Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
405/07.6TVLSB.L1-7
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
ININTELIGIBILIDADE DO PEDIDO
CONTRADIÇÃO
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. A idoneidade do objecto da acção implica a indicação e inteligibilidade da causa de pedir e do pedido, bem como a existência de um nexo lógico formal não excludente entre aqueles dois termos da pretensão, por forma a permitir um pronunciamento de mérito positivo ou negativo.
2. O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no artigo 664.º, 1ª parte, do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório.
3. A causa de pedir desdobra-se, analiticamente, em duas vertentes: a) - uma factualidade alegada, que constitui o respectivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota; b) - uma vertente normativa significante na perspectiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico, ao abrigo do preceituado na 1ª parte do artigo 664.º do CPC; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta.
4. A causa de pedir nas acções de reivindicação estrutura-se na alegação de factos tendentes a provar: a) - em primeiro lugar, a aquisição originária do direito real invocado ou, alternativamente, a presunção de posse ou do registo da aquisição, mesmo que derivada, da coisa; b) - em segundo lugar, a ocupação ou esbulho da coisa por parte do demandado.
5. Só ocorre contradição entre o pedido e a causa de pedir, para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 193.º do CPC, quando se verifique uma contradição ou incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir, reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico entre os dois termos da pretensão que nem sequer permita formular um juízo de mérito positivo ou negativo sobre a mesma.
6. Não ocorre falta de causa de pedir quando os factos alegados pelos A.A. permitem identificar a causa de pedir invocada, não só em termos de divisar o quadro normativo aplicável, mas também de evitar a repetição de uma futura causa com objecto idêntico, segundo um juízo de prognose por referência ao caso julgado que venha a recair sobre o objecto da presente acção.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. M… e marido E…, na qualidade de representantes legais do falecido MA…, intentaram, junto das Varas Cíveis, acção de reivindicação, sob a forma de processo ordinário, contra:
1ª – L…, representante legal de B…-, S.A.,
   2ª – O…
   3ª MJ...,
   4ª – ML…
   5ª – MS…;
   6ª – F…i,
alegando, em resumo, que:  
         1.1. O ora falecido M… era proprietário do prédio urbano, sito na Avenida …, constituído em regime de propriedade horizontal, inicialmente, com 12 fracções autónomas e casa da porteira, a que corresponde o 6º andar esquerdo;
         1.2. Posteriormente, o referido proprietário procedeu à transformação da casa da porteira, sita no 6º andar esquerdo, em fracção autónoma destinada a habitação, após a obtenção da licença de utilização municipal;  
         1.3. Na altura da venda das referidas fracções autónomas, os adquirentes foram informados de que aquelas vendas eram feitas sem qualquer direito à casa da porteira, que estava a ser transformada em fracção autónoma destinada a habitação do proprietário;
         1.4. Por sua vez, as ora 3ª e 4ª R.R. adquirentes do 1º andar direito, correspondente à fracção C, a última a ser vendida, foram igualmente esclarecidas de que não podiam dispor de estacionamento na cave, já que, por mero erro, foram registados 12 estacionamentos quando, na realidade, só existiam 11, um dos quais pertencentes à casa da porteira;
         1.5. Não obstante isso, em 6/12/93, as sobreditas proprietárias propuseram contra M… uma acção declarativa a pedir a condenação deste a restituir-lhes o 6º andar esquerdo e a deixar de utilizar o estacionamento na cave, que diziam estar atribuído às ali A.A.;
         1.6. Por acórdão do STJ, de 8/2/2001, no âmbito da predita acção, tanto o 6º andar esquerdo/casa da porteira como o estacionamento reclamado foram considerados propriedade de M…;
         1.7. Porém, foi recusado o registo da propriedade da nova fracção a favor de M…, sem que se procedesse, primeiramente, à alteração da escritura de constituição da propriedade horizontal por acordo de todos os condóminos, o que não foi possível;   
         1.8. Assim, os A.A. são donos e possuidores da fracção correspondente ao 6º andar esquerdo do prédio acima identificado, inscrita na matriz predial mas omissa no registo predial, pelo facto de a haverem herdado por testamento do seu anterior proprietário Manuel Afonso, o qual, há mais de 15 anos, se encontrava na posse pública e pacífica da mesma como resulta do aludido acórdão do STJ;
         1.9. De igual modo, aquela fracção inclui uma área da cave do prédio, destinada a garagem, demarcada com tracejado a tinta no respectivo piso, que as 3ª e 4ª R.R. vêm utilizando com frequência no estacionamento das sua viaturas, violando a propriedade dos A.A. e perturbando a utilização de toda a área a estes pertencentes.
         Concluem pedindo que:
a) - os A.A. sejam declarados donos e legítimos proprietários do imóvel pertencente ao acervo hereditário indiviso de MA…, de que os A.A. são os únicos herdeiros;
b) - se reconheça aos A.A. o direito de propriedade sobre o imóvel em causa e ocupado, no que toca ao estacionamento, pelas 3ª e 4ª R.R., e que estas sejam condenadas a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício;          
c) - os R.R. sejam condenados a restituir aos A.A. a parte do imóvel ilicitamente ocupado, livre de pessoas e coisas;
d) - os R.R. sejam ainda condenados a pagar aos A.A. uma indemnização pelos danos emergentes da referida ocupação no que se vier a liquidar para efeitos de execução de sentença.
         2. A 2ª R., O…, apresentou contestação, em que arguiu a ineptidão da petição inicial, por contradição entre a causa de pedir e o pedido, e a sua ilegitimidade, e impugna parte dos factos alegados e o direito peticionado pelos A.A.  
         3. Por seu turno, as 3ª e 4ª R.R. contestaram, conjuntamente, sustentando a falta de fundamento de facto e de direito da pretensão deduzida.
         4. Por fim, a 5ª R. … ofereceu contestação, em que invoca também a ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, impugna os fundamentos de facto e de direito da acção e deduz reconvenção a pedir que se declare que o andar em causa e o respectivo estacionamento são parte comum do prédio e se condene os A.A. a cessarem os actos da sua indevida ocupação em detrimento do condomínio.
         5. Os A.A. ofereceram réplica, em que responderam às excepções e à pretensão reconvencional deduzidas, e reiteraram, no mais, o petitório, salientando que o primitivo proprietário sempre utilizou o andar ajuizado, habitando-o sem oposição de quem quer que fosse, sendo que agora o mesmo se encontra arrendado a terceiros; requereram ainda a condenação das R.R. em custas e na indemnização de € 1.000,00, cada uma, por litigância de má fé contra jurisprudência suprema, tendo as R.R. Olga e Maria José respondido a esta matéria a sustentar a sua denegação.
         6. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador (fls. 424 a 431) a considerar inepta a petição inicial com fundamento na ininteligibilidade do pedido, na contradição entre o pedido e a causa de pedir e na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, concluindo-se pela absolvição de todos os R.R. da instância e declarando-se prejudicada, por isso, a pretensão reconvencional subsidiariamente deduzida pela R. M. 
         7. Inconformados com tal decisão, vieram os A.A. interpor recurso de agravo dela, em que formulam as seguintes conclusões:
   1ª – A petição inicial é apta e válida, inexistindo qualquer ininteligibilidade, desfasamento ou contradição entre causa de pedir e os pedidos;
   2ª - Nos presentes autos não existe a menor dúvida que, embora a acção tenha vários pedidos de diferente natureza, no entanto, os pedidos primeiros são típicos de uma acção de domínio (reivindicação);
   3ª - Mas, fosse qual fosse a tipologia dos pedidos, a forma de processo, nos termos previstos no artigo 199.º do CPC, não seria alterada como acção declarativa de condenação na forma ordinária;
   4ª - Relativamente à ajuizada ininteligibilidade e contradição entre causa de pedir e pedido, não se alcança dos fundamentos deduzidos qualquer juízo de obscuridade ou incongruência entre esses fundamentos e os pedidos formulados;
   5ª - Relativamente à usucapião, foram articulados e documentos factos concretos, até porque a fracção em causa foi objecto de arrendamento pelos A.A.;
   6ª - No concernente ao suprimento do consentimento de determinados condóminos do prédio em causa para alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, torna-se apenas necessário pôr o título em correspondência com a realidade existente, desde o início, não alterada, por meio da sua rectificação, nos termos do artigo 249.º do CC, conforme acórdão do STJ de 8/2/2001;
   7ª - O proprietário do rés-do-chão do prédio em causa é, desde 2/6/2001, o cidadão L…, casado com W…, no regime de comunhão geral.
         Pedem os apelantes que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a acção procedente por provada.
            8. Não foram produzidas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Delimitação do objecto do recurso

            Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC, o objecto do recurso é delimitado em função do teor das conclusões do recorrente.
         Dentro destes parâmetros, as questões a decidir consistem em ajuizar se o despacho recorrido incorreu em erro de direito ao qualificar de inepta a petição inicial com base nos fundamentos acima indicados, a saber: 
   a) – a ininteligibilidade do pedido;
   b) – a contradição entre o pedido e a causa de pedir;
   c) – a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.

         III – Fundamentação

         1. Enquadramento preliminar
        
         Segundo o nº 1 do artigo 2.º do Código de Processo Civil (CPC)[1], a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em pra-zo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo (…). Daí se infere que o direito à jurisdição, genérica e abstractamente proclamado e garantido no artigo 20.º, nº 1, da Constituição da República, se realiza mediante o exercício do direito de acção concretamente adequado a reconhecer em juízo o singular direito subjectivo (ou interesse legalmente protegido) que se pretende fazer valer, a prevenir ou reparar a sua violação ou a realizá-lo coercivamente, como deflui da noção constante do nº 2 do citado artigo 2.º do CPC.
         Por isso mesmo, o exercício do direito de acção requer a verificação de requisitos formais quanto aos respectivos sujeitos e objecto - designados por pressupostos processuais relativos à acção -, cuja falta obsta ao conhecimento de mérito, determinando a absolvição do réu da instância. Um desses requisitos incide sobre a delimitação do próprio objecto da acção, o qual tem se mostrar idóneo em termos de permitir delinear o âmbito de cognição do tribunal e da formulação do respectivo juízo de mérito, dentro dos parâmetros traçados nos artigos 660.º, nº 2, 661.º, nº 1, e 664º do CPC, bem como definir os limites objectivos do caso julgado material, em conformidade com o disposto nos artigos 671.º e 673.º, com referência ao artigo 498.º, nº 3 e 4, do mesmo diploma.     
         Como é sabido, o objecto da acção consubstancia-se numa pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.
Com efeito, nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 467.º do CPC, exige-se que o autor, na petição inicial, exponha os factos e as razões de direito e formule o pedido, respectivamente.
Do disposto no nº 3 do artigo 498.º do citado Código extrai-se que o pedido, na sua vertente substantiva[2], consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no artigo 664.º, 1ª parte, do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório[3].      
         Por seu lado, o nº 4 do indicado artigo 498.º define a causa de pedir como sendo o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido. E, em particular no que concerne às pretensões reais, o mesmo normativo, inspirado na teoria da substanciação, precisa que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real invocado.  
         Neste domínio, importa, no entanto, ter presente que a causa de pedir se pode desdobrar, analiticamente, em duas vertentes:
a) - uma factualidade alegada, que constitui o respectivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota;
b) - uma vertente normativa significante na perspectiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico, ao abrigo do preceituado na 1ª parte do artigo 664.º do CPC; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta.
         Assim sendo, no que aqui releva, sobre o autor impende o ónus de indicar o concreto efeito prático-jurídico pretendido e de alegar uma factualidade específica ou concreta que viabilize a formulação de um juízo de mérito sobre a pretensão deduzida.
         Ainda no que respeita ao substrato factual da causa de pedir, há que distinguir os factos indispensáveis à sua caracterização, e portanto dela estruturantes, e os factos que, muito embora essenciais à procedência da acção, não se mostram todavia imprescindíveis à caracterização da causa de pedir para efeitos de um pronunciamento de mérito, seja ele positivo ou negativo. É certo que nem sempre é fácil fazer a distinção prática entre as duas categorias de factos, mas o critério de aferição passará por um juízo de prognose a ponderar, no confronto de cada situação, na perspectiva do caso julgado material que venha a recair sobre o objecto da causa em ter-mos de evitar a repetição futura de causa idêntica[4].
         Nesta base, podemos pois concluir que a idoneidade do objecto da acção implica a indicação e inteligibilidade da causa de pedir e do pedido, bem como a existência de um nexo lógico formal não excludente entre aqueles dois termos da pretensão, por forma a permitir um pronunciamento de mérito positivo ou negativo.
         Em contraponto, não se verificará tal idoneidade quando:
            a) - não seja indicado qualquer efeito-prático jurídico pretendido;    
   b) - seja indicado um efeito pretendido em termos ininteligíveis ou tão vagos que, mesmo com o recurso aos fundamentos da acção, não permitam formular qualquer juízo de mérito positivo ou negativo;
            c) - não sejam alegados os factos estruturantes da causa de pedir;
   d) - sejam alegados meros conceitos de direito ou factualidades abstractas que não permitam sequer reconduzir o julgado a uma situação de facto real, em termos de evitar mais tarde a repetição de causas idênticas;
   e) - seja alegada uma mole de factos sem qualquer leitura possível, positiva ou negativa, na óptica do pedido (ininteligibilidade de facto), ou que não permitam descortinar um quadro normativo aplicável (ininteligibilidade de direito), nomeadamente quando, tratando-se de causa de pedir complexa, esta se mostre de tal modo truncada que não se divise como dali possa decorrer o efeito pretendido;
   f) - ocorra uma relação de exclusão formal recíproca entre a causa de pedir invocada e o pedido, entre duas causas de pedir ou entre vários pedidos cumulados, que se traduza num dizer ou desdizer simultâneos.       
         Em qualquer das situações enunciadas, o objecto da acção será manifestamente inidóneo para uma apreciação de mérito, razão pela qual o artigo 193.º, nº 1 e 2, alíneas a), b) e c), do CPC considera, nessas circunstâncias, inepta a petição inicial, cominando a nulidade insuprível de todo o processo, o que constitui excepção dilatória determinativa, mesmo oficiosamente, da absolvição do réu da instância, nos termos dos artigos 202.º, 1ª parte, 280º, nº 1, alínea b), 493.º, nº 2, 494.º, alínea b), e 495.º do mesmo diploma.
         Porém, nos termos do nº 3 do artigo 193.º do CPC, se o vício consistir na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e o réu contestar a acção, apesar de arguir a ineptidão com base naqueles fundamentos, a nulidade considerar-se-á suprida quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.   

         2. Caracterização do objecto da acção

No caso presente, tomando como ponto de partida os pedidos formulados e os fundamentos alegados, verificamos estar no âmbito de uma acção cujo objecto versa, essencialmente, sobre duas pretensões cumuladas:
a) - uma pretensão reivindicativa de um andar, como fracção imobiliária autónoma, mas que consta como parte comum do respectivo título de constituição da propriedade horizontal do prédio urbano em que se integra, e de uma área de estacionamento que lhe estaria agregada;
b) - uma pretensão indemnizatória fundada na ocupação ilícita pelas 3ª e 4ª R.R. da referida área de estacionamento.
         Ora, em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 1311.º do CC a acção de reivindicação tem por fim o reconhecimento do direito de propriedade a quem dele se arroga contra qualquer possuidor ou detentor e a consequente restituição da coisa ao seu proprietário. Trata-se, por conseguinte, de uma acção real. E, conforme o já foi acima dito, à luz do preceituado do nº 4, 2ª parte, do artigo 498.º do CPC, a causa de pedir nesta espécie de acções implica a alegação do facto jurídico de que deriva o direito real invocado, o que, segundo a teoria da substanciação perfilhada pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, requer a alegação da aquisição originária, que não meramente derivada, daquele direito real, nomeadamente por virtude de usucapião, acessão ou ocupação.       
         Todavia, o autor pode ainda fundar a aquisição originária na base da presunção legal do direito de propriedade decorrente da posse ou do registo predial a seu favor, respectivamente, nos termos dos artigos 1268.º, nº 1, do CC e 7.º do Código do Registo Predial, para o que lhe será suficiente alegar e provar a posse ou o registo da aquisição a seu favor, mesmo que derivada, factos-base da presunção, estando assim dispensado do ónus de alegar e provar a aquisição originária deles presumida, como se extrai do disposto no artigo 350º, nº 1, do CC.
         Com relevo para o caso presente, importa destacar que a propriedade horizontal, no todo ou em parte, pode ser constituída por usucapião, conforme o previsto no nº 1 do artigo 1417.º do CC, desde que o objecto sobre que incide:
   a) – seja susceptível de se constituir em unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública, com a especificação do valor que  corresponde a cada fracção, em percentagem ou permilagem, no va-lor total do prédio, nos termos exigidos pelo artigo 1415.º e 1418.º, nº 1, do mesmo Código[5];
   b) – não constitua parte do prédio imperativamente comum, nos termos do nº 1 do artigo 1421.º do referido diploma, nessa medida, insusceptível de apropriação individual[6].           
         Com efeito, a usucapião como acto jurídico que é não pode prevalecer sobre disposições legais de carácter imperativo, face ao preceituado no artigo 294.º aplicável por via do artigo 295.º do CC.  

         No caso vertente, os A.A. pretendem que lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre o 6º andar esquerdo do prédio urbano acima identificado, como fracção autónoma, e da área de estacionamento que lhe estaria agregada, com base no facto de o seu “primitivo proprietário” ter transformado aquele andar para tal efeito, após licenciamento camarário, e tanto ele como os respectivos sucessores terem vindo a possuir o mesmo, há mais de 15 anos, à vista de toda a gente, sem oposição que quem quer que fosse, não obstante o mesmo se encontrar destinado, no título de constituição da propriedade horizontal, como parte comum, à designada “casa da porteira”.
         Tudo está agora em saber se os A.A. configuraram o pedido e a respectiva causa de pedir de forma adequada a um pronunciamento de mérito, dentro dos parâmetros normativos acima expostos.
Desde já se adverte que não se coloca aqui qualquer questão relativa à forma de processo, como sustentam os apelantes, uma vez que a forma de processo, para os efeitos do disposto no artigo 199º do CPC, se afere em função da pretensão deduzida, não se devendo confundir com a adequação do pedido aos fundamentos da causa, o que já constituiria uma questão de mérito. No caso presente, a forma de processo, declarativo e ordinário, prosseguida é o meio processual próprio para conhecer do pedido reivindicação formulado e do pedido de indemnização com ele cumulado, atento o valor atribuído à acção, sendo pois insubsistentes as razões dos apelantes enunciadas na 3ª conclusão recursória.
Também não faz qualquer sentido ter aqui em conta o decidido no processo identificado na certidão junta a fls. 58 e seguintes, desde logo, porque não fora ali reconhecido com autoridade de caso julgado o direito que os A.A. agora peticionam nesta acção, já que nesse processo apenas se decidiu desfavoravelmente sobre a pretensão das ali autoras MJ… e ML…, com a absolvição do R. do pedido. Acresce que nem tão pouco essa decisão tem qualquer eficácia quanto aos demais R.R. ora demandados.     
Apreciemos então do mérito do recurso quanto aos fundamentos da decisão recorrida.

3. Do mérito do recurso

3.1. Preliminar
 
Recorde-se que o tribunal “a quo” julgou verificada a ineptidão da petição inicial com base nos seguintes fundamentos:
a) - ininteligibilidade do pedido;
b) - contradição entre o pedido e causa de pedir;
c) - falta ou ininteligibilidade da causa de pedir. 
Analisemos cada um desses fundamentos.

3.2. Da ininteligibilidade do pedido de reivindicação

         O tribunal “a quo” considerou que os A.A. se apresentaram, na qualidade de herdeiros do falecido MA…, mas que pediram o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um imóvel que afirmam pertencer à herança indivisa daquele. Tal formulação, no entender do tribunal recorrido, enferma de ininteligibilidade e até de contradição geradora de dúvidas quanto à efectiva pretensão dos A.A., já que o efeito prático-jurídico formulado é passível de dois sentidos incompatíveis, qual sejam o de reconhecimento da propriedade dos próprios A.A. sobre o andar e de reconhecimento da propriedade da herança indivisa, não competindo ao tribunal optar por um ou outro entendimento. Daí se conclui pela ininteligibilidade do pedido e até pela sua contradição com os fundamentos invocados.
         Na verdade, os A.A. parecem confundir a alegada propriedade sobre o andar do falecido MA…, ainda integrada na herança indivisa, e a propriedade sobre a mesma fracção que lhe pode advir da partilha da herança; ou seja, confundem a titularidade da pretensa propriedade do autor da herança com a sua titularidade de herdeiros sobre os bens hereditários em que se incluiria o andar em causa. Porém, uma coisa é o pretenso direito de propriedade do falecido sobre o bem hereditário ainda integrado na herança indivisa, em relação à qual os herdeiros detêm, em conjunto, o domínio e posse sobre todo o acervo dos bens, nos termos do artigo 2050.º do CC, mas ainda não o direito singularizado sobre cada bem; outra coisa diferente é a propriedade individual, em que os herdeiros venham a suceder sobre cada um dos bens da herança após a partilha, nos termos do artigo 2119.º do mesmo Código.         
         De qualquer modo, numa leitura atenta e mais substancial da petição inicial, depreende-se que os A.A. reportam a sua pretensão ao direito de propriedade do andar ajuizado que consideram originariamente adquirido pelo falecido, assumindo-se como sucessores testamentários deste (art. 21º da petição inicial). Nesse sentido, e na perspectiva do disposto nos artigos 1255.º e 2050.º, nº 1, do CC, deverá ser interpretada a afirmação feita sob o artigo 18º da petição inicial, no sentido de que “os A.A. são legítimos donos e possuidores da fracção” em referência, ou seja, na qualidade de únicos herdeiros do falecido MA….
Acresce que imputam a MA… a prática de actos na base da qual pretendem fazer emergir o direito em causa, colocando-se como os únicos herdeiros continuadores, por sucessão, da posse daquele (arts. 1º e segs. da petição inicial); e tanto assim é que juntam o respectivo instrumento de habilitação de herdeiros (doc. de fls. 24/25).
Por fim, importa observar que, na alínea a) da formulação do pedido, os A.A. pedem expressamente que sejam declarados “donos e legítimos proprietários do imóvel pertença do acervo hereditário de MA…, presentemente indiviso, tanto mais que a presente acção é proposta por todos os herdeiros”. É certo que as alíneas b) e c) do petitório exprimem literalmente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos demandantes sobre o imóvel em causa e da restituição do mesmo, mas tais formulações não podem deixar de ser conjugadas com a alínea a) e com os próprios fundamentos da acção.     
Nesse contexto, as formulações dadas às alíneas a), b) e c) do pedido devem ser interpretadas como um pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o andar em causa, como fracção autónoma, pertencente à herança indivisa do ora falecido MA…, aqui representado pelos A.A. na qualidade de seus únicos herdeiros, e bem assim o respectivo pedido de restituição da coisa, desse modo se suprindo o manifesto erro de qualificação jurídica em que incorreram os A.A..       
Procedem, pois, neste particular, as razões dos apelantes.

3.3. Quanto à contradição entre pedidos e causa de pedir

         Neste capítulo, o tribunal “a quo”, considerou que:
   - os A.A. pretendem o reconhecimento de uma parte do prédio afecta à “ casa da porteira”, incluindo um lugar de estacionamento na cave, mas afirmam que a mesma é parte comum desse prédio e que este foi constituído em propriedade horizontal com 12 fracções autónomas e casa da porteira;
- o facto de MA… ter iniciado o processo de alterações no sentido de eliminar a casa da porteira, ou de ter obtido licença camarária dessa casa para a transformar em fracção autónoma, não lhe confere a qualidade de proprietário;
- uma parte comum de determinado edifício não pode ser objecto de propriedade singular.
         Daí conclui o tribunal recorrido pela contradição entre pedido e causa de pedir.
         Como decorre do já acima referido, a contradição entre o pedido e a causa de pedir, para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 193.º do CPC, só ocorre quando se verifique uma contradição ou incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir, reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico entre os dois termos da pretensão que nem sequer permita formular um juízo de mérito positivo ou negativo sobre a mesma. Nas lúcidas palavras de Antunes Varela, “contradição (lógica) entre a causa de pedir e o pedido … não pressupõe uma simples desarmonia, mas uma negação recíproca, um encaminhamento de sinal oposto, um dizer e desdizer simultâneos, uma conclusão que pressupõe a premissa exactamente oposta àquela de que se partiu”[7].   
         Salvo o devido respeito, não é o que se afigura no presente caso.
         Na verdade, os A.A. procuram radicar o direito de propriedade peticionado na transformação, feita por MA…, do 6º andar esquerdo que, segundo o título de constituição da propriedade horizontal seria parte comum, mas que, por virtude das obras feitas por aquele e licenciadas pela entidade camarária, passou a reunir condições materiais para ser constituída como fracção autónoma. E, nessa perspectiva, invocam a posse pública e sem oposição sobre aquela fracção, que teria vindo a ser exercida sobre o andar pelo primitivo proprietário e continuada pelos seus herdeiros, há mais de 15 anos. Nessa linha de entendimento, invocam ainda as reservas feitas pelo primitivo proprietário aos adquirentes das demais fracções, no sentido de terem ficado cientes de que a casa da porteira não seria parte comum e que lhe estaria associada a área de estacionamento em causa (arts. 5º a 7º da petição inicial), o que poderá porventura relevar, nomeadamente para efeitos de comprovação da boa fé, ilidindo desse modo a má fé presumida pela falta de título, nos termos do artigo 1260.º, nº 2, do CC.
         Ora, um tal quadro fáctico poderá ainda assim ser subsumível à aquisição da propriedade horizontal do referido andar por via da usucapião, já que segundo o alegado, aquele andar passara a reunir as condições físicas e técnicas para ser constituído em fracção autónoma, nos termos dos artigos 1415.º e 1417.º, nº 1, do CC. E, desde que se prove estarem reunidas tais condições de posse usucapível e de autonomia da fracção, não será o determinado em contrário pela escritura de constituição que obstará à constituição por usucapião da propriedade horizontal sobre a dita fracção, desde que respeitadas as disposições legais de carácter imperativo, sabido como é que essa forma de aquisição originária independe da constituição por negócio jurídico.  
         De qualquer modo, não sendo aqui o momento próprio para ajuizar sobre a procedência da acção, o certo é que os fundamentos assim alegados, além de não contradizerem formalmente o pedido deduzido, se mostram, no mínimo, equacionáveis sob o prisma do quadro normativo aplicável na linha daquele pedido.           
         Termos em que se verifica a ocorrência de erro na qualificação do referido vício processual pelo tribunal “a quo”.

         3.4. Da falta de causa de pedir
 
         O tribunal “a quo” considerou também que ocorre a falta de causa de pedir quanto à pretensão reivindicatória, porquanto os A.A. não alegaram factos concretos em que se possa substanciar a posse invocada como fundamento da aquisição do direito peticionado. No entanto, não deixa de ser curiosa a conclusão pela falta de causa de pedir, quando dantes se julgou verificada a contradição entre o pedido e uma causa de pedir, que afinal faltaria. 
         Ora, como de certo modo já foi dito, a causa de pedir nas acções de reivindicação estrutura-se na alegação de factos tendentes a provar:
a) - em primeiro lugar, a aquisição originária do direito real invocado ou, alternativamente, a presunção de posse ou do registo da aquisição, mesmo que derivada, da coisa;
b) - em segundo lugar, a ocupação ou esbulho da coisa por parte do demandado.     
         No que aqui releva, quanto à invocação da posse para efeitos de usucapião, o autor terá de alegar factos tendentes a provar a posse, nomeadamente, a partir de uma forma de aquisição originária, seja por via de prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito, seja por via de inversão do título de posse, nos termos do artigo 1263.º, alíneas a) e d), do CC, e a subsequente duração pelo tempo necessário ao efeito aquisitivo da usucapião, o qual se reportará à data do início da posse tal como se preceitua no artigo 1288.º do citado Código.
         Tratando-se de aquisição originária da posse, portanto independente da posse de anterior possuidor, a materialidade do “corpus” possessório faz presumir juris tantum o respectivo animus, nos termos do artigo 1252.º, nº 2, do CC.
         Sucede que a materialidade dos factos respeitante à prática reiterada terá de se consubstanciar em actos materiais que importem uma relação empírica directa com a coisa, não bastando para tanto a mera prática de actos jurídicos sem qualquer incidência material, a qual, quando muito poderá constituir elemento adjuvante ou contextual de determinada materialidade[8].
Por sua vez, a prática reiterada repousa na ideia de uma repetição ou sucessão prolongada de actos, ainda que de natureza diversa, com intensidade significante no sentido do estabelecimento de uma relação duradoura ou estancial com a coisa[9]. E embora, em regra, tal reiteração não se baste com um acto isolado, pode ainda assim um só núcleo fáctico ser dotado de uma energia tal que, segundo o consenso público, se traduza numa relação duradoura, como sucede, por exemplo, com o esbulho ou a ocupação[10]. Além disso, a densidade da factualidade relevante poderá variar em função da natureza do objecto e da sua aptidão económica[11].      
 
         No caso vertente, é certo que os A.A., na petição inicial, se limitaram a afirmação genérica e conclusiva de que por si e antepossuidores se encontram na posse do andar há mais de 15 anos (art. 22º da petição inicial).
Mas além disso, os A.A. alegaram, naquele articulado, que:
a) - o primitivo proprietário MA… iniciou, na Câmara Municipal, um processo de alterações no sentido de eliminar a casa da porteira, transformando-a em fracção autónoma destinada a sua habitação (art. 3º da p.i.);
b) - tal processo veio a culminar com a concessão de licença de utilização nº 30, emitida em 9 de Fevereiro de 1993, a favor de MA…, juntando para o efeito os documentos de fls. 398 a 402, juntos com a réplica, donde consta ter havido parecer favorável no sentido de que o andar em foco reúne as condições para constituir fracção autónoma (art. 4º da p.i.);
c) - na altura da aquisição das outras fracções, os adquirente foram informados de que as vendas eram feitas sem qualquer casa da porteira, que estava a ser transformada em fracção autónoma com destino a habitação própria do proprietário (art. 5º da p.i.);
d) - as adquirentes do 1º andar direito, ora 3º e 4ª R.R., foram igualmente esclarecidas de que, por se tratar da última fracção vendida, não podiam dispor de estacionamento na cave, uma vez que havia erro ao serem registados 12 estacionamentos, quando só existiam 11, um deles pertencentes à casa da porteira;
e) - que aquelas R.R. ficaram conscientes da situação que, de imediato, reclamaram da administração do prédio uma taxa de condomínio mais baixa dos que os demais, por não terem estacionamento.
Face à sobredita alegação, as 2ª e 5ª R.R. contestantes, apesar de invocarem a ineptidão da petição inicial, reconheceram que “o vendedor (MA…) utilizou o andar, mas que ultimamente se desconhece qual o respectivo estatuto, pois está transformado em residência colectiva de brasileiros” (arts. 46º da contestação da 2ª R e 37º da 5ª R.). Impugnaram, no entanto, parte dos restantes factos alegados, nomeadamente quanto à alegada falta de oposição dos condóminos. Isto mostra que aquelas R.R. interpretaram a petição dos A.A. no sentido de que M se arrogava da posse exclusiva do andar como fracção autónoma em decorrência da transformação operada no andar.
Acresce que, já em sede de réplica, os A.A. vieram ainda alegar que:
- o primitivo proprietário e os ora A.A. sempre foram admitidos a participar nas assembleias de condóminos e a pagar as respectivas comparticipações (art. 40º);
 - o primitivo proprietário sempre utilizou o andar em questão sem oposição de quem quer que fosse e foi o primeiro e único a habitar a respectiva fracção do prédio, que agora está arrendada a uma família, conforme documento junto (art. 42º).

Como ficou dito, a prática reiterada para efeitos de aquisição originária da posse tanto pode consistir numa acto prolongado no tempo, como também em acto cuja intensidade implique o estabelecimento de uma relação duradoura ou estancial com a coisa; e tanto pode traduzir-se na sucessão de actos heterogéneos e irregulares, o que acontece, em regra, no âmbito dos prédios rústicos, como numa prática sucessiva e continuada de actos mais ou menos homogéneas, designadamente quando os modos de desfrute da coisa pouco variam, como no caso de uma habitação.
No caso dos autos, afigura-se que a alegação de que “o proprietário primitivo” do andar o transformou em fracção autónoma destinada à sua habitação e do facto adjuvante de ter obtido a respectiva licença para tal, como consta dos documentos juntos, constitui já um base factual mínima para alicerçar a aquisição com base em prática reiterada, sendo que tal reiteração sai ainda reforçada pelos factos indiciários do correspondente animus, consistentes nas alegadas informações dadas aos adquirentes das restantes fracções. Por isso mesmo, não é de estranhar a impugnação das contestantes, como cientes que estão da situação em litígio.
Sucede que, além disso, os A.A. acabaram por alegar, na réplica, que MA… sempre habitou no referido andar, o qual acabou por ser arrendado a terceiros, e que tanto aquele como os A.A. sempre foram admitidos a participar nas assembleias de condóminos e a pagar as respectivas comparticipações. Trata-se de uma ampliação da causa de pedir, que é contudo admissível ao abrigo do disposto no artigo 273.º, nº 1, do CPC.
Acresce que o acto de transformação do andar em causa com vista à habitação do primitivo dono do prédio poderá ainda ser valorado na óptica de uma inversão do título de posse, tanto mais que o uso da coisa comum por parte de um comproprietário não constitui posse exclusiva, salvo havendo inversão do título de posse, nos termos do nº 2 do artigo 1406.º do CC, muito embora se desconheça se, na altura das referidas alterações, MA. era ou não condómino do prédio em causa.
Em suma, os factos alegados pelos A.A. permitem identificar a causa de pedir invocada, não só em termos de divisar o quadro normativo aplicável, mas também de evitar a repetição de uma futura causa com objecto idêntico, segundo um juízo de prognose por referência ao caso julgado que venha a recair sobre o objecto da presente acção.
Poder-se-á, no entanto, discutir se tais factos serão suficientes para a procedência da acção, mormente por falta da especificação das características físicas e técnicas que o andar passou a reunir em resultado das obras efectuadas, ou até, num critério mais escrupuloso, sobre as condições concretas em que o andar foi habitado. E poder-se-á ainda ponderar se tais insuficiências conduzem já a uma manifesta inviabilidade da acção ou constituem tão só meras deficiências que poderão vir a comprometer o êxito da acção.
De qualquer modo, dada a maior latitude que hoje a lei processual civil confere ao suprimento de factos essenciais à procedência da acção, como se alcança do preceituado nos artigos 264.º, nº 3, e 508.º, nº 1, alínea b), e nº 3, do CPC, nas circunstâncias em presença e atentas as posições já assumidas pelas partes, afigura-se mais curial providenciar pela concretização daqueles factos, mediante convite dos A.A. ao aperfeiçoamento dos respectivos articulados, ao abrigo do disposto no artigo 266.º, nº 2, e do já citado artigo 508.º, nº 1, alínea b), e nº 3, do CPC.
Não se ignora que o poder de iniciativa do juiz de convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados é, de algum modo, discricionário; mas, inspirado como está no princípio da cooperação judiciária proclamado no citado artigo 266.º, não deverá ser exercido ou omitido de forma arbitrária.
Acresce que uma solução de pendor mais formalista traria maiores desvantagens para ambas as partes. Com efeito, uma solução, como a dada em 1ª instância, fundada em razões de ordem formal que, salvo o devido respeito, atenta mais na textura literal da petição do que no seu conteúdo substancial, ainda que imperfeitamente expresso, acabaria por remeter as partes para uma outra acção. Por outro lado, uma solução que fulminasse logo a acção por inviabilidade de facto, nesta fase processual, não permitiria sequer a renovação da instância, como sucederia se tivesse lugar em sede de despacho liminar, para além de poder vir a colocar, mais tarde, um delicado problema acerca do alcance do caso julgado material.

3.5. Quanto à falta de causa de pedir relativamente ao pedido de indemnização

No que respeita à pretensão indemnizatória, o tribunal “a quo” considerou, de forma muito sintética, que o mesmo não se encontra sustentado por qualquer factualidade e que o autor só pode formular pedidos genéricos nos casos previstos no artigo 471º do CPC.
Ora, de acordo com o alegado, a referida pretensão tem por fundamento a ocupação ilícita que as 3ª e 4ª R.R. tem vindo a fazer ao estacionar as suas viaturas na área de estacionamento de cuja titularidade o A. se arroga (art. 31º da petição inicial), e cujos danos os A.A. dizem não puder ainda ser computados, pelo que requereram a sua liquidação em execução de sentença (art. 32ª).
Estamos assim no âmbito de uma pretensão fundada na responsabilidade civil extracontratual, por facto ilícito traduzida na violação de um pretenso direito de propriedade sobre a referida área de estacionamento, enquanto agregada ao andar ajuizado, equacionável nos termos dos artigos 483º, nº 1, do CPC.
A causa de pedir de tal pretensão é complexa, sendo integrada pelos seguintes pressupostos fácticos: facto ilícito, imputação subjectiva, a título de dolo ou culpa, danos e nexo de causalidade entre estes e aquele facto.
Da matéria alegada resulta claramente o preenchimento do facto ilícito, traduzido na ocupação da área de estacionamento, e a sua imputação subjectiva feita às 3ª e 4ª R.R..
No que toca aos danos, regra é de que ao autor incumbe o ónus de alegar e provar a espécie de danos que pretende ver ressarcidos, embora relegando a fixação do seu montante para liquidação ulterior, não se podendo assim limitar a afirmar que determinada conduta lhe causa prejuízos[12]. Todavia, importa atentar na posição doutrinária de que, em caso de ocupação ilícita de imóvel, a indemnização poderia corresponder à mera perda do valor locativo da coisa, sem necessidade de provar qualquer outro dano concretamente sofrido[13].
No caso vertente, os A.A. limitaram-se a alegar, nos arts. 31º e 32º da petição inicial, que: As 3ª e 4ª R.R. frequentemente estacionam as suas viaturas na referida área de estacionamento, com o que perturbam a utilização de toda a área pertencente aos A.A., danos esses que ainda não podem ser computados.
Desse enunciado parece resultar, implicitamente, que os danos invocados respeitarão ao impedimento, por parte das referidas R.R., da utilização dada pelos A.A. àquela área de estacionamento. Tais danos decorreriam assim directamente do próprio acto de ocupação.
Quanto à determinação do seu valor, o artigo 471.º, nº 1, alínea b), do CPC, com referência ao artigo 569.º do CC, permite a dedução de pedido genérico, deixando a liquidação para momento ulterior com vista à execução de sentença.
Todavia para acautelar o entendimento mais restrito de que sobre o A. recai o ónus de concretizar a espécie de danos que pretende ver ressarcidos, mostra-se conveniente convidar os A.A. a precisarem os contornos do referido dano e mormente clarificar de que espécie danos afinal pretendem ser ressarcidos. 
        
4. De outros vícios a prevenir  

         De todo o exposto não resulta que a petição inicial enferme dos vícios insupríveis que lhe foram assinalados no douto despacho recorrido. Quando muito, a petição padece de algumas deficiências na exposição dos factos pertinentes que podem comprometer o êxito da acção, mas que não se afiguram de molde a prejudicar a delimitação objectiva do caso julgado, sendo que tais deficiências são ainda susceptíveis de aperfeiçoamento.
         Não obstante isso, não acabam aqui as dificuldades decorrentes do pouco cuidado dos A.A. na configuração do litígio e na elaboração da petição inicial.
Com efeito, estando em causa a constituição, por via da usucapião, da propriedade horizontal sobre uma fracção autónoma, ainda que formalmente integrada nas partes comuns do prédio, com vista ao reconhecimento do direito de propriedade invocado terão de ser demandados necessariamente todos os condóminos e respectivos cônjuges em caso de comunhão de bens, em regime de litisconsórcio necessário, como exige o nº 3 do artigo 1437.º do CC. Acresce que só assim é que o caso julgado poderia produzir o seu efeito útil normal, nos termos do artigo 28º, nº 2, do CPC, de modo a que o 6º andar esquerdo (casa da porteira) possa ser considerado como fracção autónoma com eficácia em relação a todos os condóminos.
         Sucede que os A.A. apenas demandaram os condóminos de 5 fracções autónomas (do rés-do-chão/Fracção A, do 1º esquerdo/fracção B, do 1º direito/Fracção C, do 3º esquerdo/Fracção F e do 5º direito/Fracção L).
         Além disso, verifica-se que não foi requerida a intervenção dos herdeiros do falecido marido da 2ª R. nem do cônjuge do 1º R. L…, sendo que este, conforme doc. de fls. 518/519, é casado em em comunhão geral de bens, com W…, não estando sequer bem esclarecido em que qualidade fora este último demandado - se pessoalmente, se na qualidade de gerente da B….
         Nem procede o argumento dos apelantes no sentido de que a presente acção apenas visaria uma rectificação do título de constituição da propriedade horizontal ou o suprimento do consentimento de determinados condóminos.
         Com efeito, na própria versão dos A.A., o título da propriedade horizontal foi elaborado de acordo com as características físicas e técnicas do prédio existentes na altura, razão pela qual MA… teve necessidade depois de obter o licenciamento para alterar a casa da porteira de forma a poder transformá-la em fracção autónoma destinada a habitação. Quanto ao pretenso suprimento do consentimento de alguns condóminos, o certo é que esse consentimento é livre e só será válido quando outorgado pela forma legalmente prescrita na lei.
         De resto, não obstante tais considerações argumentativas dos A.A., o certo é que não vem formulado qualquer pedido de rectificação do título de propriedade horizontal nem de suprimento do consentimento dos R.R.. O que vem pedido é simplesmente o reconhecimento do direito da propriedade do 6º andar como fracção autónoma, incluindo a área de estacionamento que lhe estará agregada, com fundamento na transformação superveniente daquele andar e no modo de utilização que lhe vem sendo dado, há mais de 15 anos, por MA… e seus herdeiros. Tais fundamentos reconduzem-se ao quadro normativo de uma aquisição originária da propriedade horizontal sobre o referido andar fundada na usucapião, como ficou acima exposto.       
         Assim sendo, verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário, vício que, no entanto, ainda pode ser suprido pelos A.A. a convite do tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 265º, nº 2, parte final, do CPC. De igual modo, se coloca a questão de eventual suprimento da intervenção dos herdeiros do falecido marido da 2ª R. e do cônjuge do 1º R. L…
         Tal convite deverá ter lugar juntamente com o convite aos A.A. para o aperfeiçoamento dos articulados acima indicado.

5. Conclusão

À guisa de remate final, dir-se-á que a solução de suprimento encontrada não será porventura a mais ortodoxa, mas é a que, tudo ponderado, se afigura ainda mais equilibrada numa estreita linha de aproveitamento do processo com vista a uma solução material do litígio, pese embora o melindre dos suprimentos a colmatar. E aqui não pode deixar de se referir que, perante uma acção desta natureza, se impunha e impõe aos A.A. um maior cuidado e diligência na configuração do litígio, sendo, por exemplo, indesculpáveis algumas confusões técnicas e conceituais em que incorreram, como vimos, e algum aligeiramento na decantação dos factos pertinentes, o que só contribui para retardar a marcha do processo e comprometer a justa composição da causa. Espera-se assim que doravante haja mais zelo no tratamento das questões.             

Posto isto, embora não ocorrendo vícios que determinem, por ora, a absolvição dos R.R. do pedido, a petição inicial ainda padece de deficiências graves que importa sanar, tais como:
a) – em desenvolvimento do enunciado na parte final do art. 3º da petição inicial, a especificação das características físicas e técnicas introduzidas por MA… no 6º andar esquerdo com vista a transformá-lo em fracção autónoma destinada à sua habitação, em conformidade com os elementos que constem do respectivo processo de licenciamento municipal, incluindo a data em que foram realizadas as referidas obras;     
b) – em desenvolvimento do alegado no artigos 18º da petição inicial e no artigo 42º da réplica, a especificação, tanto quanto possível, do tempo e do modo como MA…  veio utilizando o referido andar, clarificando ainda a data de início dessa utilização; 
c) – a completa identificação de todos os condóminos do prédio em que se situa o andar em causa e dos respectivos cônjuges, quando casados sob o regime de comunhão de bens, geral ou de adquiridos, e a necessária promoção, por parte dos A.A., da intervenção dos condóminos e dos cônjuges que ainda não foram demandados, bem como dos herdeiros do falecido marido da 2ª R.. 
            
IV – Decisão
        
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em dar provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido e determinando o prosseguimento dos autos, desde logo, com o prévio convite dos A.A. a:
   a) - concretizarem os factos alegados pertinentes para o êxito da acção, nos termos considerados nas alíneas a) e b) do ponto 5;
b) - a suscitarem a intervenção dos restantes condóminos e dos respectivos cônjuges, se for caso disso, incluindo dos herdeiros do falecido marido da 2ª R., com vista ao suprimento da preterição do litisconsórcio necessário;
c) – tudo isso sem prejuízo de outros pontos a suprir que a 1ª instância tiver por convenientes e que porventura não foram vislumbrados no âmbito do presente recurso. 
         Custas pelas recorridas contestantes que suscitaram a questão ineptidão da petição inicial (2ª e 5ª R.R.).

Lisboa, 1 de Junho de 2010

Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho
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[1] As disposições do CPC citadas, no presente acórdão, sem outra menção especial, referem-se à versão anterior às alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] O pedido comporta duas vertentes: a) - uma vertente substantiva, integrada pela afirmação do efeito jurídico pretendido e descrição do respectivo objecto material; b) - uma vertente processual ou adjectiva consistente na espécie de actividade processual (seja ela declarativa de mero reconhecimento, de condenação ou constitutiva; seja executiva) através da qual se pretende que aquele efeito seja actuado e que mais não é do que a modalidade de prestação judiciária requerida. 
[3] Sobre a noção do pedido como efeito prático-jurídico, vide, Anselmo de Castro, Direito Processual Declaratório, Vol. 1º, Almedina, Coimbra, 1981, pag. 203; quanto ao suprimento pelo tribunal dos meros erros de qualificação jurídica, vide Antunes Varela, Anotação ao acórdão do STJ, de 13-1984, RLJ Ano 122º, pags. 233-256 (255); e entre outros, os acórdãos do STJ, de 17/6/92, BMJ nº 418, pags. 710 e segs, e de 8-2-94, CJ dos Acs. do STJ, Ano II, Tomo 1º, oags. 95 e segs.; 
[4] A este propósito, vide, entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa, de 12-4-1984, in CJ Ano IX, Tomo 2º, pags. 129/130.
[5] Sobre a constituição da propriedade horizontal por usucapião, vide, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1987, pags. 403-404, Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, pag. 313, Moitinho de Almeida, Propriedade Hori-zontal, Almedina, 3ª Edição, pag. 59, Aragão Seia, Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios, Almedina 2001, pag. 34 e 42-43.   
[6] Sobre este requisito, vide ac. do STJ, de 21-2-2002, relatado pelo Exmº Juiz Cons. Quirino Soares, no âmbito do processo 02B3348, publicado na internete http://www.dgsi.pt/jstj.
[7] Vide ac. do STJ, de 10/11/1983, in RLJ Ano 121º, pags. 90 e segs. com anotação de Antunes Varela, pags. 121 e 122 (nota 3).
[8] Nesse sentido, vide ac. do STJ, de 25/2/1987, BMJ 364, pag. 859 (855).
[9] Vide, a este propósito, Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, in RLJ Ano 124º, pags. 259 a 261.
[10] Sobre este ponto, vide Orlando de Carvalho, estudo e local citados pag. 335-336; Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1966-1967, pag. 96-97. 
[11] Vide Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, in RLJ Ano 124º, pags. 259.
[12] Neste sentido, vide ac. do STJ, de 12-11-2009, relatado pelo Exmº Juiz Cons. Álvaro Rodrigues, no âmbito do processo 1521/05.4TBCBR.C1:S!, publicado na Internet http://www.dgsi.pt/jstj.nsf
[13] De algum modo, nesse sentido, vide anotação de Henrique Mesquita ao ac. do STJ, de 29-4-1992, in RLJ Ano 125º, pag. 1258-159.