Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1694/18.6T8PDL.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: EMBARCAÇÃO DE RECREIO
ACTIVIDADE PERIGOSA
ILISÃO DA PRESUNÇÃO DE CULPA
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. No n.º 2 do art. 493.º do CC, o legislador português, na esteira do italiano, ao referir-se a «atividade perigosa», recorreu à combinação de uma cláusula geral legal com um conceito indeterminado, que não define, nem em geral, nem para os efeitos do disposto na dita norma, limitando-se a relacionar a perigosidade com a natureza da atividade ou dos meios utilizados, remetendo para a doutrina e para a jurisprudência o papel de densificação da expressão, pelo que será em face das circunstâncias do caso concreto que se determinará se certa atividade é ou não perigosa.
2. O preenchimento de tal conceito pressupõe uma especial probabilidade de «aquela concreta atividade» causar um dano a terceiro, significando isto que é necessário que a concreta atividade desenvolvida pelo lesante acarrete um perigo que vá para além do que é normal noutras atividades, sendo expectável que dela possam resultar danos que, em termos de normalidade, não ocorreriam noutra atividade.
3. “Atividade perigosa” é, assim, aquela, cujo perigo, que objetivamente a encerra, acompanha o seu correto e adequado exercício, mesmo enquanto «tudo correr bem» e ainda que «tudo corra bem», e não aquela que apenas recebe tal qualitativo quando algo corre mal e o dano acontece, pois que a perigosidade é aferida a priori, residindo no próprio processo, e não no resultado danoso, muito embora a magnitude deste possa evidenciar o grau de perigosidade da atividade.
4. Como pontos de vista genericamente orientadores para aferição de uma atividade perigosa, servem alguns dos critérios que valem como pilares da imputação pelo risco, o que demonstra a relação de intercomunicabilidade que a este nível liga o objeto das cláusulas gerais atinentes ao exercício de atividades perigosas com o das regras especiais de responsabilidade objetiva e, por conseguinte, a fluidez de fronteiras que as separa.
5. Neste conspecto, é perigosa, nos termos e para os efeitos do citado normativo, a atividade de transporte de pessoas numa embarcação de recreio, no mar, para observação de golfinhos e baleias.
6. No exercício de uma atividade perigosa, não basta ao lesante, para ilidir a presunção de culpa decorrente do n.º 2 do art. 493.º do CC, provar que agiu com os cuidados de um homem normal, em circunstâncias igualmente normais e de acordo com a diligência de um bom pai de família, conforme exige o art. 487º, nº 2, havendo um plus que se lhe impõe e que decorre da própria perigosidade da atividade em causa, pois todo este regime assenta no princípio da prevenção do perigo e os deveres que recaem sobre o agente são deveres especiais de cuidado, deveres de segurança no tráfego.
7. Os ditames de unidade sistemática impõem que a determinação do conteúdo da prova liberatória nos termos do n.º 2 do art. 493.º do CC, obedeça, em simultâneo a dois parâmetros fundamentais que só aparentemente são contraditórios:
- a sua contensão dentro dos limites do princípio da culpa;
- o acatamento da intencionalidade legislativa, materialmente justificada, de criar um regime de responsabilidade mais severo para o exercício das atividades perigosas.
8. A prova positiva da causa de um sinistro não significa a demonstração de que foram levadas a cabo todas as medidas necessárias para obstar aos danos sofridos pelo lesado, mas apenas a demonstração de que não foi por falta dessas providências que tais danos ocorreram.
9. O art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Dec. Lei n.º 124/2004, de 25.05­, correspondente ao atual art. 32.º do Decreto-Lei n.º 93/2018, de 13.11, consagra um daqueles casos excecionais, típicos de responsabilidade objetiva ou pelo risco, a que alude o n.º 2 do art. 483.º do CC.
10. Por conseguinte, ainda que tivesse logrado ilidir a presunção de culpa decorrente do n.º 2 do art. 493.º do CC, sempre a exercente responderia pelos danos sofridos pela lesada, nos termos do n.º 2 do 483.º, do mesmo código, e do art. 41.º daquele Regulamento, com base na responsabilidade objetiva ou pelo risco, caso em que lhe seriam extensivas, na parte aplicável e por inexistirem preceitos legais em contrário, as disposições reguladoras da responsabilidade por factos ilícitos, nomeadamente o art. 494.º do Cód. Civil (art. 499.º do mesmo diploma).
11. É que, não obstante a ação ter sido intentada com fundamento na culpa da exercente, sempre o tribunal poderia, não se provando a culpa, decidir com base no risco, sem incorrer em excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C., pois quando o autor pede em juízo a condenação do agente na reparação do dano, num dos domínios em que vigora a responsabilidade objetiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente, a menos que haja qualquer declaração em contrário, que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar.
12. Consequentemente, se o autor invocar a culpa do agente na ação destinada a obter a reparação do dano, num caso em que excecionalmente vigore o princípio da responsabilidade objetiva, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.
13. O dano biológico” constitui um dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais.
14. O responsável pelo “dano biológico”, porque incidente sobre o valor humano, em toda a sua dimensão, em que o bem saúde é objeto de um autónomo direito básico absoluto, deve repará-lo, em qualquer caso, mesmo que se não prove uma efetiva redução do vencimento do lesado como causa e efeito desse dano.
15. O que releva, ante a comprovação de um tal dano, é a repercussão negativa desse défice, centrado na diminuição da condição física, da resistência e da capacidade de realizar esforços por parte do lesado, o que, necessariamente, se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desempenho das atividades pessoais em geral e numa consequente e, obviamente, de igual modo previsível, maior penosidade na execução das suas diversas tarefas, tudo significando um maior dispêndio de energias, um maior desgaste físico na execução das mesmas, comparativamente com o que sucedia antes do sinistro.
16. É precisamente neste agravamento da penosidade para a execução, com normalidade e regularidade, das tarefas próprias e habituais do respetivo múnus, que deve radicar o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO[1]:
MC intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra SU, S.A.[2], e PA, S.A.[3], alegando, em suma, que no dia 25 de julho de 2015 quando se encontrava a bordo de uma embarcação propriedade da 2.ª ré, no regresso de uma viagem destinada à observação de baleias ao largo da ilha de São Miguel, Açores, a autora foi projetada no ar do banco aonde estava sentada na embarcação.
Tal ocorreu na sequência de um salto de onda provocado pela elevada velocidade que o skipper imprimia à embarcação que dirigia, totalmente desadequada à ondulação agitada que se fazia sentir e às características da mesma, obrigando os ocupantes a tentarem agarrar-se às bordas da embarcação o melhor que podiam para não serem projetados dos seus lugares.
Em consequência daquele evento, a autora sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial pelos quais pretende ser ressarcida.
Segundo julga saber, à data acima referida, a 2.ª ré tinha transferida para a 1.ª ré a responsabilidade civil decorrente dos danos causados a terceiros por sinistros ocorridos com aquela embarcação.
A autora conclui assim a petição inicial:
«Nestes termos e melhores de Direito deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e por via dela:
a) Condenar-se a 1.ª Ré, e subsidiariamente a 2.ª para o caso de não haver seguro válido e eficaz, a pagar à A. as quantias de
- 40.000,00 € a título de danos não patrimoniais;
- 140.047,52 € a título de danos patrimoniais,
tudo acrescido de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento
b) A pagar custas.»
*
A 1.ª ré contestou, começando por arguir a exceção dilatória consistente na sua ilegitimidade para os termos da presente causa, pois que «a 2.ª R não transferiu qualquer responsabilidade civil para a 1.ª R.»
No mais impugna a factualidade alegada pela autora na petição inicial.
Conclui assim a sua contestação:
«Nestes termos e nos que doutamente serão supridos deve a presente acção ser julgada improcedente e não provada e a alegada excepção de ilegitimidade ser considerada procedente e provada e a R. absolvida da instância ou caso assim não se entenda do pedido.»
*
A 2.ª ré apresentou igualmente contestação, na qual, no essencial, impugna a factualidade alegada pela autora, não poder qualificar-se como perigosa a atividade por si desenvolvida.
Ainda na contestação, deduz incidente de intervenção principal provocada, alegando o seguinte:
«Caso se venha a entender que a R., PA, S.A., é responsável pelo pagamento de qualquer indemnização à A., a verdade é que esta transferiu para as seguradoras:
SA, S.A.,
e
SU, S.A.,
a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros e clientes, pelos atos praticados no exercício da sua atividade, mediante a celebração de contratos de seguro, titulados pela apólice n.º ____, no ramo de Acidentes Pessoais-Grupo (SA, S.A.), (...) e ainda pelas apólices n.º ____, no ramo de responsabilidade civil-exploração; n.º ____, no ramo marítimo-embarcações de recreio; n.º ____, no ramo de acidentes pessoais-grupo; n.º ____, no ramo de responsabilidade civil operador marítimo-turístico; n.º ____, no ramo de acidentes pessoais-grupo (SU, S.A.), conforme resulta da apólice n.º ____ (...).
Assim, são aquelas companhias seguradoras responsáveis, no âmbito daqueles contratos de seguro, por qualquer indemnização que a aqui R. venha a ser condenada a pagar, o que apenas se admite por mera hipótese.»
Conclui assim a contestação:
«Termos em que:
a) Deverá ser admitida a requerida intervenção principal provocada; e
b) Deverá a presente acção ser declarada improcedente, por não provada,  absolvendo-se a R. do pedido.»
*
Uma vez que a 2.ª requerida no referido incidente é a 1.ª ré na ação[4], o incidente de intervenção principal provocada foi admitido apenas quanto à SA, S.A.
Citada, a AP apresentou contestação, começando por se defender por via de exceção perentória, alegando que já pagou à autora a quantia global correspondente às suas responsabilidades, encontrando-se «esgotado o capital da apólice para a cobertura de despesas de tratamento por acidente, e, nessa medida, ficou a Interveniente exonerada de realizar quaisquer outros pagamentos.»
No mais, defende-se por impugnação.
A interveniente conclui assim a sua contestação:
«Termos em que deve ser julgada procedente a excepção peremptória inominada de pagamento da quantia de Euros 3.728,00, e a excepção peremptória inominada de pagamento de 1.296,30 € por aplicação dos limites de capital previstos na cláusula contratual do artº 2º - Invalidez Permanente por Acidente - das Condições Particulares, ou a acção julgada improcedente por não provada, e, em todos os casos, a Interveniente absolvida dos pedidos, com as legais consequências.»
*
Realizou-se a audiência prévia, na qual o senhor juiz a quo, além do mais:
- considerou todas as partes detentoras de legitimidade para os termos da causa;
- identificou o objeto do litígio;
- enunciou os temas da prova.
*
Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Em face do exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:
1. condeno a 1ª Ré SU, S.A a pagar à Autora MC a quantia global de € 2.003,88 (dois mil e três euros e oitenta e oito cêntimos), correspondente ao somatório da quantia a título de capital de € 1.830,00 (mil oitocentos e trinta euros) e de juros vencidos de € 173,88 (cento e setenta e três euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal prevista para os juros civis sobre aquele montante de capital, absolvendo-a do remanescente peticionado;
2. absolvo a 2ª Ré PA, S.A. do pedido contra a mesma deduzido nos autos pela Autora MC;
3. absolvo a Interveniente Principal AP, S.A. de qualquer responsabilidade adveniente do sinistro a que se reportam os autos;
4. condeno a Autora MC e 1ª Ré SU, S.A. nas custas do processo, na proporção do respetivo decaimento.»
*
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1 – A A. disse que “o briefing é sempre feito com o estudo do meio, com os animais que vamos ver, com o que se alimentam, o colete salva vida e o que fazer se nos sentimos mal. Não existe qualquer explicação sobre os riscos da viagem. Em relação a quedas não.” (minuto 6:13) Não versou especificamente sobre ondulação e saltos de onda (minuto 20:30).
2 – Pode haver riscos dependentes da forma como se exerce a atividade. O risco está associado ao modo do exercício da atividade. Faz parte das funções do skipper controlar as alterações da ondulação do mar (minuto 28:20).
3 – Nem o skipper nem a bióloga assistente referiram quaisquer procedimentos sobre os riscos da viagem e em concreto sobre saltos de onda, mas sobre quem não devia fazer a viagem: cardíacos, grávidas e pessoas que sofressem da coluna.
4 – Por isso, a resposta ao ponto 32 da matéria de facto dada como provada só poderá ser “A A. e os demais passageiros assinaram de forma voluntária o documento de fls. 48 e 48 verso” e
5 – A resposta ao Ponto 33 - Não provado, ou “provado apenas quanto a quem não devia embarcar: pessoas com problemas cardíacos, de coluna e grávidas.”
6 – A A. no seu depoimento de parte disse: “Para cá vínhamos mais depressa. Nunca houve o cuidado de contornar as ondas mas de cortar as ondas. Com um barco daqueles, o barco vem sempre batendo e foi numa dessas ondas mais altas que se deu o salto.”
7 – O skipper PS afirmou “a gente está sempre a olhar para a frente para ver. Não posso dizer o que é que aconteceu. Eu levo com as ondas de frente. Venho a direito a cortar as ondas.” (minuto 28:50) E não viu nem a onda, nem a A. que vinha à frente, na proa do barco ser projetada do assento do barco!
8 – Por isso a resposta aos pontos 37, 38, 39, 40 e 41 só podia ser a seguinte:
Ponto 37 – A navegação ficou a cargo do Skipper PS.
Ponto 38 – Não provado.
Ponto 39 – Não provado.
Ponto 40 – Não provado.
Ponto 41 – A A. queixou-se de dores nas costas, saindo da embarcação apoiada pelo pessoal de apoio da 2.ª Ré.
9 – Com efeito, afirmou a A.: “À saída ficamos um bocadinho à conversa com o skipper porque eu ainda estava com dores e o PS disse: isso é normal. Isso acontece muitas vezes. É uma dor muscular. Dá-se um creme. Dois/três dias e isso está bom. Quando saiu de barco continuavam as dores.” (minuto 14:38)
“Pensei que era uma situação normal. Cheguei a casa e não consegui dormir toda à noite cheia de dores.
Saí do barco pelo meu pé, mas apoiada por dois funcionários” (minuto 20:30)
10 – O facto dado como não provado na alínea a) dos factos não provados devia ter sido dado como provado com a seguinte redação:
“O salto da onda foi provocado pela velocidade que o skipper imprimia na condução da embarcação ao cortar as ondas de frente fazendo com que a A. fosse projetada do lugar e ao cair desapoiada no assento sofresse o acidente.”
11 – Para além do atrás dito sobre a velocidade imprimida à embarcação é o que resulta das declarações da A. ao afirmar “Com a onda mais alta o barco saltou. Fui projetada do banco e quando me sentei eu não tinha onde me agarrar. Estava agarrada à almofada.”
12 – A atividade marítimo/turística de observação de baleias e golfinhos é em si perigosa por ser exercida em mar aberto, sujeita às imprevisibilidades climáticas e inteiramente exposta às vicissitudes do meio natural em que se desenvolve.
13 – A culpa presume-se competindo ao lesante, querendo ilidi-la, provar que empregou todos os meios ao seu alcance para impedir a produção do evento danoso.
14 – A falta de segurança da embarcação na proa do barco e a condução desatenta do skipper, fez com que o barco saltasse e com ele a A., que sem ter onde se agarrar, caiu desamparada no assento causando-lhe de imediato sensação de dor crâneo caudal e falta de ar.
15 – A falta de segurança da embarcação e a condução desatenta do comandante da embarcação não impediram o salto de onda e as graves consequências que daí resultaram para a A..
16 – Ao não ilidir a presunção de culpa devem as Rés serem condenadas a pagar à A. a indemnização que resultar dos factos provados.
17 – Se o tribunal tinha dúvidas sobre o modo de navegação imprimido pelo skipper podia ter ordenado a inquirição oficiosa de outros passageiros nos termos do disposto nos arts. 526.º e 411.º do CPC.
18 – Sem prescindir do que vem de se dizer, e para o caso de se entender terem as Rés ilidido a culpa que sobre si impendia, importa atentar ao disposto no art. 32.º do Regulamento Náutico de Recreio que estabelece a título residual a responsabilidade pelo risco do proprietário e do comandante de uma embarcação de recreio, preconizando que os dois são solidariamente responsáveis, independentemente de culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros, uma vez que nos termos do art. 3.º alínea m) do referido Regulamento o comandante é o responsável pelo comando e segurança da embarcação.
19 – Assim não o tendo entendido, a sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos arts. 483.º, 487.º, 495.º 2 todos do Código Civil, 411.º e 526.º do CPC e os arts. 32.º e alínea m) do art. 3.º do Regulamento Náutico de Recreio.
Termos em que deve a sentença recorrida ser substituída por outra que condene as Rés nos termos sobreditos por ser de Direito e de
JUSTIÇA!
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A 2.ª ré presentou longas contra-alegações, que culmina com extensas conclusões, espraiadas por desnecessários 63 pontos, nas quais pugna pela improcedência do recuso e, consequentemente, pela manutenção a sentença recorrida.
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A 1.ª ré apresentou igualmente contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
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II - ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do C.P.C., que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º, do C.P.C.).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do C.P.C.) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do C.P.C.).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
i) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
ii) se é de considerar perigosa a atividade no âmbito da qual, no dia 25 de julho de 2015, a 2.ª ré, numa sua embarcação de recreio, transportou a autora e outros passageiros, numa viagem destinada à observação de golfinhos e baleias ao largo da ilha de São Miguel, Açores, no decurso da qual ocorreu o sinistro a que se reportam os presentes autos; em caso afirmativo,
a) se a 2.ª ré logrou ilidir a presunção de culpa na produção do acidente, que, consequentemente, sobre si impendia; em caso afirmativo,
b) se ocorre uma situação de responsabilidade objetiva ou pelo risco;
c) quer no caso referido em ii. a), quer no caso referido em ii. b), se a autora deve ser indemnizada, tanto a título de danos patrimoniais, como a título de danos não patrimoniais; e, em caso afirmativo;
d) o quantum indemnizatório.
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III - FUNDAMENTOS:
3.1 - Fundamentação de facto:
O tribunal a quo elencou assim a matéria de facto que considerou provada:
«Da petição inicial
1. No dia 25 de julho de 2015, quando se encontrava a bordo de uma embarcação propriedade da 2ª Ré, no regresso de uma viagem destinada à observação de golfinhos e baleias ao largo da ilha de S. Miguel, a Autora, na sequência de uma onda, foi projetada no ar do banco onde estava sentada.
2. Na sequência do salto, a Autora, ao cair no assento, sentiu de imediato uma sensação de dor crânio-caudal e falta de ar.
3. A Autora, no dia seguinte, face ao estado em que se sentia, deslocou-se ao Hospital do DESPD, E.P.E., local onde foi observada pela ortopedia por queixas de dorso-lombalgias com dor irradiada a hemicorpo direito, sem aparentes alterações neurológicas, fez RX que revelou fratura acunhamento anterior D11/12, e TC da coluna que revelou fratura com achatamento em cunha do corpo vertebral de D11, com ligeiro desvio intracanalar central do terço superior do muro posterior, reduzindo o diâmetro do canal vertebral com obliteração do espaço anterior do saco tecal, tendo-lhe sido aplicado colete de Jewett e ficado internada.
4. A Autora teve alta hospitalar no dia 29 de julho de 2015, com indicação de remover o colete quando estivesse no leito e marcha com canadianas, e esteve durante duas semanas em repouso absoluto em casa e totalmente necessitada da ajuda de terceira pessoa para todas as atividades da vida diária, mormente para transferências de local, higiene diária e vestir/despir, apoio este que se manteve nas duas semanas seguintes.
5. A Autora passou a ser seguida em consulta na Clínica do AL, onde iniciou tratamentos de fisioterapia em 18.08.2015, tendo completado oitenta e duas sessões de tratamento em 11.03.2016.
6. A Autora iniciou o desmame do lomboestato em 29.10.2015 e de forma total passado um mês.
7. A Autora foi igualmente seguida em consultas de ortopedia no Hospital do DESPD onde fez RX da coluna Lombar, coluna dorsal, ombro e articulação acrómioclavicular em 09.12.2016, tendo tido alta em 12.12.2016.
8. Por manter dor dorso-lombar, a Autora foi acompanhada na Clínica L, com indicação de manter fisioterapia e não realizar cargas axiais e onde consta fratura do tipo “A”, compressiva, com diminuição da altura somática inferior a 50% do corpo e sem critérios de instabilidade.
9. A data da consolidação médico-legal ocorreu em 12.10.2016.
10. O défice funcional temporário total foi de 30 dias.
11. O défice funcional temporário parcial foi de 477 dias.
12. A repercussão temporária da atividade profissional total foi de 97 dias.
13. O quantum doloris atingiu o grau 4 numa escala de 1 a 7.
14. O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica foi de 6 pontos.
15. A repercussão permanente na atividade profissional é compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas implica esforços suplementares.
16. A Autora nasceu no dia 20 de janeiro de 1981.
17. À data referida no ponto 1., a Autora não tinha qualquer incapacidade ou deformidade, era saudável, alegre, divertida e cheia de vida, incansável e plena de força e atividade, tinha um sono tranquilo, repousante e retemperador.
18. Após o acidente, a Autora sente dores nas costas quando circula de automóvel mercê das irregularidades do piso e as lombas na estrada, quando está sentada ou de pé mais de 15 minutos consecutivos, quando pega em objetos ou sacos com mais de 10kgs. e quando caminha usando sapatos salto alto, os quais deixou de usar.
19. Durante o sono, a Autora acorda quando se muda na cama por causa das dores e não consegue dormir mais de 8 horas seguidas devido às dores que sente pela imobilização.
20. A Autora ressente-se de imediato das costas quando faz movimentos mais bruscos.
21. A Autora sente-se afetada nas tarefas mais basilares do dia-a-dia, tal como lavar e estender roupa, lavar loiça e carregar a cesta.
22. A Autora é agente de viagens ao serviço da Agência de Viagens M, Lda., com sede na Rua ____, Ponta Delgada, auferindo o vencimento mensal base de € 1.100,00.
23. Para além do vencimento base, a Autora fazia pelo menos cinco vezes por semana, os transferes dos clientes (da agência) do aeroporto para o hotel, auferindo entre € 17 e € 25 consoante o número de pessoas a transportar, o que acrescia ao seu vencimento numa média mensal de € 250,00, registados na folha de vencimento como prémio de produção.
24. A Autora também prestava apoio aos cruzeiros, atividade remunerada quando realizada aos fins-de-semana à razão de € 75,00 por cada assistência, também pagas como prémio de produção, numa média de € 450,00 anuais.
25. A atividade de apoio aos cruzeiros exige estar muito tempo em pé.
26. A Autora também prestava assistência 24 horas aos clientes, estando de prevenção com um telemóvel, à razão de duas vezes por mês, auferindo € 100 por cada assistência, tendo deixado de o fazer no período referido no ponto 12.
27. A Autora deslocou-se a Lisboa, despendendo € 52,00 na viagem e € 168,00 na estadia, a fim de realização da consulta e elaboração do relatório médico, relativamente aos quais liquidou, respetivamente, € 90,00 e € 540,00.
Da contestação apresentada pela 1ª Ré:
28. As 1ª Ré e 2ª Ré celebraram um contrato de seguro de grupo do ramo vida, na modalidade de acidentes pessoais, titulado pela apólice nº ____ e vigente à data dos factos, o qual, no que ao caso releva, cobre o pagamento das prestações de despesas de tratamento até ao montante máximo de € 3.500,00, bem como invalidez permanente de terceiros clientes desta até ao montante máximo de € 20.000,00 na parte correspondente ao capital determinado pela tabela de desvalorização, e nos demais termos constantes das condições particulares e gerais a fls. 27v.-29. e 59-62.
29. A Autora recebeu da 1ª Ré, a título de despesas médicas/tratamento, o montante de € 1.095,78.
30. As 1ª Ré e 2ª Ré celebraram contratos de seguro do ramo responsabilidade civil (empresas de animação turística e operador marítimo – turístico) e marítimo (embarcações de recreio e marítimo – turísticas), titulados pelas apólices nº ____, ____ e ____ e vigentes à data dos factos, pelos quais assumiu a responsabilidade na medida em que possa ser imputável à segunda a título de culpa e nos termos de responsabilidade civil extracontratual, até ao montante global de € 250.000,00, deduzido de uma franquia a cargo do tomador no valor de 10% do montante de indemnização e no mínimo de € 250,00 euros, e nos demais termos constantes das condições particulares a fls. 67v.-69, 69v.-70v. e 71-71v.
Da contestação apresentada pela 2ª Ré
31. A Autora é uma profissional de turismo, conhecendo que a atividade de observação de baleias e golfinhos, em embarcações daquele tipo, por ser feita em mar aberto e com ondulação, e que, por menor que seja a velocidade, comporta sempre riscos, designadamente de projeção dos passageiros dos seus lugares.
32. Tais riscos foram, à data, explicados à Autora e a todos os demais passageiros, tendo esta, de forma voluntária, subscrito o documento a fls. 48-48v.
33. A 2ª Ré alertou os passageiros, incluindo a Autora, dos cuidados a ter durante a viagem, tendo prestado uma sessão de esclarecimento antes do seu início.
34. A embarcação em causa, denominada “G”, estava devidamente vistoriada e licenciada para a atividade de observação de baleias e golfinhos, é dotada de bancos, em parte individuais para cada um dos passageiros, encontrava-se em bom estado de conservação, e tinha a capacidade máxima de transporte de 36 passageiros e 2 tripulantes.
35. Na viagem do dia 25 de julho de 2015 a embarcação estava com a sua lotação quase esgotada.
36. O tempo encontrava-se bom, com vento de noroeste com força 2 a 3, e as ondas tiveram uma direção dominante de oeste, com cerca de um metro de altura, com uma sequência de 6 a 7 segundos.
37. A navegação ficou a cargo do Skipper PS, pessoa habilitado e experiente marinheiro e skipper com mais de quinze anos de experiência de navegação de embarcações daquele género e desta em particular, manobrando-a desde há mais de oito anos, e ciente das regras de segurança que impedem sobre as navegações a cargo da 2ª Ré.
38. PS efetuou aquela viagem adotando uma velocidade moderada que lhe permitia uma navegação segura e sem acidentes ou percalços, assim como direcionou a embarcação, para cómodo dos passageiros, no sentido de minimizar o impacto da ondulação que se fazia sentir para os passageiros nela transportados.
39. Nenhum passageiro, com exceção da Autora, chegado ao destino de chegada, Marina de Ponta Delgada, manifestou qualquer queixa, dano ou incómodo.
40. Nenhum outro passageiro foi projetado no ar, com saltos nas ondas ou com projeções dos seus lugares.
41. A Autora queixou-se de ligeiras dores nas costas, o que não a impediu de sair da embarcação pelo seu próprio pé, recusando quer ajuda ou cuidados do pessoal de apoio da 2ª Ré, quer mesmo ser acompanhada ao hospital, tendo abandonado a Marina de Ponta Delgada sem o auxílio de terceiros.
Da contestação apresentada pela Interveniente
42. As 2ª Ré e Interveniente celebraram um contrato de seguro de grupo do ramo acidentes pessoais, titulado pela apólice nº ____ e vigente à data dos factos, o qual tem por objeto a garantia do risco de acidente nas atividades inseridas num programa de animação turística, a decorrer em território nacional e organizado pela tomadora, e, no que ao caso releva, cobre o pagamento das prestações de despesas de tratamento até ao montante máximo de € 3.784,00, bem como invalidez permanente de terceiros clientes desta até ao montante máximo de € 21.605,00 na parte correspondente ao grau de desvalorização, e nos demais termos constantes das condições particulares e gerais a fls. 49-56v.
43. A Autora recebeu da Interveniente, a título de despesas médicas/tratamento, o montante de € 3.784,00, e, a título de proporção pela invalidez no capital total da cobertura, o montante de € 1.296,30.»
*
O tribunal a quo considerou não provado que:
«a) o salto da onda foi provocado pela elevada velocidade que o skipper imprimia na condução da embarcação, totalmente desadequada à ondulação agitada que se fazia sentir e ao tipo de embarcação de fibra de vidro, obrigando os ocupantes a tentarem agarrar-se, o melhor que podiam, às bordas da embarcação, de modo a não serem projetados dos seus lugares.
b) a Autora não consegue estar sentada ou de pé mais de 15 minutos consecutivos.
c) a Autora não consegue pegar em objetos ou sacos com mais de 10kgs.
d) a Autora não deve engravidar por causa do aumento de risco provocado pela gravidez, o que a afeta na sua qualidade de mulher e feminilidade e lhe causa um grande desgosto por acalentar o sonho de um dia poder ser mãe.
e) em razão do referido nos pontos 23. a 26., a Autora perdeu o cargo de chefe de departamento de reservas individuais.
f) a embarcação era do tipo "semirrígido" e, toda ela, era dotada de bancos individuais.»
*
3.2 - Do mérito do recurso:
3.2.1 - Questões prévias:
3.2.1.1 - Do pedido de notificação do Hospital do Divino Espirito Santo para prestação de informações:
Após as conclusões, a apelante requer o seguinte:
«(...) Notificação do Hospital do DESPD para informar se a cidadã sueca ASF deu entrada no Hospital DESPD, no dia 25/07/2015, se sim em que circunstâncias, quais as lesões apresentadas, a sua causa e origem, data da alta e sequelas por só após a prolação da sentença ter a A. conseguido obter a sua identificação.»
Na motivação do recurso a apelante afirmou o seguinte:
«Como refere a A. no seu depoimento, com a mesma embarcação e skipper, aquando da sua alta hospitalar deu entrada uma cidadã que agora soube ser de nacionalidade sueca e chamar-se ASF, conduzida ao hospital pela funcionária da Ré Picos de Aventura que foi visitar a A. ao Hospital.»
É evidente a falta de fundamento legal da pretensão da apelante, sendo de ponderar, face a requerimentos como aquele a que nos reportamos, e salvo o devido respeito, o modo como se litiga nos tribunais superiores e as pretensões que neles são formuladas.
Como é sabido, o art. 651.º do C.P.C., apenas permite às partes juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º do mesmo código, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (n.º 1), o que, evidentemente, não ocorre “in casu”; além disso, o documento deve sempre acompanhar a respetiva alegação.
Assim, sem necessidade de mais considerações, indefere-se a pretensão da apelante.
3.2.1.2 - Da rejeição do recurso interposto quanto à decisão sobre a matéria de facto:
A apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto, considerando que foram incorretamente julgados:
a) os pontos 31., 32., 33, 37., 38., 39., 40. e 41. dos factos considerados provados;
c) as als. a), d) e e) dos factos considerados não provados.
Nas suas contra-alegações a 2.ª ré pugna pela rejeição do recurso interposto da decisão sobre a matéria de facto, por entender que a apelante não cumpriu o ónus impugnativo estabelecido no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do C.P.C..
A 1.ª ré subscreveu a posição assumida pela 2.ª ré.
Dispõe a al. b) do n.º 1 do art. 640.º do C.P.C. que «quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (...) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», acrescentando a al. a) do n.º 2 que «no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.»
Não obstante declarar expressamente que impugna a decisão sobre os pontos 31., 32., 33, 37., 38., 39., 40. e 41. dos factos provados e as als. a), d) e e) dos factos não provados, a verdade é que, desde logo, em relação ao ponto 31. dos factos considerados provados e às als. d) e e) dos factos considerados não provados, a autora não especifica:
- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão diversa sobre aqueles enunciados de facto;
- qual a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre aqueles enunciados fáticos.
Assim, rejeita-se liminarmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, relativamente:
- ao ponto 31. dos factos provados;
- às als. d) e e) dos factos não provados.
E quanto aos pontos 32., 33, 37., 38., 39., 40. e 41. dos factos provados e à al. a) dos factos não provados? Será também de fazer incidir um juízo de rejeição da impugnação da decisão proferida em 1.ª instância quando a estes enunciados de facto por incumprimento, pela apelante, do ónus consagrado na al. b) do n.º 2 do art. 640.º do C.P.C.?
A propósito das exigências contidas no art. 640.º, nos seus n.ºs 1 e 2, al. a), do C.P.C., refere Abrantes Geraldes que as mesmas «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça. Rigor a que, por seu lado, deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida nos termos a que se referem na anotação do artigo 662.º.
Contudo, importa que não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador. Ou seja, jamais deve transparecer a ideia (...) de que a elevação do nível de exigência além dos parâmetros que a lei inequivocamente determina constitui, na realidade, um mero pretexto para recusar a apreciação do mérito da impugnação da decisão da matéria de facto, com invocação, do incumprimento de requisitos de ordem adjectiva ou, numa segunda oportunidade, com a explanação de argumentário de pendor genérico ou, numa segunda oportunidade, com a explanação de argumentário de pendor genérico em torno dos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, em lugar de uma efectiva reapreciação dos meios de prova.»[5].
Tal como vem sendo entendido, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência, há que extrair do art. 640.º do C.P.C., soluções suscetíveis de integrar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência a aspetos de ordem material em detrimento de argumentos de ordem formal.
No que à indicação das passagens das gravações concretamente diz respeito, afirma o citado Autor que «(…) se, em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exacta das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes do depoimento.»[6].
O S.T.J. tem vindo, também ele, a suavizar a rigidez literal com que, por vezes, aquele preceito vem sendo interpretado.
Assim sucedeu no acórdão de 29.10.2015, proferido no Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt, onde se decidiu, para o que aqui e agora interessa, que «face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do n.º 1 do art.º 640.º do CPC e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art.º 640.º, n.º 2, al. a), do CPC).
Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso.»
Nesta essa linha de entendimento, afirma-se no acórdão de 15.02.2018, Proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, que é de considerar «(...) que a razão de ser do ónus impugnativo estatuído na indicada alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do Recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do referido Código. Complementarmente, tal exigência constitui um fator de concentração da argumentação probatória do recorrente, numa base substancial, sobre a caracterização do erro de facto invocado, refreando, por outro lado, eventuais tendências para meras considerações de natureza generalizante e especulativa.
Todavia, importa não esquecer que o nível de exigência de exatidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados em audiência.
Assim sendo, perante depoimentos extensos ou prolongados mas obtidos de forma segmentada ou parcelada consoante determinados pontos ou blocos de facto, a exatidão das passagens bem poderá ser feita em função de tal recorte, de modo a deixar de fora as partes desses depoimentos irrelevantes para a matéria em causa. Tratando-se, porém, de depoimentos disseminados, prolixos ou saltitantes, sobre temas de prova de pendor genérico ou aberto, temos de admitir uma maior flexibilidade do critério de exatidão das passagens.
Impõe-se, pois, à luz dessas coordenadas, aferir a medida de proporcionalidade adequada à exatidão das passagens das gravações a que se refere o normativo aqui em foco.
Por isso mesmo é que a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face do grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efetuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso.»
No caso concreto, na motivação do recurso:
a) quanto aos pontos 32. e 33. dos factos provados, a apelante especifica, como meios probatórios que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida:
- o seu depoimento de parte: transcreve excertos desse depoimento, correspondentes às partes que considera relevantes para a alteração da decisão; indica as passagens da gravação onde se encontram esses excertos;
- o depoimento da testemunha PS: transcreve excertos desse depoimento, correspondentes às partes que considera relevantes para a alteração da decisão; indica passagens da gravação onde se encontram alguns desses excertos;
- o depoimento da testemunha NP: transcreve um excerto desse depoimento, correspondente à partes que considera relevante para a alteração da decisão; não indica qualquer passagem da gravação onde se encontra esse excerto.
b) quanto aos pontos 37. e 38. dos factos provados, a apelante especifica, como meios probatórios que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida:
- o seu depoimento de parte: transcreve um excerto desse depoimento, correspondente à parte que considera relevante para a alteração da decisão; não indica qualquer passagem da gravação onde se encontra esse excerto;
- o depoimento da testemunha MS, sua irmã: transcreve um curtíssimo excerto desse depoimento, correspondente à parte que considera relevante para a alteração da decisão; não indica qualquer passagem da gravação onde se encontra esse excerto;
- o depoimento da testemunha NP: transcreve um excerto desse depoimento, correspondente à parte que considera relevante para a alteração da decisão; não indica qualquer passagem da gravação onde se encontra esse excerto.
c) quanto aos pontos 39., 40. e 41. dos factos provados, a apelante especifica, como meio probatório que, em seu entender, impõe decisão diversa da recorrida:
- o seu depoimento de parte: transcreve excertos desse depoimento, correspondentes às partes que considera relevantes para a alteração da decisão; indica as passagens da gravação onde se encontram esses excertos.
d) quanto à al. a) dos factos não provados, a apelante especifica, como meio probatório que, em seu entender, impõe decisão diversa da recorrida:
- o seu depoimento de parte: transcreve excertos desse depoimento, correspondentes às partes que considera relevantes para a alteração da decisão; indica as passagens da gravação onde se encontram esses excertos.
Em seguida, especifica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida relativamente a cada um daqueles enunciados de facto.
Tendo em conta que:
- os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade - cfr. Ac. do STJ, de 28.04.2014, Proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1 (Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt;
- dever-se-á usar de maior rigor no apreciação cumprimento do ónus previsto no nº 1 do art. 640º (primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) - cfr. Ac. do STJ, de 29.10.2015, Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt;
- o ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação com exatidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável - cfr. Acs. do STJ, de 26.05.2015, Proc. n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1 (Hélder Roque) , de 22.09.2015, Proc. n.º 29/12.6TBFAF.G1.S1 (Pinto de Almeida), de 29.10.2015, Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 (Lopes do Rego) e de 19.01.2016, Proc. n.º 3316/10.4TBLRA-C1-S1 (Sebastião Póvoas) - onde se lê que o ónus em causa estará cumprido desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes, de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório -, todos in www.dgsi.pt;
- cumpre-se o ónus do art. 640º, nº 2, do C.P.C., quando não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da ata, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso - cfr. Ac. do STJ, de 29.10.2015, Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt; ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respetiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido - cfr. Ac. do STJ, de 18.02.2016, Proc. n.º 476/09.0TTVNG.P2.S1 (Mário Belo Morgado), in www.dgsi.pt;
- servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita na motivação do recurso - cfr. Acs. do STJ, de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes), de 01.10.2015, Proc. n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1 (Ana Luísa Geraldes), de 03.12.2015, Proc. n.º 3217/12.1TTLSB.L1-S1 (Melo Lima), de 11.02.2016, Proc. n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1 (Mário Belo Morgado), de 03.03.2016, Proc. n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1 (Ana Luísa Geraldes) e de 21.04.2016, Proc. n.º 449/10.0TVVFR.P2.S1 (Ana Luísa Geraldes), todos in www.dgsi.pt;
- não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu uma determinada orientação jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640º - cfr. Ac. do STJ, de 09.06.2016, Proc. n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1 (Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt;
- a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação - cfr. Ac. do STJ, de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt[7],
face ao procedimento adotado pela recorrente, que se deixou descrito, não é de rejeitar o recurso da decisão quanto enunciados descritos sob os pontos 32., 33, 37., 38., 39., 40. e 41. dos factos provados e sob a al. a) dos factos não provados, tanto mais que não se vê que a recorrida tenha revelado dificuldade quanto ao exercício, nesta sede, do direito ao contraditório.
Isto, claro está, apesar de a técnica adotada pela apelante estar longe de constituir um exemplo do que deve ser a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2.1.3 - Da incorreta enunciação factológica:
Conforme referem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, «em lugar de a sentença ser, qual navio graneleiro, o mero repositório dos factos tidos por assentes e dos factos emergentes das respostas aos pontos da base instrutória, é agora mais evidente que tal peça processual deve ser elaborada com base em princípios de racionalidade, em que a matéria de facto apurada revele, de forma escorreita e segundo uma enunciação lógica ou cronológica, a realidade que será juridicamente integrada no segmento posterior.»[8].
Tomé Gomes, por sua vez, refere que «os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar.
A ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário.
Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto - que se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da falta de impugnação - na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver.
De resto, só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do C.P.C.
Por exemplo, (...) numa ação emergente de responsabilidade civil por acidente de viação, deve consignar-se, em primeiro lugar, a factualidade concernente à infraestrutura do acidente (local, tempo, condições viárias, etc.), depois os factos respeitante aos comportamentos ilícitos ou aos fatores de risco da manobra efetuada e só por fim os danos causados[9].
A sentença recorrida, elencando:
- sob os pontos 1. a 27., os factos que resultaram provados de entre os alegados pela autora na petição inicial
- sob os pontos 28. a 30., os factos que resultaram provados, de entre os alegados pela 1.ª ré na sua contestação;
- sob os pontos 31. a 41., os factos que resultaram provados, de entre os alegados pela 2.ª ré na sua contestação;
- sob os pontos 42. e 43., os factos que resultaram provados, de entre os alegados pela interveniente na sua contestação,
 faz, à luz do quadro normativo que acaba por aplicar, contido nos arts. 483.º, n.º 1 e 493.º, n.º 2, do Código Civil[10], uma inadequada ordenação dos factos provados.
3.2.2 - Da alteração da decisão sobre a matéria de facto:
Admitido parcialmente, nos termos expostos, o recurso da decisão sobre a matéria de facto, importa agora decidir se o mesmo deve ser julgado procedente.
Na audiência prévia o senhor juiz a quo enunciou, além de outros, os seguintes temas da prova:
«a) Termos da contratação da viagem (artigos 34.º a 43.º da contestação da 2.ª ré);
b) Dinâmica do acidente (artigos 1.º a 3.º da petição inicial e artigos 5.º a 33.º e 95.º a 101.º da contestação da 2.ª ré.»
Na mesma diligência, a 1.ª ré requereu a prestação de depoimento de parte da autora à matéria dos temas da prova enunciados nos termos referidos em a) e b) supra[11].
Ainda na audiência prévia, o senhor juiz a quo deferiu «o depoimento de parte da Autora quanto aos temas da prova a) e b) (...).»
Como se sabe, quando uma das partes requer o depoimento da parte contrária, tem-se em vista que esta confesse, que emita uma declaração de ciência (não uma declaração constitutiva, dispositiva ou negocial), pela qual (...) reconhece a realidade dum facto que lhe é desfavorável (“contra se pronuntiatio”), dum facto cujas consequências jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto, à outra parte, à parte que requer o depoimento, nos termos do art. 342º - cfr. art. 352º.
Os temas da prova, constituindo a vertente normativa ou jurídica dos factos principais, assumem normalmente um cariz vago, genérico, por vezes conclusivo e até jurídico, representando um instrumento delimitador do âmbito da atividade instrutória da causa, que terá por objeto mediato, como se frisou, não os temas da prova enunciados, mas os concretos factos jurídicos em que eles se traduzem e desdobram, e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos dos arts. 607.º, n.ºs 3 e 4, do C.P.C.[12].
Por outras palavras, apesar do art. 410.º dispor que a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados, ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os concretos factos jurídicos incorporados no processo que incide a produção de prova através da atuação dos respetivos meios de prova, tal como decorre dos arts. 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, do C.P.C., e não, repete-se, sobre os temas de prova enunciados.
Admitindo-se que o senhor juiz a quo, quando deferiu «o depoimento de parte da Autora quanto aos temas da prova a) e b) (...).», o fez, não relativamente àqueles dois temas da prova, de caráter vago e genérico, mas aos concretos factos jurídicos em que eles se traduzem e desdobram, e sobre os quais deveria incidir o juízo probatório, não se compreende, desde logo, a admissão do depoimento de parte da autora à matéria por si alegada nos arts. 1.º a 3.º da petição inicial.
Por outro lado, alguns dos enunciados vertidos nos artigos da contestação apresentada pela 2.ª ré, identificados em a) e b) supra, têm cariz vago, genérico e conclusivo.
Adiante, no entanto!
O tribunal a quo motivou assim a decisão sobre os pontos 32., 33. 37., 38. e 39. a 41. dos factos provados e sobre a al. a) dos factos não provados:
«A esmagadora maioria da prova produzida em audiência – correlacionadamente com a (extremada) posição das partes já expressa, a montante, nos articulados – centrou-se na matéria enunciada nos temas da prova a) e b), qual seja os termos da contratação da viajem (pontos 31. a 33.) e a dinâmica do acidente [pontos 1. e 34. a 41. e alínea f)].
A Autora, em sede de depoimento de parte, com reporte à matéria constante dos pontos 31., 32. (em parte), 34. (em parte), 35., 37. (em parte), 39. (em parte), 41. (em parte), confessou que a embarcação estava em bom estado de conservação, que, à data, nela seguia um número na ordem de 38 pessoas, estando a lotação quase esgotada, que a navegação ficou a cargo do skipper PS, que não se apercebeu de outros passageiros se terem queixado (à exceção da sua própria irmã MS), que dali saiu (embarcação e Marina) pelo seu próprio pé, que tem consciência de que a atividade em causa, em embarcações daquele tipo, pode ser feita em mar aberto e com ondulação, oferecendo riscos, e que é profissional de turismo.
No mais, a Autora procurou reafirmar, sobretudo, a matéria constante da alínea a), desde logo a elevada velocidade que o skipper terá imprimido na condução da embarcação, determinante do salto da onda, desadequada à forte ondulação que se fazia sentir. A cit. testemunha MS, que acompanhava a Autora na viajem marítima, pretendeu sustentar esta tese, mas mostrou-se muito parcial, confusa e, inclusivamente, parcialmente contrária àqueloutra (ex: referência de que a pancada foi no início da viagem, no sentido poente – nascente, seguindo o barco muito depressa porque não queria perder as baleias que haviam sido localizadas a nascente, e que o mar estava todo o tempo mexido), tanto mais no confronto com o depoimento do cit. PS (o dito skipper) e de NP, bióloga e marinheira, responsável pelo acompanhamento do grupo. Estes, em uníssono, descreveram os procedimentos de segurança adotados antes e durante a viagem, as condições climatéricas e marítimas – muito boas, na opinião de ambos, tal como resulta da informação do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, I.P., a fls. 47-47v., não sendo minimamente uma viagem “de voltar para trás” (sendo até frequente a embarcação sair sob condições mais adversas), até porque obtiveram informação dos “vigias” de que a ondulação era fraca e não ultrapassava sequer um metro (e não se deu o caso de a ondulação ter mudado já no decurso da viagem) – a concreta velocidade moderada no regresso a Ponta Delgada, sentido nascente/poente (por várias razões: segurança, conforto dos clientes, poupança no combustível e desgaste mínimo na embarcação, tendo a testemunha PS aventado que seguiria a uns 18 nós quando a velocidade máxima, em lotação, é de cerca de 32 nós), as características da embarcação, o efeito do peso (de várias toneladas) em “rasgar” as ondas (que vinham de proa, pelo que a embarcação seguia “contra a vaga”) e, de um modo geral, a tranquilidade e segurança na viagem, sendo que antes do preciso momento do acidente, ninguém – nem mesmo a Autora, conforme esta também mencionou – se queixou da velocidade, das (más) condições marítimas, de desconforto, de receio, etc. Estes dois depoimentos mostraram-se sólidos, coerentes, consentâneos com a ausência de qualquer outro episódio semelhante (sendo que, inclusivamente, várias pessoas idosas integravam o grupo). É certo que o salto da Autora terá sido provocado por uma onda. Mas não é menos certo que, não obstante o infortúnio, terá ocorrido num contexto de normalidade de navegação [não tendo a Autora conhecimentos náuticos, a sua referência à velocidade excessiva afigura-se-nos meramente subjetiva (conforme salientou a 2ª Ré nas suas alegações orais, tal conclusão não encontra “validação técnica”)]. Aliás, a cit. testemunha PS mencionou que este foi o único acidente grave com que se deparou na sua carreira profissional, sendo que conhece a embarcação em questão desde 2004. A cit. NP também realçou as qualidades pessoais e profissionais daqueloutro, tendo-o como uma pessoa “experiente”, “cuidadoso”, “sabe o que está a fazer”…
Deste modo, e em suma, no confronto entre ambas as versões, demos prevalência aqueles dois depoimentos, merecedores de inteira credibilidade. De resto, querendo muscular a tese que trouxe aos autos, a Autora sempre podia ter arrolado outros passageiros como testemunhas (designadamente os que se mostram referenciados no documento a fls. 48v.) e não o fez, tendo optado pela exclusiva indicação da sua irmã.»
Considera a apelante que:
a) o ponto 32. deve passar a ter a seguinte redação: «A A. e os demais passageiros assinaram de forma voluntária o documento de fls. 48 e 48 verso»;
b) o ponto 33. deve ser considerado «não provado», ou «provado apenas quanto a quem não devia embarcar: pessoas com problemas cardíacos, de coluna e grávidas»;
c) o ponto 37. deve passar a ter a seguinte redação: «A navegação ficou a cargo do skipper PS»;
d) os pontos 38. a 40. devem ser considerados não provados;
e) o ponto 41. deve passar a ter a seguinte redação: «A autora queixou-se de dores ligeiras, saindo da embarcação apoiada pelo pessoal de apoio da 2.ª ré»;
Relativamente à al. a) dos factos não provados:
- na motivação do recurso, considera a apelante que deve ser considerado provado que «o salto de onda foi provocado pela velocidade que o skipper imprimia na condução da embarcação ao cortar as ondas»;
- nas conclusões afirma que deve considerar-se provado que «o salto da onda foi provocado pela velocidade que o skipper imprimia na condução da embarcação ao cortar as ondas de frente fazendo com que a A. fosse projetada de lugar e ao cair desapoiada no assento sofresse o acidente».
Quanto aos pontos 32. e 33., impugna a decisão com base no seu próprio depoimento de parte e nos depoimentos das testemunhas PS e NP.
Uma nota para referir que a alusão feita pela apelante, em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ao depoimento de parte que prestou em audiência, enquanto meio probatório que, a seu ver, juntamente com alguns depoimentos testemunhais, impõem a decisão que propugna quanto aos pontos 32., 33. 37., 38., 39., 40. e 41. dos factos provados e à al. a) dos factos não provados, é devida, seguramente, a manifesto lapso da sua parte, pois pretenderia, por certo, dizer declarações de parte.
Na audiência final, a autora, ora apelante, prestou, quer depoimento de parte (arts. 352.º e 355.º, n.ºs 1 e 2 e 356.º, n.º 2, e arts. 452.º, n.º 2, 453.º, n.º 3, 454.º, n.º 1 e 456.º, n.º 1 e 463.º, estes do C.P.C.), quer declarações de parte (466.º, n.ºs 1 a 3, do C.P.C.).
O resultado do depoimento de parte, nos segmentos em que houve confissão da apelante, é o que decorre da assentada que consta da ata da 1.ª sessão da audiência final realizada no dia 28 de fevereiro de 2020, e a que se reportam fls. 134-139 dos autos.
A matéria objeto da assenta não respeita, naturalmente, a qualquer um dos pontos de facto impugnados pela apelante.
É entendimento uniforme, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que no âmbito de um depoimento de parte, valem como declarações de parte, sujeitas, portanto, à livre apreciação do julgador, as declarações do depoente que não constituam matéria de confissão.
Além disso, na 2.ª sessão da audiência final realizada no dia 15 de outubro de 2020 (e não 2018, conforme por lapso consta da respetiva ata), foi requerida e deferida a prestação de declarações de parte da autora, ora apelante, nos termos do art. 466.º, do C.P.C., a determinada matéria da petição inicial e da contestação da 2.ª ré, tudo conforme consta da ata que se encontra a fls. 143-145.
Ora, ouvidas as respetivas gravações, nada resulta das declarações de parte da autora, nem do depoimento das testemunhas PS e NP, que imponha, quanto aos pontos 32. e 33. dos factos provados, decisão diferente da proferida pelo tribunal.
Na verdade, resulta inequívoco dos depoimentos das testemunhas PS (é skipper de profissão desde há 16 anos; é funcionário da 2.ª ré desde 2009; era o skipper da embarcação no momento do sinistro) e NP (é bióloga, embora exerça também atividades complementares como marinheira e skipper; exerce tais atividades por conta da 2.ª ré; à data do sinistro era a pessoa que recebia os clientes nas instalações da 2.ª ré; era a responsável pelos briefings de segurança prévios ao embarque dos clientes, foi a responsável pelo briefing ocorrido antes da viagem a que se reportam os presentes autos; acompanha também os passageiros, clientes da 2.ª ré, nas viagens marítimas, na qualidade de marinheira, situação que se verificou na viagem em que ocorreu o sinistro retratado neste processo, viagem essa que declarou ter bem presente na sua memória, apesar de decorridos cinco anos após o evento, por ter sido a primeira vez que em que ocorreu um sinistro desta natureza. Ambas as testemunhas esclarecerem em que é que consistiam os referidos briefings. No que ao caso sub judice concretamente diz respeito, a testemunha NP concretizou em que é consistiu o briefing prévio à viagem em que ocorreu o sinistro a que se reportam os presentes autos, especificando as recomendações que deu a todos os passageiros, entre elas a apelante, e dos eventuais riscos que a viagem comportava.
Mantém-se, por isso, inalterada a decisão sobre os pontos 32. e 33. dos factos provados.
Quanto aos pontos 37. e 38., a apelante impugna a decisão com base no seu próprio depoimento de parte e no depoimento da testemunha MS, sua irmã.
A veracidade do enunciado vertido no ponto 37. resulta inequívoca dos depoimentos das testemunhas PS e NP. A testemunha PS descreveu a experiência acumulada ao longo de anos no exercício da atividade de skipper, o que foi inteiramente confirmado pelo depoimento da testemunha NP.
No tocante ao ponto de facto 38., os dizeres «efetuou aquela viagem adotando uma velocidade moderada que lhe permitia uma navegação segura e sem acidentes ou percalços», traduz-se num juízo conclusivo.
A matéria de facto de uma sentença, tal como decorre do art. 607.º, n.º 4, do CPC, deve ser integrada, não por meras conclusões, abstrações, conceitos vagos ou de direito, mas apenas por factos jurídicos, tal como os definiu Rosenberg, ou seja, os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico[13].
Dispunha o n.º 4 do art. 646.º do CPC/95-96, que «têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Trata-se de uma disposição que o legislador processual civil de 2013 não manteve, pelo menos em termos de correspondência direta, na disciplina homóloga do CPC/2013.
Naquela disposição não estava contemplada a circunstância de se tratar de matéria de natureza vaga, genérica e conclusiva.
No entanto, foi-se consolidando na jurisprudência dos tribunais superiores, por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico, a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva, o entendimento de que apesar de o n.º 4 do art. 646.º do CPC/95-96, não contemplar, expressamente, a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, o mesmo era aplicável, analogicamente, a situações em que estivesse em causa um facto de tal natureza, o qual, em retas contas, é reconduzível à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integrasse no thema decidendum[14].
Na afirmativa, a proposição será conclusiva se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, devendo, por isso, ser expurgada[15].
Ante a eliminação da norma contida no n.º 4 do art. 646.º do CPC/1995-96, vem-se entendendo poder manter-se o mesmo entendimento das coisas interpretando, a contrario sensu, o atual n.º 4 do art. 607.º, do CPC/2013, segundo o qual, «na fundamentação da sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados (...)»[16].
Assim, traduzindo-se o segmento do enunciado descrito sob o ponto 38. dos factos provados «efetuou aquela viagem adotando uma velocidade moderada que lhe permitia uma navegação segura e sem acidentes ou percalços», num juízo meramente conclusivo, há que expurgá-lo, considerando-o não escrito.
O demais que neste ponto de facto se mostra enunciado, resulta provado pelos depoimentos das testemunhas PS e NP, que descreveram o modo como a embarcação foi pilotada.
Assim, o ponto 38. dos factos provados passará a ter a seguinte redação:
«PS pilotou a embarcação procurando minimizar o impacto da ondulação que se fazia sentir, para cómodo dos passageiros nela transportados.»
Quanto aos pontos 39. a 41., a apelante impugna a decisão com fundamento apenas nas suas declarações.
Mais uma vez, os depoimentos das testemunhas PS e NP atestam, de forma categórica a veracidade daqueles enunciados de facto.
O primeiro confirmou a inexistência de qualquer outro incidente ou de registo de queixas de outros passageiros; confirmou igualmente, sem dúvidas ou hesitações, todo o teor do enunciado a que se reporta o ponto de facto 41., tendo referido que à chegada a terra, no regresso, esteve «de roda da senhora», tendo constatado que a mesma saiu da embarcação pelo seu próprio pé, prescindindo da ajuda ou dos cuidados, quer do pessoal de apoio da 2.ª Ré, quer de um médico, tendo abandonado a marina de Ponta Delgada sem o auxílio de terceiros. O mesmo foi reiterado pela testemunha NP, que reafirmou ter bem presente a situação por ter sido a primeira vez que um incidente daquele tipo ocorreu. Salientou que no final da viagem, já na marina de Ponta Delgada, se abeirou da apelante, perguntando-lhe se se encontrava bem, disponibilizando-se a chamar uma ambulância que a conduzisse ao hospital para realizar um check-in, o que aquela recusou, saindo da embarcação pelo seu próprio pé, referindo apenas uma «dorzinha».
Termos em que, também relativamente aos pontos 39. a 41. dos factos provados, improcede a impugnação da apelante.
Resta a al. a) dos factos não provados.
À semelhança do referido supra relativamente à expressão «velocidade moderada», também a expressão «elevada velocidade» mais não é do que um mero juízo conclusivo.
Seja como for, não resulta de qualquer prova produzida nos autos, nomeadamente das declarações de parte da apelante, que o sinistro por si sofrido foi consequência da velocidade que o skipper PS imprimia à embarcação.
Termos em que, também quanto à decisão sobre a al. a) dos factos não provados, improcede a impugnação da apelante.
3.2.3 - Reordenação da matéria de facto:
Considerando que a ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário, cumprindo, por isso, ao juiz, na sentença, ordenar a matéria de facto segundo a perspetiva do quadro normativo das questões a resolver, passa a enunciar-se da seguinte forma a matéria de facto provada:
1. No dia 25 de julho de 2015, quando se encontrava a bordo de uma embarcação propriedade da 2ª Ré, no regresso de uma viagem destinada à observação de golfinhos e baleias ao largo da ilha de S. Miguel, a autora, na sequência de uma onda, foi projetada no ar do banco onde estava sentada.
2. Na sequência desse salto, a autora, ao cair no assento, sentiu de imediato uma sensação de dor crânio-caudal e falta de ar.
3. A autora, devido à sua profissão, sabia que a atividade de observação de baleias e golfinhos, em embarcações do tipo daquela em que decorreu a viagem referida em 1., por ser feita em mar aberto e com ondulação, e por menor que seja a velocidade, comporta sempre riscos, designadamente de projeção dos passageiros dos seus lugares.
4. Tais riscos foram, à data, explicados à autora e a todos os demais passageiros, tendo esta, de forma voluntária, subscrito o documento a fls. 48-48v.
5. A 2ª ré alertou os passageiros, incluindo a autora, dos cuidados a ter durante a viagem, tendo prestado uma sessão de esclarecimento antes do seu início.
6. A embarcação referida em 1., denominada “G”, tinha a capacidade máxima de transporte de 36 passageiros e 2 tripulantes;
7. (...) sendo dotada de bancos, em parte individuais para cada um dos passageiros.
8. Naquela data encontrava-se em bom estado de conservação;
9. (...) estando devidamente vistoriada e licenciada para a atividade de observação de baleias e golfinhos;
10. Na viagem referida em 1., a embarcação estava com a sua lotação quase esgotada.
11. O tempo encontrava-se bom, com vento de noroeste com força 2 a 3;
12. (...) e as ondas tiveram uma direção dominante de oeste, com cerca de um metro de altura, com uma sequência de 6 a 7 segundos.
13. A navegação ficou a cargo do Skipper PS;
14. (...) pessoa habilitada e experiente marinheiro;
15. (...) skipper com mais de quinze anos de experiência de navegação em embarcações daquele género;
16. PS manobrava a embarcação identificada em 6. havia mais de oito anos, com referência à data indicada em 1.;
17. É pessoa conhecedora das regras de segurança que impedem sobre as navegações a cargo da 2ª ré.
18. No circunstancialismo de tempo e lugar referidos em 1, PS pilotou a embarcação procurando minimizar o impacto da ondulação que se fazia sentir, para cómodo dos passageiros nela transportados.
19. Nenhum passageiro, com exceção da Autora, chegado ao destino de chegada, Marina de Ponta Delgada, manifestou qualquer queixa, dano ou incómodo.
20. Nenhum outro passageiro foi projetado no ar, com saltos nas ondas ou com projeções dos seus lugares.
21. No final da viagem referida em 1., a autora queixou-se de ligeiras dores nas costas;
22. (...) o que não a impediu de sair da embarcação pelo seu próprio pé;
23. (...) recusou ajuda ou cuidados do pessoal de apoio da 2.ª ré;
24. (...) assim como recusou ser conduzida ao hospital;
25. (...) tendo abandonado a Marina de Ponta Delgada sem o auxílio de terceiros.
26. No dia seguinte ao referido em 1., face ao estado em que se sentia, a autora deslocou-se ao Hospital do DESPD, E.P.E., local onde foi observada pela ortopedia por queixas de dorso-lombalgias com dor irradiada a hemicorpo direito, sem aparentes alterações neurológicas, fez RX que revelou fratura acunhamento anterior D11/12, e TC da coluna que revelou fratura com achatamento em cunha do corpo vertebral de D11, com ligeiro desvio intracanalar central do terço superior do muro posterior, reduzindo o diâmetro do canal vertebral com obliteração do espaço anterior do saco tecal, tendo-lhe sido aplicado colete de Jewett e ficado internada.
27. Teve alta hospitalar no dia 29 de julho de 2015, com indicação de remover o colete quando estivesse no leito e marcha com canadianas, e esteve durante duas semanas em repouso absoluto em casa e totalmente necessitada da ajuda de terceira pessoa para todas as atividades da vida diária, mormente para transferências de local, higiene diária e vestir/despir, apoio este que se manteve nas duas semanas seguintes.
28. Passou a ser seguida em consulta na Clínica do AL, onde, no dia 18.08.2015, iniciou tratamentos de fisioterapia, tendo, no dia 11.03.2006, completado oitenta e duas sessões.
29. A Autora iniciou o “desmame” do lomboestato em 29.10.2015, o qual terminou passado um mês.
30. Foi igualmente seguida em consultas de ortopedia no Hospital do DESPD onde fez RX da coluna Lombar, coluna dorsal, ombro e articulação acrómioclavicular em 09.12.2016, tendo tido alta em 12.12.2016.
31. Por manter dor dorso-lombar, a autora foi acompanhada na Clínica L, com indicação de manter fisioterapia e não realizar cargas axiais e onde consta fratura do tipo “A”, compressiva, com diminuição da altura somática inferior a 50% do corpo e sem critérios de instabilidade.
32. A data da consolidação médico-legal ocorreu em 12.10.2016.
33. O défice funcional temporário total foi de 30 dias.
34. O défice funcional temporário parcial foi de 477 dias.
35. A repercussão temporária da atividade profissional total foi de 97 dias.
36. O quantum doloris atingiu o grau 4 numa escala de 1 a 7.
37. O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica foi de 6 pontos.
38. A repercussão permanente na atividade profissional é compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas implica esforços suplementares.
39. A autora nasceu no dia 20 de janeiro de 1981.
40. À data referida em 1. não tinha qualquer incapacidade ou deformidade, era saudável, alegre, divertida e cheia de vida, incansável e plena de força e atividade, tinha um sono tranquilo, repousante e retemperador.
41. Após o acidente, passou a sentir dores nas costas quando circula de automóvel mercê das irregularidades do piso e das lombas na estrada;
42. (...) quando está sentada ou de pé mais de 15 minutos consecutivos;
43. (...) quando pega em objetos ou sacos com mais de 10kgs.; e
44. (...) quando caminha usando sapatos salto alto, os quais deixou de usar.
45.  A autora acorda quando muda de posição na cama por causa das dores que sente;
46. (...) e não consegue dormir mais de 8 horas seguidas devido às dores que sente pela imobilização.
47. A autora ressente-se de imediato das costas quando faz movimentos mais bruscos;
48. (...) e sente-se afetada nas tarefas mais básicas do dia-a-dia, tais como lavar e estender roupa, lavar loiça e carregar a cesta.
49. A autora é agente de viagens ao serviço da Agência de Viagens M, Lda., com sede na Rua ____, Ponta Delgada;
50. (...) auferindo dessa atividade o vencimento mensal base de € 1.100,00.
51. Para além do vencimento base, à data referida em 1. a autora fazia pelo menos cinco vezes por semana, os transferes dos clientes da agência onde trabalha, do aeroporto para o hotel;
52. (...) com o que acrescia ao seu vencimento, mensalmente e em média, a quantia de € 250,00, registada na sua folha de vencimento como prémio de produção.
53. A Autora também prestava apoio aos cruzeiros, atividade que era remunerada quando realizada aos fins-de-semana, à razão de € 75,00 por cada assistência, também pagas como prémio de produção, numa média anual de € 450,00.
54. A atividade de apoio aos cruzeiros exige a permanência de muito tempo em pé.
55. A autora também prestava assistência aos clientes durante 24 horas, estando de prevenção, com um telemóvel, à razão de duas vezes por mês, auferindo € 100 por cada assistência;
56. (...) tendo deixado de o fazer no período referido em 35.
57. A autora deslocou-se a Lisboa para uma consulta e elaboração de relatório médico;
58. (...) tendo despendido € 52,00 na viagem;
59. (...) € 168,00 com a estadia;
60. (...) € 90,00 na consulta;
61. (...) € 540,00 com a elaboração do relatório médico.
62. Entre a 1ª ré, na qualidade de seguradora, e a 2ª ré, na qualidade de tomadora/segurada, foi celebrado um contrato de seguro de grupo do ramo vida, na modalidade de acidentes pessoais, titulado pela apólice nº ____, vigente à data referida em 1., do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Pessoas seguras: Ocupantes da embarcação até ao máximo de 38.
(...)
Riscos: Acidentes ocorridos durante atividades turísticas a bordo da embarcação G II
Coberturas e Capitais por Pessoa Segura:
Morte ou invalidez permanente                                     € 20.000,00
Despesas de tratamento                                      € 3.500,00
(...)».
63. No âmbito daquela apólice, a autora recebeu da 1ª ré a quantia de € 1.095,78, a título de despesas médicas e de tratamentos.
64. Entre a 1.ª ré, na qualidade de seguradora, e a 2.ª ré, na qualidade de tomadora/ segurada, foram ainda celebrados os seguintes contratos de seguros, todos vigentes à data referida em 1.:
64.1. O contrato de seguro titulado pela apólice nº ____, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Ramo                                                     Resp. Civil Exploração
(...)
Plano de coberturas                         Empresas Animação Turística
(...)
Coberturas                                                         Capital(is) Seguro(s)
Valor p/sinistro e anuidade ou vigência                250.000,00 €
A presente apólice de seguro garante a Responsabilidade Civil legalmente imputável à entidade segurada por danos emergentes de lesões corporais e/ou materiais causados aos utilizadores e a terceiros em consequência do exercício da(s) atividade(s) identificadas nestas condições particulares», entre elas, os «passeios marítimo-turísticos.»
64.2. O contrato de seguro titulado pela apólice nº ____, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Ramo                                            Marítimo-Embarcações Recreio
(...)
Plano de coberturas                         Embarc. Marítimo-Turísticas
(...)
Coberturas                                                         Capital(is) Seguro(s)
Cobertura A - Responsabilidade Civil                  250.000,00 €
(...)
Matrícula           Nome
00-0-0000           G II
Declarações:
Responsabilidade Civil dos Operadores Marítimo-Turísticos
Garante a responsabilidade Civil emergente da actividade de Operador marítimo-turístico imputável ao Segurador por danos materiais e/ou corporais causados aos utilizadores ou a terceiros, por ações ou omissões suas, dos seus representantes ou das pessoas ao seu serviço, pelas quais possa ser civilmente responsabilizado (...).
(...)
Âmbito de cobertura
Fica garantida a Responsabilidade Civil extracontratual legalmente imputável ao Segurado, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, decorrentes da exploração da actividade de marítimo-turístico que compreende a prática das actividades acima referidas (...).
(...)
Classificação da actividade marítimo-turística da embarcação
- Passeios marítimo-turísticos com programas previamente estabelecidos e organizados
Tipo de embarcação
- Embarcação registada como Auxiliar, designada como Marítimo Turística
Área de navegação (Embarcação Auxiliar)
- Zona Costeira
Franquias aplicáveis
Danos próprios - 1% do valor da embarcação, no mínimo de 150,00
Responsabilidade Civil - 10% do valor do sinistro, no mínimo de 250,00.»
64.3. O contrato de seguro titulado pela apólice nº ____­, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Ramo                                            Resp. Civil Exploração
(...)
Plano de coberturas                         Operador Marítimo-Turístico
(...)
Coberturas                                                         Capital(is) Seguro(s)
Valor p/sinistro e anuidade ou vigência                250.000,00 €
A presente apólice de seguro garante a Responsabilidade Civil legalmente imputável à entidade segurada por danos emergentes de lesões corporais e/ou materiais causados aos utilizadores e a terceiros em consequência do exercício da actividade de Operador Marítimo-Turístico expressamente identificada nestas Condições Particulares.
A presente apólice de seguro corresponde ao legalmente exigido pelo Regulamento da Actividade Marítimo-Turística (RAMT) quanto à obrigação de segurar.»
65. Entre a interveniente AP e a 2.ª ré, na qualidade de tomadora, foi celebrado o contratos de seguro de grupo do ramo acidentes pessoais, titulado pela apólice nº ____, vigente à data referida em 1., do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Coberturas                                                 Capitais por pessoa
(...)
Invalidez permanente por acidente                      21.605,00 euros
Despesas de Tratamento por acidente                  3.782,00 Euros
(...)
«O presente Contrato de grupo tem por objeto a garantia do risco de acidente de que possam ser vítimas as Pessoas Seguras, na sequência da sua participação nas atividades inseridas num programa de Animação Turística, a decorrer em território nacional e organizado pela entidade Tomadora do Seguro, durante o período de duração do mesmo» - al. a) do art. 1.º do Capítulo II
66. A autora recebeu da AP, a título de despesas médicas/tratamento, o montante de € 3.784,00, e, a título de proporção pela invalidez no capital total da cobertura, o montante de € 1.296,30.
*
3.3 - Enquadramento jurídico:
A autora fundamenta a sua pretensão indemnizatória com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual subjetiva, matéria relativamente à qual o preceito-regra reside no nº 1 do artigo 483º, nele se dispondo que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:
- o facto ilícito (facto voluntário violador de direitos alheios ou de interesses juridicamente protegidos);
- a culpa, ou seja, o nexo de imputação do facto ao agente, a título de dolo ou negligência;
- o dano ou prejuízo; e,
- o nexo de causalidade entre este e o comportamento do agente (danos resultantes da violação ou causados pelo facto).
Compete a quem demanda a alegação e prova de todos aqueles pressupostos, nos termos do n.º 1 do art. 342.º.
Na sentença recorrida, o tribunal a quo considerou que as lesões sofridas pela autora resultaram de uma atividade desenvolvida pela 2.ª ré, que considerou perigosa, nos termos do n.º 1 do art. 493.º.
Por isso, entendeu que não competia à autora provar os elementos de facto atinentes à culpa da 2.ª ré, contrariamente ao que sucederia por aplicação do n.º 1 do art. 487.º.
Porém, o senhor juiz a quo considerou que a 2.ª ré demonstrou ter empregado todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, ou seja, entendeu que a exercente da atividade perigosa ilidiu a referida presunção de culpa decorrente do n.º 2 do art. 493.º.
No recurso, a apelante além de defender que a 2.ª ré não logrou ilidir tal presunção, pugna para que, caso assim se não entenda, haja lugar a indemnização com base na responsabilidade objetiva ou pelo risco, ao abrigo disposto no art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Dec. Lei n.º 124/2004, de 25.05, vigente à data do sinistro.
Vejamos, em primeiro lugar, se a atividade exercida pela 2.ª ré é, efetivamente, uma atividade perigosa, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 493.º, segundo o qual «quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.»
O citado preceito consagra um daqueles casos excecionais de presunção de culpa, presunção «juris tantum», de quem exerce uma atividade perigosa[17].
Significa isto que o lesado não terá que provar os elementos de facto atinentes à culpa, contrariamente ao que sucederia por aplicação do n.º 1 do art. 487.º.
Como lapidarmente se lê no Ac. do S.T.J. de 21.11.1978, Proc. nº 067305, in www.dgsi.pt, «(...) a lei estabelece uma presunção de culpa do autor do dano (artigo 493º, nºs 1 e 2, do Cód. Civil) mas essa presunção incide apenas sobre o elemento subjectivo da responsabilidade (não sobre o facto ilícito e a causalidade que têm de ser provados pelo próprio lesado - artigo 342 do Código Civil)».
O tribunal a quo entendeu que a atividade marítimo-turística em causa nos presentes autos, de observação de baleias e golfinho, prevista no art. 4.º, n.º 2, al. a) do Dec. Lei n.º 108/2009, de 15.05, exercida pela 2.º ré, é uma atividade perigosa.
Será assim?
«Atividade perigosa» é um conceito aberto, indeterminado, que a lei não define, nem em geral, nem para os efeitos do disposto na norma, limitando-se a relacionar a perigosidade com a natureza da atividade ou dos meios utilizados.
O legislador, ao não dar, e bem, uma definição concreta do que deve entender-se por atividade perigosa, para efeitos do n.º 2 do art. 493.º, remete para a doutrina e para a jurisprudência o papel de densificação do conceito, pelo que será em face das circunstâncias do caso concreto que se determinará se determinada atividade é ou não perigosa.
O n.º 2 do art. 493.º constitui uma reprodução quase literal do artigo 2050.º do Código Civil Italiano, segundo o qual «aquele que ocasiona dano a outrem no exercício de uma actividade perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios empregados, é obrigado a indemnizá-los, se não provar ter adoptado todas as medidas idóneas a evitar o prejuízo.»
Rui Ataíde afirma que no n.º 2 do art. 493.º, o legislador português, na esteira do legislador italiano, recorreu «à combinação de uma cláusula geral legal com um conceito indeterminado.»[18].
A doutrina italiana entende que «atividades perigosas», para efeitos do artigo 2050º, são as que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras atividades e que a periculosidade da atividade deve existir no exercício da atividade considerada em abstrato, sem se atender, portanto, à inexperiência de quem a exerce. Se a atividade, não abstratamente perigosa, se torna tal pela inexperiência de quem a exerce, aplica-se a regra geral segundo a qual cabe ao prejudicado a prova da culpa.
A mesma doutrina tem ainda entendido que no exercício de uma atividade perigosa, a previsibilidade do dano está em in re ipso e o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para os terceiros.
Os deveres inerentes à normal diligência seriam em tal caso insuficientes porque, onde a periculosidade está ínsita na ação, há o dever de proceder tendo em conta o perigo.
O dever de evitar o dano torna-se mais rigoroso quando se atua com a nítida previsão da sua possibilidade.
O sujeito deve, pois, em tais casos, adotar, mesmo que com sacrifícios, todas as medidas aptas para evitar o dano.
Quais devam ser tais medidas, di-lo-ão as particulares normas técnicas ou legislativas, inerentes às especiais atividades, ou as regras da experiência comum; certo é que as lesões evitáveis devem ser ressarcidas.
Só para as lesões absolutamente inevitáveis é excluída a responsabilidade.
De Cuspis refere que a Cassação italiana afirmou, acerca do que sejam «atividades perigosas», que não são só as mencionadas na lei de segurança pública ou as previstas em leis especiais em vista da sua periculosidade, mas todas as que têm uma periculosidade intrínseca ou em relação aos meios de trabalho utilizados: que tal é a colocação de condutas no subsolo das estradas, o levantamento das pedras na via pública sem interrupção do tráfego de peões, o exercício de uma serração elétrica com depósito anexo de troncos de madeira, o exercício de uma pedreira[19].
Assim, no seguimento da doutrina italiana, segundo Vaz Serra, devem ser consideradas perigosas, segundo uma apreciação casuística, tendo em conta as circunstâncias, aquelas «que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, mais ainda, a probabilidade de receber um dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada de outras actividades.»[20].
Para Almeida Costa, deve tratar-se de uma atividade que, pela sua própria natureza ou pela natureza ou pela natureza dos meios utilizados, «tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral.»[21].
Uma atividade é perigosa, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 493.º se, em razão da sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, a ela andar ligada a ameaça de danos a terceiros, a forte probabilidade de lesões ou a potencialidade de provocação de danos.
O preenchimento do conceito aberto ou indeterminado de «atividade perigosa» pressupõe, assim, uma especial probabilidade de «aquela concreta atividade» desenvolvida pelo lesante, causar um dano a terceiro; ou seja, é necessário que a concreta atividade desenvolvida pelo lesante acarrete um perigo que exceda, que vá para além do que é normal noutras atividades, que seja expectável que dela possam resultar danos que, em termos de normalidade, não ocorreriam noutra atividade.
Considera-se, por conseguinte, perigosa, uma atividade, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 493.º, quando o perigo que encerra acompanhe o seu correto e adequado exercício; por outras palavras, uma atividade deve ser considerada perigosa, mesmo enquanto «tudo correr bem» e ainda que «tudo corra bem», e não aquela que apenas recebe tal qualitativo quando algo corre mal e o dano acontece, posto que a perigosidade há-de estar no processo e não no resultado.
Uma atividade deve, pois, ser considerada perigosa «quando o perigo lhe for constitucional», isto é, quando o perigo acompanhar o seu bom exercício, pelo que a mesma não deixará de ser assim qualificada, se, porventura, a sua boa prática evitou que dela resultasse a produção de quaisquer danos.
Não é o resultado que determina a qualificação de uma atividade como perigosa, posto que tal qualificativo depende unicamente do perigo que objetivamente a sua prática encerrar, independentemente dele se materializar, ou não[22].
No Ac. do S.T.J. de 17.05.2017, Proc. n.º 150/11.1TBOAZ.P1.S1 (António Piçarra), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «é actividade perigosa, para o efeito, aquela que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes, e que essa perigosidade deve ser aferida a priori e em abstracto e não em função dos resultados danosos, em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade ou risco dessa actividade.»
Neste sentido, afirma Rui Ataíde que a indagação, que deve ser de natureza técnico-científica, acerca da perigosidade da atividade, «numa área em que abundam as incertezas motivadas pela pluralidade de fatores que são convocados para auxiliar a determinação da perigosidade, constitui uma tarefa que tem sempre por base juízos ex ante, ou seja, abstraindo da gravidade e dimensão dos danos efetivamente ocorridos.»[23].
Em conclusão: a presunção de culpa vertida no n.º 2 do art. 493.º justifica-se exatamente pela ideia de perigosidade, pela esfera de risco/responsabilidade, que existe antes mesmo de o agente ter atuado.
Tanto a doutrina como a jurisprudência têm densificado o conceito de atividade perigosa através da apresentação de exemplos extraídos de casos concretos.
No que à navegação marítima concretamente diz respeito, Antunes Varela considera-a uma atividade perigosa[24].
Maria da Graça Trigo, citada por Mariana Isabel Velosa e Ferreira, entende que, em regra, a atividade de navegação marítima não poderá ser considerada uma atividade perigosa, nem pela sua natureza, nem pela natureza dos meios utilizados. Só assim não será, conforme sustenta, quando, em função das caraterísticas e finalidades da embarcação, a atividade se deva considerar perigosa – a título de exemplo, veja-se o caso das embarcações, de recreio ou desportivas, com certa potência[25].
No caso concreto, tal como da judiciosa argumentação expendida na sentença recorrida, com a qual concordamos, estamos perante uma atividade «efetivamente perigosa, em sentido normativo e material, por ser levada a efeito em embarcações adaptadas para o efeito, ao ar livre e no mar, sujeita às inerentes imprevisibilidades climatéricas e marítimas. Trata-se de uma atividade náutica inteiramente exposta, por natureza, aos riscos e às vicissitudes do meio natural, conforme, de resto, a própria 2ª Ré reconhece nos autos (essa é a razão da subscrição daquele documento e, bem assim, da norma interna da comunicação e explicação dos riscos, antes da viagem, numa sessão de esclarecimento/ briefing (...).»
Tanto assim é, aliás, que o legislador estabeleceu, no art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Dec. Lei n.º 124/2004, de 25.05, em vigor à data dos factos, uma norma especial de responsabilidade objetiva ou pelo risco, ao estabelecer que «os proprietários e os comandantes de ER são solidariamente responsáveis, independentemente da culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pelas ER, salvo se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado»[26].
Conforme pertinentemente refere Rui Ataíde, como pontos de vista genericamente orientadores para aferição de uma atividade perigosa, «servem alguns dos critérios que valem como pilares da imputação pelo risco, demonstrando a relação de intercomunicabilidade que a este nível liga o objeto das cláusulas gerais atinentes ao exercício de atividades perigosas com o das regras especiais de responsabilidade objetiva e, por consequência, a fluidez de fronteiras que as separa. Assim, perigosa será toda a atividade de que promana uma elevada probabilidade lesiva ou, em alternativa, um extraordinário potencial danoso; porém, qualquer destas aptidões - que pode ser veiculada por dados retirados seja experiência comum, seja de tipo estatístico ou elementos técnicos - tem que ser cotejada com a eficácia plausível das medidas de segurança que possam ser adotadas, tornando os respetivos perigos razoavelmente controláveis.»[27].
Concorda-se, pois, com o decidido na sentença recorrida, no sentido de que, no caso concreto, estamos, efetivamente, perante uma atividade perigosa, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 493.º
Neste quadro, à autora incumbia a prova:
- da perigosidade da atividade;
- de que a 2.ª ré era a sua exercente; e,
- da causalidade entre o(s) perigo(s) típico(s) que a caracterizam ou individualizam e a lesão danosa por si sofrida,
o que significa que lhe competia convencer o tribunal que o resultado lesivo por si sofrido representou a concretização do perigo ou perigos justificativos do atributo de perigosidade impendente sobre aquela concreta atividade[28].
No caso concreto está feita a prova:
- da perigosidade da atividade de transporte de pessoas numa embarcação de recreio no mar ao largo da ilha de São Miguel, Açores, para observação de golfinhos e baleias;
- de que a exercente dessa atividade era a 2.ª ré [29];
- do nexo causal entre o perigo típico característico da atividade exercida pela 2.ª ré e as lesões sofridas pela autora.
Consequentemente, competia à 2.ª ré fazer prova de que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos.
É aqui, na utilização do pronome indefinido «todas», que reside, tal como destaca Rui Ataíde, o «nó górdio» do art. 493.º, n.º 2[30].
O tribunal a quo considerou que a 2.ª ré demonstrou ter empregado todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, ou seja, entendeu que a exercente ilidiu a presunção decorrente do n.º 2 do art. 493.º.
É a seguinte a fundamentação expressa na sentença recorrida:
«A jurisprudência tem procurado delimitar o grau de exigência que os Tribunais devem seguir na tarefa de elisão da presunção, mormente não deixando que se torne numa operação irrazoável ou (praticamente) impossível. Parte-se do princípio que o legislador assumidamente não pretendeu transformar a responsabilidade civil subjetiva, ainda que assente em culpa presumida, em responsabilidade objetiva ou pelo risco. “(…) Um tal entendimento tornaria praticamente impossível ilidir aquela presunção, já que, como a realidade o demonstra com frequência, por mais diligência que fosse exercida para prevenir a ocorrência de sinistros, jamais se esgotariam as medidas que, em abstracto, seriam susceptíveis de o evitar … se acaso tivessem sido adoptadas (…)”[31]. Isto é, não tendo o legislador optado por um modelo de responsabilidade objetiva, uma tal solução não pode ser contrariada através da adoção de critérios de tal modo rígidos ou rigorosos no que concerne à elisão da presunção de culpa que acabem por produzir a um resultado idêntico ao que aquele pretendeu evitar.
A 2ª Ré, no caso dos autos, procurou alegar um conjunto de factos tendentes a ilidir tal presunção, concluindo que tudo fez para evitar este – ou qualquer outro semelhante – acidente.
Acompanhamos esta posição.
Com efeito, resultou demonstrado que: a 2ª Ré promoveu uma sessão explicativa dos riscos e cuidados a observar durante a atividade de observação de baleias e golfinhos (...); a embarcação estava devidamente vistoriada e licenciada para a atividade, encontrava-se em bom estado de conservação e foi cumprida a capacidade máxima de lotação (...); as condições climatéricas e marítimas eram boas para a prática náutica em questão (...); a embarcação foi conduzida por um experiente marinheiro/ skipper e conhecedor das regras de segurança que impedem sobre as navegações a cargo daquela (...); foi adotada uma velocidade moderada e cuidada no sentido de minimizar o impacto da ondulação (...); e, num universo de mais de três dezenas de passageiros, mais ninguém sofreu ou manifestou queixas, danos ou incómodos (...).
Nesta arquitetura procedimental, e sem prejuízo do infortúnio ocorrido por força da inopinada onda, a 2ª Ré não podia razoavelmente ter feito algo mais para evitar o acidente…, sendo que a não realização da viagem – num contexto de reunião de condições favoráveis para o efeito – consubstanciaria a negação da sua atividade comercial (!).
Concluímos, assim, pela ausência de culpa por parte da 2ª Ré, em razão do que deverá ser absolvida do pedido.»
Será assim?
O n.º 2 do art. 493.º emprega a expressão «exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir», enquanto que nos antecedentes preceitos, que igualmente estabelecem presunções de culpa do lesante, se utiliza:
- no art. 491.º, a expressão «salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido»;
- no n.º 1 do art. 492.º, a expressão «salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos»;
- no n.º 1 do art. 493.º, a expressão «salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua».
Comparando as previsões destes preceitos com a previsão do n.º 2 do art. 493.º, é de questionar se o legislador não terá pretendido estabelecer, no caso das atividades perigosas, um grau de diligência mais rigoroso em comparação com as situações previstas nos preceitos que o antecedem e acabados de citar.
Por exemplo, Almeida Costa considera que não, pois, em seu entender, a expressão «todas as providências» não afasta o critério geral da diligência do homem médio, embora, (...) adaptada aqui (...) ao caso das actividades perigosas, que exigem particulares cautelas.»[32].
Vaz Serra afirma que o n.º 2 do art. 493.º, ao impor ao agente o dever de adotar todas as diligências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos «não parece significar que se não trate, afinal, da diligência do bom pai de família, adaptada ao caso da actividade perigosa, já que, sendo perigosa essa actividade, um bom pai de família deve adoptar medidas ou providências especialmente adequadas a prevenir os danos.»[33].
No entanto, Menezes Leitão refere que a responsabilização prevista no n.º 2 do art. 493.º «parece ser estabelecida a um nível mais objectivo do que o que resulta das disposições anteriores, uma vez que além de não se prever a elisão da responsabilidade com a demonstração da relevância negativa da causa virtual, parece exigir-se ainda a demonstração de um grau de diligência superior à das disposições anteriores, uma vez que, em lugar da simples prova da ausência de culpa (apreciada nos termos do art. 487.º, n.º 2), o legislador exige a demonstração de que o agente “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir” os danos, o que parece apontar para um critério mais rigoroso de apreciação da culpa, ou seja, para o critério da culpa levíssima.»[34]. Ou seja, segundo o Autor, o n.º 2 do art. 493.º veio estabelecer um critério mais rigoroso de culpa apreciação da culpa, em comparação com o critério consagrado no n.º 2 do art. 487.º, ou seja, do homem médio, do bom pai de família medianamente diligente, quando colocado nas circunstâncias de cada caso.
No mesmo sentido aponta Brandão Proença, ao afirmar que «se é verdade que a jurisprudência e a doutrina que, entre nós, se têm pronunciado sobre a questão, defendem que a tese segundo a qual, no artigo 493.º, 2, não existe uma agravamento do padrão ordinário de diligência, mas uma adaptação à periculosidade da actividade, convém não esquecer que estamos perante esferas que se situam na raia do risco e cuja probabilidade e intensidade danosas ninguém deve olvidar», pelo que, segundo este Autor, estamos para além da tensão normal de cuidado, impondo-se, por isso, ao agente, critério de diligência agravado, que seja proporcional à periculosidade da concreta atividade por si desenvolvida[35].
Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira afirmam, a este respeito, que «em boa medida poderá considerar-se justificada - não só pelo argumento textual, que parece favorecer o entendimento de que o n.º 2 se situa num patamar de exigência superior no que toca à diligencia demonstrada pelo lesante, mas também pelo argumento teleológico, que, de forma semelhante, sugere que, em virtude da perigosidade imanente à atividade danosa, o lesante que dela retira algum benefício deve respeitar os mais elevados padrões de diligência e cuidado - uma interpretação que vê neste caso a imposição de um critério de culpa levíssima, ou de uma responsabilidade objetiva impuríssima. A mesma ratio parece estar subjacente ao facto de, ao contrário do que sucede nos artigos 491.º, 492.º, n.º 1 e 493.º, n.º 1, não ser atribuída aqui qualquer relevância à causa virtual; é por força da especial perigosidade da atividade em causa e numa tentativa de reduzir a possibilidade de produção de danos no seu exercício, que, para além de se exigir um maior cuidado do que aquele que é exigido, em geral, em sede de responsabilidade civil, se recusa a relevância a uma causa virtual (ou do comportamento lícito alternativo) do dano efetivamente verificado.»[36].
No rigor das coisas, afirma Mariana Isabel Velosa e Ferreira, «no exercício de uma atividade perigosa, ao lesante não basta provar que agiu com os cuidados que um homem normal, em circunstâncias igualmente normais e de acordo com a diligência de um bom pai de família, conforme exige o art. 487º, nº 2. Há um plus que se lhe impõe e que decorre da própria perigosidade da atividade em causa, pois (...) todo este regime assenta no princípio da prevenção do perigo e os deveres que recaem sobre o agente são deveres especiais de cuidado – são, como afirmámos, deveres de segurança no tráfego.
(...) o agente, de acordo com o regime do art. 493,º, n.º 2, para além de ter de afastar a negligência grosseira, segundo o critério da “culpa grave”, e a omissão da diligência do bonus pater familias, com base no critério da “culpa leve”, tem ainda de afastar a “situação em que a conduta do agente só não seria realizada por uma pessoa excepcionalmente diligente (…), uma vez que mesmo um homem médio não a conseguiria evitar”, conforme exige o critério da “culpa levíssima”. Por tudo isto, é que, para alguns, o sistema previsto no art. 493º, nº 2, impõe uma forma de “responsabilidade subjetiva agravada” ou “objetiva atenuada”»[37].
Segundo Rui Ataíde, há que buscar a compreensão do nosso art. 493.º, n.º 2, na Exposição do Motivos do Código Civil Italiano de 1942, pois que a redação daquele preceito representa a tradução quase integral do art. 2050.º daquele código.
Assim, dando conta da evolução quer do pensamento, quer da doutrina quer da jurisprudência transalpina, e após afirmar que a expressão «todas» veicula um conceito absoluto, incapaz de reger o comportamento humano, e que «nem sequer ao sujeito mais meticuloso é possível em tempo algum levar a cabo todas as providências exigidas pelas circunstâncias para evitar fenómenos lesivos mas apenas as mais capazes, idóneas e aptas para as prevenir»[38]esclarece que após uma fase inicial em que prevaleceu a conceção tradicional da presunção de culpa, foi progressivamente ganhando apoio, tanto na doutrina como na jurisprudência, o entendimento, hoje maioritário, que responsabiliza «o exercente, não por este não ter providenciado todas as medidas aptas à prevenção do dano mas por não provar positivamente a causa do evento, estranha à sua esfera de atividade», com o que se proclamou explicitamente a natureza objetiva da responsabilidade prevista no art. 2050.º do Cód. Civil Italiano.
Esse facto externo, estranho à esfera de atividade do lesante teria que revestir as características próprias do facto fortuito (numa aceção ampla) enquanto evento inevitável e imprevisível, que rompesse a relação causal entre o exercício da atividade perigosa e a lesão danosa[39], assim sa caindo no âmbito da responsabilidade objetiva.
Por isso, prossegue o Autor a que nos vimos reportando, «(...) não sendo, assim, possível, provar diretamente a observância de “todas” as cautelas necessárias, só por via indireta se consegue satisfazer o ónus liberatório, comprovando positivamente que a causa real do evento lesivo se reportou a um facto alheio ao complexo de meios que consubstancia o exercício da atividade perigosa. Embora literalmente apegado a um elemento subjetivo e ainda que de modo preterintencional em relação ao confesso intuito legislativo, o artigo 493º/2 acolheu uma “falsa” presunção de culpa, uma vez que não é ilidida pela prova da falta de culpa. À demonstração de um comportamento juridicamente conforme às competentes disposições legais e regulamentares, especificando o cumprimento dos respetivos deveres jurídicos, pode ser sempre oposta uma medida alternativa de segurança imposta pelas regras da experiência comum e idónea para obstar ao dano, que infirma a diligência do exercente, esvaziando o conteúdo da prova liberatória enquanto reportada às medidas preventivas nominalmente impostas por lei.»[40].
Ainda segundo Rui Ataíde, «a decisão legal de agravar a responsabilidade de quem exerce atividades perigosas goza de plena justificação material no plano dos princípios delituais. Se a vigilância de incapazes naturais, coisas e animais, bem como a posse de construções que, na filosofia legislativa, são meras fontes de perigo, já estavam oneradas por presunções de culpa, a condução de perigos declarados postula, em tese, um tratamento jurídico especialmente severo, por se revelar mais elevada, por definição, a probabilidade de lesões danosas, impondo, desta forma, um standard superior à diligência devida.
Todavia, a adequada conversão jurídico-positiva destes diferentes estalões depende da evolução facultada pela ciência jurídica. Ora, até hoje, ainda não foi possível criar um critério intermédio de imputação situado entre a culpa e o risco: ou bem que se impõem deveres de conduta cuja violação, se culposa, gera responsabilidade subjetiva avaliada segundo o parâmetro do bonus pater familias ou bem que a imputação de danos se afirma sem que haja infração de qualquer dever de conduta e a responsabilidade basta-se então com a realização do risco tipificado; não existe um terceiro fundamento de imputação, abstraindo das importantes considerações autónomas mas aqui dogmaticamente irrelevantes, que fundam a responsabilidade pela confiança ou pela prática de factos lícitos. (...).
Presumir que os danos causados pelo exercício de uma actividade perigosa se devem à falta ou deficiência de medidas de cuidado mas impedir a ilisão pela demonstração do seu normal cumprimento, apenas admitindo a prova positiva do facto estranho à esfera do exercente que precipitou a lesão, representa a equiparação prática entre a prova liberatória imposta pelo artigo 493º/2 e os meios de exoneração que sempre assistem aos sujeitos sobre quem impende uma imputação pelo risco, significando a fratura da própria espinha dorsal do sistema português de responsabilidade civil, constituída por uma cláusula geral de imputação delitual e por previsões típicas de imputação pelo risco. Esta orientação, embora permitida pela letra de um enunciado legal dogmaticamente inextricável, deve, por conseguinte, ser rejeitada, dado que, a ser tratado enquanto previsão de imputação pelo risco, o artigo 493º/2 integraria uma cláusula geral de responsabilidade objetiva atinente ao exercício de atividades perigosas, contrariando frontalmente a decisão legislativa de subordinar a obrigação de indemnizar sem culpa ao princípio do numerus clausus (artigo 483º/2), sem que existam sequer os imperativos de coordenação sistemática com outras previsões específicas que, em Itália, comandaram o processo gradual de objetivação da prova liberatória do artigo 2050° do Códice.
Procedem agora todas as objeções anteriormente deduzidas contra as cláusulas gerais de imputação pelo risco (...), que reduziriam o princípio da culpa a nichos marginais de responsabilidade, com a dupla agravante de, por um lado, nem sequer se dispor de um elemento restritivo, proporcionado, respetivamente, pelas suas formulações doutrinárias do “perigo especial” ou do “perigo aumentado” ou da especial perigosidade das atividades, coisas ou serviços administrativos que limitam a responsabilidade pelo risco do Estado e demais pessoas coletivas de direito público (...) e, por outro, de não se exigir o aproveitamento de qualquer vantagem como fundamento de responsabilização do exercente.
Entre nós, os ditames de unidade sistemática impõem uma solução oposta à italiana, ou seja, a determinação do conteúdo da prova liberatória tem que obedecer em simultâneo a dois parâmetros fundamentais que só aparentemente são contraditórios: contê-la dentro dos limites do princípio da culpa, expurgando-a da obstrução literal criada pelo artigo 493º/2 e acatar a intencionalidade legislativa, materialmente justificada, de criar um regime de responsabilidade mais severo para o exercício das atividades perigosas.»[41].
Neste sentido, no Ac. do S.T.J. de 13.03.2007, Proc. n.º 07A96 (Nuno Cameira) in www.dgsi.pt, decidiu-se que «(...) nas situações enquadráveis nesta norma a presunção de culpa do agente é ili­dida pela demonstração de que actuou, não apenas como teria actuado o bom pai de família pressuposto no art.º 487º, nº 1 – uma pessoa medianamente cautelosa, atenta, informada e sagaz – mas, mais do que isso, empregando todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar os danos. Por isso se diz que o caso previsto neste art.º 493º, nº 2, representa uma respon­sabilidade subjectiva agravada ou objectiva atenuada – uma solução intermédia entre uma e outra – de modo tal que o lesante, insiste-se, só fica exonerado quando tenha adoptado todos os procedimen­tos idóneos, segundo o estado da ciência e da técnica ao tempo em que actua, para evitar a eclosão dos danos.»
Sendo sabido que a doutrina e a jurisprudência portuguesas sufragam, ainda hoje, maioritariamente, o entendimento segundo o qual agravação que para o lesante resulta do disposto no n.º 2 do art. 493.º, já opera por via do critério do bonus pater familiae, ou seja, que a apreciação da culpa de acordo com o critério do bom pai de família também atende à particulares circunstâncias destes atividades e aos perigos que as mesmas encerram, o que não deixa de constituir uma válida e eficaz tutela dos direitos e interesses dessas atividades, posicionamo-nos com aqueles, entre os quais se destacam os Autores citados, pelas razões vertidas nos trechos que se deixaram citados, que entendem não bastar ao exercente, para ficar isento de responsabilidade, isto é, para afastar a presunção de culpa decorrente do n.º 2 do art. 493.º, alegar e provar que agiu com o cuidado que habitualmente teria o homem médio, em circunstâncias normais, para impedir a ocorrência de danos, mas, antes, que agiu com o cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente e prudente teria para prever o dano e evitá-lo – critério do diligentissimus pater familiae.
Daqui resulta, evidentemente, uma graduação mais apertada e rigorosa da culpabilidade do agente, pelos danos decorrentes do exercício de atividades perigosas, ou seja, um nível de “culpa levíssima”[42].
Vejamos, então, à luz dos considerandos que antecedem, se a 2.ª ré empregou, no caso concreto, todas as providências exigidas pelas circunstâncias do caso concreto, com o fim de prevenir os danos sofridos pela autora, ora apelante, não se acolhendo, por conseguinte, o entendimento sufragado pela sentença recorrida que avaliou a conduta da exercente pelo critério geral de diligência do «bonus pater familiae».
Entendemos que não!
Perante a factualidade provada e à luz daquele que nos parece ser, do ponto de vista dogmático, o melhor ângulo de análise e interpretação do n.º 2 do art. 493.º, entendemos que a 2.ª ré não logrou ilidir a presunção de culpa para si decorrente do citado preceito, ou seja, não logrou demonstrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
É que, não basta provar que:
a) à autora e a todos os demais passageiros foi explicado que a atividade de observação de baleias e golfinhos, em embarcações do tipo daquela em que decorreu a viagem referida em 1. dos factos provados, por ser feita em mar aberto e com ondulação, e por menor que seja a velocidade, comporta sempre riscos, designadamente de projeção dos passageiros dos seus lugares;
b) a 2ª ré alertou os passageiros, incluindo a autora, dos cuidados a ter durante a viagem, tendo prestado uma sessão de esclarecimento antes do seu início;
c) a embarcação referida em 1. dos factos provados, denominada “G”, tinha a capacidade máxima de transporte de 36 passageiros e 2 tripulantes, sendo dotada de bancos, em parte individuais para cada um dos passageiros;
d) naquela data a embarcação encontrava-se em bom estado de conservação, estando devidamente vistoriada e licenciada para a atividade de observação de baleias e golfinhos;
e) na viagem referida em 1. dos factos provados, a embarcação estava com a sua lotação quase esgotada;
f) o tempo encontrava-se bom, com vento de noroeste com força 2 a 3, e as ondas tiveram uma direção dominante de oeste, com cerca de um metro de altura, com uma sequência de 6 a 7 segundos;
g) a navegação ficou a cargo do Skipper PS, pessoa habilitada e experiente marinheiro, skipper com mais de quinze anos de experiência de navegação em embarcações daquele género;
h) PS manobrava a embarcação havia mais de oito anos, com referência à data indicada em 1. dos factos provados, sendo pessoa conhecedora das regras de segurança que impedem sobre as navegações a cargo da 2ª ré.
i) no circunstancialismo de tempo e lugar referidos em 1. dos factos provados, PS pilotou a embarcação de modo a minimizar o impacto da ondulação que se fazia sentir, para cómodo dos passageiros nela transportados;
j) nenhum passageiro, com exceção da Autora, chegado ao destino de chegada, Marina de Ponta Delgada, manifestou qualquer queixa, dano ou incómodo;
k) nenhum outro passageiro foi projetado no ar, com saltos nas ondas ou com projeções dos seus lugares.
Perante tal factualidade, consideramos que a 2.ª ré não logrou ilidir a presunção de culpa para si decorrente do n.º 2 do art. 493.º, o mesmo é dizer que não logrou demonstrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
A factualidade atrás descrita não significa a prova, pela 2.ª ré, do emprego, por si, de todas as providências exigidas pelas circunstâncias do caso concreto, com o fim de prevenir a projeção da apelante do lugar onde era transportada na embarcação de recreio.
Desde logo, não se apuram, as concretas características da embarcação.
Nem o modo e as circunstâncias em que ocorreu a projeção da apelante no ar do banco onde estava sentada.
Não se sabe, sequer, a velocidade a que seguia a embarcação, de modo a concluir-se que era a adequada ao concreto circunstancialismo de tempo e lugar em que navegava quando ocorreu projeção da autora do lugar em que era transportada, não bastando, como se viu, a vaga e conclusiva alegação de que o skipper «efetuou aquela viagem adotando uma velocidade moderada que lhe permitia uma navegação segura e sem acidentes ou percalços.»
Não se sabe, sequer, quais as concretas condições em que a apelante foi transportada durante a viagem e, sobretudo, as condições em que tal ocorria quando ocorreu o sinistro.
Na verdade, não se conhecem as características do banco onde a apelante estava sentada quando foi projetada no ar.
Não se sabe, por exemplo:
- se se encontrava sentada num banco individual ou num banco corrido, com assento para várias pessoas, pois apenas está provado que a embarcação «era dotada de bancos, em parte individuais para cada um dos passageiros», não se provando que «a embarcação (...) toda ela, era dotada de bancos individuais»;
- se os bancos tinham, por exemplo, apoios aos quais os passageiros se pudessem agarrar manualmente para evitarem desequilíbrios ou projeções no ar em consequência da agitação marítima ou do embate da embarcação contra as ondas;
- se os bancos tinham cintos de segurança impeditivos da projeção dos passageiros no ar em consequência da agitação marítima ou do embate da embarcação contra as ondas.
O descrito em a) a f) supra não representa o cumprimento da prova liberatória por parte da 2.ª ré, o que apenas ocorreria se tivesse sido feita a prova positiva do sinistro, ou seja, da causa pela qual a apelante foi projetada no ar, para, assim, se ter a certeza do cumprimento, por aquela, de todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos por esta sofridos.
Importa ainda realçar que a prova positiva da causa do acidente não significa, evidentemente, como decorre daquela que consideramos a melhor interpretação do n.º 2 do art. 493.º, a demonstração de que foram levadas a cabo todas as medidas necessárias para obstar aos danos sofridos pela apelante, mas apenas a demonstração de que não foi por falta dessas providências que tais danos ocorreram. É, como afirma Rui Ataíde, com referência ao Ac. do TRL de 29.06.2000, C.J., XXV, 3.º, 131 (Marcos Rodrigues) «a demonstração indireta do intuito fundamental prosseguido pelo codificador.».
Entendemos, assim, contrariamente ao entendimento sufragado pelo tribunal a quo, que sendo perigosa a atividade exercida pela 2.ª ré, esta não logrou demonstrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos sofridos pela apelante, o mesmo é dizer, não logrou ilidir a presunção de culpa consagrada no n.º 2 do art. 493.º
Importa agora referir que, mesmo que assim não fosse, ainda que se considerasse ilidida, pela 2.ª ré, a presunção de culpa decorrente daquele preceito, jamais se poderia acompanhar a sentença recorrida na afirmação de que, «pela ausência de culpa por parte da 2.ª ré (...) deverá ser absolvida do pedido.»
Na verdade, após considerar ilidida pela 2.ª ré, a presunção de culpa decorrente no n.º 2 do art. 493.º, concluiu a sentença recorrida pela sua absolvição do pedido, por entender não verificado um dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, a única que considera poder ser efetivada no caso concreto quanto àquela ré.
Nos termos do n.º 2 do art. 483.º «só existe obrigação de indemnizar independentemente da culpa nos casos especificados na lei.»
Um dos casos especificados na lei é, precisamente, o previsto no já referido art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Dec. Lei n.º 124/2004, de 25.05, o vigente à data do sinistro[43], que sob a epígrafe «Responsabilidade por danos a terceiros», dispõe que «os proprietários e os comandantes de ER [embarcações de recreio] são solidariamente responsáveis, independentemente da culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pelas ER, salvo se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado.»
Consagra-se neste preceito, manifestamente, um daqueles casos excecionais, típicos de responsabilidade objetiva ou pelo risco, a que alude o n.º 2 do art. 483.º.
Por conseguinte, ainda que 2.ª ré tivesse logrado ilidir a presunção de culpa decorrente do n.º 2 do art. 493.º, sempre responderia pelos danos sofridos pela apelante, nos termos dos 483.º, n.º 2, do Cód. Civil, e do art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Dec. Lei n.º 124/2004, de 25.05, com base na responsabilidade objetiva ou pelo risco, caso em que lhe seriam extensivas, na parte aplicável e por inexistirem preceitos legais em contrário, as disposições reguladoras da responsabilidade por factos ilícitos, nomeadamente o art. 494.º (art. 499.º).
É que, não obstante a ação ter sido intentada com fundamento em culpa da PA, sempre o tribunal poderia, não se provando a culpa, decidir com base no risco, sem incorrer em excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C..
Trata-se de uma questão hoje em dia pacífica, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
Tal como afirma Antunes Varela, «a causa de pedir, nas acções de indemnização, não consistirá na culpa do agente (mesmo tratando-se de responsabilidade fundada na prática de factos ilícitos), mas também não se limita ao dano sofrido pelo autor. Como facto jurídico donde procede o pedido (artº 498, nº 4, do Cód. Proc. Civ.), a causa de pedir neste tipo de acção especial abrange todos os pressupostos da acção de indemnizar.
Quando, porém, o autor pede em juízo a condenação do agente na reparação do dano, num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente (a menos que haja qualquer declaração em contrário) que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. Interpretar à letra, rigidamente, a invocação feita pelo autor, obrigando-o a interpor nova acção para obter o mesmo efeito fundamental com base na mesma ocorrência, seria uma violência que não cabe no espírito da lei processual vigente, fortemente impregnada pelo princípio básico da economia processual.
Consequentemente, se o autor invocar a culpa do agente na acção destinada a obter a reparação do dano, num caso em que excepcionalmente vigore o princípio da responsabilidade objectiva, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.»[44].
Tendo a apelante provado:
- a perigosidade da atividade;
- que a 2ª ré era a sua exercente; e,
- a causalidade entre o perigo típico caracterizador ou individualizador da atividade e a lesão danosa por si sofrida,
convencendo, portanto, que o resultado lesivo por si sofrido representou a concretização do perigo ou perigos justificativos do atributo de perigosidade impendente sobre a concreta atividade a que nos vimos reportando, e não tendo a 2ª ré logrado demonstrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos por aquela sofridos, compete-lhe ressarci-la desses mesmos danos.
Em que medida?
Como se viu, na petição inicial com que introduziu em juízo a apresente ação, a autora pede a condenação da 1.ª ré e, subsidiariamente, da 2.ª ré, «para o caso de não haver seguro válido e eficaz, a pagar à A. as quantias de
- 40.000,00 € a título de danos não patrimoniais;
- 140.047,52 € a título de danos patrimoniais,
tudo acrescido de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento.»
Na 1.ª instância o tribunal a quo:
1. condenou a 1.ª ré pagar à autora a quantia global de € 2.003,88, correspondente ao somatório da quantia a título de capital de € 1.830,00 e de juros vencidos de € 173,88, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal prevista para os juros civis sobre aquele montante de capital, absolvendo-a do remanescente peticionado;
2. absolveu a 2ª ré do pedido contra si formulado pela autora;
3. absolveu a interveniente principal AP de qualquer responsabilidade adveniente do sinistro a que se reportam os autos.
É agora evidente que a sentença recorrida não pode subsistir, importando determinar os danos sofridos pela apelante e aquilatar da extensão do seu direito indemnizatório.
Como se sabe, o dano é condição essencial da responsabilidade civil.
A noção de dano é um elemento indispensável para se perceber a função da responsabilidade civil no âmbito de um determinado sistema jurídico.
No sistema jurídico português e nos demais sistemas jurídicos europeus que lhe estão próximos, pelo menos desde Friedrich Mommsen, as grandes questões do regime indemnizatório têm sido discutidas como questões atinentes a uma correta apreensão e definição do conceito de dano.
No direito português, temos à cabeça, no que à obrigação de indemnizar diz respeito, o art. 562º, o qual dispõe que «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», acrescentando o art. 563º que «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão».
É ao lesado, naturalmente, que incumbe provar, não apenas o evento lesivo, mas que dele decorreram danos (ou seja, cabe-lhe provar a causalidade entre a lesão e os prejuízos), pois que a existência de um dano é condição essencial e limite da obrigação de indemnização.
A lei portuguesa não define o que deve entender-se por dano.
Assim, o trabalho de definição de um tal conceito deve ser desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência, em sede de interpretação dos textos legais.
A doutrina portuguesa vem fornecendo uma noção geral de dano.
Assim:
- Para Antunes Varela, «o dano é a perda “in natura” que o lesado sofreu em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar. É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que reveste as mais das vezes a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea.
(…).
Ao lado do dano assim definido, há o dano patrimonial – que é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.»[45].
- Para Almeida Costa[46], dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
- Para Menezes Cordeiro, dano é a «diminuição de uma qualquer vantagem tutelada pelo direito, ou de um bem, em sentido amplo, que seja protegido.»[47]-[48].
No que aos danos patrimoniais concretamente diz respeito, o art. 566.º, n.º 2, consagrando a chamada «fórmula ou hipótese da diferença», dispõe que «(...) a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos».
Não dando o legislador, como já se afirmou, a definição de dano, pode entender-se que, a propósito da obrigação de indemnização, o legislador civil português, nas normas contidas nos arts. 562º e 566º, nº 2, que delimitam o objetivo da indemnização e a medida da indemnização em dinheiro, pressupõe ou remete indiretamente para uma noção de dano ressarcível, afinal de contas, o objeto da obrigação de indemnização.
Na esteira de Almeida Costa[49], podem fazer-se as seguintes distinções quanto à espécie e à natureza do dano:
- danos patrimoniais e não patrimoniais, consoante sejam ou não suscetíveis de avaliação pecuniária.
Os primeiros incidem sobre interesses de natureza material ou económica e refletem-se no património do lesado.
Os segundos reportam-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral.
O mesmo facto pode provocar danos das duas espécies, como frequentemente acontece nos acidentes de viação.
- danos pessoais e danos não pessoais.
Os primeiros produzem-se sobre as pessoas.
Os segundos sobre coisas;
- dano real e dano de cálculo.
O primeiro consiste no prejuízo que o lesado sofreu em sentido natural e pode analisar-se nas mais diversas possibilidades de ofensa de interesses ou bens alheios juridicamente protegidos, de ordem patrimonial ou não patrimonial.
O segundo consiste na expressão pecuniária do prejuízo, cabendo neste domínio uma avaliação abstrata (objetiva) ou concreta (subjetiva, apurando-se a diferença para menos produzida no património do lesado.
Uma outra classificação a considerar dentro dos danos patrimoniais é a que distingue danos emergentes e lucros cessantes.
Os danos emergentes compreendem a perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado.
Os lucros cessantes referem-se aos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, ou seja, reportam-se ao acréscimo patrimonial frustrado, tal como decorre do art. 564º, nº 1, ao dispor que «o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.»
Uma outra classificação, é que a distingue entre danos presentes e danos futuros, conforme já se tenham verificado ou não no momento considerado.
Ainda uma outra classificação é a que distingue entre danos diretos e indiretos.
Os primeiros são os que resultam diretamente do facto.
Os segundos são os demais danos.
Tal como decorre do que conjugadamente dispõem os arts. 562º a 564º, o dano, para ser ressarcível, tem de ser certo, e não apenas eventual.
A propósito da problemática do dano futuro, consideramos por lapidar o que se encontra escrito no Ac. do S.T.J. de 11.10.1994, B.M.J. 440º, 437.
Afirma-se naquele aresto que por dano futuro deve entender-se aquele prejuízo que o sujeito do direito ofendido ainda não sofreu no momento temporal que é considerado. Nesse tempo já existe um ofendido, mas não existe um lesado.
Os danos futuros podem dividir-se em previsíveis e imprevisíveis.
O dano futuro é previsível quando se pode prognosticar, conjeturar com antecipação ao tempo em que acontecerá, a sua ocorrência.
No caso contrário, isto é, quando o homem medianamente prudente e avisado o não prognostica, o dano é imprevisível (desconsidera-se o juízo do timorato).
De harmonia com o disposto naquele preceito, o dano imprevisível não é indemnizável antecipadamente; o sujeito do direito ofendido só poderá pedir a correspondente indemnização depois de o dano acontecer, depois de lesado.
Quanto aos danos previsíveis, podemos subdividi-los entre os certos e os eventuais.
Dano futuro certo é aquele cuja produção se apresenta, no momento de acerca dele formar juízo, como infalível.
Dano futuro eventual é aquele cuja produção se apresenta, no momento de acerca dele formar juízo, como meramente possível, incerto, hipotético.
Este caráter eventual pode conhecer vários graus, como se fossem diferentes tonalidades da mesma cor.
Desde um grau de menor eventualidade, de menor incerteza, em que não se sabe se o dano se verificará imediatamente, mas se pode prognosticar que ele acontecerá num futuro mediato mais ou menos longínquo, até um grau em que nem sequer se pode prognosticar que o prejuízo venha a acontecer nem futuro mediato, em que mais não há que um receio.
Naquele grau de menor incerteza, o dano futuro deve considerar-se como previsível e equiparado ao dano certo, sendo indemnizável.
Naquele grau de maior incerteza, o dano eventual, esse que mais não seja que um receio, deve equiparar-se ao dano imprevisível, não indemnizável antecipadamente (isto é, só indemnizável na hipótese da sua efetiva ocorrência) - o que se escreve não exclui a hipótese de o dano de maior incerteza, o receio, em um outro momento temporal, se converter em dano certo e, portanto, antecipadamente indemnizável. Avaliação é sempre feita com referência a um dado momento temporal e só é válida para esse momento.
Não é possível, nem conveniente, avançar mais neste caminho: só perante cada caso concreto é que será possível fazer a avaliação do grau de previsibilidade em ordem a determinar se o dano é ou não indemnizável antecipadamente. Há sempre um determinado espaço, uma terra de ninguém, onde só mediante o julgamento é possível estabelecer a certeza que o direito tem que realizar.
Por sua vez, o dano certo pode subdividir-se em determinável e indeterminável.
Determinável é aquele que pode ser fixado com precisão no seu montante.
Indeterminável é aquele cujo valor não é possível de ser fixado antecipadamente à sua verificação.
Nesta classificação o respetivo critério já é diverso, em sua natureza, do que presidiu às classificações anteriores; agora, o que está em causa é tão somente a extensão do prejuízo e a sua expressão monetária, e não mais a realidade do evento.
Determinável ou indeterminável, o dano futuro certo é sempre indemnizável. A diferença está em que, no momento de julgar, se deve fixar a indemnização do dano determinável; ao passo que em relação ao dano certo mas indeterminável na sua extensão, a fixação da indemnização correspondente é remetida para decisão ulterior, a execução de sentença, nos termos do disposto no artigo 564.º, n.º 2 e no art. 661.º, nº 2. este do C.P.C.
A este propósito, afirma Júlio Vieira Gomes, que «tradicionalmente exige-se, para que o dano seja ressarcível, que o mesmo seja certo. Importa no entanto, não confundir a certeza do dano, isto é, o ter-se verificado ou a existência de circunstâncias que o tornam inevitável ou simplesmente provável, com o seu carácter imediato; consequentemente, devem distinguir-se os danos certos no futuro, dos danos simplesmente eventuais. O dano meramente eventual não é ressarcível, porque falta o requisito da certeza. E é evidente que esta certeza é uma certeza apenas relativa e não absoluta; o lucro cessante nunca existiu, e não chegará a existir. O critério é inevitavelmente influenciado pela capacidade imperfeita de prever os eventos em razão dos limites do conhecimento humano, sempre que se entra no campo do hipotético.
A propósito da demonstração da existência de um lucro cessante, a referência tradicional de que o dano deve ser certo, não nos deve, pois, induzir em erro. O lucro cessante não chegou a verificar-se e se situa no domínio das probabilidades. Assim, a certeza da existência de um lucro cessante não pode nunca ser uma certeza matemática, mas será apenas uma certeza relativa (…).
Por outro lado, a demonstração da extensão do lucro cessante é uma área em que, por excelência, se pode recorrer ao nº 3 do art. 566º do Código Civil e, portanto, à sua fixação segundo juízos de equidade. Destaque-se, contudo, que, para a doutrina dominante, tal não dispensa a demonstração, pelo lesado, da existência de um lucro cessante. (…). A avaliação equitativa do dano exige a prova da existência de um dano, já que a incerteza deve ser limitada à determinação da sua grandeza».
Por outro lado, importa ter em conta que no direito português a indemnização tem uma finalidade compensatória, contendo-se as finalidades ou efeitos preventivos dentro dos limites daquela, ou seja, não permitindo ir além do dano realmente verificado.
Assim, não pode invocar-se uma finalidade preventiva da obrigação de indemnização para dispensar ou ir além do dano concretamente verificado, antes devendo tal obrigação ser balizada pelos princípios, que são como que duas vertentes da finalidade compensatória, da reparação total e da proibição do enriquecimento do lesado com a indemnização.
Por outras palavras, é o princípio compensatório que delimita o alcance máximo da indemnização, olhando para o lesado e seu prejuízo; ou seja, a indemnização apenas pode ir até onde chegar o prejuízo do lesado. E, ao lado deste limite, é também a função indemnizatória ou compensatória que explica que o montante normal da indemnização coincida com o do dano.
Pode dizer-se, por isso, que para a responsabilidade civil, a função preventiva (ou sancionatória) cessa no limiar do dano, sendo um efeito querido, mas limitado ao valor compensatório, e mantendo nesta medida a responsabilidade civil a sua função predominantemente reparatórias.
Este aspeto é importante, porque há uma distinção qualitativa entre a graduação da indemnização abaixo do montante total do dano - que se impõe desde logo, por exemplo, quando o dano seja também em parte devido a culpa, ou a uma conduta, do lesado, nos termos do artigo 570º, ou quando resulte de mera culpa, nos termos do artigo 494° -, e a ultrapassagem do limiar daquele, para fundar autonomamente a “indemnização”. Nestes últimos casos, não se está já apenas a remover o dano, a tornar “in-demne”, o lesado, mas a prosseguir outra finalidade com autonomia, seja ela, olhando para o futuro (“ne peccetur”), a prevenção, seja a sanção de um ato passado (“quis peccatum” - para retornar expressões associadas normalmente à contraposíção prevenção/retribuição na problemática dos fins das penas).
A ideia de que a responsabilidade civil tem também funções acessórias, de tipo preventivo ou sancionatório, exprime-se, além disso, no facto de, em princípio, depender também da existência de ilicitude e culpa (nos termos do artigo 487º, nº 2). A responsabilidade civil comporta em regra um juízo de desvalor, não só objetivo (ilicitude), como da conduta do lesaste (culpa). Mas, a função preventiva e repressiva, atuam tão-só no quadro do limiar da reparação - isto é, como finalidades subordinadas, que apenas podem permitir a redução da indemnização abaixo do necessário para reparar. É, justamente, o que (pelo menos numa certa perspetiva) acontece no caso do artigo 494º: a dependência da graduação da indemnização da mera culpa do lesante, e a orientação pelo seu grau de culpabilidade e outras circunstâncias, além de uma finalidade sancionatória e de atenção a uma ideia de proporcionalidade e à justiça individualizadora, denunciam o carácter subordinado dessas funções. Apenas se permite nessa disposição a limitação da indemnização, abaixo do limiar máximo do dano, e não um agravamento, uma ultrapassagem desse limiar - enquanto, como se tem notado corretamente na doutrina, uma visão sancionatória e preventiva pura, não limitada pelo principio compensatório, reclamaria antes que a indemnização pudesse superar o montante do dano efetivo.
A prossecução autónoma de objetivos repressivos ou preventivos, acima do limiar da compensação, não é, porém, autorizada pela nossa lei nos quadros da responsabilidade civil. Deve, antes, entender-se que o artigo 562º (como resulta também do confronto com o artigo 563º) se reporta apenas à situação em que estaria o lesado sem o evento que obriga à reparação, e não à situação do lesante, e que tal sustentação de uma indemnização apenas em fins sancionatórios ou preventivos é vedada acima do "limiar da compensação" a que aquele artigo 562º se refere - nesta parte, seguimos de perto Paulo Mota Pinto, em parecer jurídico não publicado.
É à luz de todo o excurso que antecede que iremos, para já, apreciar a pretensão indemnizatória da autora, tanto na vertente de danos patrimoniais, como na vertente de danos não patrimoniais.
Salta à evidência que em consequência do sinistro a que se reportam os presentes autos, com culpa exclusiva (ainda que presumida) da 2ª ré, a autora sofreu danos, tanto patrimoniais, como não patrimoniais, pelos quais pretende e deve ser ressarcida.
Começando pelos danos patrimoniais, temos que a autora pretende ser ressarcida por danos daquela natureza, quer na modalidade de danos emergentes, quer na modalidade de lucros cessantes.
No que respeita aos danos emergentes, conforme ensina Galvão Teles, «os danos emergentes traduzem-se numa desvalorização do património, os lucros cessantes numa sua não valorização. Se diminui o ativo ou aumenta o passivo, há um dano emergente (damnum emergens); se deixa de aumentar o ativo ou de diminuir o passivo, há um lucro cessante (lucrum cessans). Ali dá-se uma perda, aqui a frustração de um ganho.»[50].
Nos lucros cessantes pressupõe-se que o lesado tinha, no momento da lesão, um direito ao ganho que se frustrou, ou melhor, a titularidade de uma situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a esse ganho[51].
Conforme se afirma:
- no Ac. do S.T.J. de 21.11.1979, B.M.J. 291º, 480, «o art. 564º, nº 1, abrange não só os danos emergentes como os lucros cessantes, representando aqueles uma diminuição efetiva e atual do património e estes traduzindo não um aumento do património, mas a frustração de um ganho»;
- no Ac. do S.T.J. de 04.03.1980, R.L.J. 114º, 317, «os danos patrimoniais compreendem duas modalidades: os danos emergentes, que correspondem aos prejuízos sofridos, respeitando à diminuição do património (já existente) do lesado; e os lucros cessantes, que correspondem aos ganhos que deixou de ter por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património (art. 564º, nº 1, do Cód. Civil)».
Quanto aos danos patrimoniais na modalidade de danos emergentes, está provado que na sequência do sinistro:
- a autora deslocou-se a Lisboa para uma consulta e elaboração de relatório médico;
- (...) tendo despendido € 52,00 na viagem;
- (...) € 168,00 com a estadia;
- (...) € 90,00 na consulta;
- (...) € 540,00 com a elaboração do relatório médico.
Tem, assim, direito a ser indemnizada a título de danos patrimoniais, naquela modalidade, no montante de € 850,00.
No que respeita aos danos patrimoniais na modalidade de lucros cessantes, está provado o seguinte:
a) em consequência do acidente o défice funcional temporário total foi de 30 dias;
b) o défice funcional temporário parcial foi de 477 dias;
c) a repercussão temporária da atividade profissional total foi de 97 dias;
d) o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica foi de 6 pontos;
e) a repercussão permanente na atividade profissional é compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas implica esforços suplementares;
f) a autora nasceu no dia 20 de janeiro de 1981;
g) a autora é agente de viagens ao serviço da Agência de Viagens M, Lda., auferindo dessa atividade o vencimento mensal base de € 1.100,00;
h) para além do vencimento base, à data referida em 1. a autora fazia pelo menos cinco vezes por semana, os transferes dos clientes da agência onde trabalha, do aeroporto para o hotel, com o que acrescia ao seu vencimento, mensalmente e em média, a quantia de € 250,00, registada na sua folha de vencimento como prémio de produção;
i) a autora também prestava apoio aos cruzeiros, atividade que era remunerada quando realizada aos fins-de-semana, à razão de € 75,00 por cada assistência, também pagas como prémio de produção, numa média anual de € 450,00;
j) a atividade de apoio aos cruzeiros exige a permanência de muito tempo em pé;
k) a autora também prestava assistência aos clientes durante 24 horas, estando de prevenção, com um telemóvel, à razão de duas vezes por mês, auferindo € 100 por cada assistência;
l) tendo deixado de o fazer no período referido em c) supra.
A repercussão temporária na atividade profissional corresponde ao período durante a apelante viu condicionada sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual, e que pode ser total ou parcial
O período de repercussão temporária total na atividade profissional refere-se, normalmente, aos períodos de internamento e / ou de repouso absoluto.
No caso concreto, foi de 97 dias, ou seja, 13 semanas, o tempo de repercussão temporária da atividade profissional da apelante.
Como para além do vencimento base, à data referida em 1.:
- a apelante fazia pelo menos cinco vezes por semana, os transferes dos clientes da agência onde trabalha, do aeroporto para o hotel, com o que acrescia ao seu vencimento, mensalmente e em média, a quantia de € 250,00, registada na sua folha de vencimento como prémio de produção, tendo deixado de o fazer durante 97 dias, tem direito a ser indemnizada no montante de € 812,50 (97 dias = 3 meses + 1 semana = 13 semanas / € 250,00/mês x 3 meses = € 750,00 : 12 semanas = € 62,50/semana x 13 semanas = € 812,50);
- a apelante também prestava apoio aos cruzeiros, atividade que era remunerada quando realizada aos fins-de-semana, à razão de € 75,00 por cada assistência, também pagas como prémio de produção, numa média anual de € 450,00, tendo deixado de o fazer durante 97 dias, tem direito a ser indemnizada no montante de € 112,50 (1 ano = 52 semanas / € 450,00 : 52 semanas = € 8,65/semana x 13 semanas [97 dias = 13 semanas] = 112,50);
- a apelante também prestava assistência aos clientes durante 24 horas, estando de prevenção, com um telemóvel, à razão de duas vezes por mês, auferindo € 100 por cada assistência, tendo deixado de o fazer durante 97 dias, tem direito a ser indemnizada no montante de € 600,00 (2 assistências/mês = € 200,00 x 3 meses = € 600,00).
Como se viu, o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica foi de 6 pontos, sendo que a repercussão permanente na atividade profissional é compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas implica esforços suplementares.
O dano em questão (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, de 6 pontos) é presentemente qualificado como «dano biológico», «dano corporal» ou «dano à integridade psicofísica», e que vem sendo entendido como um dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais.
A tutela deste dano encontra o seu substrato último, no âmbito do direito civil, no art. 25º, nº 1, da CRP, que considera inviolável a integridade física das pessoas e no art. 70º nº 1 do CC, que protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
O corpo humano, na sua amplitude física e moral, integrando a sua constituição físico-somática, a componente psíquica e as relações fisiológicas, surge, assim, como um bem jurídico protegido perante terceiros, considerando-se como ilícita civilmente toda e qualquer ofensa ou ameaça de ofensa desse corpo, sendo ilícitos os atos de terceiro que lesem ou ameacem lesar um corpo humano, nomeadamente, através de ferimentos, contusões, equimoses, erosões, infeções, maus tratos físicos ou psíquicos, mutilações, desfigurações, administração de substâncias ou bebidas prejudiciais à saúde, inibições ou afetações de capacidade, doenças físicas ou psíquicas, ou outras anomalias, bom como os atos de terceiro que se traduzam numa intervenção não consentida nem de outro modo justificada, no corpo de outrem.
Donde, o responsável pelo dano biológico, porque incidente sobre o valor humano, em toda a sua dimensão, em que o bem saúde é objeto de um autónomo direito básico absoluto, deve repará-lo, em qualquer caso, mesmo que se não prove uma efetiva redução do vencimento do lesado como causa e efeito de um tal dano.
O que releva, num caso como o presente, ante a comprovação de um tal dano, é a repercussão negativa desse défice, centrado na diminuição da condição física, da resistência e da capacidade de realizar esforços por parte da apelante, o que, necessariamente, se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desempenho das atividades pessoais em geral e numa consequente e, obviamente, de igual modo previsível, maior penosidade na execução das suas diversas tarefas, tudo significando um maior dispêndio de energias, um maior desgaste físico na execução das mesmas, comparativamente com o que sucedia antes do acidente.
É precisamente neste agravamento da penosidade para a execução, com normalidade e regularidade, das tarefas próprias e habituais do respetivo múnus que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros.
Por danos patrimoniais futuros, dizemos, pois que, na querela que se instalou acerca do enquadramento do dano biológico (dano patrimonial, dano não patrimonial ou tertuim genus), estamos com aqueles que o consideram um dano de natureza patrimonial.
Não podendo o dano biológico deixar de ser considerado um dano corporal, de acordo com Álvaro Dias[52], ele consiste na diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão.
Ora, para um entendimento jurisprudencial e doutrinário, o dano biológico assume natureza patrimonial.
À luz deste entendimento, mesmo naqueles casos em que não está demonstrada a incapacidade do lesado para o exercício da concreta atividade profissional por si desempenhada à data do acidente, ou seja, não estando demonstrada um repercussão negativa direta no salário auferido pela vítima ou na sua atividade profissional, sempre ocorrerá, como se referiu, uma perda ou limitação das suas capacidades, sempre para si advirá uma limitação funcional geral com implicações atrás mencionadas[53].
Isto significa que, e acompanhamos agora o mencionado acórdão da Relação de Lisboa, para os defensores deste entendimento, a incapacidade parcial permanente, afetando ou não a atividade laboral do lesado, representa em si mesmo um dano patrimonial futuro.
Para outros, citando o acórdão alguns exemplos, o ressarcimento do dano biológico deve integrar o dano não patrimonial.
Embora os defensores desta tese aceitem que o dano biológico sofrido pelo lesado poderá provocar um agravamento das suas potencialidades físicas, psíquicas ou intelectuais, traduzindo-se num maior dispêndio de esforço e energia, entendem que, se tal dano não se repercute, direta ou indiretamente, no estatuto remuneratório profissional do lesado ou na carreira em si mesma considerada, traduzir-se-á mais num sofrimento psico-somático, logo, num dano não patrimonial, porventura, autónomo, visto inexistir uma perda patrimonial futura.
Uma terceira tese é defendida por um grupo mais reduzido, para quem o dano biológico acaba por se traduzir num «tertium genus».
Esta abordagem da figura «tertium genus» teve a sua origem, segundo Maria da Graça Trigo[54], na jurisprudência e doutrina italianas, para as quais o dano biológico, como um «tertium genus» teria as seguintes características:
a) Dano comum a todos aqueles que, em consequência de uma lesão, sofrem um desrespeito pelo direito à saúde consagrado na Constituição;
b) Dano sem consequências negativas no rendimento do lesado;
c) E, por isso mesmo, dano que deve ser compensado de forma igual para todas as vítimas, tendo apenas em conta a idade e a gravidade da incapacidade temporária ou permanente.
Sucede, todavia, conforme bem se refere naquele acórdão, que, no nosso sistema jurídico, a contraposição dano patrimonial versus dano não patrimonial tem logrado exaurir completamente o campo do dano corporal.
Também nós, como se referiu, à vista dos três entendimentos que se perfilam acerca do enquadramento do dano biológico, o consideramos como assumindo natureza patrimonial.
Aqui chegados, efetuado este brevíssimo esclarecimento, é tempo, então, de proceder à quantificação de um tal dano.
Consideramos, uma vez mais à semelhança do que vem sendo o entendimento tradicional e maioritário da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que mesmo naqueles casos em que não está demonstrado que o acidente deu causa à perda ou diminuição de proventos laborais auferidos pelo lesado, atuais ou futuros, ainda assim, para a determinação do quantum indemnizatório, há que seguir semelhantes ao adotados para o cálculo da indemnização de tal dano quando dele decorre aquela perda ou diminuição da capacidade de ganho.
Tanto num caso como noutro com argumentos que radicam na redução da margem de arbítrio e de subjetivismo dos julgadores e para que haja uma maior uniformidade na sua quantificação.
Tais critérios, conforme se refere no Ac. da R.P. de 24.04.2012, Proc. nº 2094/10.1TBSTS.P1 (Pinto dos Santos), in www.dgsi.pt., têm assentado nas seguintes ideias basilares:
- a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
- no cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que se confira relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável;
- os métodos matemáticos e/ou as tabelas financeiras utilizados para apurar a indemnização são apenas um instrumento de auxílio, meramente indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial fundada na equidade;
- deve ser proporcionalmente deduzida no cômputo da indemnização a importância que o lesado gastaria consigo próprio ao longo da vida, consideração esta que, contudo, vale unicamente para os casos de morte do lesado, o que, felizmente, não ocorre «in casu»;
- deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, permitindo ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, havendo, por isso, que introduzir um desconto no valor encontrado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa do infrator ou da sua seguradora;
- deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa da vítima, a própria esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma.
Tal como referido no Ac. do S.T.J. de 12.04.2007, Proc. nº 07A3836 (Mário Cruz), in www.dgsi.pt, o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objetivos (através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), por forma a que seja possível determinar qual o capital necessário, produtor do rendimento, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo de vida ativa do lesado, proporcione à vítima o mesmo rendimento que antes auferiria se não tivesse ocorrido a lesão ou a compense pelo maior grau de esforço desenvolvido, sendo, no entanto, necessário ter em conta que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras nos fornece tão só um valor estático, porque parte do pressuposto que o lesado não mais evoluiria na sua situação profissional; não conta com o aumento de produtividade; não inclui no cálculo um fator que contemple a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade; não tem em consideração a tendência para o aumento da vida ativa para se atingir a reforma; não conta com a inflação; nem tem em conta o aumento da própria longevidade. Daí que a utilização das fórmulas matemáticas, ou tabelas financeiras só possa servir para determinar o «minus» indemnizatório, o qual, terá posteriormente de ser corrigido com vários outros elementos, quer objetivos quer subjetivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.
As fórmulas ou tabelas a que se recorre para a fixação dos cômputos indemnizatórios por danos futuros/lucros cessantes devem, pois, ser encaradas como meras referências ou índices, só relevando como simples instrumentos de trabalho, com papel adjuvante, que não poderão substituir o prudente arbítrio do tribunal e a preponderante equidade.
Estando em causa a fixação de indemnização decorrente de danos futuros que sejam o prolongamento necessário e direto do estado de coisas criado pelo acidente, abrangendo um longo período de previsão, devendo atender-se apenas aos ganhos fortemente prováveis e verosímeis, não meramente possíveis, a solução mais correta é a de conseguir a sua quantificação no momento da avaliação, tentando compensar a inerente dificuldade de cálculo com o apelo a juízos de equidade.
Como a repercussão temporária da atividade profissional total foi de 97 dias, será com referência ao 98º dia após o sinistro que importa considerar a idade da lesada e projetar a previsível duração de vida, o tempo provável da sua vida, não só enquanto “trabalhadora”, portadora de força de trabalho, fonte produtiva de património, geradora de rendimentos, mas também enquanto “pessoa” e “cidadã”, que vive para lá do tempo da vida ativa, para além do tempo da reforma.
Hoje em dia, em Portugal, a esperança média de vida de uma cidadã do sexo feminino de acordo com os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística é de 83,51 anos, de acordo com os danos mais recentes publicados pelo INE.
Há que atender à remuneração auferida pela lesada à data do acidente e ao valor do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, de que ficou a padecer, e que no caso concreto é de 6 pontos.
No conceito de retribuição auferida pela apelante à data do sinistro devem integrar-se todas as quantias que constituíam prestações por ela recebidas com caráter de regularidade e que, por isso, devem entrar no cálculo da indemnização; ou seja, todas as prestações destinada a compensar a sinistrada por custos aleatórios.
A retribuição contempla, assim, além do vencimento base, as gratificações, as comissões, os subsídios, as senhas de presença, as remunerações acessórias, ainda que periódicas, fixas ou variáveis, de natureza contratual ou não.
A não se entender assim, estaríamos desfasados da realidade da vida, que situações como a presente nos vêm sucessivamente transmitindo, ou seja, cidadãos com salários base de reduzidos montantes, compensados por outro tipo de prestações, com denominações diversas.
Após determinação do capital, há que proceder ao “desconto”, “dedução” ou “acerto” porque a lesada perceberá a indemnização por junto, podendo o capital a receber ser rentabilizado, produzindo juros, sendo que se impõe que, no termo do prazo considerado, o capital se encontre esgotado.
Trata-se de subtrair o benefício respeitante à receção antecipada de capital, de efetuar uma dedução correspondente à entrega imediata e integral do capital, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa da lesada à custa alheia, o que, como se viu acima, não deve acontecer.
Na quantificação do desconto em equação, a jurisprudência tem oscilado na consideração de uma redução entre os 10% e os 33%.
Quanto mais baixa for a faixa etária da lesada, maior deverá ser a margem de compressão na altura de efetuar o desconto/acerto em causa, uma vez que a antecipação do capital tem um sentido mais amplo, sendo percebido o valor da indemnização total.
No caso concreto, há a considerar, nomeadamente, que:
a) a apelante nasceu no dia 20 de janeiro de 1981;
c) no 98.º dia após o acidente tinha 34 anos de idade;
d) em consequência do sinistro:
- o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica foi de 6 pontos;
- a repercussão permanente na atividade profissional é compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas implica esforços suplementares;
e) à data do sinistro, a apelante:
- auferia mensalmente, a título de vencimento base, a quantia de € 1.100,00;
- auferia mensalmente, em média, a quantia de € 250,00, com o transferes dos clientes da agência onde trabalhava;
- auferia anualmente, em média, a quantia de € 450,00, o que perfez, em média, mensalmente, a quantia de € 37,50, na atividade de apoio aos cruzeiros, em fins-de-semana;
- auferia mensalmente, em média, a quantia de € 200,00, com a assistência, durante 24 horas, aos clientes da agência para a qual trabalhava, à razão de duas vezes por mês;
- descontava mensalmente, para a Segurança Social, a quantia de € 149,60;
- descontava mensalmente, a título de IRS, a quantia de € 190,00;
- descontava mensalmente, a título de sobretaxa de IRS, a quantia de € 18,00;
- descontava mensalmente, a título de «desconto espécie», a quantia de € 125,40.
Perante isto, na avaliação concreta do dano, como ponto de partida, de forma a alcançar, como se referiu supra, uma base mínima de trabalho, de modo a conseguir uma referência, uma plataforma inicial a partir da qual se façam operar elementos variáveis que têm a ver com introdução do juízo de equidade, procurando demonstrar/explicar como é alcançado o mínimo denominador e evitar soluções de pendor subjetivista, poderemos lançar mão da fórmula utilizada no supra mencionado Acórdão do S.T.J. de 12.04.2007, tal como o têm feito, após a sua publicação, vários arestos, quer do nosso mais Alto Tribunal, quer da Relações.
Trata-se, como se diz naquele acórdão, de uma tabela acessível a qualquer jurista ou cidadão, que permite através de operações aritméticas simples, chegar a resultados muito semelhantes na determinação da indemnização da IPG, como dano patrimonial futuro, tendo apenas como suporte a aplicação do programa informático Excell à fórmula utilizada pelo S.T.J. no Acórdão de 05.05.1994, C.J.S.T.J., II, 2º, 86, e que foi construída tendo como referência a atribuição de 3% ao fator aí indicado como taxa de juro previsível no médio e longo e prazo.
Apesar de estar já publicada em vários acórdãos e noutros locais, transcrever-se-á a referida tabela, resultado dessa aplicação informática, indicando-se, num lado, a idade que ainda falta para ser atingido o fim previsível para se atingir a idade de reforma, e do outro o fator índice.
Pegando, pois, no fator índice correspondente, deve ser ele multiplicado, no caso concreto, pelo rendimento anualmente auferido pelo autor à data da alta e novamente multiplicado pela percentagem do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, que no caso é de 6%, e, e, assim, de uma forma simples e expedita, se obtém o capital necessário que, diluído com os rendimentos que ele próprio for gerando, proporcione ao lesado, até à sua idade de reforma, o valor correspondente ao valor perdido.
Assim:
A)--------------------------------------------------------------------------B)
(anos)----------------------------------------------------------------(fator)
(...)
32-----------------------------------------------------------------20,38877
(...)

Tomando como parâmetros a idade que ainda falta à vítima para atingir a idade da reforma e aquela taxa de rendimento, para determinação do valor base há que multiplicar o fator índice da tabela (indicado por referência aos anos que ainda faltem para ser atingida a idade da reforma) pelo rendimento anual auferido/perdido à data do acidente e pela percentagem do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, vezes a percentagem de responsabilidade do lesante na produção do acidente, que entregue de uma só vez e diluído ao longo do tempo com os rendimentos que ele próprio for gerando, proporcione ao lesado, até à sua idade de reforma, o valor correspondente ao valor perdido.
Na aplicação dos considerandos que antecedem ao caso concreto, importa reter:
- que não há qualquer contribuição de responsabilidade da lesada, a autora, aqui apelante, na produção do sinistro, o qual se deveu a culpa única e exclusiva da 2.ª ré;
- que é de 34 anos, a idade da apelante a considerar;
- que auferia à data do acidente, em média, uma remuneração anual bruta de € 21.250,00 (€ 1.100,00 + € 250,00 + € 37,50 + € 200,00 x 12 = € 1.587,50 x 12 = € 19.050,00 + € 1.100,00 [subsídio de férias] + € 1.100,00 [subsídio de natal] = € 21.250,00.
- que a idade da reforma em Portugal se atinge, presentemente, aos 66 anos e 6 meses de idade;
- que, consequentemente, teria pela frente pelo menos mais 32 anos de vida laboral ativa.
Aplicando o fator de 20,38877, correspondente a 32 anos até a autora atingir a reforma e os 6 pontos da IPG sem qualquer concorrência da sua parte para as lesões sofridas, temos o seguinte: € 21.250,00 x 20.38877 x 6% = € 25.996,00.
Ou seja:
Dados a considerar no caso concreto:
Idade da apelante: 34 anos.
Número de anos até atingir a reforma: 32.
Fator correspondente na tabela indicada, aos 32 anos – 20,38877.
Rendimento anual auferido pela apelante a considerar: € 21.250,00.
Défice funcional permanente de integridade físico-psíquica: 6%
Grau de concorrência da apelante para a lesão: Nenhuma
Operações a realizar:
Apenas estas: € 21.250,00 x 20.38877 x 6%, o que vem a dar € 25.996,00.
A partir daqui há que fazer funcionar a equidade como critério primordial e sempre corretor de outros critérios.
Assim, há que atender a todos os outros fatores que nem esta, nem as demais fórmulas matemáticas contemplam, e que se repercutirão, previsivelmente, em termos de perdas patrimoniais do autor, e que são extremamente relevantes, indicando-se, a título exemplificativo:
- o prolongamento do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica para além da idade de reforma, sendo importante sublinhar que entrando, "in casu", na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 66 anos e 6 meses, não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter atividade depois dela;
- a atual esperança média de vida à nascença das mulheres em Portugal, que presentemente, como se referiu, anda pelos 83,51 anos;
- a circunstância do recebimento de uma só vez do capital da indemnização;
- a inflação e os seus reflexos negativos no poder de compra;
- a subida de impostos sobre os rendimentos do trabalho a que se tem assistido nos últimos anos em Portugal, ainda que os seus efeitos se tenham vindo a atenuar nos últimos tempos;
- o facto de a apelante não ter contribuído para a produção do sinistro;
- os padrões jurisprudenciais.
Vistos e ponderados todos os fatores referidos, efetuados os ajustamentos que se impõem, nomeadamente em termos de antecipação do recebimento da totalidade do capital, tem-se por justo, adequado e proporcionado, fixar, a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, a quantia de € 30.000,00, pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
E quanto aos danos não patrimoniais?
Dispõe o art. 496º, nº 1, do C.C., que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
Segundo Menezes Cordeiro[55], quando estejam em causa valores morais – portanto, atinentes à pessoa, à família, à dignidade, à saúde e ao bom nome – a responsabilidade civil deve assumir uma postura mais avançada, retribuindo o mal e prevenindo ofensas. Há, por isso, que facilitar a imputação aquiliana, no tocante a danos morais, quer aligeirando – quanto a correcta interpretação da lei o permita – os seus pressupostos, quer reforçando as indemnizações.
A terminologia utilizada no art. 496º, nº 1, «danos não patrimoniais», não se mostra indiferente a esse possível alargamento da intensidade da protecção dos danos não patrimoniais.
Este preceito erigiu a gravidade do dano como única condição de ressarcibilidade.
A gravidade do dano não patrimonial mede-se, conforme é hoje unanimemente entendido, por um padrão objetivo, embora tendo em conta as circunstâncias de cada caso concreto, afastando-se fatores suscetíveis de sensibilidade exacerbada ou requintada e aprecia-se em função da tutela do direito[56].
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, «a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)»[57].
Antunes Varela afirma ainda que a gravidade do dano «apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado»[58].
Assim, não relevam para efeitos de indemnização por danos de natureza não patrimonial os simples incómodos ou contrariedades[59].
Segundo Maria Manuel Veloso, «o recurso à gravidade do dano como critério delimitador franqueia a porta a uma ponderação baseada na dignidade, no valor intrínseco, do bem ou interesse jurídicos.
Danos consequentes a lesões de bens da personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves, mas já não meros atentados à propriedade. Não existe, no entanto, um absoluto paralelismo entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico, porquanto outros factores podem conferir esse carácter ao dano (ainda que o interesse a proteger não figure como um interesse supremo). Assim ocorre, de facto, com a intensidade da lesão (quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa); lesões mais intensas provocam danos (mais) graves. Também não é despicienda a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos outros critérios (dignidade e intensidade) poderia quedar sem protecção.
Cabe também indagar se existe uma componente subjectiva no apu­ramento da gravidade dos danos. A jurisprudência cita amiúde, como se de um refrão se tratasse, as seguintes palavras de Antunes Varela: "a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embo­tada ou especialmente requintada)". O critério é (e, na nossa opinião, não pode deixar de ser), no entanto, alvo de certa contemporização. A casuís­tica relativa a danos causados por lesão dos direitos de personalidade e no âmbito das relações de vizinhança revela, pelo menos aqui, uma forte tendência para valorar o dano não patrimonial à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado. A doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais são tidas em conta, sem que paralelamente se forneça qualquer explicação para um tratamento de favor destes lesados. Poder-se-ia ser tentado a pensar que tal tratamento decor­reria da "centralidade" do dano decorrente de lesões corporais e de lesões de direitos da personalidade. A prioridade concedida aos direitos de personalidade parece, no entanto deixar à margem, alguns desses direitos, precisamente o direito à integridade física. Ainda que, a título exemplifi­cativo, exista um quadro subjectivo de dor mais intensa do que se pode­ria esperar face às lesões verificados, factor que é geralmente sublinhado na elaboração de um relatório pericial, onde é indicado qual o grau de dor a que corresponderiam grosso modo essas lesões, não é descabido pensar que o julgador se aterá a este último, preterindo o estado subjectivo relatado.
Inclinamo-nos a pensar que a mencionada diferença reflecte apenas o facto de ao existir uma maior margem de apreciação, por impossibili­dade de recurso a factores objectivos (por exemplo, critérios médico-legais), o julgador sentir de uma forma mais premente a necessidade de chamar à colação todos os factores que compõem a imagem da lesão. Ora, nestes casos, não choca atender a especiais características do lesado. Parece-nos, aliás, que elas devem ser tidas em consideração, como regra geral. O que se pretende é afastar pretensões que converteriam meros incómodos, pequenas contrariedades, em danos juridicamente relevan­tes. Não pode a mera perspectiva do lesado, que compreensivelmente em muitos casos sobrevalorizará a sua lesão, prevalecer face a uma dose de objectividade (quiçá, mero bom senso), ainda que ao julgador se exija uma análise sobre as razões que podem ter levado o lesado a afastar-se do “atte­giamento” tido como o sócio-culturalmente aceitável, em dado circuns­tancialismo sócio-temporal.
O dano não patrimonial grave “et pour cause” ressarcível mostra, cote­jando com a outra categoria de dano, uma maior permeabilidade a facto­res subjectivos (perspectiva do lesado). Permeabilidade também, e mais visível, aos factores tempo e espaço, que interferem na definição da gravidade do dano.
É incontestável que o elemento tradicional do dano é um elemento em transformação podendo dar origem a um direito da responsabilidade muito diferente do direito com a configuração tradicional. Em Portugal, três factores relacionados com os danos não patrimoniais contribuí­ram para uma das vertentes dessa transformação que se traduziu na exten­são progressiva da responsabilidade civil. Menezes Cordeiro refere a este propósito expressamente o afastamento da reparação simbólica e o aumento progressivo dos montantes de indemnização. (…).
O fenómeno da extensão não pode ser evocado para justificar o reconhecimento de qualquer dano, nem para manter, “ad perpetuam”, a ressarcibilidade de danos não patrimoniais que de acordo com a evolução sócio-cultural se apresentam desajustados. (…).
(…) não pode o reconhecimento da gravidade de um dano escudar-se na ideia de que a expansão da área dos danos não patrimoniais determina um aligeiramento dos critérios e, por conseguinte, um quase imediato reconhecimento. A tentação da ligeireza na apreciação desses pressupostos deve, outrossim, ser contrariada. Esta tarefa encontra-se, de todo o modo, hoje amplamente facilitada. O julgador, atendendo ao caso concreto, não deixará de recorrer a tipologias (mais ou menos consolida­das em termos doutrinais e jurisprudenciais) de danos não patrimoniais.
(…).
De entre os tipos mais salientes, destaque-se o dano moral em sen­tido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha, a ansiedade. Nele se inclui a própria dor, dor essa que no direito português abrange as duas componentes insertas no termo anglo-saxónico “pain anrl sufféring”. A dor física e o sofrimento moral são meras componentes do dano da dor e apesar de não existir regime diferente correspondente a essas duas componentes, propendemos para considerar que deve o julga­dor descrever a causa (dor, mera ansiedade, etc.) ou as formas de mani­festação do dano moral.
(…).
Diferente do dano moral em sentido estrito se apresenta o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, ainda que possa perfeitamente verificar-se aquele numa situação que atinja o bem em causa. Qual o sentido da autonomização? Poder-se-ia dizer-se que actos atentatórias da dignidade humana “tout court” provocam angústia, amargura, desespero. Advogam os defensores desta autonomização, baseada na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que tem vindo a considerar que a violação de um dos direitos protegidos deve, como mínimo, ser protegida com a imposição de danos não patrimoniais pela violação em si»[60].
Derivando o ressarcimento dos danos não patrimoniais da violação de direitos fundamentais, deve, em definitivo, numa visão moderna e atualista, abandonar-se um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes.
Como sustenta Vaz Serra, «a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado um satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação»[61].
Justamente por imperativo da dimensão conceitual da equidade, a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais não encontra a sua finalidade específica senão através da razoabilidade, isto é, dentro daqueles comandos ditados pelo bom senso como expressão natural da razão.
Na tradução quantitativa dos danos de natureza não patrimonial há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos embora sem a pretensão de «anular» tais prejuízos como se de um «preço de dor» se tratasse.
A dificuldade de «quantificar» os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procurará ser justa, correndo o risco, embora, de ser aleatória, tanto mais que, neste campo, repete-se, assume particular relevância a vertente da equidade.
Revertendo ao caso concreto, tendo presente a matéria de facto provada, é questão isenta de dúvidas que em consequência do acidente a apelante sofreu danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, e pelos quais deve ser indemnizada, em conformidade com o estatuído no já mencionado n.º 1 do art. 496.º, resultando do n.º 4 que o montante indemnizatório deve ser fixado pelo tribunal de acordo com a equidade, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo código, segundo o qual «quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem,»
Estando provado que:
a) no dia seguinte ao do sinistro, face ao estado em que se sentia, a autora deslocou-se ao Hospital do DESPD, E.P.E., local onde foi observada pela ortopedia por queixas de dorso-lombalgias com dor irradiada a hemicorpo direito, sem aparentes alterações neurológicas, fez RX que revelou fratura acunhamento anterior D11/12, e TC da coluna que revelou fratura com achatamento em cunha do corpo vertebral de D11, com ligeiro desvio intracanalar central do terço superior do muro posterior, reduzindo o diâmetro do canal vertebral com obliteração do espaço anterior do saco tecal, tendo-lhe sido aplicado colete de Jewett e ficado internada;
b) teve alta hospitalar no dia 29 de julho de 2015, com indicação de remover o colete quando estivesse no leito e marcha com canadianas, e esteve durante duas semanas em repouso absoluto em casa e totalmente necessitada da ajuda de terceira pessoa para todas as atividades da vida diária, mormente para transferências de local, higiene diária e vestir/despir, apoio este que se manteve nas duas semanas seguintes;
c) passou a ser seguida em consulta na Clínica do AL, onde, no dia 18.08.2015, iniciou tratamentos de fisioterapia, tendo, no dia 11.03.2006, completado oitenta e duas sessões.
d) a autora iniciou o “desmame” do lomboestato em 29.10.2015, o qual terminou passado um mês.
e) foi igualmente seguida em consultas de ortopedia no Hospital do DESPD onde fez RX da coluna Lombar, coluna dorsal, ombro e articulação acrómioclavicular em 09.12.2016, tendo tido alta em 12.12.2016.
f) por manter dor dorso-lombar, a autora foi acompanhada na Clínica L, com indicação de manter fisioterapia e não realizar cargas axiais e onde consta fratura do tipo “A”, compressiva, com diminuição da altura somática inferior a 50% do corpo e sem critérios de instabilidade.
g) o quantum doloris atingiu o grau 4 numa escala de 1 a 7.
h) à data referida em 1. não tinha qualquer incapacidade ou deformidade, era saudável, alegre, divertida e cheia de vida, incansável e plena de força e atividade, tinha um sono tranquilo, repousante e retemperador.
i) após o acidente, passou a sentir dores nas costas quando circula de automóvel mercê das irregularidades do piso e das lombas na estrada;
j) (...) quando está sentada ou de pé mais de 15 minutos consecutivos;
k) (...) quando pega em objetos ou sacos com mais de 10kgs.; e
l) (...) quando caminha usando sapatos salto alto, os quais deixou de usar.
m) a autora acorda quando muda de posição na cama por causa das dores que sente;
n) (...) e não consegue dormir mais de 8 horas seguidas devido às dores que sente pela imobilização.
o) a autora ressente-se de imediato das costas quando faz movimentos mais bruscos;
p (...) e sente-se afetada nas tarefas mais básicas do dia-a-dia, tais como lavar e estender roupa, lavar loiça e carregar a cesta,
e considerando:
- como já referido, que as indemnizações a atribuir por danos não patrimoniais não podem ser meramente simbólicas, devendo antes mostrar-se adequadas ao fim a que se destinam, ou seja, atenuar a dor sofrida pelo lesado e também reprovar, no plano civilístico, a conduta do agente, sem que se deva perder de vista as indemnizações por danos não patrimoniais que são atribuídas pelos tribunais superiores, de modo a que sobre os montantes indemnizatórios recaia uma certa uniformidade de critérios para evitar, não só disparidades flagrantes, como por uma questão de justiça relativa do direito aplicado;
- que o recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso;
- a gravidade das lesões sofridas pela apelante;
- o sofrimento físico e psicológico que elas lhe causaram, causam e seguramente causarão;
- a idade da apelante,
entende-se que indemnizá-la no montante de € 22.000,00, pelos danos não patrimoniais que sofreu em consequência do sinistro, é justo, adequado e proporcional.
*
Está ainda provado que:
1. Entre a 1.ª ré, na qualidade de seguradora, e a 2.ª ré, na qualidade de tomadora/segurada, foram ainda celebrados os seguintes contratos de seguros, todos vigentes à data do sinistro:
1.1 - O contrato de seguro titulado pela apólice nº ____, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Ramo                                                     Resp. Civil Exploração
(...)
Plano de coberturas                         Empresas Animação Turística
(...)
Coberturas                                                         Capital(is) Seguro(s)
Valor p/sinistro e anuidade ou vigência                250.000,00 €
A presente apólice de seguro garante a Responsabilidade Civil legalmente imputável à entidade segurada por danos emergentes de lesões corporais e/ou materiais causados aos utilizadores e a terceiros em consequência do exercício da(s) atividade(s) identificadas nestas condições particulares», entre elas, os «passeios marítimo-turísticos.»
1.2 - O contrato de seguro titulado pela apólice nº ____, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Ramo                                            Marítimo-Embarcações Recreio
(...)
Plano de coberturas                         Embarc. Marítimo-Turísticas
(...)
Coberturas                                                         Capital(is) Seguro(s)
Cobertura A - Responsabilidade Civil                  250.000,00 €
(...)
Matrícula           Nome
00-0-0000           G II
Declarações:
Responsabilidade Civil dos Operadores Marítimo-Turísticos
Garante a responsabilidade Civil emergente da actividade de Operador marítimo-turístico imputável ao Segurador por danos materiais e/ou corporais causados aos utilizadores ou a terceiros, por ações ou omissões suas, dos seus representantes ou das pessoas ao seu serviço, pelas quais possa ser civilmente responsabilizado (...).
(...)
Âmbito de cobertura
Fica garantida a Responsabilidade Civil extracontratual legalmente imputável ao Segurado, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, decorrentes da exploração da actividade de marítimo-turístico que compreende a prática das actividades acima referidas (...).
(...)
Classificação da actividade marítimo-turística da embarcação
- Passeios marítimo-turísticos com programas previamente estabelecidos e organizados
Tipo de embarcação
- Embarcação registada como Auxiliar, designada como Marítimo Turística
Área de navegação (Embarcação Auxiliar)
- Zona Costeira
Franquias aplicáveis
Danos próprios - 1% do valor da embarcação, no mínimo de 150,00
Responsabilidade Civil - 10% do valor do sinistro, no mínimo de 250,00.»
1.3 - O contrato de seguro titulado pela apólice nº ____­, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Ramo                                            Resp. Civil Exploração
(...)
Plano de coberturas                         Operador Marítimo-Turístico
(...)
Coberturas                                                         Capital(is) Seguro(s)
Valor p/sinistro e anuidade ou vigência                250.000,00 €
A presente apólice de seguro garante a Responsabilidade Civil legalmente imputável à entidade segurada por danos emergentes de lesões corporais e/ou materiais causados aos utilizadores e a terceiros em consequência do exercício da actividade de Operador Marítimo-Turístico expressamente identificada nestas Condições Particulares.
A presente apólice de seguro corresponde ao legalmente exigido pelo Regulamento da Actividade Marítimo-Turística (RAMT) quanto à obrigação de segurar.»
2. Entre a interveniente AP e a 2.ª ré, na qualidade de tomadora, foram celebrado o contratos de seguro de grupo do ramo acidentes pessoais, titulado pela apólice nº ____, vigente à data referida em 1., do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Coberturas                                                       Capitais por pessoa
(...)
Invalidez permanente por acidente             21.605,00 euros
Despesas de Tratamento por acidente                  3.782,00 Euros
(...)
«O presente Contrato de grupo tem por objeto a garantia do risco de acidente de que possam ser vítimas as Pessoas Seguras, na sequência da sua participação nas atividades inseridas num programa de Animação Turística, a decorrer em território nacional e organizado pela entidade Tomadora do Seguro, durante o período de duração do mesmo» - al. a) do art. 1.º do Capítulo II
Não restam, assim, dúvidas, da transferência pela 2.ª ré, para a 1.ª ré e para a AP Portugal, S.A., da responsabilidade civil decorrente do sinistro a que se reportam os presentes autos, descontada a respetiva franquia.
O total da indemnização a que a apelante tem direito a receber em consequência de tal sinistro, é de € 54.375,00, sendo € 32.375,00, a título de danos patrimoniais e € 22.000,00, a título de danos não patrimomiais.
Está provado que a apelante recebeu da AP, a título de proporção pela invalidez no capital total da cobertura, o montante de € 1.296,30.
O remanescente indemnizatório, no montante global de € 53.078,70, deve, por isso, ser pago na sua totalidade pela 1.ª ré, a que acrescem juros de mora civis, contados desde a sua citação, até efetivo e integral pagamento.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que, revogando a sentença recorrida, condenam a apelada GS, S.A., anteriormente denominada SU, S.A., a quantia global de € 53.078,70 (cinquenta e três mil, setenta e oito euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora civis, vencidos desde a data da sua citação até ao presente momento, à taxa de 4% ao ano, e vincendos, a esta mesma taxa ou à que entretanto vier a vigorar, até efetivo e integral pagamento.
Custas pela apelante e pela apelada GS, S.A., na proporção do respetivo decaimento.

Lisboa, 22 de junho de 2021
(Acórdão assinado eletronicamente)
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________
[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Atualmente denominada GS, S.A. e doravante referida apenas como “1.ª ré”.
[3] Doravante referida apenas por “2.ª ré”.
[4] Não se compreende, por isso, e salvo o devido respeito, a razão de ser da dedução do incidente de intervenção principal provocada também contra a Seguradoras Unidas, S. A..
[5] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição., Almedina, 2’18, pp. 169-175.
[6] Ob. cit., p. 169, nota 276.
[7] A resenha jurisprudencial nos termos sequenciais que antecedem, foi retirada do Ac. do TRG de 02.11.2017, Proc. n.º 501/12.9TBCB.G1 (Maria João Matos), in www.dgsi.pt.
[8] Código de Processo Civil Anotado, VOL. I, Almedina, 2018, p. 720.
[9] Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, p. 21.
[10] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais que vierem a ser citados sem indicação da respetiva fonte.
[11] O n.º 2 do art. 452.º estabelece que «quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.»
[12] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 482.
[13] Cfr. Leo Rosenberg, in Tratado de Derecho Procesal Civil, tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995, apud António Montalvão Machado, in O Dispositivo e os Poderes do Tribunal À Luz do Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2001, p. 113, nota 210. Para Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Ed., 1985, p. 209, juridicamente relevantes são os factos que constituem «ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito.».
[14] Cfr., por todos, o Ac. do S.T.J. de 23.09.2008, Proc. nº 238/06.7TTBGR.S1 (Bravo Serra), in www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Ac. do S.T.J. de 29.04.2015, Proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1 (Fernandes da Silva), in www.dgsi.pt. 
[16] Cfr. o Aresto do S.T.J. citado na nota anterior.
[17] Alberto de Sá e Mello, “Critérios de apreciação da culpa na responsabilidade civil – Breve anotação ao regime do código”, in Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Ano 49, Lisboa, 1989, pp. 539-541, apud Mariana Isabel Velosa e Ferreira, A presunção de culpa pelos danos causados no exercício de atividades perigosas – entre a responsabilidade civil subjetiva e objetiva, Tese de Mestrado, Universidade Católica - Faculdade de Direito, p. 47, nota 144, afirma, a propósito da prova da culpa, e tendo por base o disposto no n.º 1 do art. 487º, que basta ao lesado a prova de «que o lesante era capaz de conhecer o comportamento devido e de prever os prejuízos resultantes da sua conduta não os tendo evitado». Porque isto é suficiente para demonstrar os pressupostos da culpa que tornam o lesante imputável e suscetível de ser considerado culpado. Por sua vez, o lesante deverá provar que a sua conduta não ficou aquém do que a sua imputabilidade exigia. Desta forma, para este Autor, «a prova que se exige ao lesado não é da culpa do lesante – entendida como a prova de que o comportamento efectivamente adoptado por este no caso concreto revela um relaxamento ou deficiência da tensão da vontade exigível, tendo em conta a capacidade de entender o dever e querer o facto e de prever o dano (imputabilidade) – mas, outrossim, a prova dessa mesma imputabilidade». Por isso é que o autor conclui que o que se passa no n.º 2 do art. 493º, é tão-simplesmente uma «presunção [de] imputabilidade – decorrente de uma particular exigibilidade de conhecimento do dever de vigilância especialmente assumido – e não uma verdadeira presunção de culpa.»
[18] Responsabilidade Civil por Violação de Deveres de Tráfego, Coleção Teses, Almedina, 2015, p. 469.
[19] Cfr. Vaz Serra, Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou atividades, Separata do B.M.J. 85º, abril de 1959 pp. 361 a 380. Cfr. também Ac. do S.T.J. de 06.04.1995 (Miranda Gusmão), B.M.J. 446º, 217, seguido pelo Ac. da R.L. de 14.01.2010 (Carla Mendes), C.J., XXXV, 1º, 71.
[20] Cfr. Vaz Serra, Responsabilidade cit., pp. 377-378. Cfr. também Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018. p. 323.
[21] Direito das Obrigações, 9ª Ed., Almedina, 2004, p. 538.
[22] Cfr. Andreia Raquel da Silva Sousa, O Regime Jurídico da Responsabilidade pelo Risco do Estado e Demais Entidades Públicas, Dissertação de Mestrado, Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto, 2016, pp. 28-29, acessível na Internet em https://repositorio.ucp.pt/, assim como a jurisprudência ali referida.
[23] Responsabilidade cit., p. 495.
[24] Das Obrigações cit., p. 594.
[25] A presunção cit., p. 83.
[26] A al. a) do art. 2.º do mesmo diploma dispõe que constitui «embarcação de recreio (ER)» todo o engenho ou aparelho, de qualquer natureza, utilizado ou susceptível de ser utilizado como meio de deslocação de superfície na água em desportos náuticos ou em simples lazer.»
[27] Responsabilidade cit., pp. 495-496 e nota 984.
[28] Cr. Rui Ataíde, Responsabilidade cit., pp. 500-501.
[29] A própria ré PA reconhece, na sua contestação, que a atividade em causa, por si desenvolvida, é uma atividade perigosa. É o que resulta, além do mais, dos arts. 110.º (onde reconhece que é de risco a atividade em causa), 111.º (onde reconhece que se trata de uma atividade no âmbito da qual é possível ocorrerem lesões), 115.º-116.º (onde reconhece que uma pessoa que entre numa embarcação - para ir observar golfinhos e baleias - corre o risco de «vir a sofrer uma lesão») e 117.º (onde reconhece que uma pessoa que entre e se desloque numa sua embarcação para observar golfinhos e baleias não pode por de parte a possibilidade de vir a sofrer uma lesão) daquela peça processual.
[30] Responsabilidade cit., pp. 500-501 e 510.
[31] Ac. do STJ de 10.03.2016, Proc. n.º 7838/10.9TBCSC.S1 (Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.
[32] Direito das Obrigações, 12.ª Edição, Almedina, 2009, p. 588.
[33] R.L.J., Ano 102.º, N.ºs 3400-3402, p. 319. Cfr. ainda, por todos, Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, Reimp., Almedina, 2003, p. 480, nota 5, e Sousa Ribeiro, O ónus da prova da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Iuridica, Coimbra, 1979, pp. 446-447, cuja opinião é seguida maioritariamente pela jurisprudência portuguesa, e que consideram que o legislador outra coisa não teve em mente que não fosse aferir a conduta do lesante pelo critério geral de diligência do homem médio colocado nas concretas circunstâncias daquele agente, pelo que, em sede de responsabilidade por danos causados por atividades perigosas, a diligência exigível ao agente traduz-se na adoção de especiais cautelas em virtude da perigosidade inerente à atividade em si.
[34] Direito das Obrigações, Volume I, 8.ª Edição, Almedina, 2009, pp. 328-329.
[35] A Conduta do lesado como pressuposto e critério do dano extracontratual, Almedina, 1997, pp. 481 ss.
[36] Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 324.
[37] A presunção cit., pp. 63-64, e nota 214, onde a Autora cita Menezes Leitão.
[38] Responsabilidade cit. p. 510.
[39] Responsabilidade cit., p. 514.
[40] Responsabilidade cit., p. 515.
[41] Responsabilidade cit., pp. 524 e 526-527.
[42] Cfr. Mariana Isabel Velosa e Ferreira, A presunção cit., p. 68.
[43] Hoje vigora, como se disse art. 32.º do Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 93/2018, de 13.11.
[44] Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10ª edição, 2003, pp. 695-696. Na doutrina, veja-se ainda Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 2001, pp. 96 e ss. Na jurisprudência, veja-se, por todos, o Ac. do TRL de 05.03.2009, Proc. n.º 8162/2008-5 (Márcia Portela), in www.dgsi.pt, onde são referidos outros arestos, quer do S.T.J., quer da Relações.
[45] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, p. 598.
[46] Direito das Obrigações, 11ª Ed., Almedina, 2008, pp. 591-599.
[47] Direito das Obrigações, Vol. II, AAFDL, 1980, p. 300.
[48] Sobre as diversas noções de «dano», cfr. Paulo Mota Pinto, in Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo, Vol. I, Coimbra Editora, 2009, p. 528.
[49] Ob. e loc. cit.
[50] Direito das Obrigações, 6ª ed., Coimbra Editora, p. 373.
[51] Cfr. Ac. do S.T.J de 23.05.1978., B.M.J. 277º, 258.
[52] In Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, Coleção Teses, Almedina, 2001, p. 272.
[53] Neste sentido, Sinde Monteiro, in Estudos sobre a Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 1983, p. 248 e, por todos, o Ac. da R.L. de 12/13/2012, Proc. nº 5505/05.4TVLSB.L1-2 (Rel. Des. Ondina Alves), in www.dgsi.pt.
[54] Adoção do Conceito de ”Dano Biológico” pelo Direito Português, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 72º, Vol. I – Jan-Mar – 2012, citada, tal como alguma jurisprudência, no acórdão a que nos vimos reportando.
[55] Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, Lex, Lisboa, 1997, pp. 482, ss.
[56] Cfr. Manuel Pereira Augusto de Matos, Dano patrimonial e não patrimonial. Avaliação dos danos no tribunal em grandes traumatizados, crianças e idosos, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Edição APADAC – Associação Portuguesa de Avaliação do Dano Corporal, Instituto de Medicina Legal de Coimbra, Novembro 2000 – Ano IX – N.º 10, pág. 32); no mesmo sentido, Ac. do S.T.J. de 26.06.1991, B.M.J. 408º, 538.
[57] Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª Ed., Coimbra Editora, 1987, p. 499, nota 1.
[58] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, pág. 606
[59] Cfr. Acs. do S.T.J., de 12.10. 1973 e de 18.11.1975, B.M.J. 230, 107 e 251º, 148.
[60] Danos Não Patrimoniais, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512,
[61] B.M.J., 83º, 85.