Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
570/21.0GBMFR.L1-5
Relator: MANUEL JOSÉ RAMOS DA FONSECA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS TÍPICOS
VÍCIOS DO ARTIGO 410.º
N.º 2
DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
MODO DE SUPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - O tipo objetivo do crime de violência doméstica inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual, bem como privações da liberdade, a que acresce, desde 17de agosto de 2021 (Lei 57/2021, de 16 de agosto), a conduta de impedimento de acesso ou fruição pela vítima aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns, quando estas condutas não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal (relação de subsidiariedade expressa).
II - Já quanto ao elemento subjetivo do tipo este só é passível de ser preenchido por qualquer uma das modalidades do dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal, tratando-se, por isso, de um crime doloso, traduzido no conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica e no conhecimento e vontade da conduta e/ou do resultado em que tal “conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é aqui fundamental para a conformação do dolo do agente (…)”.
III - A ausência de quaisquer factos provados sobre as condições pessoais do agente ou dos seus antecedentes criminais, ainda que o mesmo seja absolvido (absolvição que pode sere revertida em recurso) consubstancia o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que determina o reenvio do processo para novo julgamento quanto a tais factos.
IV – Quando no n.º 1 do artigo 426.° do Código de Processo Penal se diz que o reenvio não é determinado quando “for possível decidir da causa” estão tão só a ser salvaguardados os casos em que o vício incide sobre factos irrelevantes para determinar o sentido da decisão e não, como comumente parecia ser caso para se  ler, que é sempre que isso for possível, mesmo contrariando o artigo 431.°do Código de Processo Penal e havendo recurso a outros meios de prova.
V – Quando no artigo 431.°, alínea a) do Código de Processo Penal se diz que a decisão pode ser alterada quando do processo constarem todos os elementos de prova, esta referencia é somente à prova documental, pré-constituída, que também pode ser analisada e apreciada pelo Tribunal de 2.a instância, sem recurso a outra prova, v.g. antecedentes criminais ínsitos no CRC temporalmente válido ou de certidões de condenações transitadas em julgado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
1. Decisão recorrida
No âmbito destes autos, mediante Sentença datada e depositada a 30maio2023 (ref.s 144512812 e 144663611), foi o Arguido HF.
absolvido da imputada
a) autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, p. p. pelo art.º 152.º/1b); c)/2CP.
2. Recurso
Inconformado com a referida Sentença, da mesma e junto do Tribunal a quo interpôs recurso o Ministério Público (entrado a 4julho2023 - ref. 23692531) motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões que se transcrevem (SIC, com exceção do itálico):
i) Conclusões
“1– O Tribunal a quo efectuou uma correcta análise da prova produzida, de acordo com as regras da experiência comum, num processo lógico e racional que teve em consideração as particularidades do ilícito de violência doméstica de que veio acusado o arguido, não se impugnando os factos dados como provados.
2- Considerando a análise correcta da prova produzida e os factos dados como provados, não se compreende como o Tribunal a quo fez uma interpretação dos mesmos e uma não subsunção ao tipo legal de violência doméstica tão contraditória e aberrante.
3- O crime de violência doméstica é um crime contra as pessoas, onde o bem jurídico protegido em primeira linha é a dignidade da pessoa humana. Lateralmente protege também a saúde da pessoa individual, abrangendo tanto a saúde física, como a psíquica e a mental.
4- A nível do tipo objectivo, este crime abrange diversas condutas, desde os maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, que consubstanciam outros tipos criminais, nomeadamente ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação, coacção, sequestro, devassa da vida privada e perseguição.
5- O que distingue o crime de violência doméstica dos restantes tipos que o compõem é a especial relação que existe entre o agente e o sujeito passivo da conduta. A relação familiar e/ou afectiva existente entre a vítima e o agressor implica um maior desvalor da conduta delinquente, o que justifica uma punição mais grave daquela conduta.
6- Isto é, como se referiu as condutas abrangidas pelo crime de violência doméstica já consubstanciam tipos penais, mas a ilicitude dessas condutas é agravada, porquanto a prática das mesmas no âmbito de relações familiares e/ou afectivas, implica uma violação dos especiais deveres de respeito, solidariedade e de assistência que a relação entre a vítima e o agressor impunha.
7- Ademais, o que caracteriza o crime de violência doméstica é o estado de agressão permanente que existe entre vítima e o agressor, onde este exerce um poder - proporcionado pela relação existente ou pré-existente - sobre a vítima.
8- É pacifico na doutrina e jurisprudência que no conceito de maus tratos incluem-se as chamadas “micro agressões continuadas”, constituindo estas actos de violência psíquica (por exemplo, o partir de objectos em casa, um fechar da porta com força, o silêncio prolongado do agressor mesmo quando interpelado para falar, o negar de ocorrências anteriores, o chamado gaslighting) que são de baixa intensidade, mas que quando analisados globalmente são passíveis de provocar na vítima graves transtornos emocionais e psíquicos.
9- Mais do que maus tratos físicos ou psíquicos, mais do que feridas físicas, em primeira linha, o crime de violência doméstica lesa a dignidade da pessoa humana, dado que leva a um estado em que a vitima se sente menos do que as outras pessoas, com uma gradual diminuição da sua autoestima e um aumento do sentimento de insegurança, que a afecta psicologicamente e emocionalmente no dia a dia.
10- Inclusivamente, a vítima vê-se “sem saída”, não sabendo como procurar ajuda, por receio da sua experiência não ser levada a sério e com sentimentos de culpa pelo sucedido.
11- Não se compreende como é feita pelo Tribunal a quo uma cisão dos factos, esmiuçando e esfarelando os mesmos a componentes isolados e sem relação, quando a génese da punição do crime de violência doméstica está precisamente na maior gravidade dos comportamentos, quando praticados no seio de relações humanas de proximidade física e emocional (in casu¸ relação amorosa com convivência análoga à dos cônjuges da qual resultou o nascimento de dois filhos) e nas consequências gravosas que advêm desse estado de agressão permanente.
12- Inclusivamente, o Tribunal a quo, “admite” nos factos dados como provados que a vítima se sentia num estado constante de ansiedade e tristeza e que nos episódios dados como provados, a mesma sentiu medo do que o arguido lhe podia fazer, designadamente, que o mesmo atentasse contra a sua integridade física (factos 24. e 25.)
13- Como se pode afirmar que a vítima sentiu receio pela sua integridade física e vivia permanentemente num estado de ansiedade e tristeza devido ao comportamento do arguido, para negar tais factos e concluir que os mesmos não afectaram a sua dignidade humana de forma a qualificar o ilícito como violência doméstica, mas apenas como injúria?
14- Como pode o Tribunal efectuar o enquadramento jurídico de factos, quando desvaloriza esses mesmos factos, como se eles não tivessem sido dados como provados?
15- Inclusivamente, quanto à ameaça proferida relativamente aos militares da GNR, acaba também por desvalorizar tal comportamento do arguido, mais uma vez, esquecendo que nas circunstâncias em que a ameaça foi proferida o foi com objectivo de limitar a liberdade da ofendida, pondo-a num estado de receio e desespero, de tal forma que nem os militares da GNR a poderiam ajudar. O que efectivamente veio a suceder, pois a ofendida ficou com receio do que lhe podia acontecer, sem “esperança” de ajuda exterior.
16- Não podemos de forma alguma esquecer que o crime de violência doméstica abarca comportamentos que consubstanciam outros tipos legais, mas também comportamentos que isoladamente podem não ser considerados ilícitos criminais, mas que colocam em causa a dignidade humana da vítima, pondo-a numa situação de desespero emocional e psicológico, que afecta a sua liberdade e saúde psíquica como ser humano pleno.
17- Daí que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, todos os comportamentos dados como provados devem ser analisados na sua globalidade, pois só assim são passíveis de compreensão quanto à gravidade e consequências na dignidade humana da vítima. Há que ter uma imagem global e não cindida dos factos.
18- Veja-se que, para além da relação entre o arguido e a ofendida e os episódios de violência verbal e pressão psicológica dados como provados, até o elemento subjectivo próprio do tipo de violência doméstica foi considerado provado na sentença – factos 26. e 27. 
19- Entende-se que o arguido cometeu um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 2, do Código Penal pelo que deverá ser condenado, dado que não existem dúvidas que, considerando os elementos constitutivos desse tipo de crime, de que os factos dados como provados são subsumíveis ao mesmo.

Por todo o exposto, entendemos dever ser dado provimento ao recurso e, consequentemente, alterar-se a decisão recorrida, devendo o arguido ser condenado numa pena justa, adequada e proporcional às necessidades de prevenção sentidas, com o que V. Exas. farão a costumada Justiça!”  
3. Resposta ao recurso
Regularmente admitido o recurso (a 19julho2023 - ref. 145405008) e de tal notificado o Arguido, este quedou-se inerte, não respondendo.
4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual, com concreta e circunstanciada explanação, acompanhando a posição exarada pelo Ministério Público na primeira instância, emitiu parecer (a 3outubro2023 - ref. 20554426) pugnando pela procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, aqui igualmente inexistindo resposta do Arguido.
Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II –FUNDAMENTAÇÃO
1. Apreciação do recurso
A) Sentença recorrida
Dada a sua relevância para o enquadramento e melhor compreensão do infra a decidir em termos de delimitação do objeto de recurso, urge, desde já, aqui verter quer a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada, as razões para tal e ainda, por fim, o enquadramento jurídico que efetua na fundamentação de direito.
a. Factos provados
1. “O arguido HF e a vítima VA iniciaram uma relação de namoro em Março de 2017. 
2. Desde o início do relacionamento que o Arguido e VA passaram a viver juntos em comunhão de leito, mesa e habitação, como se casados fossem. 
3. Em Março de 2018, em data não concretamente apurada, o Arguido e VA vieram viver para Portugal. 
4. Desde que chegaram a Portugal e até 2020, o Arguido e VA viveram na casa de ES, tia do Arguido, sita no ………, na Venda do Pinheiro. 
5. Em 2020, em data não concretamente apurada, o Arguido e VA foram viver para a actual residência, arrendada por ela, sita no………, na Malveira. 
6. O Arguido e VA tiveram dois filhos em comum, que sempre viveram com o casal: 
7. MF, nascida a ……2018;  
8. PF, nascido a ……2020. 
9. Desde que chegou a Portugal, em 2018, que o Arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso e consome produtos estupefacientes. 
10. Desde 2018, por várias vezes, com uma frequência quase diária, o Arguido chegava a casa alcoolizado ou sob efeito de produtos estupefacientes. 
11. Nessas ocasiões, VA alertava-o para o estado em que ele se encontrava, e Arguido e ofendida discutiam.
12. Em data não concretamente apurada, mas entre Junho e Julho de 2021, o Arguido chegou a casa, cerca da meia-noite, foi ao quarto ter com VA e pretendia ter relações sexuais com ela, o que ela recusou. 
13. Perante a recusa dela, o Arguido saiu do quarto, 
14. E VA foi, de imediato, trancar a porta do quarto, com receio do que o Arguido pudesse fazer. 
15. O Arguido ao se aperceber, começou a bater na porta e a desferir murros e pontapés na porta, ao mesmo tempo que gritava “abre a porta”. 
16. O Arguido, com o seu comportamento, acabou por partir a porta do quarto na zona superior e, logo de seguida, saiu de casa.
17. No dia 30 de Setembro de 2021, o Arguido saiu de casa e só regressou na tarde de 01 de Outubro de 2021, bastante embriagado. 
18. Após a chegada do Arguido, no quarto do casal e na presença da filha, VA disse ao Arguido que não iria sair com ele, apesar de ser o aniversário dele, devido ao estado em que ele se encontrava. 
19. O Arguido ficou bastante alterado e iniciou-se uma discussão entre os dois. 
20. Sem que se saiba quem iniciou as ofensas e por que ordem foram ditas, o Arguido disse-lhe aos gritos e em tom sério “você vai sair com outro, sua vagabunda, puta!”, “gorda” e “feia” e a ofendida apelidou-o de “corno”.
21. De imediato, VA enviou mensagens telefónicas a um amigo a pedir ajuda.
22. Minutos depois, VA recebeu um telefonema da GNR da Malveira a confirmar a sua morada, e ela disse ao Arguido que a GNR estava a caminho da cada deles. 
23. O Arguido muniu-se de uma faca de cozinha e sentou-se numa mesa junto à entrada da porta do quarto e disse em tom sério e intimidatório, enquanto manuseava a faca “eles podem vir que eu morro e levo um!”.
24. Com a prática das condutas descritas, deu causa o Arguido, de modo directo e necessário, a que VA se sentisse num constante estado de ansiedade e tristeza.
25. Deu igualmente causa a que a ofendida, nos dois episódios referidos, sentisse medo, receando pelas atitudes que o Arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que ofendesse a sua integridade física, a humilhasse ou a intimidasse.
26. Ao actuar da forma descrita para com a ofendida, sabendo que ela era sua companheira e mãe dos seus filhos, o Arguido agiu com o propósito de molestar saúde psíquica da mesma, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu, ao actuar da forma acima descrita, na casa da vítima, bem sabendo que tinha para com ela um especial dever de respeito e de a tratar com dignidade.
27. O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”
b. Factos não provados
“Não se provou, qualquer outro facto relevante para a decisão, relegando-se do mesmo modo para a matéria não provada meros juízos conclusivos, nomeadamente, que:
a. Nos termos referidos em 11. o Arguido começava a dizer-lhe: “puta!”, “vagabunda!”, “gorda!”, “feia!” e “você tem outro”;
b. O Arguido exigiu ter relações sexuais, nos termos referidos em 12;
c. Nos termos referidos em 21. o Arguido disse-lhe várias vezes “se você chamar a GNR eu te mato!”;
d. Após o referido em 22., o Arguido levantou-se da cama do casal, onde estava deitado, e dirigiu-se à cozinha;
e. Nos termos referidos em 23. o Arguido disse “posso ir preso, mas primeiro vou-te matar!”;
f. O Arguido agiu com o propósito de molestar saúde física da ofendida e de afectar a sua liberdade de decisão;
g. A ofendida viveu constantemente no estado referido em 25., com medo igualmente que o Arguido a matasse.”
c. Motivação
“O Tribunal formou a sua convicção com base na ponderação da prova produzida à luz das regras de experiência comum, designadamente:
a) No que respeita à factualidade constante do libelo acusatório o Tribunal formou a sua convicção com base, no essencial, no depoimento de VA, ofendida, bem como nas declarações do próprio Arguido.
Começando por sanear a materialidade objecto de apreciação importa referir que a ofendida referiu, repetidamente, que o Arguido apenas a ofendeu e injuriou no episódio do seu aniversário, ao contrário do referido na acusação, o que é igualmente afirmado pelo Arguido. 
Nesta discussão, o Arguido assume que chamou nomes à ofendida, nomeadamente, “gorda” e “feia”, afirmando, todavia, que aquela também o apelidou de “corno”. A ofendida confirma a discussão, bem como ter apelidado de “corno” o Arguido, referindo que este a chamou de “gorda”, “puta” e “vagabunda”, mais referindo que tinha outros homens e referindo que o Arguido pegou numa faca, quando soube que a GNR tinha sido chamada, dizendo expressões próximas de “posso ir preso, não me importo”. O Arguido confirma que agarrou na faca, mas apenas para cortar limão, negando qualquer atitude intimidatória, dirigida à ofendida ou aos militares da GNR.
Todavia, visto o vídeo gravado pela ofendida e constante dos autos, é possível ver que o Arguido pega na faca precisamente numa postura intimidatória – e não para cortar limão – embora se refira aos militares da GNR, dizendo “pa polícia que vier”, “eu morro, mas eu mato”. 
No mais, ambos confirmam o relacionamento nos termos julgados provados de 1. a 8., confirmando igualmente o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e o Arguido assumindo o consumo esporádico de produtos estupefacientes, confirmando igualmente ambos as discussões frequentes nos termos referidos em 9., embora sem ofensas ou injúrias, que apenas ocorreram no dia de aniversário do Arguido. 
Ambos relatam igualmente o episódio ocorrido em Junho ou Julho de 2021, nos termos referidos na acusação, embora seja referido apenas que o Arguido pretendia ter relações sexuais e que a ofendida não queria, não tendo resultado provado que o mesmo tenha exigido” de qualquer forma, expressão que neste contexto assume cariz conclusivo. 
Não foi percepcionado, em qualquer ponto do depoimento da ofendida, qualquer tentativa de exacerbação dos factos ou de prejudicar o Arguido, apesar da factualidade que àquele é imputada. Notou-se efectivamente um esforço da ofendida em relatar apenas aquilo que tinha objectivamente certeza que aconteceu e que conseguia relatar com precisão. Deu-se prevalência às suas declarações prestadas em audiência.
Assim, toda a factualidade julgada provada o foi com base no depoimento de VA, complementado com os factos assumidos pelo Arguido, sendo que nos pontos divergentes se atribuiu preferência à primeira. Levou-se em conta ainda o vídeo constante dos autos, nos termos já assinalados. ES, tia do Arguido, em casa de quem o casal viveu, relatou apenas as discussões constantes, motivadas pelo excesso de álcool consumido pelo Arguido, que a mesma confirma, negando ter ouvido injúrias ou ter assistido a agressões ou ameaças, o que vai em encontra da versão daqueles. 
Assim, os factos 1. a 27. resultam desta análise probatória, sendo as precisões à matéria de facto resultados do depoimento da própria ofendida. 
No que respeita aos factos do foro interno, como refere MICHELE TARUFFO, embora a propósito de outro ramo do direito, mas perfeitamente transponível para o caso vertente, salvo no caso das declarações provenientes do próprio “autor” do facto psíquico a única forma de determinar factos deste tipo consiste em utilizar técnicas de reconstrução directa. Esses factos, prossegue o mesmo autor, não podem ser conhecidos com os habituais meios de prova; o que se pode conhecer com esses meios de prova são os factos materiais a partir de cuja existência e modalidades pode arguir-se que um determinado sujeito tem uma determinada vontade, o conhecimento de algum facto, uma determinada atitude valorativa – Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil, in Revista do CEJ, 2005, n.º 3, p. 139, em sentido semelhante, e no específico âmbito criminal cfr. o Acórdão da Relação de Évora de 08 de Maio de 2012, relatado por ANTÓNIO JOÃO LATAS, proc. 139/09.7GAABF.E1, disponível in dgsi.pt.
Ao actuar da referida forma, sabendo que a ofendida era sua companheira e mãe dos seus filhos, o Arguido não poderia ter outra intenção que não molestar a saúde psíquica da mesma, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu, ao actuar na casa da vítima, bem sabendo que tinha para com ela um especial dever de respeito e de a tratar com dignidade. 
Não se descortinando que o Arguido padeça de qualquer incapacidade ou anomalia de compreensão das regras sociais e jurídicas em vigor, dada elevada censurabilidade do seu comportamento, mais deve ser concluído que o mesmo agiu sempre de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Face à gravidade das condutas descritas, levando-se em conta o depoimento da vítima, mais deve ser considerado que o Arguido deu causa, de modo directo e necessário, a que VA se sentisse num constante estado de ansiedade e tristeza, no essencial motivado pelas discussões devidas ao consumo excessivo de álcool, tal como deu igualmente causa a que a ofendida, nos dois episódios referidos, sentisse medo, receando pelas atitudes que o Arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que ofendesse a sua integridade física, a humilhasse ou a intimidasse.
b) Em face do sentido da decisão torna-se despicienda a pronúncia sobre as condições socioeconómicas e antecedentes criminais, como resulta dos artigos 368.º a 371.º do Código de Processo.
c) A matéria de facto não provada é resultante de precisões ou da inexistência de qualquer elemento de prova que se lhe refira, nomeadamente por não ter sido referida pela ofendida ou por qualquer outra testemunha de forma suficientemente segura e precisa ou mesmo por ter sido negado. Não se respondeu a matéria redundante, conclusiva ou anódina.”
d. Enquadramento jurídico
“Encontra-se o Arguido acusado da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, als. b) e c) e n.º 2, al. a), 4, e 5 do Código Penal.
Importa averiguar, face ao manancial fáctico apurado, se a conduta do Arguido é susceptível de integrar a prática do referido ilícito.
Dispõe o artigo 152.º, n.º 1, als. b) e c) do Código Penal sob a epígrafe de «Violência doméstica», que, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…) a progenitor de descendente comum em 1.º grau (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O n.º 2 estabelece como agravante o facto de o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, circunstância em que aquele ilícito passa a ser punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Para uma melhor compreensão do tipo legal em análise importa, antes de mais, fazer uma breve referência ao regime pretérito regime legal. 
Na anterior redacção do Código Penal, o artigo 152.º dispunha relativamente ao crime de maus tratos que, quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos ou o tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art.º 144.º do mesmo diploma.
Tendo em conta que as condutas punidas por este tipo legal, já se encontravam cobertas por outras disposições do mesmo código, foi defendido por alguns autores que a ratio da autonomização deste crime pressuponha, implicitamente, uma reiteração de condutas. Do mesmo modo, um tempo logo entre dois dos actos previstos e punidos pelo artigo, afastaria o elemento de reiteração ou habitualidade, necessário – no sentido do texto, (…), no que tange aos maus tratos físicos, mas já não quanto aos psíquicos nem ao tratamento cruel, distinguindo, contudo, o autor reiteração de continuidade criminosa, (…). 
Por sua vez, outra parte da doutrina afirmava que, a qualificação de um comportamento como mau-trato ou tratamento cruel deveria depender mais de uma certa medida de «gravidade traduzida por crueldade, insensibilidade e até vingança» da conduta, do que da reiteração dos comportamentos havidos, que poderá inclusivamente não estar presente (…).
A mesma divisão verificou-se na jurisprudência.
Sustentando a necessidade de reiteração veja-se (…)
Defendendo, por outro lado, que um único acto revestido de certa gravidade era suficiente para preencher o tipo legal vide (…).
Com a mencionada alteração legislativa, em 2007, cindiu-se o crime de «violência doméstica» do de «maus tratos», passando o primeiro a ter a seguinte redacção: quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) a cônjuge ou ex-cônjuge (…).
Como se pode ler na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X – vide Diário da Assembleia da República, II Série –A, n.º 10, de 18-10-2006 – que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, de 04.09, diploma que alterou o Código Penal: Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado contra menores ou na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente.
A expressão enigmática “de modo reiterado ou não”, aditada na reforma de 2007, apenas ganha sentido se tivermos em conta a discussão doutrinária a que se assistiu a propósito da redacção anterior do preceito.
Como refere (…), a Lei n.º 59/2007 apenas visou esclarecer que as “privações da liberdade” e as “ofensas sexuais” se incluem entre os maus tratos e que os maus tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado (…).
No que se refere ao bem jurídico (…) já defendia, em face da redacção anterior do preceito, que a ratio do tipo não está na protecção familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, sustentando que o bem jurídico aqui protegido é a saúde, como bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge – (…).
Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal.
A mesma ideia é transmitida de forma clara por (…), quando refere que o bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos – (…).
O crime em exegese é um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico e, quanto ao objecto da acção, essencialmente de resultado, com excepção das ofensas sexuais, em que é configurado como um crime de mera actividade.
É um crime específico próprio no que diz respeito a condutas não previstas em outros tipos legais e impróprio no caso contrário. Deste modo a relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima é fundamento da ilicitude no primeiro caso e mero fundamento da sua agravação no segundo – neste sentido (…).
No que diz respeito ao tipo objectivo o mesmo preenche-se pela prática de maus tratos físicos psíquicos, privações da liberdade e ofensas sexuais isolada, ou reiteradamente desde que o acto ou actos revistam uma intensidade tal, ao nível do desvalor da acção e do resultado, suficiente para lesar o bem jurídico protegido, mediante ofensa da saúde física psíquica e mental de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Relativamente aos elementos do tipo subjectivo, trata-se de um crime punível apenas a título de dolo, tal como resulta do disposto no artigo 13.º do Código Penal.
Revertendo ao caso dos autos, da análise de todo o substrato fáctico conclui-se que nenhum dos referidos actos, isoladamente, tem um potencial ofensivo suficiente para ser considerado maus tratos ou, por outras palavras, que tais actos não são de tal modo graves que se afigurem como ofensivos da dignidade da pessoa humana.
Embora sejam ofensivos da integridade moral e revistam já uma certa gravidade, não se deve olvidar que, precisamente por esse factor, tais acções são relevadas penalmente nos tipos legais de injúria e ameaça.
Como se pode ler no Acórdão (…), neste tipo legal de crime, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos” (…).
De facto, não se considera que tais comportamentos tenham extravasado os respectivos tipos legais, de molde a atingir a dignidade humana da vítima, passando a ser susceptíveis de qualificação como violência doméstica.
Como teve a oportunidade de esclarecer (…), não se pretendeu transformar qualquer ofensa ou ameaça – crimes de natureza semi-pública – em crimes de maus-tratos com moldura penal reforçada e natureza pública, apenas pelo facto de ocorrerem no âmbito de uma relação afectiva.
Restaria, ainda, a hipótese de os comportamentos no seu conjunto poderem preencher o referido tipo. Contudo tão pouco tal se verifica, uma vez que não se constata um estado de agressão permanente.
Como refere (…), recorrendo a doutrina e jurisprudência espanholas, a propósito da noção de reiteração, o critério seguro de interpretação há-de assentar num conceito fáctico e criminológico de reiteração por parte do sujeito activo, que dê lugar a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham que ser constantes (…), embora com uma proximidade temporal relativa entre si (…).
É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante – (…).
Destarte, e considerando que, para o crime de violência doméstica é atípica uma conduta maltratante, desde que os maus-tratos não sejam reiterados nem intensos, de modo a afectar a dignidade da pessoa humana, resta concluir que o comportamento do Arguido não preenche o tipo objectivo – (…).
É certo que o crime de violência doméstica é, não só, mas também, um crime específico impróprio, contendo uma pluralidade de tipos legais, nomeadamente de injúria, pelo que poderia ser de ponderar a subsunção da conduta a algum dos referidos ilícitos.
De facto, no que respeita aos epítetos que o Arguido dirigiu à ofendida, o comportamento do Arguido julgado provado poderia, nos termos já referidos, apesar do decidido quanto ao crime de violência doméstica, subsumir-se à prática de crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181.º do Código Penal.
Todavia o crime de injúria é um crime particular: a vítima tem de apresentar queixa; constituir-se assistente e deduzir acusação – artigo 50.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
A acção penal tem de ser exercida pela entidade para tal legitimada e na forma prescrita pela lei.
Na verdade, também a acusação particular é, nos crimes particulares, e como já referimos, um pressuposto positivo da punição, não podendo, de modo algum, o procedimento criminal prosseguir para a fase de julgamento sem a mesma ser deduzida.
(…)
Destarte, carece o Ministério Publico de legitimidade para promover o procedimento criminal – cfr. artigos 48.º e 50.º, n.º 1 do Código de Processo Penal – o que impede que seja tomada uma decisão de mérito sobre a situação fáctica em análise. Por inexistência de acusação particular, no que a este tipo legal diz respeito, encontra-se vedado o conhecimento da presente matéria atomisticamente considerada. 
Conforme dispõe o Acórdão (…), nestes casos, o tribunal deve abster-se de se pronunciar sobre o mérito do crime de injúria, por falta de acusação particular, apesar da respectiva factualidade estar integrada na acusação pública de maus tratos e constar dos factos provados (…).
No que respeita expressão, “eles podem vir que eu morro e levo um!”, a mesma poderia ser reconduzida ao crime de ameaça, todavia, é dirigida aos militares da GNR e não a VA. Aqueles são, simultaneamente, os destinatários da ameaça e os objectos do crime ameaçado. Ainda que assim não se entendesse, a verdade é que em relação a VA os militares não estão numa relação de proximidade existencial, não sendo susceptível de “provocar medo ou inquietação” ao ponto de “prejudicar a sua liberdade de determinação” – sobre estes conceitos (…).
Assim, quanto aos militares, a ameaça é duplamente agravada, por ser ameaça de crime contra a vida e por se contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas (artigo 155.º, n.º 1, als. a) c) do Código Penal).
Todavia, uma vez que a ameaça nunca chegou ao conhecimento dos destinatários, há apenas uma tentativa não punível, visto que a pena de prisão prevista não é superior a 3 a três anos de prisão e não existe qualquer disposição que a puna (artigo 23.º, n.º 1 do Código Penal).
Em consequência, deve simplesmente o Arguido ser absolvido do crime de violência doméstica de que vinha acusado.” 
2. Objeto do recurso
O poder de cognição do Tribunal ad quem mostra-se primariamente delimitado em função das conclusões extraídas individualmente pelo recorrente da sua fundamentação de motivação, já que é nelas que se sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida (art.ºs 402.º; 403.º; 412.º/1CPP).
Contudo, está ainda o Tribunal ad quem obrigado a decidir todas as questões de conhecimento ex officio, tais quais as nulidades insanáveis, ou que não se mostrem sanadas, que afetam o processado (art.ºs 379.º/2;410.º/3 CPP) e dos vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art.º 410.º/2 CPP) e que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19outubro1995, in DR I-Série-A, de 28dezembro995 e Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2005, de 20outubro2005, in DR I-Série-A, de 7janeiro2005).
Umas e outras definem, pois, o objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior.
O recurso interposto de uma Sentença abrange toda a decisão (art.º 402.º/1 CPP) e mesmo que opere limitação do recurso a uma parte da decisão tal não prejudica o dever de o Tribunal ad quem retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida (art.º 403.º/3 CPP), na certeza, igualmente, que ressalvado caso de âmbito subjetivo do recurso (fundamentação em motivos estritamente pessoais) opera extensão de aproveitamento do recurso dum Arguido aos demais em caso de comparticipação (art.º 402.º/2a) CPP).
Nos termos do disposto no art.º 428.º/1 CPP “[a]s relações conhecem de facto e de direito” “devendo por isso, subsumir o direito aos factos”. (nesta específica expressão, Pires da Graça, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 16maio2012, NUIPC 30/09.7GCCLD.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj)
Resumindo, havendo tão só recurso em matéria de facto, a Relação conhece do objeto do recurso, e se modificar a matéria de facto, extrai as consequências jurídicas decorrentes; sendo o recurso de facto e de direito, conhece de ambos; sendo o recurso somente de direito, conhece do recurso, sem prejuízo do disposto no art.º 410.º/2/3CPP; havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo Tribunal competente para conhecer da matéria de facto (art.º 414.º/8CPP).
Ou seja: a função do Tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que o convocou o Tribunal ad quem a um juízo de mérito.
O Ministério Público recorrente delimita o recurso à matéria de direito.
Vejamos se assim in casu acabará por ser.
Impõem os art.º 368.º; 369.º CPP - por remissão do art.º 424.º/2CPP -, que o Tribunal da Relação conheça das questões que constituem o delimitado objeto do recurso, por regra, pela seguinte ordem:
a) das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
b) das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação ampla, se deduzida, nos termos do art.º 412.ºCPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410.º/2CPP;
c) das questões relativas à matéria de direito.
Contudo, no presente caso não será ser esse o alinhamento metodológico e de sistematização que afinal se percorrerá.
atentas as conclusões apresentadas em sede de motivação do recurso interposto, diremos que na ótica do recorrente a questão é de direito e se subsume à qualificação jurídica dos factos dados como provados.
De facto, face ao objeto do recurso, na delimitação do Ministério Público recorrente nas suas conclusões apresentadas em sede de motivação, a questão é de direito e subsume-se à qualificação jurídica dos factos dados como provados e às consequências de tal.
Ou seja, perante os factos provados - que aceita serem aqueles que efetivamente se provaram, ainda que tal signifique que parte dos constantes da acusação se não provaram – entende o Ministério Público recorrente que ainda assim os mesmos são bastantes para que se dessem como provados os elementos típicos do imputado crime de violência doméstica e, consequentemente, se condene o Arguido.
E dai que a apreciação do objeto do recurso começará por verificar se os factos integram, tais quais provados e como defende o Ministério Público recorrente, os elementos típicos do crime pelo qual o Arguido se mostra acusado, seguindo-se na eventualidade de tal ganho de causa o retirar, se possível, das consequências jurídicas de tal, sendo que se considerar.
E é nessa eventualidade que os autos revelarão, como infra se constará, a especificidade de então se ter que conhecer de vício da Sentença.  Assim o é porquanto o objeto do presente recurso se não resume à “normal” linearidade, pois o quanto acaba por resultar da Sentença – e nisso o recurso toca, ainda que não o qualificando – é uma questão que obsta ao conhecimento do mérito da decisão, e da qual se deve conhecer oficiosamente.
Trata-se duma situação que se reporta à matéria de facto  e permite a este Tribunal ad quem a apreciação restrita da mesma  através da “revista alargada” que se consolida através da arguição dos vícios de texto descritos no art.º 410.º/2CPP, em concreto o da alínea a).
Vejamos como assim o é à luz do crime em causa e do quanto consta da Sentença.
Delimitando conceitos.
O recurso cumpre, no mínimo, as regras do art.º 412.º/2a) CPP. E daí que que se logre percecionar – como infra se circunscreverá – quais é o final, delimitado, possível e concreto objeto do recurso interposto, assim se permitindo a este Tribunal ad quem conhecer do Direito, quão mais não seja porque à luz do concreto teor da Sentença do Tribunal a quo e do quanto se colhe como objeto do recurso, qualquer convite nos limites do art.º 417.º/3CPP tão só significaria um formal e desnecessário protelar da decisão (sempre a evitar dado o tempo já decorrido e o facto de se estar perante processo que revesta específica natureza urgente) mais quando, em última linha, sempre está em causa um superior célere quadro de obtenção de trânsito em julgado duma decisão material, seja a da decisão sob recurso, seja a pugnada em sede de recurso, seja uma diferenciada, como será in casu.
Concluindo, no caso em apreço, não nos ancorando em argumentos formais e atendendo ao que ainda assim se vislumbra das conclusões da motivação do recurso, a que acrescem os deveres ex officio deste Tribunal ad quem, as questões a decidir resumem-se a:
1. qualificação jurídica dos factos, nos moldes dados como provados na Sentença de 30maio2023 (ref 144512812) - integram os mesmos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de violência doméstica, por que vinha o Arguido acusado, p. p. pelo art.º 152.º/1b); c)/2a)CP?;
2. oficiosamente, verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), do n.º 2, do art.º 410.ºCPP?
1.º Do Crime de violência doméstica
Entre o que no I.º Relatório Intercalar de Acompanhamento do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (Gabinete da Ministra para a Igualdade, Maio de 2000), se entendia por integrante de maus tratos (expressão usada na norma incriminadora) como “qualquer conduta ou omissão que inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos ou psíquicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio), a qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico ou que, não habitando, seja cônjuge ou companheiro, ex-cônjuge ou ex-companheiro, bem como ascendentes ou descendentes (…)” e o que hoje em dia a norma típica penal de violência doméstica abarca, nas referências de Plácido Conde Fernandes, (in Violência doméstica – Bem Jurídico e boas práticas, p. 30, e-book do CEJ, Abril 2021, in www.cej.pt) “[e]nquadrar a violência doméstica na realidade sócio-cultural actual, implica ainda considerar factos que podem integrar a prática de tipos-legais de crime – em concurso efectivo ou aparente – como a ofensa à integridade física, ameaça, sequestro, coacção, injúria, difamação, devassa da vida privada, violação de correspondência, gravações e fotografias ilícitas, dano, coacção sexual, violação, abuso sexual de menores, homicídio na forma tentada ou consumada.” vem-se fazendo um longo percurso.
Percurso de evolução que é a resposta às preocupações sociais que o fenómeno hodiernamente denominado de “violência doméstica” contempla, pelo que de forma paulatina o tipo penal vem sendo burilado ao nível dos seus elementos, assim como ao nível da natureza, com especial enfoque na Reforma de 1995 (DL 48/95-15março) a qual suprimiu o elemento “malvadez ou egoísmo do agente” assim como aditou aos maus tratos físicos os maus tratos psíquicos e estendeu a proteção ao convivente análogo a cônjuge.
É, porém, com a alteração legislativa introduzida pela Lei 59/2007 - 4setembro (conhecida como Reforma Penal de 2007) que no âmbito do Direito Penal Português a específica denominação, em epígrafe, de “violência doméstica” surge pela primeira vez no Código Penal, pois na redação original do Código Penal (1982) o tipo legal tinha a denominação de “maus-tratos a cônjuge” a par de “maus-tratos ou sobrecarga de menores e de incapazes”. Tal reforma autonomizou a especificidade das condutas integrantes de “violência doméstica” das outras consubstanciadoras de “maus-tratos e da violação de regras de segurança”, aditou os atos “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, dispensou expressamente o elemento típico “reiteração” assim como prescindiu da existência de um vínculo relacional entre a vítima e o agressor à data da prática dos factos, atento o teor das partes finais das previsões ínsitas.
Já em 2013, com a Lei 19/2013 - 21fevereiro, clarificou-se a extensão da proteção à relação de namoro, sendo que em 2018, através da Lei 44/2018 - 9agosto, se acrescentou o agravante da difusão de dados pessoais da vítima através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada. Por último, em 2021 e pela via da Lei 57/2021 - 16agosto, aditaram-se os atos de “impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns” e acrescentaram-se ao círculo das vítimas “menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite”.
Considerada esta específica evolução dir-se-á que se até à Lei 59/2007 - 4setembro, era discutível se para a verificação do ilícito penal em causa era exigido, ou não, um atuar reiterado pelo agente (como repetição sucessiva de condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que através de atuações dispares e no sentido de que a execução  tem-se por reiterada quando cada ato de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime, a cada parcela de execução se segue um evento parcial, mas em que, porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário e a soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único), ou se tão só bastava um único ato isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que de per si fosse adequado a atingir a dignidade da vítima, isoladamente, certo é que com esta Reforma Penal de 2007 tal dúvida se sanou expressamente, pois como resulta da exposição de motivos da proposta de Lei n.º 98/X “na descrição típica da violência doméstica e dos maus-tratos recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa”. Redação esta que veio consagrar em letra de lei, a prática jurisprudencial e o entendimento doutrinal verificados que consideravam violência doméstica quer comportamentos perpetuados e reiterados, quer agressões únicas que denotassem uma especial perversidade do agente do crime (neste sentido, Augusto Silva Dias in Materiais para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal - Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição AAFDL, 2007, p 111, e Maria Manuela Valadão e Silveira, in (des)Equilíbrios Familiares, Quarteto 2000, p. 296). Tais alterações visam, e visaram, colmatar as várias lacunas verificadas pelo sistema judiciário ante aquele “(…) fenómeno infelizmente ubíquo e comum, que afecta vítimas de muitos e diferentes tipos (…)”(na expressa aceção de Teresa Pizarro Beleza, in Violência doméstica, e-book do CEJ, Abril 2021, in www.cej.pt).
A hodierna redação do art.º 152.º CP diz-nos que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos”, pelo que é inequívoco que o tipo legal de crime de violência doméstica inclui comportamentos que de forma reiterada ou não lesam a dignidade humana das pessoas elencadas nas várias alíneas do n.º 1.
E dai que, como refere Taipa de Carvalho (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Ed., 2012, p. 519 e 520, § 11, parte final) “(…) após a Revisão Penal de 2007, não se exige sempre (…), para haver o crime de violência doméstica, a reiteração; mas tal não significa que, tratando-se de infracções de pouca gravidade, baste uma única infracção para a sua qualificação como crime de violência doméstica ou de maus tratos; nesta segunda situação continua a ser exigível a reiteração.”
É dizer, aceita-se que o atual tipo legal do crime de violência doméstica tanto consente uma reiteração de condutas (que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos à vítima), como uma só intensa conduta (que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar), importando consequentemente situar o momento da consumação do crime, por referência ao primeiro tipo de situações (realização repetida de atos ilícitos parciais), pois na situação de se tratar de um crime único, embora de execução reiterada (o apodado de crime habitual, i.e., cuja prática reiterada pelo agente é elemento constitutivo do tipo), a consumação do crime de violência doméstica ocorre com a prática do último dos atos da conduta permanente ou duradoura.
Dispõe o art.º 152.º CP, na parte relevante para estes autos:
1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
(…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2. No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
(…)
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
4. Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5. A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
Como se verifica da leitura do tipo incriminador em análise, o legislador no n.º 1 previu o comportamento tipo base, qualificando-o, depois, consoante a verificação das circunstâncias expressamente previstas no n.º 2, o que subsequentemente terá reflexos em sede de moldura da pena abstrata, que aqui passa dum mínimo de 1 (um) para 2 (dois), mantendo-se a máxima em 5 (cinco) anos.
Atualmente, quanto à questão da delimitação dos comportamentos integrantes  do tipo objetivo base do ilícito dir-se-á que aqui se inclui um elenco exemplificativo em que se preveem comportamentos que se traduzam em violência ou agressões físicas, psicológicas, verbais ou sexuais que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal, face à cláusula de subsidiariedade prevista na parte final desse mesmo n.º 1.
Já no n.º 2 o legislador prescreveu uma tutela acrescida “(…) por imperativo ético e em congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional, na protecção da infância, da inviolabilidade do domicílio e da vida privada, num contexto em que é no domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas (…)”. (neste sentido, cfr. Plácido Conde Fernandes in obr. cit, p. 38)
Com a criminalização do comportamento ínsito à norma legal supra transcrita o legislador pretendeu proteger a pessoa individual e a inerente dignidade humana que lhe está associada, sendo o bem jurídico tutelado, doutrinal e jurisprudencialmente, reconhecido como sendo suficientemente amplo, operativo e multimodo e, como tal no mínimo complexo, abrangendo, para uns, quer a saúde, física e psíquica e mental, quer a integridade pessoal da vítima para outros (neste sentido, José Francisco Moreira das Neves in Violência doméstica – Bem jurídico e boas práticas, p. 95, e-book do CEJ, Abril 2021, in www.cej.pt) e até o enfoque da mesma no desenvolvimento de personalidade inerente.
Seguindo aqui o raciocínio de Taipa de Carvalho (in obr. cit., p. 511 e 512), o bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica não está na proteção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim reside na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana, aí se incluindo todos os comportamentos que a lesem. A ratio de proteção deste tipo penal vai muito além dos maus-tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, não prestação de cuidados higiénicos ou medicamentosos, estratégias e condutas de controlo, abuso verbal e emocional que perturbe a “normal convivência”, etc.) pelo que consequentemente faz apelo ao bem jurídico saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange as vertentes de saúde física, psíquica e mental e que pode ser afetado por uma miríade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade “da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido relação análoga às dos cônjuges, ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem (…)”. (neste sentido, Isabel Pais Martins, acórdão do TRPorto, de 5novembro2003, no processo 0342343, acessível in www.dgsi.pt/jtrp e Simas Santos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6abril2006, processo 06P1167,  acessível in www.dgsi.pt/jstj, neste último onde se faz apelo às preocupações que o fenómeno teve no Conselho da Europa, que cedo o caracterizou como  “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” - Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna - 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais, BMJ 335-5).
Indo mais longe, André Lamas Leite (in A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, Revista Julgar, n.º 12, 2010, p 49 ss.) interpretando a própria leitura do bem jurídico feita por Taipa de Carvalho, onde lhe reconhece a delimitação “como função do tipo a saúde  (…), mas orientada «para o desenvolvimento harmonioso da personalidade»” diz-nos que o bem jurídico do tipo penal de violência doméstica, como “fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo (…) [como] concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art.º 25.º da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art.º 26.º, n.º 1, da Constituição), nas dimensões não recobertas pelo art.º 25.º da Lei Fundamental, ambos emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana.”
Não obstante, o enfoque do tipo legal é colocado na situação relacional existente entre agressor e vítima, i.e., visa-se a proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal (conjugal, familiar, para-familiar, de namoro, de parentesco e/ou de fraqueza, dependência e coabitação), presente ou passada, vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com as condutas do agressor. Ou seja, identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e vítima, relação que é sempre “de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude proativa, dado que em várias hipóteses do art.º 152.ºCP são divisáveis deveres legais de garante.” (André Lamas Leite in obr. cit., p 51 ss.)  Essa especial relação – atual ou passada – fundamenta a ilicitude e justifica a punição do agente.
O verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida e/ou sobre a sua honra e/ou sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação. (neste sentido, de salientar o dito por Brízida Martins, acórdão do TRCoimbra, de 7fevereiro2018 NUIPC 663/16.5PBCTB.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc, onde se diz que “A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.”; no mesmo sentido, com particular interesse para o caso dos presentes autos, Jorge Bispo, acórdão do TRGuimarães, de 4junho2018, NUIPC 121/15.5GAVFL.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg)
O tipo objetivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual, bem como privações da liberdade, a que acresce, desde 17agosto2021 (Lei 57/2021-16agosto), a conduta de impedimento de acesso ou fruição pela vítima aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns, salientando-se que estas condutas são puníveis como violência doméstica quando não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal (relação de subsidiariedade expressa).
Por seu turno, os maus tratos podem até não configurar, em si mesmos, outros crimes, mas condutas plúrimas podem vir a constituir o conceito (pense-se nos casos de “micro violência continuada”, nas palavras da peça de recurso “micro agressões continuadas”, em que a opressão é exercida através de repetidos atos de violência psíquica que, apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima, afetando-a na sua esfera emocional e psíquica, quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação; pense-se também nos casos de “empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelo” ou, no exemplo da peça de recurso, no “partir de objetos em casa, um fechar da porta com força, o silêncio prolongado do agressor mesmo quando interpelado para falar, o negar de ocorrências anteriores, o chamado gaslighting”, agressões estas que entram na esfera dos maus tratos físicos e que podem ser excluídos das ofensas à integridade física).
Noutra vertente  (o quanto será particularmente importante para o caso em apreço), como refere Nuno Brandão (in A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar, n.º 12, 2010, p. 19), a circunstância de uma certa ação poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respetiva situação ambiente e da imagem global do facto. Quer dizer, podem distinguir-se na violência doméstica comportamentos que não assumem relevância típica à luz de outros tipos de crime e comportamentos que podem logo assumi-la; há condutas que isoladamente, pela sua gravidade e intensidade, preenchem logo o crime de violência doméstica e condutas que o realizam atenta a frequência e a reiteração, tudo dependendo dos específicos contornos do caso. E daí que o critério essencial para aferir se há preenchimento da subsunção do tipo legal de crime de violência doméstica resida em aferir se o facto comportamental ilícito verificado excede a tutela do tipo matriz previsto no n.º 1, enquadramento que será feito pelo Tribunal ante a carência de uma tutela especifica que se evidencia em face do desvalor global que emane do comportamento ilícito típico, pelo que, como nos diz Ana Barata de Brito (acórdão do TRÉvora, de 30junho2015, NUIPC 1340/14.7TAPTM.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre) (…)“[o] crime de violência doméstica não é um tipo de crime correspondente a uma espécie de somatório de crimes contra as pessoas desde que cometidos numa relação afectiva; [o] crime de violência doméstica não é um conjunto de crimes de injúria e/ou de ofensas à integridade física, etc.; [n]ão basta uma pluralidade de crimes, apenas unificados pelo facto de terem sido cometidos no âmbito de uma relação afectiva para que, sem que algo mais se comprove, automaticamente se integrar tal conduta como maltratante e, portanto, como um único crime, mas de violência doméstica; [a]liás, significativa, é desde logo a própria moldura penal; [p]or alguma razão o legislador decidiu punir o crime de violência doméstica mais gravemente do que os restantes crimes que podem ser convocados parcelarmente; [é] que a diferença assenta, como se disse, no específico bem jurídico e na necessidade da adequação da conduta global a atingir o referido bem jurídico, revelando uma significação bem mais abrangente e mais censurável que a soma das várias condutas criminosas e, por isso, se revela como muito mais grave que a mera conjunção desses crimes “parcelares”. [no mesmo sentido, Maria Deolinda Dionísio, acórdão do TRPorto, de 2fevereiro2022, NUIPC 927/20.3KRPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp, onde se pode ler que(…) o crime de violência doméstica tutela muito mais do que a soma dos vários ilícitos típicos que o podem preencher, dirigindo-se a condutas que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de contextualizar uma situação de maus-tratos físicos e/ou psíquicos. (…)”].
Estamos, assim, perante um crime específico impróprio – atendendo a que o desvalor do comportamento é inflacionado pela verificação de uma relação (atual ou pretérita) familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima –, assim como de execução não vinculada ante a virtualidade de ações ou omissões passíveis de lhe serem enquadráveis, sendo que o fator delimitativo e integrativo da norma incriminadora em análise se verifica quando o “estado de agressão permanente (…) permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante (…). (neste sentido, cfr. Plácido Conde Fernandes in Violência doméstica – Bem Jurídico e boas práticas, e-book do CEJ, Abril 2021, in www.cej.pt)
O tipo legal de crime em análise é passível de ser cometido quer por ação, quer por omissão, atendendo aos deveres de garante que impende sobre o agente agressor ante o contexto relacional que mantém e o liga à vítima.
Já quanto ao elemento subjetivo do tipo este só é passível de ser preenchido por qualquer uma das modalidades do dolo previstas no art.º 14.º CP, tratando-se, por isso, de um crime doloso, traduzido no conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica e no conhecimento e vontade da conduta e/ou do resultado em que tal “conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é aqui fundamental para a conformação do dolo do agente (…)”. (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código Penal, 3ª edição, Universidade Católica Editora, p. 404ss.)
Dir-se-á, por último, à luz dos factos objeto dos presentes autos que a agravação do art.º 152.º/2a) CP [ao que não foi alheia a alteração legislativa levada a cabo pela Lei 57/2021 - 16agosto, no que diz respeito à compreensão do lugar do menor exposto à violência doméstica interparental e sua inserção enquanto vítima autónoma pela via do n.º 1 e)] tem como propósito, ao agravar a moldura penal caso o agente pratique o facto contra menor, salientar os nefastos danos que tal conduta causará no desenvolvimento harmonioso e feliz de qualquer criança ou jovem (com consequente intensificação do desvalor da ação e do ilícito). O legislador entendeu igualmente ser de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica ocorridos na presença de menores (sendo a vítima um terceiro, maior ou menor), por se considerar que os menores são vítimas “indiretas” dos maus tratos contra terceiros quando eles têm lugar diante dos menores.
Até à publicação da Lei 57/2021 - 16agosto, a redação do art.º 152.ºCP [em consonância com o art.º 2.º da Lei 112/2009 - 16setembro (Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas)] habilitava o entendimento limitativo que não incluía os comportamentos em que o menor não era alvo direto dos maus tratos, mas apenas como vítima indireta (nomeadamente, por exposição à violência doméstica interparental) tais comportamentos seriam puníveis no tipo legal de crime de violência doméstica. Contudo, tal conflituava com o Preâmbulo da Convenção de Istambul onde se refere que “as crianças são vítimas de violência doméstica, designadamente como testemunhas de violência na família”, conceito este mais vasto à luz da especificidade indicativa da significância do advérbio em causa com o qual se pretende particularizar algo, ou alguém, de entre uma série de elementos indiscriminados de um dado conjunto. Por seu turno, a exposição à violência conjugal pode ser encarada como uma forma de abuso psicológico, causando nas crianças perturbações muito semelhantes àquelas que foram vítimas de abuso (v.g. pense-se no impacto na estabilidade emocional da criança causado pelo acolhimento, juntamente com familiar ou familiares, em casa de abrigo).
E daí que concordando com Margarida Santos (in O lugar da criança exposta à violência interparental: dúvidas e perspetivas em torno do preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica”, In Memoriam Professor Doutor Augusto Silva Dias – In Memoriam”, 2022, Vol. I, p. 621), se entenda que embora a criança possa não ser o alvo direto da violência perpetrada no seu contexto doméstico, o facto de observar os conflitos entre os pais, duas figuras importantes de vinculação e num contexto essencial para o seu desenvolvimento, faz desta também uma vítima (e uma vítima direta) de maus tratos.
Em consequência é defensável a existência de concurso de crimes de violência doméstica: um em que é vítima o progenitor, agravado pela circunstância de os factos terem sido cometidos na presença do menor (art.º 152.º/1 a), b) e c)/2 a) CP) e outro em que a vítima é o menor / criança que presencia / vivencia os maus tratos, agravado pela circunstância de os factos terem sido praticados no domicílio comum ou no domicílio da vítima [art.º 152.º/1 d) e e)/2 a) CP] [sem que haja violação do princípio do ne bis in idem (art.º 29.º/5 CRP), pois a proibição da dupla valoração apenas ocorre quando as circunstâncias que qualificam correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude, ou da culpa, o que poderá não suceder em tal quadro, uma vez que exista autonomia e diferenciação do objeto tutelado pela norma incriminatória: a saúde de dois ofendidos distintos].
Tal revisão legal propugnada pela referida Autora, que afaste uma praxis que não equacione a possibilidade de um concurso de crimes que abranja a criança vítima, foi levada a cabo, segundo cremos e ao menos parcialmente, através da alteração do art.º 2.ºa) da Lei 112/2009 - 19setembro encetada na Lei 57/2021 - 16agosto, assim melhor se harmonizando a globalidade dos vários institutos jurídicos que tratam do fenómeno da violência doméstica e, em particular, de quem se pretende proteger: a vítima. De facto, o conceito de “vítima” consagrado na referida norma passou a ser o seguinte: “a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica”.
A terminar, refira-se que o legislador entendeu igualmente ser de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica em que a ação é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio [o “domicílio comum” é o local da coabitação; o “domicílio da vítima” tem aplicação aos casos de ex-cônjuge ou ex-companheiro(a) ex-namorado(a)].
Nestes casos, deve o dolo do agente abranger a circunstância agravante, sendo que a verificação objetiva da condição de menoridade indicia ou permite supor que o agente a conheça.
2. Da subsunção, no caso concreto, ao tipo penal de violência doméstica
A acusação imputa ao arguido uma conduta de violência doméstica integrada por três concretos episódios, sendo que em sede de Sentença tais episódios se têm como provados, não na integralidade da imputação, sim na parcialidade face à ablação – por não provados – de certos acontecimentos que a acusação dizia fazer parte dos ditos.
Em concreto.
Episódio 1
Factos provados 10 a 11 da Sentença:
=>Desde 2018, quase diariamente o Arguido chegava a casa alcoolizado ou sob influência de estupefacientes (leia-se habitação comum do casal, face aos factos provados 2 e 5);
=> Altura em que era alertado pela VA a para o estado em que se encontrava, ocorrendo discussões entre os mesmos;
Este primeiro episódio integrante da conduta imputada na acusação, assim provado, difere da acusação nos seguintes pontos, face a não prova dos factos ali imputados:
. Que quando quase diariamente o Arguido chegava a casa alcoolizado ou sob influência de estupefacientes e alertado pela VA para o estado em que se encontrava, ocorrendo discussões entre os mesmos, nas mesmas de imediato o Arguido apodasse a VA de “puta!”, “vagabunda!”, “gorda!”, “feia!” e “você tem outro “;
Episódio 2
Factos provados 13 a 16 da Sentença:
=> Entre junho e julho de 2021;
=> Em casa, cerca da meia-noite;
=> O arguido dirige-se ao quarto ter com a VA;
=> O Arguido pretendia ter relações sexuais com a VA:
=> A VA recusou ter relações sexuais com o Arguido;
=> Perante tal recusa o Arguido saiu do quarto;
=> De imediato a VA tranca a porta do quarto, receosa de atitude do Arguido;
=> Desse trancar se apercebendo, o Arguido enquanto gritava “abre a porta” na mesma bateu e desferiu murros e pontapés, acabando-o por a partir no canto superior;
=> De seguida o Arguido saiu de casa.
Este segundo episódio integrante da conduta imputada na acusação, assim provado, difere da acusação no seguinte ponto, face a não prova do facto (conclusivo) ali imputado:
. Que o Arguido tenha exigido ter relações sexuais com a VA;
Episódio 3
Factos provados 17 a 23 da Sentença:
=> Tarde de 1outubro2021;
=> Em casa, no quarto do casal;
=> Na presença da filha (nascida a ……2018 – facto provado 7);
=> Estando o Arguido bastante embriagado;
=> Após a VA o informar que não ia sair com o mesmo, face a tal estado e apesar de ser o seu aniversário;
=> Ficando com tal informação bastante alterado o Arguido;
=> Iniciando-se uma discussão entre o Arguido e a VA;
=> Não se sabendo quem primeiro disse o infra e por que ordem tal foi dito;
=> No decurso da qual o Arguido disse à VA, aos gritos e em tom sério “você vai sair com outro, sua vagabunda, puta!”, “gorda” e “feia”;
=> E a VA apodou o Arguido de “corno”;
=> De seguida a VA enviou mensagens telefónicas a um amigo a pedir ajuda;
=> Volvidos minutos a VA foi contactada telefonicamente por elemento da GNR;
=> De seguida a VA disse ao Arguido que a GNR estava a caminho de casa;
=> Após o que o Arguido se muniu duma faca de cozinha;
=> Se sentou na mesa junto à entrada do quarto;
=> Dizendo, com foros de seriedade e intimidação, simultaneamente manuseando a faca que “eles podem vir que eu morro e levo um;
Este terceiro episódio integrante da conduta imputada na acusação, assim provado, difere da acusação nos seguintes pontos, face a não prova dos factos ali imputados:
. Que o Arguido, dirigindo-se à VA, lhe tenha dito várias vezes “se você chamar a GNR eu te mato!”;
. Que o Arguido, se tenha levantado da cama do casal, onde estava deitado e se tenha dirigido à cozinha;
. Que o Arguido, dirigindo-se à VA, lhe tenha dito “posso ir preso, mas primeiro vou-te matar”;
É à luz destes factos finais dados como provados, face à não prova dos demais que com os mesmos individual e conjuntamente se conjugavam na acusação, que na Sentença de 1.ª instância se conclui que “nenhum dos referidos actos, isoladamente, tem um potencial ofensivo suficiente para ser considerado maus tratos ou, por outras palavras, que tais actos não são de tal modo graves que se afigurem como ofensivos da dignidade da pessoa humana.”
E, em continuação, diz a decisão de 1.ª instância que [e]mbora sejam ofensivos da integridade moral e revistam já uma certa gravidade, não se deve olvidar que, precisamente por esse factor, tais acções são relevadas penalmente nos tipos legais de injúria e ameaça”  sendo que “não se considera que tais comportamentos tenham extravasado os respectivos tipos legais, de molde a atingir a dignidade humana da vítima, passando a ser susceptíveis de qualificação como violência doméstica”
Ou seja, a decisão de 1.ª instância sufraga o entendimento de que cada um dos dois episódios em que “algo” resulta provado (pois quanto ao 1.º episódio só se provaram discussões, sem teor da mesmas, o que faz sobejar os 2.º e 3.º episódios) de per si não consubstancia a supra referida “intensa conduta” que manifesta gravidade intrínseca suficiente para no tipo penal objetivo se enquadrar.
Além disso, agora quanto à eventual subsunção dos factos provados integrantes dos ditos 2.º e 3.º episódios como conducentes a um reiteração de condutas, que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos à vítima,  diz-nos a decisão de 1.ª instância, que tal também não se verifica.
A Sentença em si mesma opta por um dos possíveis raciocínios específicos de análise que nesta sede de apreciação de crime de violência doméstica pode ocorrer, pois começa por separar o conjunto dos factos e concluir que nenhum  “isoladamente, tem um potencial ofensivo suficiente para ser considerado maus tratos ou, por outras palavras, que tais actos não são de tal modo graves que se afigurem como ofensivos da dignidade da pessoa humana” para depois afirmar que quanto à “hipótese de os comportamentos no seu conjunto poderem preencher o referido tipo (…) tão pouco tal se verifica, uma vez que não se constata um estado de agressão permanente”.
Faremos, porém, a análise de ordem inversa, começando pela apreciação global dos factos. E assim o fazemos pois é o próprio Ministério Público recorrente quem não só não coloca os factos individualmente como de per si aptos a integrarem o conceito de violência doméstica, como se insurge quanto a essa possibilidade quando se desagrada com o raciocínio do Tribunal a quo em que este efetua “ cisão dos factos, esmiuçando e esfarelando os mesmos a componentes isolados e sem relação”, assim delimitando o objeto do Recurso, o qual, então se terá que cingir à luz do especial pensamento de que individualmente há factos que podem não assumir relevância, mas que quando integrantes dum conjunto já preenchem o núcleo intrínseco do tipo.
Argumenta a Sentença para tanto que “tão pouco tal se verifica, uma vez que não se constata um estado de agressão permanente”.
Vejamos se assim é.
Há que concluir, antes de mais, que inexiste prova do facto generalizador de condutas e que fazia a interligação de 3 episódios geradores de todo um quadro de reiteração comportamental aviltante na sede relacional entre o Arguido e a VA, que como casal viviam no mesmo espaço habitacional e filhos comuns têm, facto esse que se traduzia numa extensão temporal do episódio 1 a toda a conduta descrita na acusação, na parte em que no mesmo se dizia que quando o Arguido a casa volvia em estado de alcoolizado ou sob influência de estupefacientes, o que ocorria quase diariamente e desde 2018, ofendia a VA na sua honra e consideração com os epítetos de “puta!”, “vagabunda!”, “gorda!”, “feia!” e “você tem outro “  o que ocorria em quadro de discussão (sendo que o conceito de discussão aqui em causa não é o de conversa ou de troca de ideias/opiniões).
Ou seja, esta específica capa extensora de perpetuação ou reiteração comportamental de insultos, própria dum dos agires integrantes do tipo penal, em si mesma diretamente ligada a quadros de durabilidade e continuidade de domínio e subjugação da pessoa da vítima, não se provou nos autos.
Tão só se provaram discussões neste domínio, sendo que se pode afirmar que o seu conteúdo não é o imputado na acusação, pois o mesmo não se provou, do mesmo modo que à luz do princípio in dubio pro reu não se pode presumir que qualquer conteúdo diferenciado que em tais discussões esteja contido abarque atentado a direitos da vítima e, em especial, seja gerador de quadro duma ofensa cabível dentro do bem jurídico que a norma da violência doméstica reporta. 
Restam, à luz dos factos provados, os demais episódios.
Estes, na sua conjugação intrínseca, operam em “data não concretamente apurada, mas entre Junho e Julho de 2021” e em “01 de Outubro de 2021”, ou seja, num hiato temporal de proximidade.
Ora, analisado em concreto o conjunto destes episódios  2 e 3 – na sua interligação que permitiria estar-se perante um quadro de reiteração - diremos que é essencial o que se possa retirar da afirmação que a Sentença faz quando nos diz que “não se constata um estado de agressão permanente”.
E neste campo, desde já se adiante, mesmo não provada a “injúria” constante das discussões  reportadas no episódio 1, certo é que para o episódio 1 e para os demais se mostra provado o quadro de estado de atuação do Arguido: ” [d]esde 2018, por várias vezes, com uma frequência quase diária, o Arguido chegava a casa alcoolizado ou sob efeito de produtos estupefacientes; [n]essas ocasiões, VA alertava-o para o estado em que ele se encontrava, e Arguido e ofendida discutiam”.
Ou seja, há certeza de que o facto gerador das discussões - em que estes episódios são os únicos com concretização de conteúdo - radica no estado de alcoolizado ou sob influência de estupefacientes com que o Arguido, praticamente de forma diária, então vivia. Tal estado é necessariamente indutor e gerador duma constante condição de inadequação comportamental e até influenciador da impossibilidade dum normal relacionamento entre o Arguido e a VA, dado que em tudo afeta o tido como são convívio familiar. Conviver com alguém que reiteradamente se apresenta alcoolizado ou sob efeito de estupefacientes, não é o mesmo que conviver com uma pessoa que de tais afetações de saúde não padeça. E gera, necessariamente, estratégias de coping e de defesa, como mecanismos cognitivos e comportamentais para fazer face a estas situações, por parte de com quem com tais pessoas convive.
Porém, ainda que tal estado na pessoa do Arguido seja o provado, e ainda que se possa afirmar que a génese dos factos contidos nos episódios 2 e 3 ali se funda ou pelo menos ali encontra respaldo, certo é que o que tem que estar provado é uma  interligação em moldes de perpetuação ou reiteração comportamental que dê conta que mediante esse estado, ou outros estados, o Arguido levou a cabo atos de agressão permanente.
E se permanente seria esse o estado do Arguido, necessariamente gerador de degradação da relação, não se pode ainda assim dizer que o mesmo é apto a enquadrar o conceito de violência doméstica. Ou seja, conviver com um padecente do estado de doença por adição não é diretamente sinónimo de vítima de violência doméstica.  
Mas já se pode dizer que os dois episódios em causa, não só pela sua temporal proximidade, mas essencialmente pelo que refletem e representam quando conjuntamente vistos e interligados à razão e génese fundada naquele estado do Arguido, podem integrar o conceito de violência doméstica.
De facto, toda a reação da VA é já própria de quem sente a sua vida condicionada.
A VA já não está só perante um mau relacionamento com o Arguido face ao estado de saúde deste, está já perante atos do Arguido, ainda que gerados pela saúde deste, que já lhe retiram não só o são estar desejado como próprio das relações conjugais, como a fazem diariamente temer por mais um dia em que o Arguido compareça em casa num desses reiterados estados e a faça passar do estado de pensamento de temor para o estado de sentimento de terror.
Basta para tanto cogitar o que a VA terá sentido no quadro de Junho/Julho, quando à noite, em casa – mesmo quando não resulte em concreto nos factos provados que também nessa noite o Arguido estivesse embriagado ou sob influência de estupefacientes  - após ter exercido o seu direito inalienável de recusa a ter relações sexuais e ver o Arguido sair do quarto, ter fechado a porta. Temos como resultante da normalidade da experiência de vida que a VA assim atuou face ao medo de que algo lhe acontecesse perante essa sua atitude, sendo que se tal fosse um só pensamento, deixou de o ser e passou a ser uma certeza quando se deparou com a inusitada e violenta reação do Arguido que, além dum gritar de “abre a porta” na mesma desferiu  murros e pontapés, acabando por a partir no canto superior. E, não se culpe a VA por ter fechado a porta do quarto conjugal. A sua atitude foi tão só premonitória e nunca tal justifica a postura intimidatória do Arguido. 
Toda a reação da VA neste específico quadro é própria do contexto nessa noite vivido, mas é, essencialmente, o espelho do somatório do desgaste de quem foi vivendo latas sequências de dias em que o Arguido se apresentava num estado impróprio para um normal agir em sede de relacionamento conjugal. E assim o é, porque – ao contrário do que a Sentença faz no seu enquadramento jurídico, mas não nos factos provados e não provados – se pode aventar, raciocinar e concluir que desde 2018 a VA nunca sabia como o Arguido chegaria a casa, que discussão consequencial se geraria (e isto independentemente de não se saber qual seja o conteúdo da mesma, ainda que se saiba que não seria o que a acusação imputava, mas não se provou), como o mesmo poderia reagir a qualquer comentário ou mecanismo de defesa, pois limites naquele estado o Arguido não os teria, ou se os teria os mesmos estariam mais limitados, pelo que discutir com o mesmo em tal estado sempre seria um risco. Risco que o mesmo ultrapassou, passando à concretização já neste episódio de Junho/Julho2021.  
Mas mesmo que este episódio não fosse já por si suficientemente amedrontador e condicionante, quando pela proximidade temporal e pela base comportamental o mesmo se liga ao episódio de 1outubro2021, então a dificuldade em afirmar que inexiste um padrão que permita à VA comportar-se, face aos agires do Arguido, sem o pensamento de “estado de agressão permanente” cresce exponencialmente.
De facto, o 2.º episódio não mais é do que o “normal” corolário do estado de saúde do Arguido, do quanto este influencia no seu agir para com a VA e também para com os filhos, na sede que é o lar conjugal e familiar, tudo num crescente apodar e intimidar.
Aqui, desta vez na certeza provada de que o arguido agiu no seu estado “normal” de embriaguez, forçosa é a conclusão que que esse estado, como se vem vendo, tem condicionado a relação com a VA e a demais família, agora até com tal potência que nem sequer operou o fator inibidor de comportamentos tais perante uma criança de 3 anos. Já nem esse freio atuou, o que bem revela para o crescimento e necessária permanência do estado de agressão que a doença vem refletindo no atuar do Arguido e no consequente estado da VA, e agora da filha.
É esta a conclusão lógica que as regras da experiência inculcam, sendo que inexiste notícia de que a VA não se tenha sentido. Pelo contrário, este atuar do Arguido, sempre sob o estado de embriagado ou sob efeito de estupefacientes, é apto a situações de domínio, de subjugação, sobre a pessoa da VA, sobre a sua vida e/ou sobre a sua honra e/ou sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação, o que se mostra provado.
Acresce que sequer se diga que a “ameaça” porque visava terceiro fora do domínio da VA, a esta não era suscetível de causar “incómodo”. É que tal comportamento do Arguido nunca e em momento algum visou primordialmente, quão mais em exclusivo, terceiro. Visou, isso sim (como muito bem aponta a Digníssima Procuradora-Geral Adjunta no seu Parecer junto deste Tribunal ad quem), primordialmente cercear a ação da VA, porquanto o Arguido “com a afirmação que produziu [“eles podem vir que eu morro e levo um!”], acompanhada da exibição de uma faca, posicionado à entrada do quarto onde a vitima se encontrava, quis dominar a vítima, subjugando-a à sua vontade, intimidando-a, fazendo-a temer pela sua integridade física, fazendo-lhe crer ser tão forte, tão poderoso, que era senhor da própria vida e da vida dos militares da GNR que acorressem ao local.”
Em conclusão, forçoso é dizer que mesmo com só estes dois episódios provados, mesmo que só com a parcialidade provada destes dois episódios, ainda assim temos como verificado, como sói dizer-se, que um quadro destes gerou grande instabilidade na VA, assim como pelo menos na filha presencial do casal, certamente nos filhos do casal, todos os quais a qualquer momento, sem motivos aparentes que não a subjugação à necessidade de ter que conviver com a problemática da doença do Arguido, foram confrontados com discussões e reações desajustadas, como as especiais dadas como provadas, as quais individualmente sempre têm um pendor bem superior ao que a Sentença lhe atribui, mas conjugadamente entre si e com toda a envolvência facilmente permitem perceber o quadro de reiteração e de permanência de sufoco e preocupação com as reativas atuações do Arguido com que a VA e a filha do casal se viram confrontadas, vivência esta em sede conjugal, no lar familiar, tudo a demandar a existência, não dum simples abstrato, sim dum concreto estádio de latência de agressão em permanência, do que os episódios relatados e provados são concretizações expressas.  
Ou seja, apesar de alguns dos factos alegados na acusação terem resultado não provados (cfr. matéria de facto não provada), os factos que foram dados como provados, relativos à ofendida VA, evidenciam, sem qualquer dúvida, a prática, pelo Arguido, do crime de violência doméstica agravado, na pessoa da referida ofendida.
De facto, a conduta do Arguido para com a ofendida, consubstanciada no uso de ameaça/intimidação, na agressão da honra, através do insulto, evidenciam que o Arguido infligiu, de modo reiterado, maus tratos físicos, psíquicos e emocionais à ofendida VA, sua companheira e mãe de dois filhos em comum.
Conforme resultou provado, o Arguido, agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atentar contra a saúde psíquica e emocional da ofendida.
Acresce ainda que o Arguido praticou os referidos factos, ao menos em parte, na presença da filha menor e no interior da casa de morada de família.
Em suma, o Arguido praticou o crime de violência doméstica agravado, de que vinha acusado.
Dir-se-á, por último, se dúvidas disso existisse, numa outra vertente a Sentença as retira quando apesar de não se mostrar provado que  a VA “viveu constantemente no estado referido em 25, com medo igualmente que o Arguido a matasse”  dá como provado que  “ [c]om a prática das condutas descritas, deu causa o Arguido, de modo directo e necessário, a que VA (…) se sentisse num constante estado de ansiedade e tristeza; [d] eu igualmente causa a que a ofendida, nos dois episódios referidos, sentisse medo, receando pelas atitudes que o Arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que ofendesse a sua integridade física, a humilhasse ou a intimidasse; e  [a]o actuar da forma descrita para com a ofendida, sabendo que ela era sua companheira e mãe dos seus filhos, o Arguido agiu com o propósito de molestar saúde psíquica da mesma, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu, ao actuar da forma acima descrita, na casa da vítima, bem sabendo que tinha para com ela um especial dever de respeito e de a tratar com dignidade; sendo que [o} Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”
Como consabido é, o preenchimento do dolo, como expressão da representação e da vontade de o agente realizar os pertinentes elementos objetivos do tipo legal, exige que o mesmo preveja o resultado e a relação causal e tenha vontade de concretizar essa ação, bastando-se, no que respeita ao dolo eventual, com a representação pelo agente da possibilidade da realização do tipo legal e da sua conformação com ela. Assim, situando-os no plano ou em sede de julgamento sobre matéria de facto e assumindo os elementos intelectual e volitivo do dolo a natureza de factos relativos ao foro psicológico ou da vida interior do agente e, por isso, impossíveis de apreender diretamente, os mesmos podem ser deduzidos ou inferidos de outros factos que, com muita probabilidade, os revelem: tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o Tribunal pode considerá-los provados, através de outros factos (objetivos) dados como provados que com eles normalmente se ligam, analisados à luz das regras da experiência comum, e que permitem ou impõem concluir pela sua verificação.
E foi isso que o Tribunal a quo fez com relação aos elementos subjetivos do tipo, interligando-os aos elementos objetivos tidos como provados. E daí, também, a estranheza da conclusão a que chegou.
Ou seja, tem a Sentença como provado que o Arguido, sem qualquer causa excludente de culpa ou ilicitude, encetou os factos objetivo e subjetivos, sendo estes especificamente integrantes do tipo de violência doméstica e, a final, conclui que ainda assim os factos objetivos provados não são suficientes para integrar tal tipo penal, ainda que com tal intenção e especificidade dolosa direta o Arguido tenha agido. Tudo a levar ao desfecho que não fosse o enquadramento jurídico supra efetuado por este Tribunal ad quem, sempre se estaria perante situação a demandar a chamada à colação do art.º 410.º/2b)CPP, face a situação de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida dado concluir-se que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
3.º Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art.º 410.º/2 a) CPP
Uma vez que não foi aquela a solução jurídica adotada, antes foi a de ao subsumir os factos provados ao enquadramento jurídico considerar que objetivamente e subjetivamente os mesmos integram o crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º/1 b); c)/2 CP, haveria, pois, que seguir com a determinação da medida da pena principal e acessória e o arbitramento indemnizatório, tal qual propugnado em acusação.
Contudo, como resulta da Sentença o Tribunal de 1.ª instância consignou em sede de motivação que “[e]m face do sentido da decisão torna-se despicienda a pronúncia sobre as condições socioeconómicas e antecedentes criminais, como resulta dos artigos 368.º a 371.º do Código de Processo”. Esta opção tem-se por arriscada, pois o Tribunal a quo antes podia e devia plasmar integralmente todos os factos provados e não provados, sendo que ao não o fazer, perante a qualificação jurídica dos factos agora supra determinada, gera a ocorrência de vício da Sentença, em concreto o do art.º 410.º/2 a) CPP onde se dispõe que “[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;”
Vício este que sendo do conhecimento oficioso por parte deste Tribunal ad quem, flui do texto da Sentença no quanto se revela na coerência jurídica ao nível da matéria de facto,  tornando impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei, assim se traduzindo (usando a expressão de Simas Santos e Leal-Henriques in Recursos Penais, 9.ª Edição 2020, p. 74), numa insuficiência  que aparece como uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito”, a qual tem de existir internamente no âmbito da decisão. Ou, como refere o Prof. Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, III vol., p. 339) “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito”.
Numa forma simples, este vício traduz-se numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. É dizer que o Tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada, quando poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa.
Neste sentido, de forma expressa Maria do Carmo Silva Dias (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21junho2023, NUIPC 1218/21.8PBVIS.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj) diz-nos que tal vício “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objetivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objeto do processo, e não na perspetiva subjetiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”(no mesmo sentido, Rodrigues da Costa, Santos Cabral e Simas Santos, em Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, respetivamente de 20abril2006, processo 06P363, de 4outubro2006, processo 06P2678 e de 21junho2007, processo 07P2268, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj) (recentemente, Maria Perquilhas, Acórdão do TRLisboa, de 23março2023, NUIPC 1228/22.8SILSB.L1-9)
In casu o vício manifesta-se quando da factualidade elencada na decisão recorrida resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ter sido indagados, são necessários para se poder formular um juízo global seguro de fixação da dosimetria da pena e da indemnização a arbitrar e surge em virtude  do Tribunal a quo não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para este trecho da decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão da causa.
Ora, ao menos pela via do Relatório da Equipa de Reinserção Social Oeste 1 da DGRSP (datado e junto aos autos a 12abril2023, ref. 23160651), o Tribunal a quo tinha iniciais meios ao seu alcance para demonstrar as condições pessoais e situação económica do Arguido, o que só não sucedeu porque optou expressamente pela via constante da Sentença, a qual é a de ablação dos factos provados e não provados em causa, assim como da motivação que aos mesmos pode conduzir, v.g. pelo dito relatório, pelo CRC, como prova real documental, ou por outros que resultem das declarações do Arguido ou de prova testemunhal, como prova pessoal.
Esta questão integra sem dúvida o vício da insuficiência do art.º 410.º/2 a) CPP, dado que a factualidade apurada é insuficiente para a completa decisão de direito. O Tribunal a quo podia e devia ter ido mais além no apuramento das condições pessoais e situação económica do Arguido, independentemente de as mesmas só serem elementos relevantes para a determinação da pena concreta e da fixação da indemnização devida. Ao optar por o não fazer, com a argumentação de que os factos que tinha por provados não seriam aptos a integrar os elementos objetivos do tipo (ainda que no seu dizer o fossem do tipo subjetivo) o Tribunal a quo deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação e/ou pela defesa e/ou resultantes da discussão da causa, e/ou não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, pelo que gerou uma situação tal em que os factos apurados e constantes da decisão sob recurso são insuficientes para a decisão de direito à face dos vários entendimentos e soluções que sempre se alinham como plausíveis (agora já não absolvição, verificação de causa excludente da ilicitude, da culpa ou da pena, sim condenação com necessária fixação de circunstâncias relevantes para a escolha e determinação desta última, etc.).
O n.º 1 do art.º 426.º CPP estatui que “[s]sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”
No caso dos autos, estivéssemos somente perante caso de apreciação dos documentos supra, como prova real, poderia parecer ser possível decidir da causa sem o reenvio do processo. Assim já não é face a demais elementos de prova, mormente os de reporte a prova pessoal e constantes da documentação da prova, leia-se gravação de audiência. De facto, à luz da opção do recorrente Ministério Público, em que cinge o recurso à matéria de direito, não sindicando a matéria de facto, entende-se que não se pode recorrer à válvula do art.º 431.ºa) CPP, porquanto este não pode ser interpretado isoladamente, mas antes em conjunto com outros preceitos legais e tendo presente o sistema de recursos previsto no CPP, pois só desse modo se garante uma interpretação de harmonia do sistema processual. Como diz Jorge Gonçalves (em Acórdão desta 5.ª Secção Penal do TRLisboa, de 23fevereiro2021, NUIPC 1592/19.6PCSNT.L1) “[n]o que concerne à modificabilidade da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, preceitua o artigo 431.º, do C.P.P., que tal decisão pode ser modificada, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; (…) [a] situação prevista na alínea a), do artigo 431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta dos autos, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.” Retiramos daqui o entendimento mediante o qual quando no art.º 431.°a)CPP se diz que a decisão pode ser alterada quando do processo constarem todos os elementos de prova, esta referencia é somente à prova documental, pré-constituída, que também pode ser analisada e apreciada pelo Tribunal de 2.a instância, sem recurso a outra prova v.g. antecedentes criminais Ínsitos no CRC temporalmente válido ou de certidões de condenações transitadas em julgado. Já quando no n.° 1 do art.º 426.°CPP se diz que o reenvio não é determinado quando “for possível decidir da causa” estão tão só a ser salvaguardados os casos em que o vício incide sobre factos irrelevantes para determinar o sentido da decisão e não, como comumente parecia ser caso para se  ler, que é sempre que isso for possível, mesmo contrariando o art.º 431.°CPP e havendo recurso a outros meios de prova.
Ou seja, mesmo em caso de existência dos vícios previstos no art.º 410.º CPP não pode sempre e oficiosamente o Tribunal ad quem alterar a matéria de facto provada, em especial no que tange à prova pessoal: nesse caso não é possível ao Tribunal ad quem decidir da causa, pelo que deve ordenar o reenvio. {(neste sentido, Lopes da Mota, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22junho2022, NUIPC  215/18.5JAFAR.E1.S1, onde expressamente se diz que “[n]ão tendo havido recurso em matéria de facto da decisão da 1.ª instância, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, nem renovação da prova, que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (artigos 411.º, n.º, 5, 412.º, n.º 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP), o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base” (al. a) do artigo 431.º do CPP) (neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed., Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06)547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384). Havendo arguição de vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP (…) (o que não é o caso dos presentes autos) o Tribunal da Relação deve verificar se “é possível decidir da causa” (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os elementos de prova que constam do processo, excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência. Não sendo tais elementos de prova suficientes para o efeito, não pode o Tribunal da Relação proceder à sanação do vício; neste caso deve o Tribunal da Relação ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do CPP (assim, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, p. 1184-1185, e Pereira Madeira, CPP Comentado, p. 1363, e os acórdãos de 21.3.2018, Proc. 1188/15.1PHLRS.L1.S1, e de 24.2.2016, Proc. 502/08.0GEALR.E1.S1).”}
Sendo provido o presente recurso, dado que se mostra a Sentença em crise omissa quanto àqueles factos e, como tal, impedida esta Relação de fixar uma pena e de arbitrar uma indemnização à vítima em consonância com o art.º 21.º/1 da Lei 112/2009-16setembro, devem os autos ser reenviados à 1.ª instância para novo julgamento quanto às condições socioeconómicas e antecedentes criminais, pena(s) e indeminização.
Nesta conformidade, determina-se o reenvio do processo a fim de ser reaberta a audiência, após junção de novo CRC com temporalidade válida, elaboração e junção de atualizado Relatório da Equipa de Reinserção Social, seguida de novas alegações e última palavra ao Arguido (se comparecer e quiser prestar declarações atualistas sobre a sua situação familiar e socioecónomica), tudo isto sem prejuízo da produção (requerida ou oficiosa) de qualquer outro meio de prova que, na perspetiva do Tribunal a quo, se revele importante apenas para o apuramento das condições pessoais e situação económica do Arguido, seus antecedentes criminais e, a final, opere prolação de nova Sentença pelo mesmo Tribunal e juiz, em que em cumprimento do enquadramento jurídico supra seja escolhida e determinada concreta pena principal e, sendo tida por necessária, também as acessórias, assim como se firme devida indemnização.
III – DECISÃO
Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
a) determinam que os factos praticados pelo Arguido HF, nos moldes dados como provados na Sentença de 30maio2023 (ref 144512812), integram os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de violência doméstica, por que vinha acusado, p. p. pelo art.º 152.º/1 b); c)/2 a) CP;
b) que por esses factos vai o Arguido HF condenado em pena principal e, sendo tida(s) por necessária(s), também em pena(s) acessória(s) (art.º 152.º/4;5CP), bem como no pagamento duma indemnização à vítima a fixar em consonância com o art.º 21.º/1 da Lei 112/2009;
c) declarar verificado o vício do art.º 410.º/2 a) CPP, face a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que permita a concreta escolha e determinação dessa pena principal e, sendo tida(s) por necessária(s), também da pena(s) acessória(s) (art.º 152.º/4;5CP), bem como do montante a título de indemnização à vítima a fixar em consonância com o art.º 21.º/1 da Lei 112/2009;
d) declarar não ser in casu possível a este Tribunal ad quem o recurso ao art.º 431.ºCPP, pelo que ao abrigo do art.º 426.ºCPP se determina o reenvio do processo ao Tribunal a quo a fim de ser reaberta a audiência, após junção de novo CRC com temporalidade válida, elaboração e junção de atualizado Relatório da Equipa de Reinserção Social, seguida de novas alegações e última palavra ao Arguido (se comparecer e quiser prestar declarações atualistas sobre a sua situação familiar e socioeconómica), tudo isto sem prejuízo da produção (requerida ou oficiosa) de qualquer outro meio de prova que, na perspetiva do Tribunal a quo, se revele importante apenas para o apuramento das condições pessoais e situação económica do Arguido, seus antecedentes criminais e, a final, opere prolação de nova Sentença pelo mesmo Tribunal e juiz, em que em cumprimento do enquadramento jurídico supra seja escolhida e determinada concreta pena principal e, sendo tida por necessária, também a(s) acessória(s), assim como se firme devida indemnização.
Sem Custas.
Notifique (art.º 425.º/6CPP).
D.N.

Lisboa, 14 de dezembro de 2023
• o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica – art.º 153.º/1CPCe com aposição de assinatura eletrónica - art.º 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio
Relator: Juiz Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca
1.º Adjunto: Juiz Desembargador Manuel Alexandre Teixeira Advínculo Sequeira, o qual junta
Declaração de voto
Concordando com a solução dada ao enquadramento jurídico dos factos apurados e consequente condenação do arguido, deveria ter esta Relação, salvo o elevado respeito pela posição que fez vencimento, extraído todas as consequências, designadamente a aplicação de penas, principal, acessórias e eventual indemnização.
Os factos a tanto atinentes deveriam ter sido extraídos dos correspondentes meios de prova, o que se retira da alínea a) do 431° do Código de Processo Penal (“a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada… se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base”), já que dos autos consta CRC do arguido e relatório social relativamente recentes (datados de 19.5 e 12.4.2023, respectivamente) e adequados ao efeito, pelo que nada mais se irá adiantar em termos probatórios.
Por outro lado, a insuficiência da matéria de facto para a decisão tem de resultar do texto da própria sentença.
Ora, a sentença recorrida não padece desse vício. Do correspondente ponto de vista está formalmente correcta, pois se conclui pela absolvição deverá proceder à "cesure", evitando a prova respeitante à escolha e medida de pena (que no caso já se encontrava produzida) e dispensando a correspondente factualidade (é o que se retira do disposto no nº 1 do artº 369º do Código de Processo Penal).
O desacerto da sentença é outro, como se vê, impondo-se por isso a sua revogação e substituição por outra que condene o arguido, tal como é pretendido no recurso.
2.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro