Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7030/14.3T8LRS.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRAS NO LOCADO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Ocorre abuso de direito quando o inquilino exige reparações no locado sendo o custo das obras necessárias desproporcionado ao custo da renda paga, por ser muito baixa e não permitir recuperar o capital necessário à realização daquelas.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


J. A. P. M. intentou contra José C. V., acção declarativa com processo comum, pedindo que o R. seja condenado a proceder a obras de reparação do locado com a consequente substituição do telhado.

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:

O A. é arrendatário do R., sem contrato, em virtude do locado – prédio sito na Rua..., nº..., Lousa – ter sido dado de arrendamento a seu pai pelo pai do R., tendo o A. ficado a viver no locado após a morte do pai.

O R. nunca procedeu a qualquer obra de beneficiação, vindo-se o seu exterior a degradar, por ser imóvel centenário.

No início de 2013, após várias reclamações quanto ao estado do telhado e das infiltrações existentes, e sem que o senhorio tomasse qualquer tipo de providência, o A. apresentou pedido de vistoria na CM de Loures, a qual procedeu à referida vistoria em 4.1.2013, verificando que o imóvel apresentava um avançado estado de degradação a nível da cobertura, notificando o proprietário para proceder à reparação das anomalias, no prazo de 90 dias, o que este não fez, tendo o A. sido, então, notificado para recorrer aos meios legais para resolver a situação.

O estado em que se encontra o telhado coloca em risco a integridade física do A., que pernoita em casa da sua irmã sempre que o tempo piora.

O A. não tem outra habitação, nem meios financeiros para conseguir arrendar outro imóvel.

O R. sabe em que estado se encontra o imóvel.

Regularmente citado, o R. contestou, por excepção (invocando abuso de direito do A.) e por impugnação, e termina propugnando pela procedência da excepção inominada, com absolvição do R. do pedido.

O A. respondeu à matéria da excepção, propugnando pela improcedência da excepção alegada.

Após demais processado, foi proferida sentença que julgou improcedente a excepção de abuso de direito e procedente a acção, e, em consequência, condenou o R. a proceder a obras de substituição do telhado do imóvel sito na Rua..., nº..., Lousa.

Não se conformando com a decisão, dela apelou o R., tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1ª-O Apelante aceitou no processo, que o locado necessitava de obras.
2ª-A douta sentença recorrida, na fundamentação de facto, nada refere sobre a alegada incapacidade financeira do Réu para executar tais obras, não só por não ter herdado dinheiro, como também por não o ter seu.
3ª-Há desigualdade de tratamento na matéria alegada pelas partes quanto às respectivas situações financeiras, na medida em que apenas a do A. foi valorada, verificando-se omissão de pronúncia quanto a facto relevante para a decisão da causa.
4ª-O valor de rendas pagas pelo A. e seus pais desde o início do arrendamento, há cerca de 55 anos, é de € 5.749,50.
5ª-O valor do IMI pago pelo Réu relativamente ao ano de 2013, foi de € 99,72 e o valor de rendas recebidas do A. no mesmo ano, foi de € 110,76.
6ª-O valor orçado para as obras de substituição do telhado ascende a € 20.910,00, incluindo IVA à taxa de 23%.
7ª-O valor da renda mensal paga pelo A., ora Apelado, é de € 9,23 (nove euros e vinte e três cêntimos).
8ª-O valor orçado para as obras corresponde a 2265 ( dois mil, duzentos e sessenta e cinco) meses de renda, ou seja, a mais de 188 (cento e oitenta e oito ) anos.
9ª-As rendas pagas até ao momento - € 5.749,50 – pelo A. e respectivos progenitores deram, basicamente, para liquidar o IMI em vigor e os impostos que o precederam, pelo que o senhorio pouco ou nenhum rendimento extraiu do imóvel.
10ª-O valor recebido em 55 anos de arrendamento constitui pouco mais de uma quarta parte do valor orçado para as obras de substituição do telhado.
11ª-O critério económico ou de interesse patrimonial do Réu ( senhorio há pouco mais de dois anos ) que é referido na sentença recorrida, não pondera que o Réu não extraiu qualquer vantagem económico-financeira por deter um imóvel que lhe rende anualmente apenas o equivalente ao que paga de imposto, também anualmente.
12ª-Nos arrendamentos é suposto ( embora no presente caso isso não aconteça ) o locador obter rendimentos que lhe permitam a rentabilização da sua propriedade, extraindo ganhos que paguem a cedência do gozo desta e que lhe permitam custear encargos fiscais e efectuar obras de reparação ou conservação da mesma, quando delas careça.
13ª-Os valores e números referidos nas anteriores conclusões, embora mencionados na própria sentença recorrida, não foram levados em consideração na decisão, numa perspectiva de exigível justiça, equilíbrio e proporcionalidade.
14ª-É irrelevante a questão da integridade física do A., quando o que se mostra em causa é a desproporção e disparidade do invocado pelo Apelado e acolhido na sentença recorrida e o constante da reacção do Apelante, que legitimamente se socorreu da figura do abuso de direito.
15ª-Não faz sentido proceder à substituição integral de um telhado, com os custos indicados nos autos, num prédio centenário, sem ter em consideração que haverá sempre que mexer no forro da casa e nas paredes interiores e exteriores que o suportam, o que significará, certamente, um acréscimo avultado nos referidos custos.
16ª-O valor orçamentado para a substituição do telhado em causa é também pouco inferior ao valor patrimonial do imóvel, o que também evidencia a já indicada discrepância dos valores da renda e das obras.
17ª-Embora o valor patrimonial do prédio resulte de avaliação para efeitos de liquidação do imposto, não andará longe do respectivo valor de mercado, sendo certo que embora posto à venda, a procura não existe, nomeadamente, por se saber que o imóvel tem um inquilino com 72 anos de idade.
18ª-Das conclusões anteriores resultam as razões que o Apelante entende fundamentarem o presente recurso, aliás já apontadas na contestação da acção, sustentadoras da invocada excepção de abuso de direito, julgada improcedente.
19ª-Concluiu a douta sentença recorrida, quanto ao abuso de direito invocado que, “ no actual quadro legislativo impende expressamente sobre o proprietário e senhorio o dever de realização de obras, especialmente quando o locado se encontre em mau estado de conservação e, por via disso, só se pode concluir pela diminuição considerável do espaço de aplicação do instituto do abuso de direito neste âmbito, excluindo-a em situações como a presente, em que se confronta o direito à integridade física do arrendatário com interesses de natureza patrimonial do senhorio “.
20ª-Verificam-se nos autos os pressupostos de aplicação e validade do instituto do abuso de direito, não relevando para o caso concreto a pretensa salvaguarda da integridade física do Apelado.
21ª-O artº 334º, do Código Civil, consagra que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
22ª-Alegado este normativo em sede de contestação, com ele se pretendia extinguir o efeito jurídico pretendido pelo ora Apelado.

23ª-No sentido pugnado pelo Apelante quanto à procedência do abuso de direito, pronunciaram-se entre outros, os seguintes Acórdãos:

a)-Acórdão do STJ, de 7.10.1988: BTE, 2ª Série, nºs 4-5-6/90, pag. 409:  “ O abuso de direito é uma forma de antijuricidade ou ilicitude, e para que se verifique, conforme o artº 334º, do Código Civil, é necessário que o seu titular embora observando a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que deve observar atendendo aos interesses que legitimam a concessão desse poder, que exerça o direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça. “
b)-Acórdão da Relação de Lisboa de 11.05.95: BMJ, 447º-549: “ Há abuso de direito por parte do inquilino, em arrendamento com fim habitacional, que pretende sejam efectuadas obras de conservação ordinária no locado com vista a assegurar o uso a que se destina – obras cuja necessidade foi reconhecida pelas entidades camarárias competentes – as quais, no entanto, atingem valores correspondentes a cerca de 30 anos de renda. “

c)-Acórdão da Relação de Coimbra, de 29.10.1996: CJ, 1996, 4º e BMJ, 460º-814:
“ I- Sendo a renda mensal de 2.000$00 ( € 10,00 ), haverá exercício abusivo do direito quando se pedem ao senhorio obras de conservação ordinária do locado, cujo custo mínimo será de um milhão de escudos ( € 5.000,00 ), podendo atingir mesmo os seis milhões (€ 30.000,00 ).
II- Pois, se a lei obriga o senhorio a realizar obras no arrendado, não pode ter deixado de representar que tal obrigação não podia ser ilimitada e que deveria sempre preservar-se um mínimo de equilíbrio prestacional, sem o qual se não cumpre o fim socioeconómico visado pelo contrato. “
d)-Acórdão da Relação do Porto, de 10.07.97:BMJ, 469º-649: “Age com abuso de direito o inquilino que pretende obrigar o senhorio a realizar no locado obras manifestamente desproporcionadas, atento o seu custo e a exiguidade da renda paga. “
e)-Acórdão do STJ, de27.05.2008, Pº 08A786, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Cardoso de Albuquerque: “Quando as obras orçamentadas ascendem a mais de € 27.423,91, enquanto a renda mensal paga se cinge a escassos € 13,97, não se mostra desacertada a aplicação do artº 334º, do Código Civil, feita na sentença e corroborada no acórdão, o que exclui a ilicitude da conduta omissiva do falecido senhorio, não tendo este obrigação alguma de consumir fundos seus em imóvel que não lhe faculta rendimentos que possam acompanhar as constantes necessidades de intervenção para travar o inexorável processo do seu envelhecimento e degradação. “
f)-Acórdão da Relação de Lisboa, de 26.01.2005, Pº 0086592: “ Face ao princípio da equivalência das atribuições patrimoniais próprias dos contratos bilaterais e onerosos como é o caso do contrato de arrendamento, há abuso de direito por parte do inquilino quando pagando uma renda diminuta pretende que o senhorio custeie obras no locado – em princípio da responsabilidade dele senhorio – de montante desproporcionadamente superior ao rendimento reflectido naquela renda mensal “.

24ª-A discrepância e desproporcionalidade enormíssimas, entre o elevado valor da substituição do telhado do imóvel onde o Apelado reside e o valor exíguo da renda mensal que paga, tornam ilegítima e imoral a pretensão daquele, consubstanciada no exercício de um direito que lhe é conferido pelo contrato de arrendamento.
25ª-Esse exercício de direito é ilegítimo e imoral porque a supra referida desproporcionalidade excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito, constituindo abuso de direito.
26ª-O abuso de direito constitui excepção peremptória, que foi alegada pelo Apelante e deveria ter sido julgada procedente, por manifestamente verificada, com a consequente sentença de absolvição do Réu, ora Apelado, do pedido.
27ª-Não o tendo feito, a douta sentença recorrida violou o disposto no artº 334º, do Código Civil e ainda nos números 1 e 3, do artº 576º, do Código de Processo Civil.
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida e substituição por acórdão que, julgando procedente a excepção de abuso de direito, absolva o R. do pedido.

Não se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR.

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) a única questão a decidir é se procede a excepção de abuso de direito invocada.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação:

1.O imóvel sito na Rua..., nº..., 2670-743, Lousa, composto de quatro assoalhadas, foi construído entre 1865 e 1903, e mostra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Lousa sob o artigo nº..., com valor patrimonial de €24.930,00, avaliação de 2012.
2.Cerca de 1960, os avós do R. acordaram com o pai do A. dar-lhe de arrendamento o supra referido imóvel.
3.Até Janeiro de 1993, o valor da renda era Esc. 1653$00, e Esc.1850$40, a partir de Fevereiro do mesmo ano.
4.Após o falecimento do pai do A., este permaneceu no imóvel, passando os recibos de renda a ser emitidos em seu nome, no valor de €9,23.
5.Em data não apurada, mas há mais de 30 anos, o pai do R., anterior proprietário do imóvel, procedeu a algumas obras no prédio, designadamente ao nível do telhado, enquanto os primitivos arrendatários foram vivos.
6.O pai do R. faleceu a 21.01.2013.
7.Desde esse momento, o R. não procedeu a qualquer obra de beneficiação no imóvel.
8.No dia 4 de Janeiro de 2013, o imóvel apresentava uma deformação generalizada da cobertura, com deslocamento de telhas, por apodrecimento da estrutura de madeira, provocando a perda da função de proteção aos agentes atmosféricos, com infiltração de águas pluviais, e induzindo em ciclo vicioso: infiltração de águas, apodrecimento e deformação da estrutura.
9.O Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da C.M.Loures qualificou o estado de conservação do imóvel como mau.
10.Após, o R., na qualidade de proprietário do imóvel foi notificado pela C.M.Loures para proceder, no prazo de 90 dias, à reparação das anomalias verificadas, nomeadamente à substituição da cobertura do imóvel.
11.O referido prazo findou antes de 27 de Dezembro de 2013.
12.O estado de degradação do telhado coloca em causa a segurança do residente e seus haveres, face à possibilidade de queda da cobertura e/ou do forro do teto do imóvel ou de parte dos mesmos; a manter-se o processo é previsível o colapso da cobertura da edificação.
13.As obras em causa orçarão em €17.000,00, mais IVA.
14.O A. tem 72 anos.
15.O R. paga de IMI anualmente €99,72.
16.O A. não é titular de bens imóveis.
17.Aufere como únicos rendimentos reforma de invalidez no montante de €540,00.
18.Desloca-se frequentemente em veículo automóvel.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Insurge-se o apelante contra a sentença recorrida, sustentando que não deveria ter sido condenado a proceder às obras peticionadas por ocorrer abuso de direito, atento o valor da(s) renda(s) paga(s), e o valor das obras peticionadas.

O tribunal recorrido aplicou o regime previsto no NRAU aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.02, o que não teve a discordância do apelante e se nos afigura correcto, por força do disposto nos arts. 28º, nº 1 e 26º, nº 1 do NRAU.

Pelo contrato de arrendamento, o senhorio obriga-se a proporcionar ao inquilino o gozo do imóvel, como resulta do art. 1022º do CC, sendo, pois, sua obrigação entregar-lhe a coisa locada e assegurar-lhe o gozo da mesma para o fim a que esta se destina - art. 1031º do CC.

Na obrigação de assegurar o gozo da coisa cabem todas as prestações necessárias para a efectiva concretização dessa obrigação.

Como escreve Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, pág. 375, a referida obrigação “não se resume ao pati fundamental de não perturbar o uso ou fruição do locatário: desdobra-se ainda em prestações positivas pontuais ou específicas que têm de ser realizadas pelo locador para que o gozo da coisa pelo locatário se possa materializar”.

Pereira Coelho, in Direito Civil, 1980, pág. 124 escreve que a obrigação de assegurar o gozo do locado se desdobra numa obrigação non facere (equacionada no art. 1037º, nº 1 do CC - o senhorio deve abster-se de actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário) e numa obrigação de facere – assegurar o gozo do prédio ao inquilino, devendo, portanto, “fazer as reparações necessárias para que o gozo do arrendatário não seja significativamente diminuído – aquelas que forem indispensáveis para manter o prédio em estado de corresponder ao seu destino” [1].

É também neste sentido que o art. 1074º, nº 1 do CC estipula que “cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”.

Tem, pois, o senhorio a obrigação de manter o arrendado de forma a que este realize o fim previsto no contrato, devendo realizar as obras ou reparações necessárias para proporcionar o gozo do locado e que este não seja significativamente diminuído.

Como se escreveu no Ac. da RL. de 16.02.2006, P. 236/2006-6, rel. Desemb. Ana Luísa Geraldes, in www.dgsi.pt, nas obras de conservação ordinária incluem-se as “que evitem a degradação das condições de habitabilidade ou de utilização do arrendado, aquelas que se destinem a pôr cobro ou a conter situações de infiltrações de água no locado, a eliminar humidades, bem como todas aquelas que se mostrem imprescindíveis e adequadas à manutenção do local arrendado nas condições inerentes e indispensáveis a uma normal e prudente utilização pelo arrendatário desse espaço”.

No caso, o locado destina-se a habitação do inquilino.

E os vícios elencados sob os pontos 8 e 9 da fundamentação de facto põem em causa o gozo do locado pelo arrendatário, tanto mais que existe perigo de queda da cobertura e/ou do forro do tecto do imóvel ou de parte do mesmo, o que coloca em causa a segurança do residente e seus haveres.

A reparação do telhado por forma a evitar a sua queda e infiltrações de água, e com vista a obstar à degradação das condições de utilização do arrendado, ou mesmo à sua efectiva utilização, traduz-se em obras de conservação ordinária, que são da responsabilidade do locador.

O que, aliás, o apelante não põe em causa.

O que apelante sustenta é que não deve proceder o pedido do A., porquanto se verifica uma situação de abuso de direito.

Estatui o art. 334º do CC que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.

E não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, bastando que os limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, não obstante serem relevantes os factores subjectivos.

O legislador sufragou a concepção objectivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” - cfr. Pires de Lima – Antunes Varela, in CCAnotado, Vol. I – 2ª ed., pág. 277.

A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida.

Serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Como refere Jorge Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, pág. 43, “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.

Para os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 300, “A nota típica do abuso do direito reside ... na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.

E Cunha de Sá, na ob. cit, pág. 101 escreve que “abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever”. E, mais adiante (pág. 103), analisando a noção legal de abuso de direito, refere que o mesmo se traduz “num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido”.

Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, págs. 436 a 438, escreve que “há abuso de direito, segundo a concepção objectiva aceite no art. 334º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. Naturalmente, a reclamação do crédito pelo credor abastado ao devedor em má situação económica será contrária aos interesses deste. O proprietário que constrói, no seu terreno, tirando as vistas ou a luz ao prédio vizinho, também pode prejudicar este. Mas em nenhum dos casos haverá, em princípio, abuso de direito, visto a atribuição do direito traduzir deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com eles conflituantes. Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode, em qualquer dos casos, afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito”.

O abuso de direito pode revestir várias modalidades [2], entre elas, a que o apelante invoca, “desequilíbrio no exercício jurídico”.

Uma das categorias do exercício abusivo é a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício imposto a outrem pelo seu exercício: ultrapassados certos limites, essa desproporcionalidade é abusiva, violando os princípios da boa fé.

E em face do que se acaba de referir e da factualidade tida por provada não se alcança como concluiu o tribunal recorrido “pela diminuição considerável do espaço da aplicação do instituto do abuso de direito neste âmbito”.

É certo que o artigo 89º do RJUE, aprovado pelo DL nº 555/99, de 16.12, na redacção dada pela L. nº 60/2007, de 04.09, estatui, sob a epígrafe “Dever de conservação”, que “1 - As edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético”.

Tal normativo não foi, porém, na generalidade, cumprido pelos senhorios, por força das rendas “congeladas” que, durante décadas, vigoraram no nosso país.

Como se afirma na Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento Urbano, “tem sido o congelamento das rendas que tem impossibilitado a renovação e a requalificação urbana, por ter entorpecido a capacidade económica do proprietário para a realização das obras necessárias à conservação dos prédios, o que levou a situações calamitosas de degradação do património urbano, alguns em estado de eminente ruína”.

Como resulta da factualidade provada, o imóvel arrendado foi construído entre 1865 e 1903, e encontra-se arrendado, primeiro aos pais do A. e depois a este, há cerca de 54 anos (por referência à data da propositura da acção).

E a renda paga até Janeiro de 1993 era de Esc. 1653$00 (€8,25), e a partir de Fevereiro de 1993 de Esc.1850$40 (€9,23), montante que ainda hoje se mantém.

Não obstante, resultou provado que o pai do R., anterior proprietário do imóvel, em data não apurada, mas há mais de 30 anos, procedeu a algumas obras no prédio, designadamente ao nível do telhado, enquanto os primitivos arrendatários foram vivos.

Face à referida factualidade provada não se pode concluir que existiu uma actuação negligente do senhorio, deixando degradar-se o estado do prédio.

E o R. apenas é proprietário após a morte do pai, ocorrida em 21.01.2013, data em que se havia realizado já a vistoria da CM.

É certo que, desde que o pai faleceu, o R. não procedeu a qualquer obra de beneficiação no imóvel, não menos certo sendo, porém, que invocou (também junto da CM), a sua impossibilidade económica para o fazer.

E aqui entramos no invocado abuso de direito que nos parece manifesto.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 28.11.2002, P. 02B3436, rel. Cons. Eduardo Batista, in www.dgsi.pt, “… o contrato de arrendamento urbano não é um contrato que vise a atribuição de vantagens desproporcionadas e unilaterais ao arrendatário, mas um contrato sinalagmático em que a renda deve representar uma equilibrada retribuição do gozo e fruição que o senhorio proporciona que o inquilino faça da coisa arrendada; A renda deverá ser, em princípio, de montante bastante para permitir ao senhorio pagar os vários encargos da propriedade, v.g., impostos, despesas comuns de condomínio (se estiverem a seu cargo), despesas de conservação, etc. e ainda restar uma importância, que lhe permita contrabalançar o investimento feito na aquisição da coisa locada, e que seja o benefício do senhorio emergente do contrato de arrendamento”.

No caso em apreço, não existe qualquer equivalência entre o custo das obras necessárias e pretendidas pelo inquilino e a exiguidade da renda que paga.

As contas e os números que o apelante traz à colação, e que resultam da factualidade provada, são bem elucidativos dessa desproporcionalidade:

- A renda mensal paga pelo A. é de € 9,23, desde Fevereiro de 1993, e a renda mensal paga pelos pais do A. desde 1960, até Fevereiro de 1993, era de 1.653$00 (€ 8,25).
- O A. pagou de rendas, em mais de 55 anos, a quantia de € 5.749,50 (de acordo com a sentença).
- Este valor equivale a cerca de € 104,49 por ano e a € 8,70 por mês [3].
- O valor do IMI pago pelo R. relativo ao ano de 2013, sobre o imóvel arrendado ao A., foi de € 99,72.
- O valor orçado das obras em que o R. foi condenado, ascende a € 17.000,00, acrescido de IVA, o que à taxa legal em vigor dá um preço de € 20.910,00 (€ 17.000,00 x 23%).
- Este valor corresponde a 2265 meses de renda, ou seja, a mais de 188 anos de rendas.
A renda paga é extremamente baixa e não permite recuperar, em tempo razoável, o capital que seria necessário para realizar a obra em causa (se, na sequência desta, outras não se viessem a revelar necessárias), sendo injusto pedir do R. tal dispêndio [4].
Este entendimento tem sido subscrito por inúmeros acórdãos dos tribunais superiores, referindo-se a título meramente exemplificativo e porque os mesmos remetem para muitos outros, os Acs. do STJ de 31.1.2007, P. 4404/2007, rel. Cons. J. Camilo, da RL de 12.07.2007, P. 4848/2007-7, rel. Desemb. Pimentel Marcos, do STJ de 30.09.2008, P. 08A2259, rel. Cons. Paulo Sá, do STJ de 2.6.2009, P. 256/09.3YFLSB, rel. Cons. Urbano Dias, do STJ de 20.01.2009, P. 8A3810, rel. Cons. Salazar Casanova,  da RP de 13.12.2012, P. 1242/10.6TJPRT.P1, rel. Desemb. Pinto de Almeida, e do STJ de 5.5.2015, P. 3820/07.1TVLSB.L2.S1, rel. Cons. Gregório Silva Jesus, todos in www.dgsi.pt.

Face ao que se deixa dito conclui-se proceder a apelação, devendo revogar-se a sentença recorrida e absolver-se o R./apelante do pedido. 

DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, e absolve-se o R. do pedido.
Custas pelo apelado, em ambas as instâncias.
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Lisboa, 2016.02.02


(Cristina Coelho)                                              
(Roque Nogueira)                                              
(Maria do Rosário Morgado)


[1]No mesmo sentido, ver Manuel Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, págs. 56 a 58.
[2]Menezes Cordeiro in “Da Boa Fé no Direito Civil”, pág. 719 e ss., faz referência ao “venire contra factum proprium”, à “inalegabilidade de nulidades formais”, à “suppressio”, à “surrectio”, ao “tu quoque” e ao “desequilíbrio no exercício jurídico”.
[3]Na realidade equivale a € 104,54 por ano e € 8,71 por mês, sendo a diferença irrelevante.
[4]Ao A. restando a possibilidade de requerer junto da CM as diligência necessárias à realização de obras coercivas, face ao perigo em que se encontra o arrendado, ou lançar mão do disposto no art. 1083º, nº 5 do CC.