, surgiu com a entrada em vigor do actual CPC - Lei 41/2013, de 26 de Junho - estando prevista no artigo 466º.

Na Exposição de Motivos do diploma esclareceu-se que, agora se prevê “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão”.

Este meio probatório corresponde ao acolhimento da possibilidade de a parte se pronunciar, a requerimento próprio, sobre factos que lhe são favoráveis, com intencionalidade probatória, restrita, porém a factos de directa e pessoal intervenção da parte ou do seu directo conhecimento.

Assim, o actual CPC, a par do depoimento de parte, consagrou a possibilidade de as próprias partes tomarem a iniciativa de prestação de declarações, ainda que com carácter facultativo, na medida em que é a própria parte que se oferece para depor, requerendo a prestação de declarações.

A natureza supletiva da prova por declarações de parte é salientada por PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, 257 ao referir que será um meio a que as partes recorrerão “nos casos em que, face à natureza pessoal dos factos a averiguar, pressintam que os outros meios
probatórios usados não terão sido bastantes para assegurar o convencimento do juiz”.

Sobre o valor probatório das declarações de parte, o n. º 3 do artigo 466º do CPC esclarece que “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.

Não obstante as declarações de parte possam ser livremente apreciadas pelo julgador, como decorre da lei, admite-se que as mesmas são, em regra, susceptíveis de denotar uma insuficiência probatória ou fraca fiabilidade.

A este propósito referem PAULO RAMOS DE FARIA E ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2. ª ed. , 2014, 395 que “A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente. ”

Concorda-se, por conseguinte, que em relação a factos relevantes o juiz geralmente não pode ficar convencido apenas com o relato efectuado pela própria parte, interessada na procedência da acção ou na procedência da excepção, e que presta declarações de parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas credíveis.

No caso vertente, nas suas declarações de parte, o autor, esclareceu, com pormenor, as circunstâncias em que ocorreu o furto de veículo seguro, elucidando que o tinha estacionado próximo da casa dos pais, onde se desloca com assiduidade, ali tendo almoçado no dia 28. 01. 2013, como disse ser regra.

Explicou o autor que, nesse dia, tal como era habitual, deixou o veículo estacionado no local que, em concreto, deu indicações precisas (verificou-se que a Exma Juíza do Tribunal a quo demonstrou bem conhecer o local – Praceta dos Cravos -, nas traseiras de um hotel e próximo de uma agência bancária, a curta distância do Tribunal), o que terá sucedido entre as 14H15 e as 14H30, hora a que, normalmente, chega a casa dos pais, para almoçar. Depois, foi trabalhar com uma carrinha de caixa aberta que, para esse efeito, utiliza.

Quando, no dia seguinte, 29. 01. 2013, de manhã, cerca das 7H30, passou pelo local onde havia estacionado o veículo pois, segundo afirmou, vai sempre tomar o café da manhã ao estabelecimento “Novos. . . ” que fica nas proximidades, verificou que o BMW já não se encontrava estacionado onde o havia deixado. Ficou em pânico, segundo referiu, estacionou então o seu veículo de caixa aberta, no qual então se deslocava, e foi ao dito café, onde comentou o facto ocorrido, designadamente, com Pedro, que ali se encontrava.

De seguida, deu umas voltas com a sua carrinha de caixa aberta pelo Montijo e ainda foi à Moita, tentando ver se conseguia descobrir onde estaria o veículo furtado. Orientou o trabalho que tinha em curso, porquanto estava a fazer uma obra na A. . . e, por volta da hora de almoço deslocou-se ao café da colectividade local, falou com Fernando, ao qual relatou que lhe tinham “roubado” a carrinha BMW e, entretanto, também foi apresentar queixa à GNR.

Esclareceu o motivo pelo qual ali estacionava o dito veículo BMW, porquanto o local onde vive, na A. . . , é um descampado e não consegue entrar com aquele carro na garagem. E esclareceu ainda a forma como havia adquirido o veículo BMW, a um amigo, que identificou, aquisição essa que pagou em dinheiro, por três ou quatro vezes, entregando cheques pré-datados.

Mais referiu que não comentou o facto de o veículo ter sido furtado, com os pais, para os não preocupar e enervar, visto os mesmos serem muito idosos e a mãe sofrer de Alzheimer. Os pais não saem e nunca deixou nenhuma das chaves do carro em casa destes.

Ora, estas declarações prestadas pelo autor, de forma clara e coerente, foram confirmadas, na medida do possível, pelos depoimentos prestados pelas testemunhas do autor, Pedro e Fernando, que tão somente relataram o que tinham efectivo conhecimento.

Na verdade, nenhuma das testemunhas viu o autor estacionar o veículo BMW no local de onde o mesmo desapareceu. O que, indubitavelmente, as testemunhas relataram foi a aflição do autor - que ambas presenciaram - quando, nesse dia 29. 01. 2013, da parte da manhã, o autor se deslocou, quer ao café “Novos. . . ”, quer à colectividade, e lhes disse que lhe haviam furtado o veículo, tendo este último salientado o facto de o autor andar pelo Montijo, tentando localizar o veículo.

As aludidas testemunhas sabiam da frequência com que o autor se deslocava a casa dos pais, conheciam em pormenor o local onde o autor estacionava o veículo e onde o mesmo se encontrava, quando foi furtado, identificaram o veículo em causa e afirmaram nunca mais terem visto o autor com o dito veículo, passando o autor a utilizar sempre a carrinha de trabalho, de caixa aberta.

As testemunhas da ré, Hugo e Ricardo, peritos averiguadores que trabalham para a ré e que intervieram na análise da investigação ao caso da participação, pelo autor, do furto do veículo, pretenderam demonstrar que esse veículo não teria sido furtado e tal se devia a um acto simulado do próprio autor, por forma a obter a indemnização da seguradora.

A testemunha da ré, Cátia (gestora do sinistro), corroborou, no essencial o relatado pelas anteriores testemunhas. Esclareceu ainda que os peritos recebem bónus por cada caso resolvido a favor da ré, designadamente com base nessa leitura de chaves, o que levantou, como não poderia deixar de ser, sérias dúvidas quanto à isenção e objectividade com que os depoimentos foram prestados por ambas as testemunhas.

As testemunhas da ré alicerçaram o seu entendimento quando à existência de uma simulação de furto, por parte do autor, nas seguintes considerações que, segundo afirmaram, foram globalmente analisadas:
a) O seguro foi contratado de forma não presencial.
b) A então seguradora, “Logo”, aceitava o valor do capital seguro pelo montante indicado pelo tomador e só fazia uma inspecção sempre que o valor excedia € 45. 000,00, sendo o valor do capital seguro ligeiramente inferior a este.
c) O seguro foi contratado com um complemento do valor venal, a receber em caso de perda total do veículo.
d) O seguro foi contratado com pagamento do prémio trimestralmente.
e) O sinistro teria ocorrido pouco tempo antes de se vencer o segundo pagamento trimestral.
f) O segurado tinha dificuldades económicas, tendo-se constatado a existência de penhora.
g) O valor do capital seguro era superior, quer ao valor pelo qual o segurado afirmou, aquando das investigações, tê-lo adquirido, quer ao seu valor de mercado.
h) Em resultado da análise das chaves do veículo BMW seguro na ré, veio a concluir-se que o veículo teria sido ligado, e que havia circulado, em momento posterior àquele que o autor afirmava tê-lo estacionado, no dia 28. 01. 2013.

Todas estas suspeitas lançadas pelas testemunhas da ré não se afiguraram relevantes para o Tribunal a quo, o que aqui se corrobora.

É que, não ficou apurado que o autor soubesse, ou que tivesse sido informado, pela seguradora, de que só seria efectuada inspecção do veículo, caso o valor do capital seguro ultrapassasse € 45. 000,00 e, que tivesse sido por essa circunstância que o autor havia indicado como capital seguro € 42. 825,01, acrescido do valor dos extras.

Por outro lado, o facto dos averiguadores da ré terem concluído que o autor teria dificuldades económicas, poderá, ao invés, justificar a circunstância de o autor ter solicitado o pagamento trimestral do prémio.

Acresce que, nada se apurou quanto ao valor de mercado do veículo, apenas se sabendo - porque declarado pelo autor - que havia adquirido o veículo a um amigo, por um montante inferior ao valor indicado como capital seguro.

Finalmente, a questão das horas detectadas nas chaves do veículo, apesar de ser um elemento com alguma relevância, haverá que ter presente a afirmação do perito nomeado pelo Tribunal para fazer essa peritagem, no relatório que apresentou: (…) segundo os registos das chaves lidas, a última atualização da chave com mais quilómetros, foi efetuada em 28 de Janeiro de 2013 às 17h34, sendo que não nos é possível aferir se a data e horas registadas são reais (bold nosso). Para além disto, e sendo esta uma atualização automática, pelo atrás exposto, não nos é possível garantir que esta atualização foi efetuada na última na última utilização da viatura.

Assim, face ao teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas, globalmente analisado e ponderado, entende-se, tendo em conta as considerações antes aduzidas, que não há como alterar a decisão da matéria de facto, no que concerne à alegada factualidade dada como provada e não provada.

Considera-se muito pertinente a fundamentação aduzida pela Exma. Juíza do Tribunal a quoe com a qual se concorda – nomeadamente quando afirma que:
(…)
a propósito das exigências de prova que se colocam neste tipo de acções, cumpre dizer que o Tribunal não é indiferente ao facto de que o cumprimento escrupuloso do artigo 342º, n. º1 do CC pode levar, na prática, a uma inversão do ónus da prova a cargo do Autor, encarregando-o de demonstrar que não foi ele o autor do “furto” - o que corresponde, na prática (repita-se), a uma quase presunção de culpa. Efectivamente, se se exigir uma prova aturada acerca da subtracção, ou o Autor apresenta quem foi o autor do “furto”, ou a prova do mesmo será muito difícil e, nalguns casos, até diabólica.
Por estas razões, somos da opinião que as exigências da prova a produzir se devem coadunar com a realidade da vida e com a natural impotência que o homem comum terá face à cada vez maior sofisticação da criminalidade e dos meios utilizados, bem como à ausência de rastos criminosos. E, em abono da verdade se diga que é do conhecimento geral que a prática de furtos de veículos é uma prática corrente e disseminada, na qual se utilizam meios cada vez mais meios céleres, eficazes e silentes.

Entende-se, portanto, assistir razão à Exma. Juíza do Tribunal a quo, quanto à proferida decisão de facto, nada permitindo afastar a convicção criada no espírito do julgador do tribunal recorrido, convicção essa que não é merecedora de reparo, sendo perfeitamente adequada à prova produzida.

Será, por conseguinte, de manter a matéria de facto provada, tal como foi decidida na 1ª instância, pelo que improcede tudo o que, em adverso, consta da alegação de recurso da ré/apelante.

E, improcedendo a pretensão da apelante, no que concerne à alteração da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se a mesma inalterável, igualmente se corrobora a fundamentação de direito aduzida na sentença recorrida, nomeadamente no que concerne à obrigação da ré de responder, no caso da verificação do sinistro abrangido pelo contrato de seguro contratado – perda total por virtude de furto - e com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.

É certo, que a ré invocou a verificação de uma situação de sobresseguro.

Como é sabido, o princípio indemnizatório surge, no Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n. º 72/2008, de 16 de Abril), a propósito da regulação do seguro de danos.

Dispõe o nº 1 do artigo 132. º do aludido diploma que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128. º, podendo as partes pedir a redução do contrato.

E, decorre de aludido artigo 128º do Decreto-Lei n. º 72/2008, que: “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.

Considera-se que existe sobresseguro quando o interesse segurado tem um valor inferior ao do capital seguro. Tal situação acarreta duas consequências: por um lado, se não se reduzir o montante do contrato, o tomador ver-se-á na circunstância de pagar um prémio superior àquele que, atento o interesse seguro seria necessário; por outro lado, e em contrapartida, no caso de se verificar um sinistro, poderia ocorrer um enriquecimento do segurado à custa do segurador, uma vez que o dano sofrido seria inferior ao valor da indemnização que aquele viria a receber.

Como refere J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, O Contrato de Seguros no Direito Português e Comparado, Sá da Costa Editora, Lisboa, 1971, 177, nos seguros contra danos o segurado deve ser ressarcido pelo prejuízo que efectivamente sofreu como consequência do sinistro. A função destes seguros é de natureza exclusivamente indemnizatória, não sendo lícito aos segurados que deles beneficiam utilizá-los para fins especulativos. A moral e os bons costumes impõem o princípio de que os sinistros não devem constituir fonte de lucros para os lesados em prejuízo da comunidade dos segurados e da economia do país.

Já se defendeu no Ac. STJ de 18. 06. 2015 (Pº 184/12. 5TBVFR. P1. S1), na esteira de anteriores Acs. STJ de 24. 04. 2012 (Pº 32/10. 0T2AVR. C1. S1) e de 23. 01. 2014 (Pº 703/10. 1TBEPS. G1. S1), acessíveis em www. dgsi. pt, que se na data em que foi celebrado o contrato ou mesmo na data em que ocorreu o sinistro o veículo valia muito menos do que o indicado aquando da celebração do contrato, deverá ser este o quantitativo que deve ser pago pela seguradora, por efeito da redução operada ao abrigo do artigo 132º da LCS, em correspondência com o princípio indemnizatório contido no artigo 128º, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro, posto que o valor da indemnização não deverá ser aferido em função do valor do capital indicado na apólice, mas tendo em conta o valor venal ou comercial do veículo, ali se rejeitando-se, no aludido aresto, a aplicação ao regime do sobresseguro, da anulação do contrato, por falta de um preceito que legitime a exoneração total da seguradora, rejeitando-se, portanto, o recurso à analogia com o artigo 133. º da LCS, como é defendido por ARNALDO COSTA OLIVEIRA, Lei do Contrato de Seguro Anotado, 375.

Porém, como se salientou no Ac. TRL de 18. 04. 2013 (Pº 2212/09. 2TBACB. L1-2), relatado pelo aqui 1º adjunto, “as seguradoras não podem, sob pena de abuso do direito (…) na modalidade de venire contra factum proprium, opor aos tomadores o valor real depois de o sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha”.

Mais se refere no citado aresto que: “se a ré, com base numa simples avaliação num espaço de tempo que se estima inferior a 1 minuto, pode calcular o valor real seguro, é inconcebível que se abstenha de o fazer no momento da contratação do seguro, aceitando celebrá-lo, dando origem assim, segundo ela, a um sobresseguro, com os inerentes sobreprémios, para só quando ocorre o sinistro se lembrar de fazer tal avaliação, para então a opor ao tomador do seguro, visando com isso evitar aquilo que ela chamará de uma sobreindemnização”.

Foi este, na verdade, o procedimento seguido no caso vertente, em que a ré/seguradora, no momento da contratação do seguro, não procedeu a qualquer avaliação do veículo, pois, como referiram as testemunhas da ré, só a partir de determinado montante de capital se procedia à dita avaliação.

Aceita-se, porém, que igualmente se possa defender que, afastar a aplicação do regime do sobresseguro com base na ideia de que o segurador poderia ter feito mais, aquando da celebração do seguro, e de que o seu silêncio quanto ao valor atribuído à coisa segura criou expectativas na esfera do segurado – expectativas que seriam frustradas, com violação da boa fé (art. º 334. º do Código Civil), se se não cumprisse o programa contratual fixado pelas partes –, seria também admitir que o seguro poderia configurar uma fonte de enriquecimento para o segurado.

Atentas estas considerações, entende-se que sempre poderá ser admissível que, declarada a situação de sobresseguro, o segurador haja que devolver ao segurado o montante recebido em sobreprémios, por forma a ponderar o pressuposto da protecção da confiança, que poderia subjazer à pretensão do segurado de, com base na boa fé, obrigar ao cumprimento do sobresseguro.

Sucede que, no caso em apreço e, muito embora a ré venha sustentando a verificação de uma situação de sobresseguro, a verdade é que não ficou provado, o valor do veículo, à data da celebração do contrato de seguro, nem que o valor comercial do mesmo fosse inferior a € 42. 825,01, sendo certo que o ónus de alegação e prova do valor real do veículo cabia à ré/seguradora, prova que esta não logrou efectuar.

Ora, demonstrada a verificação do sinistro –
perda total do veículo seguro – está a ré/seguradora obrigada a indemnizar o autor com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, como bem se determinou na decisão recorrida.

E, assim sendo, a apelação não poderá deixar de improceder, confirmando-se a sentença recorrida.

A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo.


IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.
Lisboa, 25 de Outubro de 2018
Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Martins
Laurinda Gemas