Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23/14.2TUVFX.L1-4
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. Ao celebrar o acordo extrajudicial reduzido a escrito com a sua entidade empregadora, observando o necessário para assegurar ficar munido de um título executivo [art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC], o trabalhador formou a legítima expectativa fundada na lei então vigente, de que a qualquer momento, se o incumprimento daquela o tornasse necessário, poder recorrer à via executiva para obter o pagamento coercivo da quantia acordada.

II. Forçar este trabalhador, como outros que estejam em situações idênticas, a recorrer  à propositura de uma acção declarativa para ver declarado o seu direito – que já lhe fora reconhecido pelo empregador – de modo a ficar munido de  um novo título executivo – por ver inutilizado o que também já dispunha – afigura-se-nos uma imposição desproporcionada, resultante de uma alteração legislativa que não era previsível que viesse a suceder e, logo, com a qual não podiam razoavelmente contar as partes ao celebrar o  acordo. Impor-lhes esta solução viola onerosamente as expectativas criadas e, logo, contende com os princípios da segurança e confiança constitucionalmente consagrados (art.º 2.º CRP).

III. Consequentemente, na consideração de que o documento dado à execução mantém a sua natureza de título executivo (art.º 46.º al. c), do pretérito CPC), como tal devendo ser aceite para prosseguir a execução os seus termos, revogam a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da acção executiva.

         (Elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.RELATÓRIO

I.1 No Tribunal do Trabalho de VILA FRANCA de XIRA, AA, representado pelo Ministério Público, deu início à presente acção executiva através da apresentação de requerimento executivo por via electrónica, em 06-02-2014, contra BB, Ld.ª, com vista à cobrança coerciva da quantia de € 1 150,00.

Como título executivo juntou um documento denominado “Acordo Extra-Judicial”, onde consta um acordo celebrado entre o exequente e a executada, em 20/11/2012, nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, no âmbito do processo administrativo n.º  190/12.0TUVFX,  perante o Digno Magistrado do Ministério Público identificado no auto.

O documento mostra-se assinado pelo exequente e por advogada em representação da executada com poderes para esse acto, bem assim pelo Digno Magistrado do Ministério Público que interveio naquele acto e pela Senhora funcionária que procedeu à sua elaboração. Dele consta, para além do mais, o seguinte:

1. A entidade patronal acorda pagar ao trabalhador a quantia de € 2 300,00 (..) a título de compensação pecuniária global, pela cessação do contrato de trabalho.

2. A quantia mencionada na cláusula anterior será paga em 10 prestações iguais, mensais e sucessivas, no valor unitário de € 230,00 (..), vencendo-se a 1.ª até ao dia 25 de Dezembro de 2012 e as restantes 9 (..) até ao dia 25 de cada um dos nove meses seguintes.

(..)

5. A entidade patronal está ciente que esta declaração constitui título executivo bastante, no caso de incumprimento, sendo que o pagamento de uma prestação implica o vencimento das restantes».

I.2 Distribuídos os autos, a secção de processos concluiu o processo à Senhora Juíza com a informação de se colocar a dúvida sobre a validade do título executivo, questão que foi apreciada e decidida por despacho judicial, nos termos seguintes:

- «O documento de fls. 2-4 dos autos não constitui título executivo.

Primeiro, porque não se insere em nenhuma das situações elencadas no n.º 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26/06, aplicável ex vi dos artigos 6º, ns.º 1 e 3, daquela Lei e 88º, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.

Segundo, porque igualmente não constitui o auto de conciliação previsto na alínea b) do artigo 88º do Código de Processo do Trabalho, pensado para os autos de conciliação judiciais, conforme disposto nos artigos 51º a 53º do Código de Processo do Trabalho, que dispensam a habitual sentença homologatória de transacção.

Por conseguinte, ao abrigo do que dispõe o artigo 726º, ns.º 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi dos artigos 88º, alínea a), do Código de Processo do Trabalho e 703º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefere-se liminarmente o requerimento executivo por manifesta e evidente falta de título executivo.

Sem custas, dada a isenção de goza o Exequente».

I.3 Inconformado com esta decisão, o exequente, sempre com o patrocínio do Ministério Público, apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito próprios. As alegações foram concluídas nos termos seguintes:

(…)

I.4 A Recorrida não apresentou contra alegações.

                I.5 Foram colhidos os vistos legais.

I.6Delimitação do objecto do recurso

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], a questão que se coloca é a se saber se documento dado à execução reveste os requisitos necessários para ser considerado como título executivo, face ao disposto no n.º 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26/06, aplicável à presente execução, por força do disposto nos artigos 6º, ns.º 1 e 3, daquela Lei e 88º, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1     MOTIVAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os constantes do relatório, para os quais se remete, por se mostrar desnecessária a sua repetição.

II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO

No essencial, defende o recorrente que à data em que foi celebrado o acordo consubstanciado nos termos do documento dado à execução, este constituía título executivo válido face ao art.º 46.º n.º 1 al. c), do CPC então vigente, por isso devendo considerar-se inconstitucional a interpretação do art.º 6.º n.º3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o actual Código de Processo Civil, seguida pelo Tribunal a quo, ao entender ser-lhe aplicável o art.º 703.º n.º 1 deste diploma, que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares, em consequência retirando-lhe a característica de título executivo que antes detinha. Na sua perspectiva, a interpretação seguida pelo Tribunal a quo, viola o princípio da segurança e protecção da confiança ínsito no art.º da CRP.

II.2.1 Vejamos então, remontando à data em que o acordo foi celebrado, isto é, a 20/11/2012.

Sobre a matéria atinente a títulos executivos, o Código de Processo do Trabalho, no seu art.º 88.º, dispunha, como continua a dispor por a norma não ter sido objecto de qualquer alteração, o seguinte:

Podem servir de base à execução:

a) Todos os títulos a que o Código de Processo Civil ou lei especial atribuam força executiva;

b) Os autos de conciliação».

Embora a questão não tenha sequer sido suscitada no recurso, afigura-se-nos pertinente começar por esta última disposição [al.b)].

Os autos de conciliação são aqueles que resultam das tentativas judiciais de conciliação previstas no art.º 51.º e seguintes. Nesses actos são lavrados autos, os quais consubstanciam título executivo, por força desta norma especial contida na alínea b), do CPT.

Não é esse o caso dos autos, pois estamos perante um documento que, embora formalizado por funcionário dos serviços do Ministério Público e perante Magistrado do Ministério Público, caí no âmbito dos actos praticados nos denominados processos administrativos, organizado em consequência da representação do trabalhador pelo Ministério Público, nos termos previstos no art.º 7.º do CPT. Portanto, a elaboração do documento não se insere numa tentativa de conciliação de um processo previsto no CPT e, logo, aquele documento não se reconduz a um auto de conciliação.

Por conseguinte, releva apenas o disposto na alínea a), ao proceder ao reenvio, ou caso se prefira, à remissão para os títulos executivos previstos no CPC.

Desde a reforma do Código de Processo Civil introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o artigo 46.º, com a epígrafe “Títulos executivos”, considerava ser título executivo, susceptível de “servir de base” à execução “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável, nos termos do art.º 805.º (..)”.

A norma em causa foi entretanto alterada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Nov., passando a ter a redação que vigorava à data em que aquele acordo foi celebrado, em concreto a seguinte: “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes (..)”».

Como era entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, à luz dessa disposição consideravam-se títulos executivos os acordos extrajudiciais celebrados no âmbito de processo administrativo a correr pelos serviços do Ministério Público, naturalmente desde que satisfizessem os requisitos apontados na norma. Consequentemente, em caso de incumprimento pelo devedor, o trabalhador credor dispunha de título idóneo e suficiente para recorrer de imediato à acção executiva com vista à obtenção do pagamento coercivo da quantia em divida.

Significa isso que o trabalhador ao aceitar a resolução de um litígio laboral por acordo extrajudicial, querendo ver assegurada aquela possibilidade para o caso de vir a ser necessário demandar o cumprimento do acordado pela via coerciva, apenas tinha que acautelar os termos em que era redigido o acordo, de modo a que dele resultassem inequivocamente os requisitos necessários para se considerar um título executivo, atento o disposto no art.º 46.º al. c), do CPC. Desse modo, evitava recorrer a uma prévia acção declarativa para ver declarado o seu direito, com os consequentes custos, demora e, para além disso, a incerteza quanto ao resultado, pois que o ónus de alegação e prova dos factos recai sobre  quem invoca o direito (art.º 342.º n.º1 do CC). Dispondo de título executivo, em caso de incumprimento podia avançar de imediato para a acção executiva, cabendo aqui ao devedor demonstrar que o direito invocado pelo exequente não existe.

Por conseguinte, formava-se uma legítima expectativa fundada na lei vigente, com base na qual o trabalhador celebrava o negócio jurídico observando apenas aquela forma e procurando satisfazer aqueles requisitos, por estar seguro de que dispunha de um título executivo. De resto, bem patente no caso presente como o evidencia a cláusula 5.ª, redigida na linha do que então era usual constar nos acordos extrajudiciais por cessação de contrato de trabalho, mencionando o seguinte: “A entidade patronal está ciente que esta declaração constitui título executivo bastante, no caso de incumprimento, sendo que o pagamento de uma prestação implica o vencimento das restantes”.

 Pois bem, sendo certo que o documento se mostra assinado pela devedora entidade empregadora e concomitantemente consubstancia inequivocamente a assunção de uma obrigação pecuniária, cujo montante está claramente determinado, nenhuma dúvida se coloca em concluir e afirmar que até ao início de vigência do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o trabalhador dispunha de título executivo.

II.2.1 No novo Código de Processo Civil a matéria relativa aos títulos executivos encontra-se tratada no artigo 703.º, com a epígrafe “Espécies de títulos executivos”, estabelecendo o seguinte:

«1 — À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de

qualquer obrigação;

c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2 — Consideram -se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante».

Como logo se percebe, o legislador entendeu reduzir o leque dos títulos executivos, excluindo os “documentos particulares assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigações de entrega ou de prestação de facto”, anteriormente previstos no art.º 46.º, n.º1, alínea c), do CPC.

As razões que no entender do legislador justificaram essa opção são avançadas na exposição de motivos da Proposta de Lei 113/XII/2, onde se lê ser “(..) incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial das execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida do contraditório e que funcionando adequadamente o procedimento de injunção, os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e em caso de não oposição do requerido tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base em título executivo assim formado”.

Convém ter presente que vigorando nesta matéria o princípio da legalidade, é ao legislador que compete definir quais são os documentos que entende revestirem essa qualidade. Não obstante, tal não impede que se possa questionar a bondade dessa solução para o futuro, particularmente no domínio das relações laborais.

Na verdade, como observa a Senhora Desembargadora Albertina Pereira, cuja posição se acompanha, causa perplexidade não ter o legislador acautelado os efeitos desta solução “(..)  quando aplicada, sem mais, em sede laboral”, justificando essa consideração nestes termos:

-“Este é um campo particularmente sensível à realização de acordos, tanto no âmbito dos processos judiciais pendentes, como fora deles, tendo em vista a pacificação social. E a perplexidade diz respeito, sobretudo, aos acordos obtidos por via da conciliação realizada pelo Ministério Público na “fase” administrativa do processo, evitando-se, dessa maneira, a propositura de inúmeras acções.

É inquietante, ademais, à luz da harmonia exigida pelo sistema jurídico, que por exemplo, um acordo obtido no âmbito de um procedimento de mediação (em que, para além dos demais requisitos, tenha participado um mediador de conflitos inscrito na lista dos mediadores organizada pelo Ministério da Justiça), goze de força executiva, nos termos do art.º 9.º, da Lei 29/2013, de 19 de Abril e art.º 703.º, n.º 1, alínea d), e que um acordo resultante da negociação presidida pelo Ministério Público, enquanto Agente do Estado, integrado numa magistratura hierarquizada, autónoma, e sujeita a critérios de legalidade, à luz da presente lei do processo, dela careça» [O Impacto do Código de Processo Civil no Código de Processo do Trabalho (Alguns Aspectos), e-books (CEJ)- O Novo Processo Civil, Caderno IV – O Novo Processo Civil – Impactos do Novo CPC no Processo do Trabalho, (2.ª edição), p. 25 e sgts., disponível em http://www.cej.mj.pt].

Em regra a aplicação da nova lei processual observa o regime comum de aplicação das leis no tempo contido no artigo 12.º do Código Civil, isto é, “(..) o princípio tradicional da não retroactividade das leis, no sentido de que elas só se aplicam para futuro. E mesmo que se apliquem para o passado – eficácia retroactiva – presume-se que há a intenção de respeitar os efeitos jurídicos já produzidos”. Prevenindo o n.º2, “em primeiro lugar, os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos, ou referentes aos seus efeitos. Assim, por exemplo, as condições de validade de um contrato (capacidade, vícios de consentimento, forma, etc), bem como os efeitos da respectiva invalidade, têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado. (..) Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei já é aplicável (..)» [Pires de Lima e Antunes varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pp. 61].

Como elucida Alberto dos Reis, no que respeita às leis processuais, o fundamento doutrinário genérico que explica este princípio assenta na “(..) própria natureza das leis de processo e justifica-se (..) em última análise ao exercício duma das funções do Estado — a função jurisdicional ou judiciária; quando se publica uma lei nova, isso significa que o Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da justiça ou para o regular funcionamento do poder judicial. Tanto basta para que a lei nova deva aplicar-se imediatamente” [Processo Ordinário e Sumário, 1.º vol., 2.ª ed., Coimbra Editora, 1928, p. 32].

 Porém, a lei também não exclui que se atribua a eficácia retroativa à nova lei, designadamente à lei processual. Como refere BAPTISTA MACHADO, «os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN [lei nova] podem, pelo menos em parte, ser directamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas “disposições transitórias”» [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 229-231].

A Lei n.º 41/2013,de 26 de junho, que aprova o Código de Processo Civil, contém uma norma transitória dirigida à “Acção executiva”, como a própria epígrafe do artigo elucida, em concreto o art.º6, cujo n.º1, começa por consagrar a regra geral da aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, para depois o  n.º3, acrescentar que “O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.

Da conjugação destas disposições, sendo que nesta última há referência expressa aos “títulos executivos“, parece forçoso retirar-se que o legislador, aparentemente por opção legislativa, entendeu não salvaguardar a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 (a da entrada em vigor do novo CPC, conforme art.º 8.º da Lei preambular).

Ora, se bem que caiba ao legislador definir opções de política legislativa, inclusive atribuindo eficácia retroactiva à lei, não poderá esquecer-se que esse poder sempre está limitado a montante pela Constituição da República Portuguesa, nomeadamente pelos princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança do cidadão (art.º 2.º da CRP).

Como elucida o Acórdão n.º 786/96 do Tribunal Constitucional, de 19 de Junho de 1996, «(..) a retroactividade da lei não é constitucionalmente irrelevante. Embora não exista uma proibição geral de retroactividade (cf. Acórdão nº 11/83, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., p. 1 e ss.), a retroactividade da lei só é expressamente decretada na Constituição como excepcional (artigo 29º, nº 4) e mesmo a lei constitucional só determina a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de normas anteriores a partir do seu início de vigência (artigo 282º, nº 2). A retroactividade é uma solução legislativa que necessita de se compatibilizar com os valores constitucionais e nunca uma solução absolutamente disponível pelo legislador ordinário. As limitações constitucionais à retroactividade hão-de ser compreendidas a partir da prevalência, em certas situações, dos valores da segurança, da igualdade e da protecção dos direitos fundamentais, relativamente aos interesses prosseguidos pelas normas retroactivas (cf. Acórdãos nºs 5/84 e 86/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., p. 239 e ss., e 4º vol., p. 81 e ss., respectivamente)». E, mais adiante, a propósito do princípio da protecção da confiança, elucida-se ainda o seguinte:

O princípio da protecção da confiança exprime uma ideia de justiça que aprofunda o Estado de direito democrático. Segundo ela, o Estado não pode legislar alterando as expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas, a não ser que razões ponderosas o ditem (cf. Gomes Canotilho, ob.cit., p. 371 e ss.). Prevalecem, neste último caso, a necessidade e o valor dos fins almejados, perante a segurança e a solidez das expectativas. Mas tal sacrifício das expectativas  deve ser previsível para os cidadãos atingidos e não desproporcional à lesão dos interesses subjacentes ou, dito de outro modo, exigível (cfr. Acórdão nº 287/90, D.R., II, de 20 de Fevereiro de 1991).

  (..)

Pressuposto de tal violação é a validade das expectativas. Isso não implica, necessariamente, que estas correspondam  a direitos subjectivos, mas apenas que tenham um fundamento jurídico. E, por outro lado, não bastam quaisquer expectativas tuteladas juridicamente para que se justifique a intervenção do princípio da confiança. A validade das expectativas impõe que a previsibilidade da manutenção de uma posição jurídica se fundamente em valores reconhecidos no sistema e não apenas na inércia ou na manutenção do status quo.

Deste modo, terá de ser objectivamente previsível que se mantenha uma certa regulamentação jurídica no plano dos factos, por não haver indícios de futura alteração legislativa, e também no plano dos valores jurídicos, por não se vislumbrar a sua precariedade no momento em que se constitui a situação jurídica. Assim, deve reunir-se uma perspectiva privatística do investimento na confiança com uma perspectiva publicista de validade das expectativas por serem legitimamente fundadas (cf. Acórdão da Comissão Constitucional nº 437, de 26 de Janeiro de 1982, Boletim do Ministério da Justiça, nº 314, p. 141 e ss.).

[Proc. nº 445/92,  Conselheira Fernanda, Palma disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960786.html].

Revertendo ao caso, a decisão recorrida ao aplicar o disposto no art.º 703 n.º 1, do CPC, ex vi art.º 6.º n.ºs 1 e 3, da Lei 41/2013, ao documento dado à execução, procedeu à aplicação retroactiva do novo regime sobre títulos executivos, com o consequente indeferimento do requerimento executivo “(..) por manifesta e evidente falta de título executivo”, numa actuação conforme ao que resulta da lei e, tanto quanto parece, correspondente à intenção do legislador.

Todavia, sendo certo que aquele documento anteriormente constituía um inequívoco título executivo, a questão que se coloca é a de saber se a aplicação da lei, embora querida assim pelo legislador, não estará a afectar arbitrariamente os direitos e expectativas do exequente, como de resto acontecerá em outros casos idênticos, colocando em causa a violação dos princípios da confiança e da segurança jurídicas constitucionalmente consagrados. Dito por outras palavras, haverá que ponderar se essa aplicação é conforme aos aludidos princípios constitucionais ou, pelo contrário, se deve ser rejeitada por os violar.

A questão foi equacionada e tratada com profundidade por Maria João Galvão Teles, no artigo subordinado ao título “A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos” [Revista Jurídica Julgar Online, n.º 13, Setembro 2013,  disponível em http://julgar.pt/], para concluir defendendo que “(..) que a disposição que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, quando conjugada com o n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, e se interpretada no sentido de se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da entrada em vigor da lei e ao abrigo do disposto na antiga alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança ínsito no artigo 2.º da CRP. Convirá atentar na sua fundamentação e, porque qualquer procura de síntese, ainda que esforçada, poderá beliscar a exposição da autora,          permita-se-nos que optemos por recorrer às suas próprias palavras através dos extractos que se passam a transcrever, por nos parecerem serem suficientemente elucidativos sobre os fundamentos em que sustenta aquela conclusão:

Ficando assente que a eliminação, no elenco dos títulos executivos, dos documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor da nova lei configura um caso de aplicação retroactiva ou retrospectiva da lei nova, importa averiguar se tal retroactividade ou retrospectividade afecta de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos.

(..)

Há violação do princípio da protecção da confiança sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de um modo com que este não deve contar. Para determinação dos limites constitucionais, há que ponderar a confiança do indivíduo na manutenção de um certo regime jurídico, por um lado, e a importância do interesse visado pelo legislador para o bem comum, por outro (..).

Ora, o facto de aqueles documentos particulares revestirem a forma de título executivo pode ter sido essencial para a formação da vontade dos credores aquando da celebração daquele negócio jurídico ou da constituição daquela relação jurídica em particular. A aplicação da lei nova, sem mais, aos títulos executivos formados ao abrigo da lei anterior e ainda subsistentes lesa direitos adquiridos dos credores que apenas a prossecução de um elevado interesse público poderia derrogar.

A doutrina e a jurisprudência constitucionais têm entendido que uma norma retroactiva cuja aplicação afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos é inconstitucional, com fundamento na violação do princípio da segurança e da protecção da confiança consagrado no artigo 2.º da CRP.

(..)

A afectação das expectativas será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que os destinatários das normas não pudessem razoavelmente contar e ainda quando a afectação das expectativas não tiver sido ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos considerados prevalecentes de acordo com o princípio da proporcionalidade.

Ora, no caso em análise, há que concluir que a norma que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos (não de futuros documentos particulares, mas dos validamente constituídos à luz da lei anterior) constitui uma mutação da ordem jurídica com que os destinatários não poderiam razoavelmente contar, sendo por isso susceptível de violar onerosamente as expectativas criadas.

Tal expectativa, isto é, a expectativa dos credores que se muniram de um título executivo no âmbito da celebração de um negócio jurídico ou da constituição de uma relação jurídica não é configurável como uma simples expectativa, mas antes como um verdadeiro interesse jurídico de que, atento o disposto na antiga alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, o documento que revestisse a forma nela prevista configuraria um título executivo.

(..)

Do exposto resulta claro que as expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.

(..)

(..) se o interesse geral que presidiu à supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos foi o de proteger os executados do risco de execuções injustas e o de facilitar o descongestionamento dos tribunais, tal interesse ou interesses não poderão, numa ponderação simultânea de interesses, prevalecer sobre as legítimas expectativas dos credores detentores de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor da nova lei, até porque os executados não ficam desprovidos de protecção ou de meios de defesa perante uma execução injusta, uma vez que podem opor-se à execução e à penhora.

Acresce que a finalidade invocada de descongestionamento dos tribunais de processos pendentes não tem ela própria justificação, pois, ao dificultar o acesso dos credores munidos de títulos executivos à respectiva acção executiva, o legislador não estará a descongestionar os tribunais, mas, ao invés, a congestioná-los.

Com efeito, obrigar um credor que já detinha um título executivo a recorrer à propositura de um requerimento de injunção ou de uma acção declarativa para que volte a ficar munido de um título executivo (que já detinha) implica não só uma injustificada e onerosa dificuldade de acesso aos tribunais como uma verdadeira medida de congestionamento dos tribunais.

Por outro lado, as legítimas expectativas dos credores poderiam ter sido facilmente salvaguardas se o legislador houvesse consagrado uma disposição transitória que estabelecesse a necessidade de despacho liminar e citação prévia do executado nos casos em que o título executivo fosse um documento particular, independentemente do valor em causa. Era o que exigiria o princípio da proporcionalidade».

A questão foi também já apreciada pela 2.ª instância, nos acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 27-02-2014 [processo n.º 374/13.3TUEVR.E1, Desembargadora Paula Paço]  e desta Relação de Lisboa e secção, de 26.03.2014 [processo n.º 766/13.8 TTALM.L1-4, Desembargadora Paula Santos],  disponíveis em www.dgsi.pt, sendo de referir que ambos se socorrem igualmente do trabalho acima apontado, bem assim que concluem no mesmo sentido, como o ilustram os respectivos sumários:

- [Ac. Relação de Évora, de 27-02-2014]

I- A eficácia retroativa da lei processual é admitida, por via, por exemplo, da consagração de disposições transitórias, desde que não viole a Constituição da República Portuguesa.

II- A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

III-          A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível. Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.

IV-          Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.

V-           De acordo com a Exposição de Motivos apresentada na Proposta de Lei nº 113/XII, a retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g. oposições à execução).

VI-          As razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.

VII- Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões da maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do coletivo.

VIII- Os fins que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem comum coletivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de, muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua atuação estaria protegida pelo Estado de Direito Democrático.

- [Ac. Rel. de Lisboa, de 26.03.2014]

I –(..)

II - A interpretação das normas do art. 703º do novo CPC e 6º nº3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança.

III – Em consequência, deve prosseguir seus termos a execução instaurada após a entrada em vigor do novo CPC, com base em documento particular emitido em data anterior e então exequível.

II.2.2 Como logo assinalámos no primeiro ponto, ao celebrar o acordo extrajudicial reduzido a escrito com a sua entidade empregadora, observando o necessário para assegurar ficar munido de um título executivo [art.º 46.º n.º 1 al. c) do CPC], o trabalhador formou a legítima expectativa fundada na lei então vigente, de que a qualquer momento, se o incumprimento daquela o tornasse necessário, poder recorrer à via executiva para obter o pagamento coercivo da quantia acordada. E, tanto assim é, que no próprio documento fizeram constar ficar a entidade patronal “ciente que esta declaração constitui título executivo bastante, no caso de incumprimento, sendo que o pagamento de uma prestação implica o vencimento das restantes”.

Forçar este trabalhador, como outros que estejam em situações idênticas, a recorrer  à propositura de uma acção declarativa para ver declarado o seu direito – que já lhe fora reconhecido pelo empregador – de modo a ficar munido de  um novo título executivo – por ver inutilizado o que também já dispunha – afigura-se-nos uma imposição desproporcionada, resultante de uma alteração legislativa que não era previsível que viesse a suceder e, logo, com a qual não podiam razoavelmente contar as partes ao celebrar o  acordo. Impor-lhes esta solução viola onerosamente as expectativas criadas e, logo, contende com os princípios da segurança e confiança constitucionalmente consagrados (art.º 2.º CRP).

Daí que, acompanhando os acórdãos citados, também aqui se entenda que a  interpretação e aplicação das normas do art.º 703º n.º1 do novo CPC e 6º nº3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido do primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º nº1 c) do CPC, é inconstitucional por violação do principio da segurança e protecção da confiança.

Consequentemente, deve entender-se que o documento dado à execução mantém a sua natureza de título executivo, pelo que deve ser aceite para prosseguir a execução os seus termos.

***

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, decidindo o seguinte:

I.  Rejeitarem a interpretação e aplicação das normas do art.º 703º n.º1 do novo CPC e 6º nº3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, seguida na decisão recorrida, no sentido do primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º nº1 c) do CPC, por a considerarem  inconstitucional por violação do principio da segurança e protecção da confiança (art.º 2.º da CRP).

II. Consequentemente, na consideração de que o documento dado à execução mantém a sua natureza de título executivo (art.º 46.º al.c), do pretérito CPC), como tal devendo  ser aceite para prosseguir a execução os seus termos, revogam a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da acção executiva.

Sem custas

 Lisboa, 17 de Dezembro de 2014

 Jerónimo Freitas

Francisca Mendes

Maria Celina de J. Nóbrega

Decisão Texto Integral: