Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
632/21.3T8FNC-B.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ARROLAMENTO
ACÇÃO PRINCIPAL
RELAÇÃO DE INSTRUMENTALIDADE
INVENTÁRIO
APENSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1– O arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de especificação no processo principal, não sendo a providência adequada quando os bens estiverem identificados e apenas se discuta a titularidade do direito.

2– Entre a providência cautelar e a acção principal deve existir uma relação que permita afirmar que o direito acautelado será provavelmente reconhecido na acção definitiva, ou seja, entre as duas acções deve existir uma relação de dependência de tal modo que na acção principal se venha a tutelar o mesmo direito, a específica pretensão, que se quis salvaguardar por via cautelar.

3– A relação de instrumentalidade ou de dependência deve ser aferida em função do que consta efectivamente de ambos os processos e não em função do que eventualmente deles poderia ou poderá vir a constar.

4– Deferida a providência de arrolamento relativamente a um prédio urbano alegadamente integrante da herança indivisa dos inventariados, mas cujo direito de propriedade se mostra inscrito a favor de um dos herdeiros, com base em escritura de justificação notarial, o eventual direito dos demais herdeiros sobre tal prédio não poderá ser feito valer no processo de inventário enquanto não for impugnada aquela escritura, beneficiando o titular inscrito da presunção de titularidade do direito de propriedade.

5– Nesta configuração, o processo de inventário não equivale à acção principal onde se produzirá uma decisão autónoma e independente, em que a pretensão visada pela requerente possa ser realizada, daí que o procedimento cautelar não esteja na dependência desse processo, não estando reunidos os pressupostos para a sua apensação, nos termos do artigo 364º, n.º 2 do código de Processo Civil.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO


A, residente na Estrada da ... ... n.º ..., S... M... M..., ....-...–F_____ requereu a instauração de processo de inventário judicial para partilha dos bens que integram os acervos hereditários deixados por óbito de C [ ÁLVARO ...]  e mulher D [ EGÍDIA ...]  e de E [ JOÃO ...], residentes que foram na Estrada da ... ..., nº ..., S... M... M..., ....-...–F_____, sendo interessado no inventário, para além da requerente e outra sobrinha, B [ Juvenal ....], residente na Estrada da ... ..., nº ..., freguesia de S... M... M...–F_____, único irmão sobrevivo da falecida D.

Alega a requerente o seguinte:
Em 11 de Setembro de 1988 faleceu C, no estado de casado com D, segundo o regime da comunhão geral de bens, sem testamento ou disposição de última vontade, deixando a suceder-lhe o seu cônjuge, e o filho E ;
Em 23 de Março de 2016 faleceu E, no estado de solteiro, sem testamento ou disposição de última vontade, sucedendo-lhe sua mãe, D ;
Em 8 de Novembro de 2017 faleceu D, no estado de viúva de C, sem testamento ou disposição de última vontade, sucedendo-lhe:
  • o irmão B ;
  • a sobrinha, ora requerente, A , em representação, como única filha, da irmã pré-falecida Maria José ...........;
  • a sobrinha Lígia Maria......., em representação, como única filha, do irmão pré-falecido, José de Freitas .......;
  • a irmã Agostinha......., emigrante na Venezuela, desconhecendo se é viva ou falecida;
O cabeçalato pertence ao irmão B ;
O único activo existente na herança de D é um bem imóvel: prédio urbano situado à Estrada da ... ..., ..., freguesia de S... M... M...–F_____, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 6... e descrito na Conservatória do Registo Predial do F_____ sob o número 5.../.......6, cuja aquisição a favor de Egídia....... foi inscrita pela Ap. 223 de 2016/08/16, por partilha;
Em 11 de Outubro de 2019, foi lavrada escritura de habilitação de herdeiros em que B se declarou falsamente único herdeiro de D;
Em 20 de Janeiro de 2020, B outorgou escritura pública de justificação para fazer registar, como registou, a seu favor o prédio acima identificado, conforme Ap. 680 de 2020/05/21, com aquisição por usucapião;
Para além do activo existe passivo na herança aberta por óbito de D, consistente em dívidas à mãe da requerente, já falecida, e a terceiros que lhe emprestaram diversos valores para fazer face a despesas e, bem assim, relativas a benfeitorias que a requerente efectuou no imóvel.
Requer o inventário para partilha dos bens das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito dos acima identificados inventariados e solicitou a apensação aos autos de inventário do procedimento cautelar de arrolamento que correu termos sob o n.º 5069/20.9T8FNC (cf. Ref. Elect. 4049407 dos autos principais de inventário).
Em 25 de Março de 2021 foi proferido o seguinte despacho (cf. Ref. Elect. 49751003 dos autos principais de inventário):
“Admito a cumulação de inventários, à luz do artigo 1094.º do CPC, correndo os presentes autos de inventário para partilha das heranças deixadas por óbito de:
- C ;
- E , e
- D .
Foi requerida, no requerimento inicial, a apensação aos presentes autos de inventário, da providência cautelar do processo 5069/20.9T8FNC […]
Verifica-se que importa indeferir o pedido de apensação do procedimento cautelar supra identificado aos presentes autos. Com efeito, os presentes autos não poderão constituir a ação principal referente ao procedimento cautelar, senão vejamos:
O procedimento cautelar que foi autuado com o n.º 5069/20.9T8FNC visou o arrolamento do prédio descrito na competente Conservatória do Registo Civil do F_____, sob o n.º 5...., para evitar a possível venda do bem da herança de D.
Embora os presentes autos de inventário corram, para além do mais, para partilha da herança da referida falecida D, tal não basta para que se possa considerar que o presente processo constitui a ação principal daqueles autos de procedimento cautelar de arresto e assim permitir a apensação à luz do artigo 364.º, n.º 2, do CPC.
Com efeito, conforme alega a requerente no requerimento inicial que deu origem ao presente processo, à semelhança do que fez no âmbito do procedimento cautelar, o referido bem imóvel pertence à referida herança (de acordo com a relação controvertida apresentada pela parte ativa) mas o irmão da falecida, B, outorgou escritura pública de justificação, em 20.01.2020, para registar, como fez, o prédio em seu favor, tendo prestado falsas declarações quanto à aquisição do prédio. Ora, tendo sido celebrada escritura de justificação do imóvel que, na versão da requerente, pertence à (s) herança (s) a partilhar no âmbito do inventário, e beneficiando o ora interessado B, de registo do bem em seu nome (e logo da presunção de propriedade derivada do registo, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial), não poderá a questão da definição do direito de propriedade do imóvel em causa ser efetuada no âmbito do presente processo mas apenas em ação de processo comum para a impugnação de escrita de justificação notarial, questão que pela sua complexidade, jamais poderia ser julgada no âmbito da presente ação especial de inventário para a partilha de bens das heranças em causa.
Em conformidade, veja-se a própria sentença proferida a 06.01.2021, no procedimento cautelar 5069/20.9T8FNC, que se refere ao mesmo procedimento como preliminar de processo comum de impugnação de escritura de justificação - veja-se o primeiro parágrafo dessa sentença, bem como o penúltimo parágrafo da sua antepenúltima folha.
Será, pois, através de ação de impugnação da escritura de justificação, com base na qual o ora interessado Juvenal....... registou o imóvel em causa em seu favor, que esse registo poderá vir a ser abalado, caso a ação venha a proceder e seja declarado que ocorreu falsas declarações e que o bem não pertence a quem o justificou.
Assim, salvo o devido respeito, inexiste fundamento legal, à luz do artigo 364.º, n.º 2, do CPC ou de qualquer outro preceito, para que o procedimento cautelar corra por apenso aos presentes autos, que não constituem a sua causa principal.
Pelo exposto, indefiro o pedido de apensação aos presentes autos da providência cautelar autuada com o n.º 5069/20.9T8FNC. Uma vez que a apensação já foi concretizada, importa proceder à desapensação, o que ora se determina, por forma a que volte o procedimento cautelar a assumir a autuação inicial.
Notifique.”

Inconformada com esta decisão, vem a requerente dela interpor o presente recurso, cujas alegações conclui do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 4123203 dos autos principais):
a)-Os inventariados C, D e E  eram donos e legítimos possuidores do prédio urbano, objecto da providência cautelar de arrolamento e identificado no requerimento inicial;
b)-Aproveitando a morte da sua irmã D, o requerido B mediante escritura de habilitação de herdeiros, declarou falsamente ser o único herdeiro legítimo da mesma;
c)-E ainda com base em falsas declarações prestadas perante oficial público, Notária, declarou ter adquirido por usucapião o prédio que registou em seu nome e colocou à venda;
d)-Factos que motivaram que a Requerente intentasse o procedimento cautelar de arrolamento tendo em vista apreender a coisa para sua partilha judicial e impedir a dissipação da mesma;
e)-O facto de o Requerido ter o prédio registado a seu favor, e portanto formalmente ser o titular do direito de propriedade e de ser o seu presuntivo proprietário, não obsta a que, o prédio seja de facto propriedade e pertença às Heranças como já indiciariamente se provou;
f)-E de novo se demonstrará e provará se o Requerido, enquanto cabeça de casal se recusar a relacionar o mesmo como tal;
g)-Constando como já constam quer dos autos de providência de arrolamento os meios de prova quer da propriedade do bem como sendo das Heranças quer da falsidade das declarações do Requerido quanto à aquisição do direito de propriedade por usucapião, nada obsta a que, na decisão das reclamações sobre o bem imóvel seja proferida decisão definitiva relativa às falsidades e ao verdadeiro titular do direito da propriedade e ordenado o cancelamento do registo a favor do Requerido;
h)-Atenta a evidência probatória das falsidades praticadas e declaradas, não carecem os autos de aturada e complicada investigação probatória, atenta a simplicidade e a evidência das falsidades daqueles actos notariais e subsequente registo;
i)-Assim deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene a apensação da providência cautelar de arrolamento aos presentes autos, nos termos do art. 403 do CPC.
Termina as conclusões pugnando pela procedência do recurso e a consequente revogação do despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que mantenha a apensação do procedimento cautelar.

Não foram apresentadas contra-alegações.

***

II–OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Em face das conclusões da recorrente a única questão que importa apreciar é a de saber se deve haver lugar à apensação do procedimento cautelar supra identificado aos autos de inventário que correm termos sob o n.º 632/21.3T8FNC.

Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.

***

IIIFUNDAMENTAÇÃO

3.1.– FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra e, bem assim, a seguinte factualidade que emerge dos autos de procedimento cautelar que constituem o apenso A:
1)–Em 10 de Dezembro de 2020 a aqui requerente, A deduziu contra B um procedimento cautelar especificado de arrolamento, que correu termos sob o número 5069/20.9T8FNC, no Juízo Local Cível do F_____ (J3) do Tribunal Judicial da Comarca da M_____, alegando, muito em síntese, o seguinte:
- Falecidos C, casado com D, a quem sucedeu esta e o filho de ambos, E, veio este a falecer, no estado de solteiro, deixando como sucessores apenas a sua mãe, D, também ela falecida, no estado de viúva do primeiro, sem testamento ou disposição de última vontade;
- À falecida D sucederam o irmão sobrevivo, B, a requerente, filha da irmã pré-falecida Maria José......., e ainda a sobrinha Lígia......., filha do irmão pré-falecido José....... e a irmã Agostinha...... ou os seus filhos, se a primeira falecida;
- A D vivia no prédio sito à Estrada da ... ..., n.º ..., freguesia de S... M... M...–F_____, descrito na Conservatória do Registo Predial do F______ sob o número 5..., onde viveram também C e o filho E;
- A falecida D pediu à requerente para dela tomar conta, dizendo que lhe daria a casa, único imóvel que possuía, tendo-lhe entregado as chaves;
- Entretanto, a referida D faleceu sem ter feito a escritura de doação, mas a requerente deu início a obras de recuperação da casa, com o conhecimento do requerido, que sabia da vontade da irmã, sendo que o prédio pertence à herança aberta por óbito desta;
- No entanto, o requerido procedeu ao arrombamento da casa e ali se introduziu, o que fez contra a vontade da requerente, sua possuidora;
- Em 20 de Janeiro de 2020, o requerido interveio em escritura pública de justificação declarando-se dono do prédio, invocando uma compra ao cunhado, C, que não ocorreu, sendo que nunca se comportou como dono da casa, assim tendo actuado visando transmitir a terceiros o prédio, que entretanto já colocou à venda;
- Para evitar a perda do imóvel e a dissipação do bem pertencente à herança de D, é necessário o seu arrolamento, o que requereu, devendo ser nomeada fiel depositária (cf. Ref. Elect. 3975226 do apenso A).

2)–Realizada a audiência de inquirição de testemunhas, em 6 de Janeiro de 2021 foi proferida decisão no procedimento cautelar, com o seguinte conteúdo:
“III - Matéria de facto indiciariamente provada
1.- Em 11 de Setembro de 1988 faleceu, em França, C no estado de casado com D.
2.- C e D tiveram um filho de nome E.
3.- C construiu o imóvel onde vivia, em Portugal, com a mulher e o filho, sito na Estrada da ... ... n.º ...., S... M... M...F_____.
4.- C trabalhava em França e todos os anos vinha à Região Autónoma da M_____ onde vivia no imóvel referido em 3.
5.- Em 23 de Março de 2016 faleceu na sua residência na Estrada da ... ... n.º ..., S... M... M...F_____, o dito E, no estado de solteiro maior, sem descendentes.
6.- O imóvel referido em 6) é composto por uma casa térrea com quintal, e está inscrito na matriz predial urbana com o n.º 6... e descrito na CRP do Funchal sob o n.º 5.../.......6 S... M... M.....
7.- A 8 de Novembro de 2017 faleceu D, no estado de viúva de C, no Estabelecimento da ... ... (Lar) S... G..., rua L_____..
8.- B nascido em 5 de Novembro de 1949, é irmão de D; A, divorciada, nascida em 6 de Setembro de 1958, é filha única de Maria José......., irmã pré-falecida de D .
9.- No prédio descrito em 6) sempre viveram, habitando-o, desde a sua construção os ditos C, D, e E, até à respectiva morte, estando a aquisição, por partilha, do direito de propriedade sobre o mesmo, registado a favor de D pela AP 223 de 2016/08/16.
10.- D pretendeu doar o imóvel referido em 6) à Requerente, tendo entregue as respetivas chaves, a qual faleceu sem ter feito a respetiva escritura.
11.- O Requerido sabia e conhecia a vontade da irmã relativamente à casa, e porque também este vivia aos cuidados da Requerente e habitava uma casa desta, a Requerente deu início à execução das obras.
12.- Obras de recuperação total da casa, pois do existente, só foram aproveitadas as paredes-mestras.
13.- C  e D  nunca venderam ou pretenderam vender o imóvel referido em 6) ao Requerente.
14.- Inesperada e subitamente o Requerido no passado dia 4 do mês de Junho último (2020), deixou de habitar na casa da Requerente.
15.- Aproveitando a ausência da Requerente, acompanhado de uns amigos, procedeu ao arrombamento do imóvel referido em 6), nele se introduziu passando a residir, contra a vontade da Requerente.
16.- O Requerido, procedeu a outorga de escritura de justificação, sobre o imóvel, e no dia 21-05-20, procedeu ao registo a seu favor da aquisição, por usucapião, do imóvel em causa, procedendo ao registo a seu favor pela AP680 de 21-05-20 e, ato contínuo, publicitou a venda do mesmo nas redes sociais.

***

Não ficaram demonstrados os seguintes factos:
Que as obras referidas em 12) tenham importado em mais de setenta e cinco mil euros. […]
IV - O Direito
Dispõe o art. 403.º do Código de Processo Civil:
1.- Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2.- O arrolamento é dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.”
Nos termos do art. 404.º, n.º 1 o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou documentos.
Resulta ainda do disposto no art. 405.º, n.º 1 do mesmo código que o requerente fará "prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente."
O arrolamento é uma medida de carácter conservatório e visa, numa das suas vertentes, assegurar a permanência dos bens que devam ser objecto de especificação no processo principal (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 251).
Tratando-se de procedimento instaurado como preliminar de ação de impugnação de escritura de justificação de bem imóvel, o requerente, alegará o seu direito relativo aos bens e o fundamento do pedido; aquele deriva da qualidade de interessado na herança a partilhar, este da verificação do justo receio de extravio ou dissipação de quaisquer bens – cfr. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, 4ª ed., 229.
No caso dos autos, encontra-se indiciariamente provada a vocação sucessória da Requerente e do Requerido no que respeita à herança aberta por óbito de D ; bem como, os factos referentes ao arrombamento do imóvel e a residência nele pelo Requerido, o que sucedeu apenas no ano de 2020, contrariando assim os factos que fundamentaram a realização da escritura de justificação.
Acresce que, demonstrado está o facto do Requerido ter colocado à venda o imóvel em causa, sendo que, face ao registo que obteve a seu favor do mesmo nada o impede de concretizar tal venda.
Estão verificados assim todos os pressupostos que permitam concluir pela procedência do pedido quanto ao presente arrolamento, no mais, quanto ao demais petitório inserto na petição inicial, dir-se-á que, relativamente aos efeitos do arrolamento, dispõe o artigo 406.º, n.º 5 do CPC que lhe são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrarie o regime do arrolamento ou a diversa natureza dessa providência.
Um dos principais efeitos da penhora que se estende, então, ao arrolamento, traduz-se na ineficácia, em relação à execução os bens, dos atos de disposição ou oneração os bens penhorados (artigo 819.º, CC), tal não contraria o regime do arrolamento, muito pelo contrário, pelo que este efeito lhe será aplicável.
Apesar de não poder onerar os bens arrolados, deverá ser permitido ao depositário dos bens arrolados poder continuar a utilizar e fruir deles. Neste caso, o regime da penhora deve ser aplicado com as devidas adaptações, à natureza do arrolamento, sendo que, quanto à utilização de bens móveis ou imóveis - nada obsta a que esse bem continue a ser utilizado pelo requerido, não se aplicando o regime da imobilização (artigo 768.º, n.º 3 do Cód. Civil), motivo pelo qual improcederá o pedido de condenação do "Requerido a abster-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso da Requerente ao prédio em questão, nomeando-se como fiel depositária a Requerente".
Em face do que fica dito, e sem necessidade de mais considerações, procederá, parcialmente, o pedido do requerente.

IV-DECISÃO:
Face ao exposto, julgo parcialmente procedente, por provado, o presente procedimento, e em consequência decido:
1.- Decretar o arrolamento do imóvel composto por casa térrea com quintal, sito à rua Estrada da ... ..., n.º ...., freguesia de S... M... M...F_____, inscrito na matriz predial urbana com o n.º 6... e descrito na CRP do F_____ sob o n.º 5.../.......6 S... M... M.....
2.- Absolver o Requerido do demais peticionado.
Fixo ao procedimento o valor de € 29.029,00 (vinte e nove mil e vinte e nove euros).” (cf. Ref. Elect. 49435369 do apenso A).

3)–Com data de 20 de Janeiro de 2020, foi lavrada escritura de justificação a folhas 42 a 43 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 14 do Cartório Notarial de ... de ... mediante a qual, B, como justificante, foi dito: “que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio urbano, destinado a habitação, sito à Estrada da ... ..., n.º ...., na freguesia de S... M... M..., concelho do F_____, com a área total de setecentos e vinte metros quadrados, dos quais setenta e sete metros quadrados correspondem à área de implantação do edifício, a confrontar a norte com AGB......., a sul com FV......., a leste com ... do ... – C_____ e L____ e AGB....... e a oeste com o C______, descrito na Conservatória do Registo Predial do F______ sob o número cinco mil e sessenta e dois, daquela freguesia, onde se acha registada a aquisição a favor de D  e marido C, pela apresentação 223 de 16-08-2016, inscrito na matriz em nome de Cabeça de Casal da Herança de C , sob o artigo 6.... (anteriormente 2.... da freguesia de S____ G_____), com o valor patrimonial para efeitos de IMT e o atribuído de vinte e nove mil e vinte e nove euros. Que o prédio veio à sua posse, no ano de mil novecentos e oitenta e seis, no estado de solteiro, maior, por compra verbal feita a C e mulher D, actualmente já falecidos, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, ambos naturais da freguesia de S_____ G_____, concelho do F_____, residentes que foram, ele, à Rua do L_____, E_____ B_____ V____, na freguesia de S_____ G_____, concelho do F_____ e ela à Estrada da ... ..., n.º ..., na freguesia de S... M... M..., concelho do F_____. Que desde a referida data e sem interrupção, o justificante entrou na posse e na fruição do identificado imóvel, posse que já dura há mais de vinte anos, que tem sido exercida por si, directamente, com capacidade plena, e que tem consistido na sua habitação, obras, limpeza e manutenção, usufruindo das utilidades por eles proporcionadas, agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, com ânimo de quem exercita direito próprio, ignorando lesar direito alheio, sendo reconhecida como seu dono, sendo a sua posse própria e pública, porque exercida à vista de todos, pacífica, porque mantida sem violência, contínua, porque não teve interrupção e de boa-fé, porque não lesa qualquer direito de outrem, pelo que se encontram reunidos todos os requisitos legais para a aquisição do identificado prédio por usucapião. Que não possui, dado o modo de aquisição, quaisquer documentos que titulem suficientemente o seu direito e lhes permita, para efeitos de registo predial, fazer prova do seu direito de propriedade. Que, desta forma, declara que adquiriu a propriedade do aludido imóvel por usucapião.” (cf. escritura pública junta com o requerimento de 26-02-2021 com a Ref. Elect. 4072050 do apenso A).

***

3.2.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO

A recorrente insurge-se contra a decisão que determinou a desapensação dos autos de procedimento cautelar de arrolamento com a seguinte ordem de argumentos:
A providência de arrolamento é dependência da acção relativa à titularidade do direito da coisa arrolada, como é o caso do inventário relativamente a coisa de direito não duvidoso;
A prova do direito de propriedade sobre o imóvel em discussão pode ser feita no inventário, ao contrário do entendido na decisão recorrida, sendo que já resultam fortemente indiciadas as falsas declarações do requerido;
É ao B, enquanto cabeça-de-casal, que cabe relacionar os bens da herança e apenas perante a sua atitude se avaliará da necessidade de impugnar a escritura: se ele o relacionar estará a reconhecer o direito de propriedade da herança e se o não fizer, ficará sujeito à impugnação dos demais herdeiros e, então, à impugnação do direito de propriedade por ele alegado na escritura de justificação notarial;
O procedimento cautelar de arrolamento visou salvaguardar um bem da herança para efeitos da sua partilha no inventário.

Sustenta a apelante que ao deduzir o procedimento cautelar de arrolamento pretendeu acautelar o bem imóvel que integra, segundo a sua versão as heranças abertas por óbito dos inventariados C, D e E , e evitar que o ali requerido, através dos actos já praticados e a praticar, possa vender o bem e dissipar o respectivo produto da venda, o que, segundo alega, visará assegurar a permanência do bem ao momento da partilha a ter lugar nestes autos, daí que tal procedimento deva ser apensado ao inventário, nos termos do art.º 364º, n.º 2 do CPC.

Assim não o entendeu a decisão recorrida ao considerar que o direito de propriedade sobre o imóvel está, actualmente, inscrito a favor do requerido, que assim beneficia da presunção de titularidade do direito, argumentando que tal inscrição apenas poderá ser colocada em crise mediante acção de impugnação de escritura de justificação notarial, o que não pode ter lugar no âmbito do processo de inventário.

É sabido que entre a providência cautelar e a acção principal deve existir uma relação que permita afirmar que o direito acautelado será provavelmente reconhecido na acção definitiva. Logo, esta acção principal deve visar a tutela do mesmo direito que se pretendeu preservar por via cautelar.

Assim, a dependência que tem de existir entre o procedimento cautelar e a acção principal implica, necessariamente, que apenas possam ser protegidos, por via cautelar, aqueles direitos susceptíveis de serem tutelados através da acção principal.

O receio de extravio ou dissipação dos bens deixados pelo de cujus pode ser afastado com a providência específica do arrolamento prevista nos art.ºs 403º e seguintes do CPC.

Arrolar significa “inscrever em rol”, daí que subjacente ao conceito de arrolamento está a existência de uma pluralidade de bens que se pretenda acautelar, para o que terão de ser descritos, avaliados e depositados, ficando sujeitos a regime semelhante ao dos bens penhorados – cf. art.ºs 406º, n.º s 1 e 6 do CPC; cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 183.

O arrolamento é uma medida de carácter conservatório que pode surgir como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na acção principal; ou como medida que visa garantir a persistência de documentos necessários para provar a titularidade do direito sobre as coisas arroladas.

A situação vertida nos autos do procedimento cautelar cuja apensação a recorrente pretende que tenha lugar por referência ao presente processo de inventário encontra-se claramente abrangida pela primeira dessas situações e configura uma situação similar à do arresto divergindo apenas quanto ao risco que se pretende prevenir, ou seja, com o arrolamento pretende-se eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos enquanto no arresto é a perda da garantia patrimonial que está em causa; assim, o primeiro, em regra, tem por objecto bens que pertencem (em comum com outrem ou não) ao próprio requerente ou sobre os quais o requerente se arroga um qualquer direito – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-04-2010, relator Jorge Leal, processo n.º 5258/08.4TBALM-D.L1-2[1].

Apesar de no procedimento cautelar comum serem admissíveis providências gerais de apreensão de bens ou de entrega a um fiel depositário, o arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de especificação no processo principal, não sendo, pelo contrário, a providência adequada quando os bens estiverem identificados e apenas se discuta a titularidade do direito - cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume – Procedimentos Cautelares Especificados, 2001, pág. 251.

No mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 184:
“Mas nem sempre o arrolamento é a providência cautelar adequada à finalidade de conservação dos bens que estão em causa na acção. Se estes estiverem identificados e apenas se discutir a titularidade do direito (real ou de propriedade intelectual) sobre eles, ou se são ou não devidos (como objecto de obrigação de dareou de facere),a providência adequada é inominada, cabendo ao caso o procedimento cautelar comum. Não importa já descrever ou especificar os bens, mas apenas apreendê-los e depositá-los ou entregá-los, a título provisório, ao autor.”

O art. 404º, n.º 1 do CPC estatui que o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, pelo que dessa norma decorre um critério geral determinativo da legitimidade processual: esta competirá a quem se afirme titular de um interesse na conservação dos bens.

Todavia, terá de ser um interesse jurídico, isto é, tal interesse é constatado ou porque o requerente tem direito aos bens, o que pretende fazer reconhecer na acção principal, ou porque carece de produzir, nesta, prova que consta dos documentos a arrolar.

Assim, para Jacinto Rodrigues Bastos, este normativo legal, mais do que uma norma sobre legitimidade, contém o primeiro requisito da procedência do arrolamento, pois que este depende da demonstração da titularidade do direito aos bens – cf. Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 3ª Edição Revista e Actualizada, 2000, pág. 202.

Na situação sub judice, há que ter presente, por um lado, que a questão que se discute contende apenas com um único bem imóvel, o que, por si só, não carece propriamente de especificação/descrição no âmbito do processo de inventário[2].

Por outro lado, no requerimento inicial do procedimento cautelar a requerente, para justificar o seu interesse na conservação do bem, invocou a sua qualidade de herdeira de D (razão porque se tornou necessária toda a enunciação dos óbitos verificados e relações familiares descritas), mas, em rigor, o justo receio invocado consistiu não tanto na necessidade de conservação do bem com vista ao seu relacionamento nos autos de inventário (o risco de dissipação de bem da herança apenas foi mencionado no artigo 38º do requerimento inicial), mas numa invocada perda da sua própria posse sobre tal bem (cf. artigos 10º, 13º, 14º, 17º, 23º a 26º do requerimento inicial)[3] [4] e na falsidade das declarações prestadas pelo requerido no contexto da escritura de justificação notarial, o que lhe permitiu inscrever no registo o direito de propriedade a seu favor (cf. artigos 27º, 28º, 31º, 34º, 35º e 36º do requerimento inicial)[5]

Assim, ainda que esteja em causa um bem que, à data do óbito de D integraria, segundo a versão da requerente, a herança desta e sendo evidente o litígio entre os dois herdeiros[6], não se trata, porém e em rigor, de conservar o bem com vista à sua relacionação a ter lugar na acção principal, pois que, mais do que isso, a requerente no procedimento cautelar invocou a perda da sua posse por um acto de violência do requerido e, face aos factos por ela alegados, surge afastada, por ora, a integração do bem na herança dos falecidos.

Na verdade, para além do litígio quanto ao direito de propriedade incidente sobre o prédio, seguro é que, como se assinalou na decisão recorrida, o requerido B goza da presunção da titularidade do direito decorrente do estatuído no art. 7º do Código do Registo Predial, presunção que apenas deixará de funcionar uma vez intentada acção de impugnação da escritura de justificação notarial – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017, relator Salazar Casanova, processo n.º 5043/16.0T8STB.S1 “[…] o reconhecimento da justificação notarial determina, no caso da propriedade, inscrição em nome do justificante que, a partir daí, passa a beneficiar da presunção de propriedade (artigo 7.º do CRPredial)”.

Será apenas através da impugnação desse instrumento notarial em acção de simples apreciação negativa, que a requerente poderá ver destruído o facto gerador da aquisição contra o qual se insurge, caso logre alcançar a declaração da inexistência do direito afirmado na escritura.

Tratando-se de uma acção de simples apreciação negativa, recairá sobre os demandados o ónus de provarem os factos constitutivos do direito afirmado na escritura impugnada, de acordo com o disposto no artigo 343º, n.º 1 do Código Civil, beneficiem ou não os demandados da presunção de dominialidade decorrente do registo do direito de propriedade sobre os prédios justificados em seu nome na respectiva Conservatória do Registo Predial, prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial – cf. neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 7-06-2018, relatora Maria Amália Santos, processo n.º 309/16.1T8VRL.G1 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-03-2015, relator Barateiro Martins, processo n.º 5730/06.0TBLRA.C1

Tal sucede porque o registo, a existir, terá sido lavrado com base na escritura impugnada, conforme foi expressamente firmado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 4 de Dezembro de 2007, publicado no Diário da República, I Série, nº 63, de 31/03/2008, - “É que o registo foi feito exactamente com base na escritura de justificação, agora impugnada. A impugnação da escritura de justificação significa a impugnação dos factos com base nos quais foi celebrado o registo. A impugnação desses factos, traduzida na alegação da sua não verificação ou da sua não correspondência com a realidade, não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e a sua eficácia prevista no art. 7º do Cód. Reg. Predial, que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção. Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado.”

Daqui se retira que, enquanto não for impugnada a escritura, o requerido B continuará a beneficiar da presunção de titularidade do direito de propriedade incidente sobre tal prédio, para o que será irrelevante que venha ou não, enquanto cabeça-de-casal, a relacioná-lo, nos termos do art. 1102º, n.º 1, b) do CPC, sendo evidente que a junção das cadernetas prediais e certidões de registo predial respeitantes a bens imobiliários, enquanto elementos essenciais para a partilha que será efectuada, interferirão na aferição da situação jurídica dos bens imóveis – cf. art.ºs 1097º, n.º 3, c) e 1098º, n.º 4 do CPC -, revelando, no caso, a não integração do bem na herança.

Ora, não será pela circunstância de vir a ser relacionado o bem imóvel pelo cabeça-de-casal que se terá por resolvida a questão da titularidade do bem, porquanto subsistirá, mesmo nessa hipótese, a inscrição da aquisição por usucapião a favor de B, não podendo o silêncio dos demais interessados perante tal realidade ter a virtualidade de modificar a situação jurídica do prédio que os documentos juntos revelem.

Além disso, a relação de instrumentalidade ou de dependência entre o procedimento cautelar e a acção principal deverá verificar-se ou ser aferida em função do que delas consta efectivamente e não em função do que, eventual ou “virtualmente”, delas poderia ou poderá, futuramente, vir (ou não) a ocorrer – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7-04-2016, relatora Paula Leal de Carvalho, processo n.º 393/14.2TTMTS-A.P1.

Em face disto, importa determinar se, tendo sido deferida a solicitada providência de arrolamento incidente sobre o prédio urbano acima identificado, os presentes autos se apresentam como a acção principal de que aquele procedimento cautelar é dependência e, por via disso, se deve ser retomada a apensação inicialmente ordenada.

Em primeiro lugar há que atentar naquilo que se decidiu no contexto do procedimento cautelar e, mais do que isso, na causa de pedir deduzida e no respectivo enquadramento jurídico que lhe foi conferido pela decisão cautelar.

Como decorre da passagem acima transcrita da aludida decisão, verifica-se que o tribunal consignou expressamente que a providência requerida teria sido deduzida como preliminar de acção de impugnação de escritura de justificação notarial, invocando-se a qualidade da requerente como interessada na herança, para justificar o seu direito/interesse/legitimidade para a dedução da providência requerida.

No entanto, mais do que atentar na formulação desse juízo conclusivo pelo tribunal da providência, importa considerar a causa de pedir deduzida e ponderada pelo tribunal, que, no caso, assentou na circunstância de, por um lado, a requerente se intitular herdeira de D (qualidade que indiciariamente demonstrou) e, por outro, na ocorrência do arrombamento do imóvel promovido pelo requerido, que ali passou a residir, o que, tendo sucedido apenas em 2020, ou seja, em data muito distante daquela que foi invocada na escritura de justificação notarial, infirma os factos que nesta foram declarados pelo justificante, para além de estar indiciada a intenção deste de proceder à venda do imóvel.

Foram estes os pressupostos de facto que, indiciariamente demonstrados, justificaram o decretamento da providência, por revelarem o provável direito da requerente e o receio de dissipação do bem.

Assim, a decisão, ao decretar o arrolamento do prédio, fê-lo por referência a uma acção em que se iria discutir o direito de propriedade do requerido (como será o caso de acção de impugnação da escritura de justificação) e não por referência à necessidade de especificar os bens da herança no processo de inventário, pois que ali não estava em causa um problema de identificação e conservação de bens da herança - como sucede, via de regra, no arrolamento enquanto medida cautelar para assegurar a partilha a ter lugar no inventário -, mas antes uma discussão quanto à titularidade do bem.

Ora, em conformidade com o disposto no art. 364º, n.º 2 do CPC, quando requerido antes de proposta a acção, o procedimento é apensado aos autos desta, logo que a acção seja instaurada, para onde deverá ser remetido o apenso, caso a acção venha a correr noutro tribunal.

Em consonância com o acima expendido, é da idiossincrasia do procedimento cautelar a sua relação de dependência e instrumentalidade relativamente a uma acção ou execução que vise o reconhecimento ou satisfação do direito em causa.

Isto significa, tal como referem A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, que “não basta que o procedimento e a ação se baseiem no mesmo direito substantivo abstratamente considerado; a relação de instrumentalidade impõe que o procedimento vise a tutela antecipada ou a conservação do concreto direito cuja efetividade se pretende por via da ação principal. Por isso, o objeto da providência há de ponderar não apenas o direito em causa, mas especialmente a pretensão envolvida na causa principal. Embora não se exija uma perfeita identidade, a providência deve apresentar-se com uma função instrumental relativamente à medida definitiva” – cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pp. 422-423.

Ainda que o interesse da requerente enquanto herdeira e interessada no inventário a que se procede por óbito dos inventariados acima identificados resida necessariamente no direito a efectuar a partilha dos bens que integram as respectivas heranças onde, segunda ela, figura o bem imóvel em referência, certo é que, bem ou mal, o arrolamento não foi decretado com vista à especificação dos bens no inventário, mas antes como medida para impedir a transmissão do bem por quem figura no registo como seu titular, enquanto não estiver resolvida a questão da propriedade.

Ora, o litígio quanto ao direito de propriedade deste imóvel, como se refere na decisão recorrida e decorre do acima expendido, não poderá ser resolvido em sede de inventário, mas antes através da dedução de acção de impugnação da escritura de justificação notarial, sendo certo que foram as falsas declarações prestadas pelo requerido nesse contexto e a sua intenção de proceder à venda que integraram o justo receio convocado pelo tribunal para decretar a providência.

Como refere também Miguel Teixeira de Sousa, a dependência da providência cautelar perante a acção principal emerge de uma relação necessária entre a primeira e o objecto da segunda, de tal modo que essa relação determina que a providência requerida condiciona e é condicionada pelo objecto da acção principal; ou, dito de outro modo, a relação de instrumentalidade consiste no facto de ao procedimento cautelar servir o efeito útil da acção principal, caducando na ausência desta – cf. Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, pág. 246; Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 572.

Assim, tendo o arrolamento sido decretado em vista do risco de dissipação (venda) do bem imóvel relativamente ao qual o requerido se terá declarado falsamente proprietário por via de uma aquisição por usucapião, o diferimento da providência mostra-se justificado em função de uma eventual impugnação da escritura de justificação notarial que, a proceder, determinará então a restituição do bem à herança dos inventariados.

Ora, tomando como referência a afirmação de que “a acção principal é qualquer acção em que se realize a própria afectação do bem jurídico em termos subjectivos” e considerando que a providência visa assegurar o concreto direito cuja efectividade se pretende por via da acção principal, tendo presente os termos em que a decisão cautelar foi proferida e, mais do que isso, a causa de pedir invocada no requerimento inicial e atendida na decisão, não se pode deixar de reconhecer que o direito que a recorrente pretende fazer valer enquanto herdeira e interessada no presente inventário passa, é certo, pela impugnação das declarações, que apoda de falsas, prestadas pelo requerido na escritura de justificação, mas esse direito apenas poderá ser feito valer na competente acção de impugnação daquela escritura. A efectivação do seu direito no inventário não se basta com a relacionação do bem ou conservação dos bens existentes no espólio dos inventariados, já que o prédio urbano em concreto se tem de ter como integrante do património do requerido, enquanto não for afastada a presunção de titularidade do direito de propriedade de que este goza.

E se, como é evidente, é ainda esse direito o que a recorrente pretende fazer valer no processo de inventário e não obstante neste se possa também discutir a titularidade dos bens relacionados e a omissão de relacionação de outros que o devessem ter sido (cf. art.ºs 1104º, n.º 1, d) e 1105º do CPC), não se pode deixar de ter presente que, neste caso, o arrolamento, enquanto medida de carácter conservatório, foi determinado tendo em vista assegurar a permanência do bem enquanto a recorrente e o recorrido discutem o respectivo direito de propriedade, o que, face aos contornos da situação jurídica do prédio, não poderão fazer no âmbito do inventário.

É que, no dizer de Rui Pinto, a acção principal a ter em consideração é aquela em que se realiza a própria afectação do bem jurídico em termos subjectivos, isto é, aquele processo onde é possível produzir-se uma decisão autónoma e independente e em que a pretensão visada pelo requerente possa ser realizada – cf. Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 225.

No caso em apreço, se o procedimento cautelar de arrolamento visou realizar a obrigação genérica de não ingerência no direito da requerente este apenas poderá realizar-se em acção principal em que se discuta directamente o direito de propriedade, colocando em crise o direito que o requerido se arroga e relativamente ao qual logrou obter inscrição registal que, enquanto não impugnado o acto que a sustentou, lhe confere a presunção de titularidade.

Não sendo indispensável para a existência da relação de instrumentalidade ou de dependência entre a acção principal e o procedimento cautelar uma absoluta identidade ou uma exacta coincidência entre o objecto de ambos os processos, será sempre necessário que o direito que se pretende acautelar no procedimento seja também acautelado na acção principal, isto é, esteja contido no objecto da acção principal de modo que a sua tutela provisória possa previsivelmente vir a ser confirmada na acção principal de que depende.

Ora, em face do acima explanado, o objectivo prosseguido no arrolamento – assegurar a manutenção do bem na esfera do requerido enquanto não é resolvida a questão do direito de propriedade - não pode ser prosseguido no inventário, onde, sem que aquele direito seja judicialmente impugnado e afastado, nem haverá lugar ao relacionamento do bem.

Porque o direito tutelado com a providência cautelar não poderá vir a ser confirmado no processo de inventário nem aqui alcançar a tutela definitiva, tal procedimento cautelar não se apresenta com as características ou funções de instrumentalidade ou dependência daquele processo, o que significa que a dedução do inventário pela recorrente não equivale à interposição da acção que tem por fundamento o direito acautelado na providência – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-04-2008, relator Isaías Pádua, processo n.º 759/05.9TBMGL-C.C1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-09-2007, relator Roque Nogueira, processo n.º 723/2007-7.

Assim, o procedimento cautelar não tinha que ser apensado aos autos de inventário, pelo que deve manter-se inalterada a decisão recorrida, improcedendo integralmente o presente recurso.

***

Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A apelante decai na sua pretensão recursória, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.

***

IV–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.

***

Lisboa, 26 de Outubro de 2021[7]


Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro



[1]Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[2]Atente-se que José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in op. cit., pág. 184, sustentam ser requisito do arrolamento a identificação da pluralidade de bens a que a acção, directa ou indirectamente respeita, sob pena de se poderem extraviar, ocultar ou ser dissipados, pelo que a providência de arrolamento não é adequada para evitar que o promitente vendedor venda a terceiro a fracção prometida vender ao requerente (cf. art.ºs 406º, n.º 2 e 407º, n.º 1 do CPC); em sentido contrário, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, pág. 237.
[3]A admitir que se cogitasse sobre a adequação da providência decretada face ao direito que se pretende acautelar e justo receio invocado, tendo em conta que o Tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida – cf. art. 376º, n.º 3 do CPC.
[4]10º Sucedeu que ainda antes da morte do filho João..... a dita Egídia....., já só e doente e após a morte da sua irmã Maria José....., pediu à Requerente para cuidar dela e que lhe dava a casa, a qual já se encontrava em estado de degradação avançado, ou seja o único imóvel que possuía. […]
13º Nesse prédio sempre viveram, habitando-o, desde a sua construção os ditos Álvaro....., Egídia..... e o filho João....., até à respectiva morte, como seus possuidores e na convicção de únicos e exclusivos proprietários.
ISTO POSTO,
14º No acto do acordo a tia efectuou a entrega das chaves de casa para que a participante tomasse posse da mesma. […]
17º Dado que o Requerido sabia e conhecia a vontade da irmã relativamente à casa, e porque também este vivia aos cuidados da Requerente e habitava a casa que a mãe da Requerente lhe deixara em 2015, a Requerente deu início à execução das obras.
23º E, aproveitando a ausência da Requerente, acompanhado de uns amigos procedeu ao arrombamento da casa de habitação da Herança sita à rua Estrada da ... ... com o n.º ... de policia, na freguesia de S... M... M..., concelho do F_____ a confrontar do Norte com AGB....., a Sul com FV....., a Leste com a R_____ do F_____, C_____ e L_____ e aquele AB..... e a Oeste com C_____, descrito na CRP sob o n.º5..../ S... M... M... e actualmente inscrito na matriz urbana sob o art. 6...., Doc.s 8 e 9
24º Prédio este que a Requerente já registara em nome da sua tia D em 16 de Agosto de 2016 e do qual suportou todos os custos.
25º Rebentou as fechaduras das portas da casa e introduziu-se dentro da mesma, apoderando-se do prédio com actos de violência e contra vontade da Requerente, enquanto sua legítima possuidora.
26º Posse essa que lhe foi transmitida pela então legítima possuidora e sua dona e legítima proprietária com exclusão de outrem, pacificamente, à vista de todas as pessoas, de boa fé, ininterruptamente e sem oposição de quem quer que fosse.”
[5]“27º Veio a Requerente a descobrir que esta actuação de apropriação ilegal do prédio foi iniciada pelo Requerido no final do mês de Dezembro de 2019, com os actos preparativos da escritura pública de Justificação que lavrou em 20 de Janeiro de 2020 no Cartório de C____ de L_____ sito à rua S____ J____ de D____ n.º ..., da Notária CJAS....., aí prestando falsas declarações perante oficial público, crime esse pelo qual já foi denunciado.
28º O Requerido prestou pois falsas declarações quanto a todos os factos pelo mesmo declarados relativamente à aquisição da posse do prédio, a falsa alegada compra ao cunhado C com o qual nunca se deu nem teve qualquer relacionamento e que o expulsou da casa dele, quando a sua mulher a dita D lhe deu acolhimento, por o Requerido não ter para onde ir viver. […]
31º Nem a irmã D, apesar da morte do marido, em algum momento quis vender a casa a quem quer que fosse atenta a pensão com que ficou após a morte do marido e muito menos ao Requerido.
34º Nunca o Requerido praticou na casa quaisquer actos relativos e conducentes à posse, que sempre se manteve na irmã D, primeiro em conjunto com o marido, depois como cabeça de casal da herança dele, e por fim como sua única dona e legítima proprietária.
35º Posse essa que detinha na convicção do exercer um direito próprio de propriedade, posse esse que aquela tia D transmitiu à Requerente.
36º Os actos praticados pelo Requerido foram com único e exclusivo intuito de, logo que possível, transmitir para terceiro o prédio em causa, e dissipar desta forma, o património da herança da irmã D, apropriando-se de todo o dinheiro que puder obter.”
[6]O requerido B deduziu oposição no âmbito do procedimento cautelar, em 15-02-2021, onde se arroga proprietário do bem – cf. Ref. Elect. 4059570 do apenso A).
[7]Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.