Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
542/17.9PEOER.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: TENTATIVA
ACTOS DE EXECUÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I Segundo regras da vivência comum e critérios de razoabilidade, quem, de uma forma livre e consciente, dirige e concretiza um golpe perfurante na zona inframamária com uma faca, sabe do sério risco de provocar directamente insuficiência respiratória, hemorragia maciça, hipotermia e a morte da pessoa atingida.

II Se o arguido assim agiu conformando-se com a possibilidade de daí advir o resultado morte, praticou actos de execução de um crime que decidiu cometer e incorreu no cometimento do crime de homicídio na forma tentada e sob a forma de dolo eventual (artigo 22º do Código Penal).

III As circunstâncias qualificativas do artigo 132º nº 2 do CP são aplicáveis ainda que se trate de crime cometido na forma tentada, sendo contudo necessário que as circunstâncias que revelam uma maior censurabilidade estejam já presentes nos actos de execução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


1. Por acórdão proferido em 15-05-2018, o tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste deliberou absolver o arguido JE… da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1, als. e), h) e i), 22.º e 23.º do Código Penal, absolver o arguido JE… da prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e condenar o arguido JE… pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 9  (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo disposto no artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea i) do Código penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão e em cúmulo jurídico, condenar o arguido JE… na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão de execução suspensa pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses com regime de prova a elaborar pela DGRSP que assegure que o arguido desenvolve actividade profissional remunerada e sujeita proibição de contacto, por si ou por terceira pessoa, por qualquer modo, designadamente através de telefone, meio electrónico ou pessoal, com M… e AL…, bem como de se dirigir ao domicílio das mesmas.

O tribunal colectivo julgou ainda improcedente o pedido de indemnização cível formulado por AL… e, na parcial procedência do respectivo pedido de indemnização cível, condenou o demandado JE… a pagar à demandante MG…  a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

Inconformada, a assistente MG…, representada pela mãe, AL…, interpôs recurso, enunciando as seguintes conclusões (transcrição):
“1. A Recorrente não se conforma com a subsunção jurídica dos factos no que respeita ao crime de violação de domicílio, nem com a absolvição do arguido da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
2. A Recorrente não se conforma igualmente com o valor de indeminização civil atribuído pelo Tribunal a quo, entendendo que o mesmo não é minimamente justo.
3. A Recorrente considera que os pontos 9, 15 e 26, do Acórdão, dados como provados, foram incorretamente julgados.
4. No ponto 9 o Tribunal a quo considerou como provado que o arguido entrou no interior da habitação por meio não concretamente apurado.
5. Ao afirmar na motivação que o arguido terá dito que a porta da frente estaria “fechada apenas no trinco", o Tribunal a quo altera totalmente o sentido das palavras do arguido, sendo certo em que em nenhum momento o arguido utilizou tal expressão.
6. Das declarações do arguido (minuto 00:31:16- Doc. 1) resulta que, supostamente, a porta estaria aberta ou mal fechada, bastando bater ou empurrar ligeiramente para que a mesma se abrisse.
7. Quer a Assistente quer a testemunha AG… referem que o arguido podia ter entrado pela porta/janela da marquise (minuto 00:19:07 - Doc. 2 / minuto 00:15:57-Doc. 3).
8. Acontece que ambas confirmam que que não havia sinais de arrombamento e a testemunha AG… acrescentou ainda que as janelas estavam todas fechadas e os estores para baixo, concluindo assim que nestas circunstâncias o arguido só podia ter forçado a entrada ou entrado com chave falsa (minuto 00:16:30 - Doc. 3).
9. O Relatório de Exame Pericial junto aos autos (mais precisamente a fls. 286) confirma que não há indícios de arrombamento/ forçamento, quer das portas (frontal e traseira) quer das janelas.
10. Não é minimamente credível que, logo naquele dia, por coincidência, a porta da frente estivesse aberta ou mal fechada!
11. Daí que, estando tudo fechado (janelas e estores), não havendo sinais de arrobamento / escalamento quer das portas quer das janelas, seja forçoso concluir que o arguido só poderá ter entrado na casa através da utilização de cópia das chaves, ou seja, chaves falsas.
12. O arguido cometeu assim um crime de violação de domicílio, através do uso de chaves falsas, pelo que deve ser punido ao abrigo do disposto no artigo 190.°, n.° 1 e 3 do Código Penal, por referência ao artigo 202.°, alínea f), ii) do mesmo diploma legal, com aplicação de uma pena de prisão nunca inferior a 2 (dois) anos.
13. No ponto 15 o Tribunal a quo considerou como provado que o arguido desferiu dois golpes com instrumento cortante no corpo de MM…, quando da acusação resulta que o arguido desferiu duas facadas.
14. Ao alterar a palavra “facadas” pela palavra “golpes", o Tribunal a quo atenua a gravidade da conduta do arguido e faz uma incorreta apreciação da prova.
15. A Assistente refere nas suas declarações, de forma convicta, que o arguido investiu contra ela, tentando esfaqueá-la (minuto 00:13:42 - Doc. 2), afirmando de forma perentória que o arguido tinha uma faca na mão.
16. As testemunhas AG… (minuto 00:10:53 - Doc. 3) e AG… (minuto 00:07:25 - Doc. 4) também afirmam ter visto uma faca.
17. A faca não foi encontrada, pelo que não foi possível apurar com certeza se se trata de uma navalha, de uma faca de churrasco ou de cozinha.
18. Não nos restam, no entanto, dúvidas que o arguido utilizou uma faca e que os golpes sofridos pela Assistente são resultado das facadas que o mesmo lhe desferiu, felizmente sem causar lesões graves.
19. Deve assim passar a constar como provado que o arguido desferiu duas facadas no corpo de MM…, uma na zona inframamária direita e outra no cotovelo esquerdo.
20. No ponto 26 o Tribunal a quo considerou como provado que, ao desferir os golpes na direção do corpo da MM…, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a estava a molestar na sua integridade física, o que quis e conseguiu.
21. Conforme já referido supra, foi confirmado quer pela Assistente quer pelas testemunhas AG… e AG…, que o arguido empunhava uma faca.
22. Da prova produzida em audiência resulta que o arguido utilizou uma faca, sendo que os golpes sofridos pela Assistente são resultado das facadas que o mesmo lhe desferiu.
23. Reiterando tudo o que se referiu acerca do ponto 15, no ponto 26 deve assim passar a constar que o arguido desferiu duas facadas na direção do corpo da MM….
24. Já no que respeita à intenção do arguido, muito mal andou o Tribunal a quo ao considerar que o a circunstância de o arguido ter atingindo o corpo da Assistente por duas vezes e em diferentes partes do corpo, é apenas compatível com a intenção de a molestar fisicamente.
25. Mal andou ainda o Tribunal com a “a conclusão de que o fim visado era ofender a integridade física prende-se precisamente com a compleição física, sendo a ofendida uma mulher, no caso mais frágil."
26. O facto de o arguido ter logrado atingir a Assistente em zonas tão distintas, significa tão somente que o mesmo investiu várias vezes contra a mesma, o que naturalmente não se coaduna com a intenção de apenas a molestar fisicamente.
27. Se o arguido apenas pretendesse molestar fisicamente a Assistente não tinha necessidade de utilizar uma faca
28. Também não se coaduna com a intenção de apenas molestar fisicamente o facto de o arguido atingir a zona torácica da Assistente.
29. Um golpe efetuado por objeto cortante numa região onde se alojam órgãos vitais é um ato só por si ineguívoco, idóneo e suficiente para caracterizar a intenção de matar, ainda que a título de dolo eventual.
30. Se o arguido não se tivesse apercebido ou se não tivesse qualquer intenção de atingir a Assistente, obviamente que da sua conduta não resultariam dois ferimentos distintos, em zonas diferentes do corpo, mais precisamente na zona inframamária direita e no cotovelo direito.
31. O arguido sabia que a Assistente não tinha aulas na sexta à tarde (minuto 00:31:14 Doc. 2).
32. Não era previsível que a testemunha AG… estivesse em casa naquele dia (minuto 00:15:34 - Doc. 4).
33. É por demais evidente que o arguido tentou atingir a zona torácica da Assistente, o que veio a conseguir, felizmente, sem perigo para a vida desta.
34. Este ato, só por si. demonstra a intenção de matar.
35. Qualquer homem médio sabe que a zona torácica é uma zona corporal onde se encontram órgãos vitais e que ao desferir uma facada na zona torácica pode acarretar a morte da vítima, possibilidade com a qual se conforma.
36. Mostrando-se provado que o arguido atingiu a Assistente na zona torácica, evidente se torna que este se conformou com a possibilidade de lhe causar a morte, agindo com dolo, ainda que eventual, relativamente a esse resultado.
37. O arguido sabia que com os movimentos que fez quando investiu contra a Assistente, a faca (seja ela uma navalha ou qualquer objeto cortante), instrumento particularmente perigoso, podia penetrar no tórax daquela.
38. O arguido sabia que tal conduta era suscetível de provocar lesões graves ou a morte da Assistente, mas conformou-se com essa a possibilidade.
39. O arguido dirigiu-se à casa da Assistente com a intenção de aí a apanhar sozinha, tendo esperado por ela atrás da porta do quarto.
40. Resulta também evidente que o arguido sabia que ao desferir uma facada na região inframamária poderia atingir órgãos vitais e, assim, provocar a morte, o que representou e quis, e só não aconteceu devido à intervenção de AG….
41. Posto isto, deve considerar-se como provado que, ao desferir várias facadas na direcção do corpo de MM…, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao espetar a faca na região inframamária de MM… poderia atingir órgãos vitais desta e. assim, provocar-lhe a morte, o que representou e quis. e só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade.
42. Recorrente considera ainda que os pontos 4, 5, 9 e 18 do Acórdão, dados como não provados, foram também incorretamente julgados.
43. No ponto 4 o Tribunal a quo considerou como não provado que, na circunstância referida no facto provado 10.°, o arguido aguardou por MM…, escondido atrás da porta, de luvas calçadas e com uma faca de churrasco na mão.
44. O Tribunal a quo refere que apenas a testemunha A… terá referido que o arguido tinha luvas calçadas.
45. Tal afirmação não corresponde de todo à verdade, na medida em que a testemunha AL… também confirmou que o arguido tinha luvas calçadas (minuto 00:11:41 - Doc. 3).
46. Quer a testemunha AL… quer a testemunha AG… referem de forma expressa e convicta que o arguido usava luvas.
47. O Tribunal a quo acrescenta ainda que “tendo o arguido levado consigo o objeto cortante que utilizou, não teria grande sentido não levar também as luvas cujo uso, como certamente saberia, agravaria a sua conduta”.
48. Para além de estarmos perante um raciocínio sofístico, consta nos autos um relatório pericial que confirma, sem sombra de dúvidas, que as luvas em apreço foram utilizadas pelo arguido.
49. Do relatório pericial de fls. 341 dos autos, referente a análise de ADN, resulta que nas luvas encontradas foi obtido um perfil único idêntico ao perfil do arguido.
50. Ora, muito se lamenta que o Tribunal a quo tenha desvalorizando por completo o depoimento de AG… e não se tenha sequer pronunciado sobre a existência do relatório pericial de fls. 341 dos autos, elemento essencial para a descoberta da verdade.
51. No seguimento do exposto, deve considerar-se como provado que, na circunstância referida no facto provado 10.°, o arguido aguardou por MM…, escondido atrás da porta, de luvas calçadas e com uma faca.
52. No ponto 5 o Tribunal a quo considerou como não provado que, na circunstância referida no facto provado 16.°, o arguido continuava a desferir facadas na sua direção.
53. Conforme já referido supra no que respeita ao ponto 15 dos factos provados, a Assistente refere nas suas declarações que o arguido tinha uma faca na mão e fazia movimentos tentando atingi-la (minuto 00:15:30 - Doc. 2).
54. A Assistente refere expressamente que no momento em que se baixa para tentar defender-se, o arguido estava a tentar esfaqueá-la (minuto 00:16:22 - Doc. 2).
55. As testemunhas AG… (minuto 00:09:08 - Doc. 3) e AG… (minuto 00:06:03 - Doc. 4) também fazem referência aos tais movimentos.
56. Tudo se passou de forma muito rápida, sendo que, quando a Assistente se baixa para se defender das investidas do arguido, logo de seguida surge a testemunha AG… em seu auxílio.
57. Das investidas do arguido só resultaram efetivamente dois golpes, em zonas diferentes do corpo, porque a Assistente esteve sempre numa postura defensiva e, dentro daquele curto espaço de tempo, não houve possibilidade para mais.
58. Daí que, no entendimento da Assistente, deve considerar-se como provado que, na circunstância referida no facto provado 16.°, o arguido continuava a desferir facadas na sua direção.
59. No que respeita ao ponto 9. reitera-se tudo quanto se referiu a respeito do ponto 26 dos factos provados.
60. No ponto 18 o Tribunal a quo considerou como não provado que MG… ainda hoje, mesmo depois do arguido ter sido detido a ofendida não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto (facto do PIC).
61. Das declarações prestadas pela Assistente resulta claro que a mesma ainda hoje dorme na sala, com a televisão acesa, o que significa que a mesma não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto (minuto 00:35:20 - Doc. 2).
62. A Testemunha AG… refere que a Assistente MM… ainda hoje não consegue dormir no quarto (minuto 00:31:15- Doc. 3) e a testemunha AG… confirma que a Assistente dorme no sofá, na sala, evidenciando que esta não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto (minuto 00:16:51 - Doc. 4).
63. Posto isto, entende a Assistente que deve o ponto 18 dos factos não provados foi incorretamente julgado, devendo, pois, considerar-se como provado que ainda hoje, mesmo depois do arguido ter sido detido a ofendida não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto.
64. Por não ser um meio de prova, mas apenas um elemento que se destina a melhor esclarecer os Venerandos Desembargadores, a Assistente juntou um parecer médico, de onde resulta que, tendo em conta que o arguido atingiu a zona torácica, o desfecho podia ter sido outro, bem mais gravoso, designadamente uma lesão pulmonar, com elevada probabilidade de levar à morte.
65. Mais resulta do referido Parecer Médico que qualquer objeto perfurante, independentemente das suas dimensões (seja uma faca de cozinha, de churrasco ou até uma pequena navalha de 10 cm), pode causar lesões em órgãos vitais protegidos pela caixa torácica.
66. A Assistente entende que o arguido cometeu um crime de violação de domicílio, através do uso de chaves falsas, pelo que deve o mesmo ser punido ao abrigo do disposto no artigo 190°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, por referência ao art.° 202°, al. f), ii) do mesmo diploma legal, bem como um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.°, 132.°, n° 1, alíneas e), h) e i),
67. A pena aplicada ao arguido não é justa, não é proporcional à sua culpa, nem adequada às necessidades de prevenção geral e especial que o caso requer, pelo que deve ser alterada a decisão recorrida e, consequentemente, deve ser aplicada ao arguido uma pena de prisão nunca inferior a 2 (dois) anos pelo crime de violação de domicílio (Cfr. artigo 190°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, por referência ao art.° 202°, al. f), ii) do mesmo diploma legal), bem como uma pena, especialmente atenuada, mas nunca inferior a 5 (cinco) anos, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.°, 132.°, n° 1, alíneas e), h) e i), 22.° e 23.° do Código Penal.
68. Em consequência da atuação do arguido, a ofendida sofreu duas feridas incisas, que determinaram 24 dias de doença, 15 dos quais com afetação da capacidade de trabalho geral e 3 com afetação da capacidade de trabalho escolar.
69. Da matéria de facto provada resulta que a ofendida sofreu ferimentos que lhe causaram dor e lhe deixaram duas cicatrizes para a vida.
70. A ofendida, com 16 anos à data dos factos, era uma adolescente feliz, alegre e divertida, mas por via deste episódio tornou-se numa pessoa mais fechada, mais retraída, com dificuldade no relacionamento com o sexo masculino.
71. A ofendida sente vergonha da cicatriz que tem no peito, cicatriz essa que corporiza um dano estético, que prejudica a afirmação pessoal e afetiva da ofendida.
72. A ofendida temeu e continua a temer pela sua vida.
73. A ofendida não se sente tranquila quando está em casa sozinha, não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto e tem pesadelos com bastante frequência.
74. A Jurisprudência mais recente estabelece que a compensação pelo dano não patrimonial não pode ser simbólica ou miserável (Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01.02.2012, Processo n.° 6/06.6PTLRA.C1).
75. Ao fixar uma indemnização no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) o Tribunal a quo não está a conferir a dignidade e importância que merecem a dor física e psicológica, resultante dos acontecimentos traumáticos aqui em causa.
76.Nesta medida, devem V. Exas. Venerandos Desembargadores, fixar uma indemnização a título de danos não patrimoniais, nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros) alterando-se, assim, nesta parte, o acórdão recorrido.”

O recurso foi admitido, com o modo de subida e o efeito devidos, por despacho de 18-06-2018.

O Ministério Público, por intermédio da Exm.ª magistrada junto do tribunal de primeira instância, formulou resposta, concluindo que o recurso não merece provimento e a decisão recorrida deve ser integralmente mantida.

O processo deu entrada neste Tribunal da Relação a 20-09-2018 e, na intervenção processual a que se reporta o artigo 416º do CPP, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer concluindo no sentido da procedência do recurso, devendo o arguido ser condenado pelo crime de homicídio na sua forma tentada e com dolo eventual.

Decorrido o prazo de eventual resposta ao parecer, recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

IIFUNDAMENTOS.

2.- O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.
As questões a resolver são fundamentalmente as seguintes, pela ordem lógica de conhecimento: a) Impugnação da decisão em matéria de facto por erro de julgamento; b) Enquadramento jurídico-penal;c) Consequências jurídicas dos factos – escolha e medida concreta das penas (suspensão da execução). d) Pedido de indemnização civil.
3.- Impugnação da decisão da matéria de facto
Para compreensão das questões a resolver e fundamentação da decisão, torna-se necessário transcrever parcialmente o acórdão recorrido.

O tribunal colectivo julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):
1. O arguido JR… viveu com AL…, como se fossem marido e mulher, entre o final do ano de 2009 e Outubro de 2013, na residência sita na Rua …, …, em Carnaxide.
2. Na mesma residência residia, ainda, MG…, nascida a 04.03.2001, filha de um anterior relacionamento de ML… com CA….
3. Apesar de ML… e o arguido JR… terem terminado o seu relacionamento, os mesmos continuaram amigos, o que fez com que se mantivesse uma relação de proximidade entre este e MM….
4. No dia 17.04.2017, MM… começou a receber mensagens no seu telemóvel, algumas de cariz ameaçador, acreditando que as mesmas pudessem ter sido enviadas pelo arguido.
5. Por temer pela sua vida e integridade física, MM… contou a existência destas mensagens à sua mãe ML…, o que a levou a apresentar a queixa que deu origem ao inquérito n.º …/….
6. Posteriormente, após várias conversas entre ambas, MM… confessou à sua mãe que havia mantido relações sexuais com o arguido JR…, o que fez com que ML… apresentasse queixa contra o aqui arguido, a qual deu origem ao inquérito n.º …/….
7. No dia 09.06.2017, pelas 08h50, MM…, ML… e o actual companheiro desta, AF…, dirigiram-se à esquadra da PSP de Porto Salvo, local onde estiveram a ser inquiridos no âmbito do inquérito n.º …/….
8. Neste mesmo dia, em hora não concretamente apurada, mas entre as 08h50 e as 15h15, o arguido dirigiu-se à residência onde MM… vivia com a sua mãe e o companheiro desta, sita na Rua …, …, em Carnaxide.
9. Uma vez naquele local, o arguido entrou no interior da habitação por meio não concretamente apurado.
10. Uma vez no interior da habitação, o arguido dirigiu-se ao quarto de MM….
11. Pelas 15h15, MM…, a sua mãe e o companheiro desta regressaram a casa.
12. Ao entrar em casa, AG… dirigiu-se à casa de banho, ML… ficou na sala e MM… dirigiu-se ao seu quarto.
13. Ao entrar no seu quarto, MM… apercebeu-se que algo não deixava abrir a porta totalmente, pelo que olhou para trás da porta.
14. Nesse momento, o arguido JR… saiu de trás da porta e desferiu um empurrão em MM… contra a parede do corredor.
15. O arguido desferiu dois golpes com instrumento cortante no corpo de MM…, uma na zona inframamária direita e outra no cotovelo esquerdo.
16. Nesse momento, MM… começou a gritar e baixou-se para se proteger do arguido.
17. Ao aperceber-se desta situação, AG… agarrou JR… pelos braços e projectou-o para um outro quarto da residência.
18. Ao mesmo tempo, MM… fugiu para o exterior da residência.
19. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conseguiu escapar da divisão em causa e começou a correr pela residência em direcção à porta de saída.
20. Em seguida, o arguido saiu da residência em causa e fugiu para parte incerta, levando consigo a faca que trazia.
21. Em consequência da actuação do arguido, MM… sofreu ferida incisa com cerca de 4 cm de extensão, ligeiramente oblíqua, transversal, paralela ao sulco inframamário direito, em topografia afecta ao sulco inframamário direito, com pequena hemorragia activa. A ferida apresenta trajecto oblíquo de medial para lateral e com direcção cranial, com cerca de 10 cm de extensão e trajecto oblíquo em direcção da grelha costal e uma ferida incisa de 1 cm de extensão, paralela ao maior eixo de antebraço e com pequena hemorragia activa, imediatamente distal ao cotovelo esquerdo com 2 cm de profundidade, com orientação próximo-distal.
22. Tais lesões determinaram 24 dias de doença, 15 dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral e 3 com afectação da capacidade de trabalho escolar de MM….
23. De tais lesões resultaram para MM… duas cicatrizes, no local das feridas supra descritas, e a limitação nos últimos graus de extensão do cotovelo esquerdo.
24. Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida da MG….
25. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido agiu com o propósito de se introduzir na residência de MM… e AL…, sem o consentimento destas, o que conseguiu.
26. Ao desferir dois golpes na direcção do corpo de MM…, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a estava a molestar na sua integridade física, o que quis e conseguiu.
27. O arguido sabia, igualmente, que toda a sua conduta era proibida e punida por lei.
28. Durante os dias que se seguiram, e até à prisão do arguido, AG…, a sua filha M… e o seu companheiro AG… dormiram na sala, com janelas e estores fechados e todas as portas da casa trancadas e amarradas umas às outras com cordas na zona dos puxadores [facto do PIC].
29. AG… não se sentia segura na sua própria casa [facto do PIC].
30. AG… teve e continua a ter pesadelos [facto do PIC].
31. Em resultado da conduta descrita do arguido, MG… teve dores [facto do PIC].
32. Das descritas lesões resultaram cicatrizes e a limitação nos últimos graus de extensão do cotovelo esquerdo [facto do PIC].
33. MG… temeu e continua a temer pela sua vida [facto do PIC].
34. Durante os dias que se seguiram, e até à prisão do arguido, qualquer barulho, por mais diminuto que fosse, era o suficiente para causar grande transtorno a MG… [facto do PIC].
35. Durante os dias que se seguiram, e até à prisão do arguido, MG… passou a ir e voltar para a escola acompanhada da mãe [facto do PIC].
36. MG… tem pesadelos com frequência [facto do PIC].
37. MG… não se sente tranquila quando está em casa sozinha [facto do PIC].
38. Quando entra em casa MG… tem sempre a necessidade de verificar todas as divisões da casa [facto do PIC].
39. MG… era uma adolescente feliz, alegre e divertida [facto do PIC].
40. Por via deste episódio, tornou-se numa pessoa mais fechada, mais retraída, com dificuldade no relacionamento com o sexo masculino [facto do PIC].
41. O arguido não tem antecedentes criminais.
42. O arguido é o terceiro de uma fratria de 5 irmãos e desenvolveu-se no seio de uma família estruturada.
43. O agregado fixou-se em São Paulo quando o arguido contava 16 anos.
44. O pai trabalhava, por conta própria, como marceneiro e carpinteiro, assegurando o sustento da família.
45. A mãe era doméstica, sendo figura mais presente no contexto familiar.
46. Frequentou o ensino até ao 8.º ano de escolaridade.
47. Ingressou num clube de futebol com cerca de 14 anos, dedicando-se integralmente ao desporto durante 4 anos.
48. Abriu uma loja de peças de motorizada.
49. Casou com 25 anos, tendo um filho actualmente com 15 anos.
50. Esta relação durou cerca de 5 anos.
51. Quando se separou emigrou para Espanha, tendo trabalhado nesse País num restaurante.
52. Ao fim de alguns meses iniciou vida em comum com uma portuguesa, que acompanhou para Portugal em 2008.
53. A mesma dispunha de casa camarária, ficando o arguido a ali residir, bem como 5 filhos que a companheira tinha de um anterior relacionamento.
54. Trabalhou na distribuição de publicidade e na construção civil.
55. Após se ter legalizado, começou a trabalhar na área da restauração, tendo contrato de trabalho com o restaurante “Chimarrão”.
56. Na altura em que foi detido o arguido tinha uma situação profissional e económica estável, sendo conceituado no local de trabalho, quer pelas suas qualidades laborais, empenhamento e disponibilidade, quer pelo bom relacionamento que mantinha com os colegas.
57. Residia sozinho em casa arrendada.
58. Estabeleceu nova relação afectiva em 2015.
59. Conta com o suporte de amigos para se reinserir a nível habitacional e laboral.

O tribunal colectivo julgou não provados os seguintes factos (transcrição):
1. No Verão de 2016, MM… e o arguido mantiveram relações sexuais.
2. Posteriormente, em data não concretamente apurada, mas por altura das férias da Páscoa de 2017, o arguido procurou MM… insistindo para que tivessem, novamente, relações sexuais, facto que MM… recusou.
3. Para entrar na habitação o arguido forçou uma das janelas, por onde logrou entrar.
4. Na circunstância referida no facto provado 10.º, o arguido aguardou por MG…, escondido atrás da porta, de luvas calçadas e com uma faca de churrasco na mão.
5. Na circunstância referida no facto provado 16.º, o arguido continuava a desferir facadas na sua direcção.
6. Enquanto tentava sair da residência, o arguido apontou a faca que trazia na direcção de AL…, ao mesmo que lhe disse: “vocês vão ver, isto não vai ficar assim, eu vou parar na cadeia mas isto não vai ficar assim”.
7. Fruto deste comportamento do arguido, AL… temeu pela sua vida e integridade física, e colocou uma mala do computador portátil à frente do seu peito, ao mesmo tempo que recuou até à sala de estar.
8. Ao apontar a faca em causa na direcção de AL… e ao dirigir à mesma as expressões supra referida, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de fazer gestos e proferir expressões que sabia serem adequadas a produzir receio, medo e inquietação na sua ex-companheira, o que se verificou.
9. Ao desferir várias facadas na direcção do corpo de MM…, designadamente na região inframamária, o arguido bem sabia que poderia atingir órgãos vitais desta e, assim, provocar-lhe a morte, o que representou e quis, e só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade.
10. O Demandado investiu contra a filha de M… de forma louca e exaltada [facto do PIC]
11. A Demandante AG… sentiu-se completamente impotente e incapaz de proteger a sua única filha [facto do PIC]
12. A Demandante AG… temeu pela sua vida e integridade física, não só por o arguido ter uma faca, mas também pelas palavras de ódio e vingança que o mesmo proferiu em tom notoriamente ameaçador [facto do PIC].
13. A Demandante AG… sabe que o arguido estava propositadamente à espera da sua filha M… no intuito certo de lhe pôr termo à vida [facto do PIC].
14. A única filha de AG… podia ter morrido naquele dia, cenário pelo qual se sente culpada e impotente [facto do PIC].
15. A performance da Demandante AG… trabalho nunca mais foi a mesma [facto do PIC].
16. Desde Abril de 2017 até Maio do mesmo ano, MG… encontrava muitas vezes o arguido no café em frente à sua escola, sendo que este chegou a segui-la no autocarro que esta apanhava para casa [facto do PIC].
17. A médica que observou MG… disse-lhe que se a lesão inframamária tivesse mais 1 cm podia ter sido fatal [facto do PIC].
18. MG… ainda hoje, mesmo depois do arguido ter sido detido, a ofendida não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto [facto do PIC].
19. Durante a noite MG… ouve barulhos e tem sempre a sensação que está alguém dentro do seu quarto [facto do PIC].
20. MG… é incapaz de dormir com a luz apagada [facto do PIC].
21. Após a prisão do arguido, MG… passou a ir com a mãe para a escola e a voltar com esta para casa [facto do PIC].
22. MG… não se sente tranquila quando está em casa acompanhada [facto do PIC].
23. O quarto de MG… passou a estar sempre de janelas e estores fechados [facto do PIC].
24. MG… sabe que o arguido deixou para trás objetos, designadamente mochila com muda de roupa e dois martelos, que evidenciam que este pretendia efectivamente pôr termo à sua vida [facto do PIC].

Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto consta o seguinte (transcrição):
Atenta a diversidade das questões colocadas em sede de apreciação da matéria de facto, por razões que se prendem com maior facilidade de exposição, algumas considerações prévias há a fazer, sendo certo que o exercício de fundamentar as decisões deve ser observado com particular rigor, não se refugiando em frases repetitivas, quase sempre esvaziadas de conteúdo, antes representando o empenho em tornar compreensível e, por isso, mais facilmente sindicável, o iter cognoscitivo e valorativo do julgador.
A exigência da motivação das sentenças exclui o carácter voluntarístico e subjectivo da actividade jurisdicional, possibilita o conhecimento da racionalidade e coerência da argumentação do juiz e permite às partes interessadas invocar perante as instâncias competentes os eventuais vícios e desvios dos juízes.

2.3.1. O principio de presunção de inocência do arguido e in dúbio pro reo
O princípio de presunção de inocência do arguido, fundador em processo penal e com dignidade constitucional - vd. artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa - há-de ser observado em cada momento do processo e até trânsito em julgado da decisão condenatória.
Este princípio deve ser densificado com rigor, o que tem todo o interesse em sede de apreciação da matéria de facto.
Na verdade, é em razão deste princípio estruturante que, para a condenação, se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. Na ausência desse juízo de certeza ou, se quisermos, para além de toda a dúvida razoável, vale o princípio de presunção de inocência do arguido e a regra, seu corolário, in dubio pro reo.
Por vezes há uma errada compreensão do sentido e alcance deste último princípio, ligando-o à existência de duas ou mais versões distintas, como tantas vezes acontece com os depoimentos das testemunhas, não sendo raro ouvir-se que, nesse caso, aplica-se o princípio, absolvendo-se o arguido.
Não é esse o seu sentido.
Enquanto corolário do princípio de presunção de inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deve ser resolvido a favor do arguido.
Significa isto que, ficando o julgador na dúvida sobre determinado facto, e após ter feito o que lhe era possível para o apurar - o que se liga com o principio de prossecução da verdade que legitima, e até impõe ao Tribunal, determinar, mesmo oficiosamente, a realização de diligências destinadas ao cabal esclarecimento dos factos - ainda assim não conseguir remover a dúvida, deve decidir a favor o arguido. 
Dito por outro modo, se no espírito do julgador subsistir uma dúvida razoável e insuperável sobre a verificação, ou não, de determinado facto, deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Este entendimento não se confunde com a necessidade de, para que um facto seja julgado como provado, apenas o possa ser com recurso a prova directa.
Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial.
Foi à luz destes princípios que o Tribunal apreciou a prova que lhe foi apresentada o que, como se verá, tem influência relevante na fixação dos factos provados e não provados.

2.3.2. Factos provados.
O arguido prestou declarações, apesar de apenas o ter feito no final da audiência de julgamento.
No essencial, e em síntese, negou qualquer relacionamento de cariz sexual com a M…, bem como ter-lhe enviado mensagens ameaçadoras, sendo certo que com todas foi confrontado, admitindo ter enviado algumas à AL…, com quem tinha vivido em união de facto, e outras à M…, sendo que nenhuma com tom ou expressões ameaçadoras.
Admitiu ter entrado no domicílio da AL… e da MG…, pela porta da entrada que estaria fechada apenas no trinco, e após ter batido à porta, ali se tendo dirigido para recolher objectos que lhe pertenciam. Aceitou tê-lo feito sem prévia autorização das residentes.
Declarou ter-se dirigido ao que, na altura em que ali viveu, era um quarto de arrecadação, mas que sabe agora ser o quarto da M….
Ao entrarem em casa, a AL…, a M… e o companheiro da primeira, AG…, ficou com receio e permaneceu no quarto, onde foi surpreendido pela M…, que se assustou quando o viu.
Ao pretender sair dali empurrou-a, não sabendo como a feriu, pese embora admitisse que tinha uma navalha na mão.
Assustado, colocou a navalha numa jaqueta que trazia vestida e fugiu.
No que se refere aos factos 1.º a 3.º, foram os mesmos admitidos pelo arguido, assim como por AL… e por sua filha MG….
Todos referiram um clima de harmonia, que perdurou mesmo após a separação do casal, o que motivou a que, não tendo o arguido solução habitacional, residisse na casa de ambas durante algum tempo.
Referiu MG… achar que o autor das mensagens que se encontram de fls. 137 a 149, todas analisadas em audiência de julgamento, era o arguido, pese embora não o pudesse, com segurança, afirmar.
No que se refere aos factos 5.º e 6.º, confirmou ter contado à mãe as suas suspeitas, o que a fez apresentar queixa-crime, dando origem a um inquérito.
Mais tarde, diz ter dito à mãe que havia mantido relações sexuais com o arguido, o que deu origem a nova queixa e outro inquérito.
AL… confirmou essas declarações.
O facto 7.º resultou provado atento o depoimento coincidente de AL…, MG… e AG….
Relativamente aos factos 8.º a 10.º, foram os mesmos admitidos pelo arguido, único que os vivenciou, embora que com o enquadramento supra referido.
Quanto à forma pela qual o arguido entrou na habitação, não foi possível apurá-la com segurança.
Vejamos porquê.
O arguido declarou ter entrado pela porta da frente, fechada apenas no trinco.
MG… admite que o arguido tivesse entrado por uma de duas formas que lhe pareceram plausíveis: ou pela porta da marquise, ou porque tivesse feito cópia das chaves, que o arguido já tinha entregue à sua mãe, mas sem que tivesse sido mudada a fechadura.
Já AL… admite que possa ter entrado pela janela da marquise, que o arguido sabia bastar que a puxasse para abrir.
Destas declarações e depoimentos não resulta apurado, por forma suficientemente segura, como acedeu o arguido ao interior da casa.
Relativamente aos factos 11.º a 20.º, referem-se os mesmos à dinâmica que conduziu às lesões sofridas pela M…, as declarações do arguido, assistente e testemunhas AL… e AG… foram concordantes no sentido de que os últimos três chegaram a casa por volta das 15h15, bem como quanto ao local, já no interior da habitação, para onde e dirigiram.
Afirma MG… que, ao entrar no quarto, foi surpreendida pela presença do arguido, que a empurrou para o corredor, e tentou atingi-la com o que lhe pareceu uma faca, o que a fez gritar e baixar-se para se proteger. Perante os gritos, acorreu AG…, actual companheiro da mãe, o qual interveio agarrando o arguido, levando-o para outro quarto. Enquanto isto decorria, fugiu para o exterior, e foi só aí que verificou a existência de sangue na roupa.
Logo correu para um café próximo, onde sabia que iria encontrar o pai, com ele regressando ao local. Ali, ainda viu o arguido ao longe e, por isso, fugiu.
Já AL… disse ter também ela acorrido ao local ao ouvir gritos da filha, tendo verificado que o seu companheiro A… estava já a empurrar o arguido para outro quarto que estava em obras, estando a M… agachada no chão.
Disse ainda que viu o arguido ainda em cima da M…, depoimento que, nesta parte, não mereceu credibilidade porquanto não é compatível com o que disse a propósito de o A… se encontrar já a empurrar o arguido.
Confirma que a M… fugiu para o exterior, e foi só quando ela regressou, já na companhia do pai, que verificou a existência de sangue na sua roupa.
A testemunha AG… disse que, ao chegar perto da M…, alertado pelos seus gritos, a viu “aninhada” contra a parede, e o arguido com uma faca “de matar porcos” na mão.
Naturalmente que esta descrição do instrumento cortante utilizado pelo arguido não merece qualquer credibilidade. É da experiência comum que uma faca apta a tal desiderato é necessariamente muito grande. Por outro lado, o arguido é alto e com compleição atlética.
Acaso tivesse utilizado uma faca com tais características as lesões sofridas, e as suas consequências, descritas nos factos 21.º a 24.º, e que resultaram provadas pelos relatórios médicos de fls. 363 a 365 e 468 a 469, pela informação hospitalar de fls. 457 a 463 e, ainda, pelo relatório pericial de fls. 493, teriam sido muito mais expressivas.
Aliás, são bastantes mais compatíveis com o declarado pelo arguido, o qual disse ter utilizado uma navalha.
Refira-se que, no relatório pericial de fls. 493, expressamente se refere que as cicatrizes e a limitação nos últimos graus de extensão do cotovelo esquerdo não são “gravemente desfigurantes ou limitantes”, bem como que “do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida da examinanda”.
Seguro, apenas que foi utilizado um instrumento cortante, sem que tivesse sido possível, até porque não foi apreendido, melhor caracterizar do que se tratava.
É também certo que o arguido fugiu, tendo ainda sido perseguido, sem sucesso, pela testemunha AG….
O facto 25.º foi confessado pelo arguido, tendo as testemunhas AL… e M… confirmado que o mesmo entrou em sua casa sem seu conhecimento e consentimento.
Já o facto 26.º resultou provado atendendo a que o arguido, efectivamente, atingiu a M… com um objecto cortante por duas vezes e em diferentes partes do corpo. Esta circunstância é apenas compatível com a intenção de molestar fisicamente. Na verdade, acaso o arguido quisesse apenas fugir ao ser surpreendido no interior da habitação, nenhuma necessidade teria de causar lesões à M…. Isto até pela sua compleição física, alto e atlético.
A conclusão de que o fim visado era ofender a integridade física prende-se precisamente com essa compleição física, sendo a ofendida uma mulher, no caso mais frágil.
Resulta das declarações do arguido que nenhuma limitação cognitiva o impedia de saber proibida e punida por lei a sua conduta.
Quanto aos factos referentes aos pedidos de indemnização civil, o Tribunal atendeu às declarações de MG…, bem como aos depoimentos das testemunhas AL… e AG…, bem como MC…, que cuidou da M… desde quando ela tinha 1 ano, e que disse, de forma credível, que a M… tem medo de estar sozinha, mas que, na sua avaliação, voltará ao que era. Afirmou também esta testemunha que a AL… se sente culpada por não ter protegido a filha, mas isso por referência a factos que não se apuraram e que não eram objecto deste processo. Falamos de eventual existência de relações sexuais entre o arguido e a MG….
O facto 28.º foi especialmente descrito pela testemunha AG…, tendo sido ele a colocar as cordas nos puxadores, isto antes de o arguido ter sido preso.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido ou, no caso, à sua ausência, resultaram os mesmos provados pelo respectivo certificado de registo criminal.
As condições pessoais do arguido foram julgadas como provadas atentas as suas próprias declarações, bem como pelo teor do relatório social juntos aos autos.

2.3.2.Factos não provados.
Relativamente aos factos 1.º e 2.º, sempre se diga que não são objecto deste processo, havendo inquérito a decorrer para os apurar, tendo sido entendidos pelo Tribunal Colectivo numa perspectiva de enquadramento da conduta do arguido.
Ainda assim, sempre se dirá que o arguido negou ter mantido relações sexuais com a M…, contrariamente ao que esta afirmou. Temos, pois, duas versões divergentes, sendo que nenhum outro elemento de prova foi apresentado que fosse apto a comprovar as declarações da MG….
Na verdade, não deixa de estranhar que esta tenha dito, num primeiro momento, à mãe, estar a receber mensagens ameaçadoras que julgava serem provenientes do arguido, o que fez esta apresentar uma queixa, e só mais tarde tenha decidido contar-lhe também que tinha mantido relações sexuais com o arguido.
Aliás, igual estranheza se regista relativamente a AL…, a qual, perante tal acusação da filha, convocou para sua casa o arguido e o pai da Mafalda, testemunha CM….
Essa reunião ocorreu no dia 30 de Maio de 2017, estando presentes, além dela e da filha M…, também os “convocados”. Ora, foi dito por ambos, arguido e pai da M…, que ali se dirigiram para falarem acerca da autoria das ameaças recebidas pela M…. Não pode deixar de se estranhar que, estando em causa um facto de grande gravidade, como seja a existência de relações sexuais entre o seu ex-companheiro e a sua filha menor, tal não fosse também o objecto da reunião.
Finalmente, afirmou o pai da M… ter sido, também ele, surpreendido na reunião pela alegação da existência de relações sexuais, facto que até esse momento não lhe havia sido transmitido – o que também não deixa de ser estranho – tendo o arguido negado e a filha afirmado, o que o deixou confuso, sem saber em quem acreditar.
No que se refere ao facto 3.º, remete-se para o que supra se referiu quanto as características do objecto utilizado.
Relativamente ao facto 4.º, apenas a testemunha A… referiu que o arguido tinha luvas calçadas e uma “faca de matar porcos”, tudo negado pelo arguido. Este depoimento não mereceu credibilidade, como supra, a propósito dos factos provados se referiu e para o que se remete.
Acresce que, tendo o arguido levado consigo o objecto cortante que utilizou, não teria grande sentido não levar também as luvas cujo uso, como certamente saberia, agravaria a sua conduta.
Quanto ao facto 5.º, desde logo não é compatível com as lesões sofridas pela M… – duas, em duas zonas do corpo – compaginado com a atlética compleição física do arguido e, ainda, a manifesta diferença física entre ele o a testemunha A…, bastante mais baixo e magro.
Relativamente aos factos 6.º a 8.º, foi o mesmo negado pelo arguido.
MG… nada ouviu, até porque fugiu para o exterior da casa.
Já a testemunha AG… disse que o arguido “disse qualquer coisa” mas não se lembra o quê. Ora, certamente que se as expressões utilizadas fossem as que constam na acusação, porque constituiriam uma ameaça, a testemunha certamente se lembraria, mesmo que não nos seus exactos termos.
Apenas a testemunha AL… afirmou que o arguido disse vou parar à cadeia mas isto não fica assim”.
Ora, não é credível que, estando a testemunha A… no mesmo espaço físico, não tenha confirmado tal depoimento.
Não havendo mais diligências probatórias que fosse possível, a este propósito, serem feitas, tem a dúvida que beneficiar o arguido.
Relativamente ao facto 9.º, foi o mesmo julgado como não provado pela análise conjugada de diferentes meios de prova.
Vejamos.
O arguido negou ter intenção de tirar a vida à M….
As lesões sofridas, e as suas consequências, descritas nos factos provados 21.º a 24.º, e que resultaram provadas pelos relatórios médicos de fls. 363 a 365 e 468 a 469, pela informação hospitalar de fls. 457 a 463 e, ainda, pelo relatório pericial de fls. 493, teriam sido muito mais expressivas acaso a intenção do arguido fosse matar a M….
Veja-se que se trata de indivíduo alto e atlético, perante uma mulher, que facilmente a teria atingido mortalmente acaso o pretendesse.
A comprová-lo, a circunstância de, com dois golpes, um deles atingiu o cotovelo. Certo que o outro atingiu a zona inframamária, zona onde efectivamente se alojam órgãos vitais.
Esta conclusão é retirada ainda do relatório pericial de fls. 493, o qual expressamente refere que as cicatrizes e a imitação nos últimos graus de extensão do cotovelo esquerdo não são “gravemente desfigurantes ou limitantes”, bem como que “do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida da examinanda”.
Foi referido pela testemunha AL… que o arguido sabia que no dia em que se introduziu na sua casa, a M… lá estaria, uma vez que não tinha aulas, só assim não tendo acontecido pela deslocação à esquadra de Porto Salvo. Teria, assim, agido estrategicamente para melhor tirar a vida à M….
Ora, este argumento esbarra num outro, também afirmado pela mesma testemunha: o seu companheiro AG… não trabalha, pelo que é possível encontrá-lo em casa a qualquer hora.
O arguido sabia da existência do AG…, o qual, aliás, estava presente em casa no dia da reunião de fia 30 de Maio de 2017, embora nela não tivesse participado.
De tudo se conclui não ter havido intenção de matar, desiderato que facilmente teria alcançado acaso fosse esse o seu propósito.
O facto 10.º retrata uma pessoa fora de si, o que nenhuma testemunha afirmou.
No que se refere ao facto 12.º é contrariado pelo próprio depoimento da testemunha AL…, a qual expressamente disse que, ao cruzar-se com o arguido e o “olhar nos olhos”, soube que ele não a iria matar ou molestar fisicamente.
Quanto aos restantes factos, todos referentes ao pedido de indemnização civil, nenhuma prova sólida foi feita apta a demonstrá-los, designadamente testemunhal. A poria M… descreveu o seu estado de espírito e receios pela forma como foram julgados provados os factos, mas não mais do que isso.
Acresce, no que se refere ao facto 24.º, não ter sido apurado a quem efectivamente pertenciam tais objectos, até porque decorriam obras em casa da AL….

4. O recurso de impugnação (ampla) da decisão em matéria de facto, genericamente admitido pelos artigos 412º nºs 3 e 4 e 431º do Código de Processo Penal, não se limita à obtenção por outro tribunal de uma “segunda opinião” ou um novo julgamento sobre todos os elementos de prova produzidos e pressupõe a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal de primeira instância, mas circunscrita aos factos individualizados que o recorrente especifique como incorrectamente julgados na base, para tanto, na avaliação das concretas provas que impunham uma decisão diferente por uma entidade imparcial e isenta, num julgamento justo e equitativo.
Importa ainda recordar uma vez mais que o contacto pessoal com os arguidos, declarantes e testemunhas confere ao juiz em primeira instância os meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
Na realidade, a apreciação sobre a fiabilidade de um depoimento para uma entidade imparcial e equidistante dos interesses antagónicos em causa depende em muito da espontaneidade, da pormenorização, da coerência do discurso, bem como da coincidência com os elementos extraídos de outros meios de prova.
Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, ou seja, toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.

Daí que persistentemente se afirme que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada, para os efeitos do artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, não pode deixar de ter um significado mais exigente do que simplesmente admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Numa concreta situação em que a apreciação crítica da prova consente ou não colide com mais do que uma conclusão, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência comum e o direito probatório, deve ser mantida, porque foi proferida, com recurso à imediação e em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, pela entidade imparcial a quem nos termos da Constituição e da Lei compete decidir (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-02-2008, no proc. 07P4729, relator Pires da Graça, em www.dgsi.pt).

Tal como se escreveu em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
“I O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formuIação lógico-intuitiva.

II Na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
2.1.- a recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença; dá-se com a produção da prova em audiência;
2.2- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal - que é livre, art. 127º do Código Processo Penal - mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo principio de persecução da verdade material;
2.3- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

III A convicção assenta na verdade prático-juridica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.
IV Esta operação intetectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
V Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a mediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao principio in dubio pro reo). (…)
XI A censura da forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. (Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 21-11-2001, relator Barreto do Carmo, proc. 926/2001, acessível in www.dgsi.pt, seguidamente transcrito no acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, acessível in  http://www.tribunalconstitucional.pt).
          
Ainda assim, a atribuição de confiança a um elemento de prova testemunhal ou por declarações depende sempre da utilização de regras extraídas da vivência comum, pelo que o tribunal de recurso pode e deve, não só apreciar a verosimilhança ou plausibilidade da narrativa de uma testemunha ou declarante, mas questionar a razoabilidade da norma extraída da vivência comum subjacente à opção do tribunal de primeira instância, por forma a apreciar a correcção do raciocínio indutivo constante da decisão recorrida.

No caso destes autos, a assistente recorrente questiona a decisão sobre a matéria de facto constante dos pontos 9, 15 e 26 do elenco dos factos que o tribunal julgou provados e dos pontos 4, 5, 9 e 18 dos factos não provados.

Em termos muito sintéticos, suscita-se o problema de saber se se deve considerar provado que o arguido entrou na residência mediante a utilização de chaves falsas, se o instrumento utilizado pelo arguido foi uma faca, se o arguido ao desferir os golpes (ou facadas) agiu com a intenção de tirar a vida ou de molestar fisicamente a ofendida MG….

As concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar são os trechos de depoimentos e declarações especificados pela recorrente, juntamente com outros elementos que entenda relevantes (artigos 412.º n.º 3, n.º 4 e n.º 6 do Código do Processo Penal).

5. Procurando percorrer os argumentos expostos pela assistente, analisando os fundamentos da decisão recorrida e os elementos de prova especificados na motivação de recurso:

A- Quanto ao circunstancialismo referente ao meio ou forma de introdução pelo arguido na residência da assistente e de sua mãe, AL….  
Segundo consta na fundamentação da convicção, o tribunal colectivo considerou não ter havido prova segura neste âmbito, depois de ter ponderado o teor das declarações do arguido, afirmando que tinha entrado pela porta da frente, fechada apenas no trinco, do depoimento de MG…, admitindo a possibilidade de o arguido ter entrado pela porta da marquise ou através da utilização de uma cópia ou duplicação indevida das chaves, e de AL…, admitindo que a entrada possa ter ocorrido por uma janela da marquise.
A recorrente pretende a alteração na decisão salientando que se a declarante e a testemunha afirmaram que a porta da habitação só tem trinco por dentro, se não houve nenhum sinal de arrombamento, se as janelas estavam fechadas e os estores para baixo, então só se pode concluir que o arguido utilizou uma cópia das chaves obtida antes de as devolver a AL…, na ocasião da separação.
Em nossa apreciação com base na audição do registo áudio existente na plataforma Citius, quer MM…, quer sua mãe AL…, afirmaram as diferentes hipóteses de entrada do arguido, não em abstracto, ou em “tese geral”, mas para aquele dia em concreto. Em síntese, o arguido afirmou que “a porta estava mal fechada”, MM… declarou que JR… podia ter entrado com a “cópia que ele fez da chave” ou pela janela da marquise, assim referindo dúvida quanto à forma de entrada, mesmo sabendo que naquele dia, depois de o arguido fugir do local “não havia sinais de arrombamento”; Sabemos ainda que AL…, perguntada se se apercebeu como é que o arguido terá entrado lá em casa, respondeu “possivelmente através daquela janela…..”
A “inexistência de sinais de arrombamento” e a circunstância de “estar tudo fechado”, tanto podem corroborar a tese da assistente no recurso, quer a versão exposta pelo arguido no sentido de que a porta não estava trancada ou bem fechada e permitia a entrada.
Em nossa apreciação, o raciocínio do tribunal perante elementos probatórios de sinal distinto revela-se perfeitamente razoável. Agora em recurso, não vislumbramos qualquer regra de experiência comum que nos imponha ter como provado, para lá de uma dúvida razoável, que o arguido entrou na habitação através de um duplicado de chaves que teria obtido e estava em seu poder sem o conhecimento e contra a vontade de AL….
Deve por isso manter-se a decisão quanto ao ponto 9 dos factos provados.

B- Quanto à natureza e características do instrumento que o arguido utilizou para atingir o corpo da vítima MM…
O arguido fora acusado de desferir “duas facadas” e no ponto 15 da matéria de facto provada ficou a constar que o arguido efectuou dois golpes com objecto cortante, embora no ponto 20 também se afirme como provado que o mesmo arguido abandonou o local “levando a faca que trazia consigo”. Se levava a faca ao fugir, tudo leva a crer que tenha sido esse o instrumento  utilizado  para golpear  a ofendida MM….
Ouvido o registo áudio da prova, consideramos que se impõe a alteração no sentido de se consignar como provado que o objecto cortante utilizado pelo arguido se identifica como uma “faca”, tal como ressalta de uma forma segura do teor das declarações da assistente MG… (“a tentar esfaquear-me (…) a pergunta responde que ele tinha uma faca na mão eu vi a lâmina) e de sua mãe AL… (viu bem o J… com uma faca quando se envolveu com o A…), o que também é consentâneo com a forma e a extensão do corte causado no corpo da vítima e até se aproxima com o sentido útil das declarações do arguido, referindo que tinha uma “navalha de abrir com uns 10 cm de lâmina”.
Em nosso entendimento, a descrição da testemunha AG… sobre as características concretas da faca, identificando-a como sendo semelhante às que se usam “para matar porcos”, sendo destituída de razoabilidade, não tem necessariamente de conduzir à descredibilização de todo o depoimento.
É evidente que se tivesse sido utilizada um instrumento desse tipo e extensão de cabo e de lâmina, não teriam sido causadas apenas as lesões examinadas no corpo da vítima (ponto 21 da matéria de facto provada).
Como temos entendido em muitas outras situações, se uma testemunha, pelo nervosismo próprio de que presta depoimento uma audiência, por erro ou propositadamente, produzir uma ou outra declaração que seja desconforme com a realidade, ou omitir factos circunstanciais, o tribunal não se encontra adstrito à inutilização de todo o depoimento.
Desde que o raciocínio seja compreensível e razoável, o tribunal poderá e deverá aceitar como verdadeiros certos segmentos das declarações ou do depoimento e negar fiabilidade a outros, distinguindo o que merece credibilidade, porque consentâneo com outros elementos de prova, do que lhe surge como mera efabulação emocional, fruto da preocupação de defender interesses próprios ou, mesmo, como mero erro de percepção.
Neste caso, tudo se passou em breves momentos de nervosismo e aflição. Esse concreto condicionalismo pode justificar uma percepção errada da pessoa que intervém directamente nos acontecimentos, mantendo-se a fiabilidade quanto ao essencial, ou seja, que se tratou de um instrumento ou objecto conhecido pela designação de “faca”.
Deve por isso alterar-se a decisão quanto aos factos do ponto 15, no sentido que o arguido utilizou uma faca.

C- Quanto à circunstância de o arguido ter usado as luvas.
A assistente insurge-se com a decisão constante no segmento em que o tribunal colectivo julgou não provado que na ocasião em se dirigiu ao quarto de MM… e a atingiu, o arguido envergava luvas de plástico (ponto 39 do requerimento inicial do pedido de indemnização civil).
Afigura-se-nos que assiste razão à recorrente.
Em nossa apreciação, os elementos probatórios disponíveis, onde se incluem as declarações do arguido, por um lado, mas, por outro, o teor do depoimento de AL… (viu que o J… tinha calçadas umas luvas de borracha de cor laranja), o teor do depoimento de AG… (viu que o arguido sempre teve umas luvas calçadas de pano e borracha, recolheu-as e entregou-as à autoridade policial) e o teor do relatório do exame pericial (uma das duas luvas de borracha cor de laranja recolhidas pela PJ no local, logo após os factos aqui em investigação, fotografada como vestígio C, continha um perfil de ADN idêntico ao do arguido (cfr. fls. 297, 305 e 341 a 342), impõe-nos uma decisão diferente.
A conjugação destes elementos probatórios permitem convencer com a necessária segurança que o arguido vestia as luvas de borracha que depois abandonou ao sair do local, devendo proceder-se à correspondente alteração da decisão em matéria de facto .
Procede pois o recurso neste âmbito.

D- Quanto ao facto de o arguido depois de ter atingido a ofendida, ter continuado a desferir facadas na direcção da MM… (ponto 5 dos factos não provados)
Entendendo a frase com o significado de comportamento de quem tenta ou procura atingir outra pessoa fazendo movimentos com os braços e empunhando uma faca (não interessando aqui saber se alcançou esse objectivo), a expressão continuou a desferir facadas não está em contradição com a circunstância de inexistirem outras lesões no corpo da vítima.
Contudo, ouvido o registo áudio, afigura-se-nos que as declarações de AL… (viu o arguido a investir contra a ofendida) e de MM… ( estava a tentar, pronto, atingir-me) e o depoimento de AG… sobre os movimentos (ou “investidas”) do arguido não são suficientemente seguros e concretizados para nos convencerem, para lá de uma dívida razoável, que depois de ter atingido a ofendida e nos movimentos que se lhe seguiram, o arguido ainda procurou atingir a ofendida com a faca.
Improcede o recurso neste âmbito.
 
E- Quanto aos elementos subjectivos. Os factos do dolo no comportamento do arguido (ponto 26 dos provados e ponto 9 dos não provados)
A questão controvertida neste âmbito consiste fundamentalmente em saber com que conhecimento da realidade e vontade agiu o arguido ao enfrentar MG… e ao desferir os movimentos empunhando uma faca.
A constatação da existência de qualquer um desses elementos fácticos pode resultar de um raciocínio lógico e dedutivo com base em factos ou acontecimentos instrumentais ou circunstanciais, alcançados a partir de provas directas (testemunhais, periciais, documentais, etc.), mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência, ou seja de normas de comportamento humano, extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites (artigos 124º a 127º do Código de Processo Penal e quanto à utilização de presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil).
Sabemos que o arguido JR…, então de 41 anos de idade, dirigiu mensagens a MM… que a fizeram temer pela sua vida e integridade física. No dia em que a ofendida se dirigiu à autoridade policial para apresentar queixa, o arguido entrou na casa de habitação de M… e de sua mãe, sem o conhecimento ou vontade de quem aí residia, surgiu de surpresa de trás de um porta e desferiu dois golpes com uma faca que atingiram MM…, de 16 anos de idade, na zona inframamária direita e no cotovelo esquerdo.
Segundo tudo leva a crer, o movimento do arguido que provocou esse golpe foi livre, consciente e orientado, pelo que se tem de entender que JE… actuou sabendo e querendo atingir aquela concreta zona do corpo de MG….
Segundo o conhecimento generalizado, uma “faca” ou outro objecto da mesma natureza, seja qual for a envergadura e o concreto tamanho da lâmina, é um instrumento utilizado precisamente para cortar e que, por isso, pode perfurar a pele e, com elevada probabilidade, atingir um dos órgãos importantes do corpo humano para provocar a morte de qualquer pessoa.
Assim como é sabido que a região do corpo designada como “inframamária” direita integra o tórax, onde se alojam órgãos de importância vital, nomeadamente coração, pulmões e grandes vasos, cujas lesões podem ser potencialmente graves e rapidamente conduzirem à morte.
Um golpe de faca ou de outro instrumento dotado de lâmina cortante,  com o consequente traumatismo penetrante, pode muito provavelmente provocar insuficiência respiratória, hemorragia maciça, hipotermia e a morte da pessoa atingida.
Temos pois como certo que aqueles concretos actos do arguido eram adequados a causar a morte de MM….    
Salvo o devido respeito, o argumento exposto no acórdão recorrido de que pela diferente compleição física se tem de entender que se JR… quisesse matar, tê-lo-ia  concretizado, revela-se claramente improcedente:
Em primeiro porque o elenco dos factos provados não sustenta a existência de uma desigualdade assinalável de compleição física entre agressor e agredida. Sabemos apenas da diferença de sexo e de idade.
Em segundo, porque esse argumento acaba por ser “reversível”. Se existia uma acentuada diferença de destreza e de força física e o arguido tivesse o propósito (“apenas”) de atingir fisicamente a ofendida, então bastar-lhe-ia a utilização dos braços e das mãos, sendo por isso absolutamente incompreensível o recurso à utilização da faca. Quem quer ferir outra pessoa usando uma faca ou um outro objecto perfurante dirige o golpe para uma perna ou um braço, nunca para o pescoço ou para o tórax.
Não vislumbramos qualquer outro elemento fáctico provado capaz de convencer que o arguido agiu (apenas) com intenção de molestar fisicamente a vitima, para, por hipótese, fugir do local.
Note-se que mesmo na descrição que fez na audiência de julgamento, o arguido detinha o “canivete” que “abriu” (entende-se a lâmina) na ocasião em que se apercebeu que tinham entrado pessoas na casa.
A (feliz) ausência de consequências particularmente dolorosas ou de um prolongado período de doença para a vítima, ou mesmo a circunstância de o evento não ter causado um concreto perigo para a vida da ofendida não afastam a intenção de matar, nem convencem que terá havido apenas vontade de molestar fisicamente.
Como se escreveu no acórdão do TRE de 12-07-2018, proc. 208/17.0PBEVR.E1, relatora Ana Barata Brito,
Uma coisa é saber se as lesões causadas foram de tal modo graves que determinaram um perigo efectivo para a vida da vítima (num juízo ex post) – e foi sobre isto que a perícia se pronunciou na expressão polémica, tendo afastado tal conclusão –, outra, a referida nos factos provados do acórdão, o saber se as lesões causadas (no sentido de actos lesivos praticados) eram adequadas a causar a morte da vítima, apesar de em concreto não ter ocorrido esse perigo efectivo de vida num juízo ex ante). São dois momentos diferentes na avaliação, momentos naturalmente impostos no processo de decisão sobre a imputação objectiva
Ou, como recordou o Procurador-Geral Adjunto junto deste TRL no seu douto parecer, “não ter havido perigo concreto já é alheio à vontade do arguido” .
Um raciocínio à luz de regras da vivência comum e de critérios de razoabilidade no contexto global dos factos leva necessariamente a concluir que o arguido, ao dirigir o golpe e ao causar a perfuração naquela concreta zona do corpo da ofendida, ainda que sem uma especial violência, sabia desse sério risco e, ainda assim, prosseguindo, se conformou com a possibilidade de daí advir o resultado morte.
Deve por isso alterar-se a decisão da matéria de facto em conformidade.

F- Quanto a consequências dos factos (ponto 18 dos factos não provados).
A assistente-demandante recorre ainda da decisão da matéria de facto no segmento em que aí consta como não provado que, ainda hoje, mesmo depois de o arguido ter sido detido, a ofendida não se sente confortável a dormir sozinha no seu quarto.
Está provado que durante os dias que se seguiram, e até à prisão do arguido, AG…, a sua filha M… e o seu companheiro AG… dormiram na sala, com janelas e estores fechados e todas as portas da casa trancadas e amarradas umas às outras com cordas na zona dos puxadores (ponto 28).
Nos depoimentos prestados na audiência de julgamento a este propósito, MM… refere que ultimamente dorme na sala e sua mãe afirmou que até hoje a M… continua a não conseguir dormir no quarto dela.
Tendo em conta todo o tempo entretanto decorrido, estando o arguido preso, afigura-se-nos compreensível e razoável a opção do tribunal colectivo e não vemos elemento probatório que nos imponha a decisão de julgar como provado que, em consequência dos factos cometidos pelo arguido, ainda hoje permanece o desconforto da arguida em dormir no seu quarto.
Improcedendo o recurso neste âmbito.

6. Em consequência do acima exposto, decide-se alterar a decisão da matéria de facto provada e não provada, revogando parcialmente o acórdão recorrido, por forma a constar o seguinte:
Factos provados
Ponto 10- Uma vez no interior da habitação, o arguido dirigiu-se ao quarto de MM… com uma faca, calçando umas luvas e escondeu-se atrás de uma porta.
Ponto 15- O arguido desferiu dois golpes com uma faca no corpo de MM…, uma na zona inframamária direita e outra no cotovelo esquerdo.
Ponto 26- Ao desferir os dois golpes com a faca na direcção do corpo de MG…, o arguido, JE…, agiu de forma livre, voluntária e consciente.
O arguido actuou sabendo e querendo atingir aquela concreta zona do corpo de MG…. Ao dirigir o golpe e causar a perfuração, sabia que desse comportamento resultava directamente um risco sério de daí advir como resultado a morte de MG… e, ainda assim, prosseguindo, conformou-se com essa possibilidade.

Factos não provados.
Ponto 4- A faca que o arguido detinha na mão era uma “faca de churrasco”.
Ponto 9- Sem prejuízo do que consta como provado no ponto 26, o arguido agiu intencionalmente, querendo causar a morte de MM…. 

7. É sabido que existe tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se (artigo 22º nº 1 do Código Penal).
Segundo jurisprudência e doutrina dominantes, a tentativa pode ser punível ainda que praticada com dolo eventual (cfr. entre muitos outros, os acórdãos do STJ 14-06-00, in CJ (Acs. do STJ), Ano VIII, Tomo II, pág. 211 e de 08-09-2016 proc. 610/15.1PCLSB.S1Helena Moniz, in www.dgsi.pt).
Estando assente que JE…, agindo livre e conscientemente, representou como consequência da sua conduta a efectiva possibilidade da morte da ofendida e, apesar disso, actuou e desferiu o golpe, conformando-se com esse resultado, o arguido cometeu actos de execução de um crime que decidiu cometer e conclui-se que os factos provados preenchem o cometimento do crime de homicídio na forma tentada e sob dolo eventual (artigo 22º do Código Penal).

8. O arguido foi acusado do cometimento do crime de homicídio na forma tentada, qualificado pelas circunstâncias constantes das alíneas e), h) e i) do artigo 132º do Código Penal. O Ministério Público considerou que a especial censurabilidade do comportamento do arguido decorre da verificação da motivação da conduta, de ter sido utilizado um meio particularmente perigoso ou de o agente ter actuado de uma forma  insidiosa.
Como tem sido sublinhado pela doutrina e jurisprudência, o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no artigo  131.º do Código Penal, sendo a partir desse preceito que a lei, nos artigos seguintes, prevê as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.
No artigo 132.º do Código Penal, o legislador utilizou a técnica dos exemplos padrão, enunciando circunstâncias atinentes à culpa do agente meramente indicativas, de referência exemplificativa, mas não de abrangência exclusiva, que podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
A formulação constante desse n.º 2 do artigo 132.º procede a uma correcção descritiva do conteúdo normativo do n.º 1 e permite identificar um efeito indiciador semelhante ao de uma “presunção”, levando a entender que, em princípio, se a situação concreta se enquadra numa das circunstâncias específicas constantes no preceito, então  se verifica no caso uma culpa agravada.
Porém, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do artigo 132.º, não é só por isso que o crime de homicídio cometido, se deverá ter logo por qualificado, impondo-se uma análise do caso concreto para aferir se, para aquele facto não concorreram contra-motivações, ou outras causas que funcionem como bloqueadoras do efeito do indício (Teresa Serra, Homicídio qualificado-tipo de culpa e medida da pena, Almedina, Coimbra, 1997, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Quid Juris, Lisboa, 1995; Fernanda Palma, Direito Penal Parte Especial Crimes Contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983,  p. 40 a 49, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2008, relator Raul Borges, processo n.º 07P4730,  www.dgsi.pt
A especial censurabilidade ou perversidade do homicídio pode estar presente em outras situações da vida real, desde que se verifiquem circunstancias qualitativamente análogas, paralelas ou equivalentes à de um ou mais dos exemplos-padrão, que evidenciem um grau de desvalor da conduta de intensidade semelhante e assim permitam identificar uma diferença relativamente ao padrão normal de actuação no homicídio, no sentido de justificarem e exigirem um acentuado juízo de censura e preencham um especial tipo de culpa agravada.
Ter-se-á de proceder em todo o caso a uma análise global do facto, incidindo necessariamente sobre o modo do cometimento do crime, a motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, as qualidades pessoais do agente ou de vítima. A especial censurabilidade ou perversidade do agente consistirá então num desrespeito acrescido ou num desprezo extremo do agente pelo bem jurídico protegido, revelados com base ou a partir fundamentalmente do condicionalismo concreto do evento letal. Concomitantemente, a especial perversidade traduz motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo, ou uma atitude de profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos preestabelecidos.

Como assinala Fernando Silva, a jurisprudência do STJ tem reconhecido que as circunstâncias qualificativas do artigo 132º nº 2 são aplicáveis ainda que se trate de crime cometido na forma tentada, sendo contudo necessário que as circunstâncias que revelam uma maior censurabilidade estejam já presentes nos actos de execução (op. cit. págs. 78 e 79). Também Teresa Serra admite a possibilidade de existência de uma tentativa de homicídio qualificado (op. cit. págs.79 a 90).

Vertendo ao caso concreto destes autos:
Não se demonstrou qual a motivação para a conduta do arguido pelo que logo se terá de afastar a possibilidade de integrar o comportamento do arguido na hipótese prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 132.º do Código Penal.
Ao mesmo tempo, temos como certo que o exemplo-padrão consistente na utilização de meio particularmente perigoso implica o uso de um instrumento que, pelas suas características, traduza um perigo acentuado, qualitativamente superior ao perigo inerente a qualquer meio usado para causar a morte de outrem, sendo considerado como tal, pela jurisprudência, aquele meio que acarreta dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitui perigo para outros bens jurídicos pessoais (assim se escreveu no acórdão do STJ de 23-02-2012, proc. 123/11.0JAAVR.S1, relator Rodrigues da Costa).
As características do instrumento usado pelo arguido – apenas se sabe que se trata de uma “faca”- não revelam uma perigosidade muito superior à que será normal nos meios usados para matar, pelo que, como bem se considerou no acórdão recorrido, não se mostra preenchida a circunstância qualificativa da alínea h) do citado nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
Afastadas as qualificativas por especial perigosidade do utensílio utilizado ou da motivação da conduta, sabido que o exemplo ora em causa é circunstância atinente à forma como o agente executa o facto, a questão a resolver seguidamente consiste em saber se o instrumento utilizado pelo arguido constitui um “meio insidioso” , assim se preenchendo o tipo de culpa constante do “exemplo-padrão” da alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º.
Segundo escreveu Figueiredo Dias, “insidioso” será todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno – do ponto de vista do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimilado ou oculto” (Comentário, I, p. 38).
Para Fernanda Palma, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983, pág. 65, a possibilidade de qualificação deriva da circunstância de os meios utilizados, dado o seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, tornarem especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos;
Numa perspectiva mais abrangente, Teresa Serra, in Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 1995), CEJ, Lisboa, 1998, volume II, p. 154, escreveu que
“…reconhece-se geralmente que a noção de meio insidioso abrange não apenas meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desprotecção da vítima em relação ao agressor: é o caso da facada traiçoeira pelas costas ou do disparo de arma de fogo em emboscada, meios que retiram à vítima qualquer capacidade de protecção. Aliás, o fundamento da qualificação contida nesta alínea reconduz-se precisamente à utilização de meios pelo agente, por forma a aproveitar-se dessa desprotecção da vítima”;
Também Fernando Silva apela a uma análise do concreto circunstancialismo, escrevendo a propósito:
“Está em causa o modo de execução do crime, nomeadamente através de uma actuação insidiosa. Ou seja, o agente utiliza um meio traiçoeiro, enganador, que expõe a vítima para que se reduzam as suas possibilidades de defesa. A vítima desconhece que o agente está a empreender um processo casual com vista à produção da sua morte, por isso torna-se numa “presa” fácil e desprotegida, sem hipótese de defesa. (…) A pedra de toque que nesta circunstância faz pressupor a maior censurabilidade é a traição, por esse motivo o envenenamento da vítima surge apenas para demonstrar o espírito que a norma pretende alcançar, abrindo a hipótese de utilização de outros meios insidiosos. A análise do meio insidioso passa por abordar a forma como a vítima se encontrava, e o modo como o agente empreendeu a sua conduta. Assim, por exemplo, uma faca pode ser utilizada de forma insidiosa, se, no meio de uma multidão, alguém atingir outro pelas costas, ou se a vítima se encontrar a dormir (in Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 2.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2005, pág. 72).

Na jurisprudência, este conceito recebeu, para integração, o contributo da doutrina, a partir da definição de Nelson Hungria, entendendo o meio insidioso como aquele meio dissimulado, imprevisto, que abrange a traição, o ataque súbito e sorrateiro da vítima descuidada ou confiante, aqui se incluindo também a emboscada, ou “espera” da vítima em lugar por onde vai passar de modo a colocá-la numa situação de vulnerabilidade ou de desprotecção (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2005, , proc. 05P546,Santos Carvalho, de 04-05-2011, proc. 1702/09.1JAPRT.P1.S1, Armindo Monteiro, de 09-06-2011, ,proc. 4905/07.8TPPRT.P1.S1, Isabel Pais Martins in www.dgsi.pt,  de 13-07-2011, proc. 758/09.1JABRG.G1.S1,Henriques Gaspar in www.stj.pt ,Sumários 2011).

No concreto circunstancialismo destes autos, temos como adquirido que o arguido entrou na casa de habitação sem conhecimento nem vontade das pessoas aí residentes e, junto ao quarto de dormir onde habitualmente MG… se encontraria protegida e tranquila, colocou-se atrás de uma porta de onde surgiu repentinamente e de surpresa para empurrar e desferir golpes com a faca na vítima.

No processo executivo do crime, o arguido agiu de uma forma traiçoeira e dissimulada, o que tornou particularmente difícil a prevenção do crime e a defesa da vítima.

Assim sendo, os factos provados revelam uma especial censurabilidade no comportamento do arguido e o crime de homicídio tentado deve ser qualificado pelo preenchimento da circunstância prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.

9. Cumpre de seguida apreciar o recurso no segmento correspondente às consequências jurídicas dos crimes cometidos pelo arguido.
Tendo improcedido o recurso da assistente quanto à alteração da decisão em matéria de facto provada por agravação decorrente da utilização de “chaves faltas”, deve manter-se a incriminação e a condenação do arguido pelo cometimento do crime de violação de domicílio na forma “simples”, previsto e punido no artigo 190º nº 1 do Código Penal, abstractamente punível com prisão até um ano ou multa até 240 dias.   

No acórdão recorrido consta, a propósito a escolha e da determinação da medida concreta da pena o seguinte (transcrição):
(…) em sede de medida concreta da pena, e no que se refere ao crime de violação do domicílio, há que valorar:
- A elevada ilicitude, uma vez que o arguido havia residido naquela casa, enquanto companheiro de AG…, não havendo nada que justifique a entrada não autorizada.
- As exigências de prevenção geral são muito elevadas porquanto o domicílio representa um local de conforto e protecção, no qual os residentes não esperam serem incomodados os confrontados com presenças não autorizadas.
- As exigências de prevenção especial são de baixo grau porquanto o arguido não conta com qualquer condenação por crime desta natureza, ou de outra.
- O dolo directo, ou seja, na sua modalidade mais grave.
- Manifestou arrependimento e ter interiorizado o desvalor da sua conduta.
- Trabalhava na altura da sua prisão, como aliás sempre o fez, tendo a sua vida organizada.
- A enorme intranquilidade que provocou nos residentes do domicílio violado.

Pelas considerações referidas, entende-se que a multa não satisfaz suficientemente os fins da pena, e julga-se adequada uma pena que se fixa em 9 (nove) meses de prisão.

Como decorre do disposto no artigo 43.º, n.º 1 do Código Penal, tratando-se de pena unitária de prisão não superior a um ano, deve a mesma ser substituídas por pena de multa, ou outra não privativa da liberdade, excepto se a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, tendo em atenção que a apreciação a fazer é diferente daquela que foi feita na escolha entre o tipo de pena.

No caso dos autos, entende-se não ser de substituir a pena de prisão por multa ou outra não privativa da liberdade, uma vez que se mostra necessária a séria advertência que a condenação em pena de prisão sempre constitui para que interiorizem a necessidade de não cometer novos crimes.

Como se deixou expresso no acórdão recorrido, a aplicação de uma pena de multa não satisfaria as finalidades de reprovação, nem as intensas necessidades de prevenção geral pela intensa ofensa da privacidade cometida pelo arguido e tendo em conta o contexto da conduta ilícita global.

Na realidade, sabendo que o arguido cometeu ainda no mesmo espaço temporal um crime de homicídio na forma tentada, forçoso se torna concluir que uma pena de multa, ou uma das penas de substituição, não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição para o crime de violação de domicílio, impondo-se aqui a opção pela pena de prisão, para corresponder a exigências mínimas de tutela dos bens jurídicos e de confiança da comunidade na validade e vigência das normas jurídicas atingidas[1] .

Pelos fundamentos enunciados no acórdão do tribunal colectivo, que subscrevemos na íntegra, também consideramos justo e equitativo, optar pela pena detentiva prevista em alternativa no preceito incriminador por intensas razões de prevenção geral e manter a pena concreta por este crime em nove meses de prisão.
10. Ao crime de homicídio qualificado na forma tentada corresponde uma moldura penal com um mínimo de 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão e um máximo de 16 anos e 8 meses de prisão (artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 23.º, 73.º, n.º 1 a) e b), 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. i), do Código Penal).

As circunstâncias com relevo na determinação da medida da pena e que não se encontram já previstas no tipo legal, são fundamentalmente as seguintes:
- A intensidade da vontade criminosa assume menor graduação, uma vez que o arguido agiu com dolo eventual.
O método ou modo de execução usado pelo arguido – “traição” num meio insidioso – não pode aqui merecer uma referência especial uma vez que foi já objecto de valoração ao nível do tipo legal. Contudo, a censurabilidade da conduta é ainda acrescida pela circunstância de o comportamento revelar um especial desrespeito por uma anterior relação de confiança e de proximidade com a vítima e a sua mãe;
- Em consequência da conduta do arguido, a MG… sofreu importantes danos no corpo e na saúde física e psíquica que, felizmente, se terão de considerar como de menor gravidade em termos relativos para este tipo de crime, tendo em conta a extensão das feridas e das cicatrizes, a limitação de extensão do cotovelo e o período de doença;
- A danosidade e frequência próprias da criminalidade violenta contra pessoas justificam relevantes exigências de tutela do bem jurídico vida e de necessidades de reprovação e de prevenção geral, pelo alarme social que este tipo de crime compreensivelmente provoca na nossa comunidade e pela frequência com que circunstancialismos de facto semelhantes têm como desfecho a consumação de crime de homicídio;
- As exigências de prevenção especial são reduzidas, porquanto o arguido beneficia de apoio na sociedade, revelou empenho numa vida profissional estabilizada e pode contar com o suporte de amigos para se reinserir a nível habitacional e laboral.
Revela ainda considerar que o arguido não regista qualquer antecedente criminal;
Sopesando em conjunto todas as enunciadas circunstâncias, designadamente a concreta forma de execução, as consequências dos factos e o comportamento anterior, concluímos como justo e equitativo fixar a pena para o crime de homicídio na forma tentada em quatro anos e seis meses de prisão.

11. Deve proceder-se ao cúmulo jurídico, numa moldura abstracta com um mínimo de quatro anos e seis meses e um máximo de cinco anos e três meses de prisão, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente (artigo 77º nº 1 e nº 2 do Código Penal).
Como tem sido salientado na sequência do que escreveu Figueiredo Dias, a determinação da dimensão da pena do concurso há-de resultar essencialmente de uma visão de conjunto dos factos, procurando alcançar uma valoração tão abrangente quanto possível da pessoa do arguido e do seu comportamento. Na avaliação da personalidade – unitária do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura conjunta” : serão aqui úteis elementos referentes à conexão dos factos entre si e no circunstancialismo que os antecedeu e acompanhou, a partir da constatação de factores como sejam a diversidade dos bens jurídicos violados, a maior ou menor frequência e perduração no tempo da comissão dos crimes ou uma eventual “dependência” em relação a esses factos.
Em sede de considerações de prevenção geral, cumprirá valorar a perturbação da paz e segurança dos cidadãos, bem como as exigências de tutela dos bens jurídicos e de defesa do ordenamento jurídico que ressaltam do conjunto dos factos.
De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente por forma a corresponder a exigências de prevenção especial de socialização. Na avaliação da personalidade expressa nos factos, deverão ser ponderados os elementos disponíveis da socialização e inserção do arguido na comunidade, assumindo relevância a consideração dos antecedentes criminais e da personalidade expressa no conjunto dos factos.
Em todo o caso, a ponderação destes elementos terá de respeitar um limite intransponível: por força do princípio de proibição de dupla valoração, na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas parcelares, sendo seguramente de rejeitar a utilização de elementos ou factores concretos já anteriormente ponderados na individualização da pena.

Aplicando agora as considerações expostas no caso vertente:
A pluralidade de crimes apresenta como denominador comum um mesmo contexto e ao que tudo indica sob uma mesma motivação, em idênticas circunstâncias de lugar e em ocasiões muito próximas no tempo.
Os factos provados não evidenciam uma tendência do arguido para o crime, sendo possível configurar uma situação de pluriocasionalidade , limitada aos acontecimentos em apreço destes autos.
Deve contudo ser acautelada a possibilidade de nova eclosão de violência entre os intervenientes.
Da gravidade global dos factos decorrem particulares exigências de prevenção geral, dada a profusão de crimes contra a privacidade e contra a vida.
Ainda assim, a pena conjunta, adequada à culpa e correspondendo às exigências de protecção dos bens jurídicos decorrente da apreciação global, terá também de permitir uma desejável recuperação e reintegração social.

12. Cumpre apreciar a possibilidade de aplicação da pena de suspensão de execução da prisão, ainda que sob a obrigação de cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou sob regime de prova (artigos 50º a 54º do Código Penal).
Para este efeito, verificado o pressuposto formal de que a pena de prisão não seja superior a cinco anos, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime e sopesando em conjunto as circunstâncias do facto e da personalidade, atendendo às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto, possa fazer uma apreciação favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de antecipar ou prever que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, o mesmo é dizer, para garantir a tutela dos bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade, entendida aqui como perspectiva que o condenado não volte a delinquir no futuro. 
Este juízo de prognose necessário para eventual aplicação da suspensão de execução, depende em exclusivo de considerações de prevenção especial de socialização e de prevenção geral positiva. Por isso se conclui sempre que, desde que aconselhável à luz de exigências de socialização, a pena de substituição só não deverá ser aplicada se a opção pela execução efectiva de prisão se revelar indispensável para garantir a tutela do ordenamento jurídico ou para responder a exigências mínimas de estabilização das expectativas comunitárias.
Os factos cometidos são graves, particularmente censuráveis quanto ao homicídio na forma tentada, provocam justificada preocupação, intranquilidade e repulsa na sociedade, criando intensas exigências de prevenção geral.
Contudo, o arguido é primário, está bem integrado na sociedade, sempre trabalhou, pode contar com o apoio de amigos e revelou perceber que não pode nem deve repetir condutas idênticas. Ao que tudo indica, o receio de cometimento de factos idênticos restringe-se à pessoa da vítima nestes autos e à sua família.
Atendendo ao conjunto dos factos, aos elementos da personalidade e apesar da intensa gravidade do comportamento, revela-se viável uma apreciação, nos limites do risco, no sentido de antecipar ou prever que a suspensão da execução da pena de prisão sob um regime de prova seja ainda adequada e suficiente para garantir a tutela dos bens jurídicos e a completa reinserção do arguido na sociedade.
Ponderando em conjunto as enunciadas circunstâncias, consideramos que a pena única, como necessária e equitativa para a culpa exteriorizada pelo arguido, assim como ainda como proporcional às exigências de prevenção geral positiva ou prevenção de integração, se tem de fixar em quatro anos e dez meses de prisão, de execução suspensa por idêntico período de tempo sob regime de prova, com expressa proibição de o arguido contactar por qualquer modo com MG… e AL…, ou de se dirigir ao seu domicilio (artigos 50º a 54º do Código Penal).

13. A matéria de facto provada evidencia que em consequência directa e necessária da conduta do arguido-demandado JE…, a assistente e demandante MG…, então de 16 anos de idade sofreu as dores decorrentes dos cortes e feridas, ficou com duas cicatrizes, sendo uma na zona dos seios e outra no cotovelo, limitação nos últimos graus de extensão do cotovelo esquerdo. Assim como se provou que ainda em consequência da conduta do arguido, a ofendida temeu e continua a temer pela sua vida, tem pesadelos frequentes, sente intranquilidade e insegurança quando está sozinha em casa, tornou-se numa pessoa mais fechada, mais retraída, com dificuldade no relacionamento com o sexo masculino.
Estes são danos de natureza não patrimonial que pela sua gravidade merecem a tutela do direito e justificam a atribuição de indemnização, nos termos do artigo 483º n.º 1 do Código Civil.
Na fixação do quantum dessa indemnização por danos não patrimoniais devem ser observados critérios de equidade, ponderando o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesado e do demandado, os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência e nas flutuações do valor da moeda (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, 2ª ed.,Vol. I, Almedina, 1973, 488)
Em todo o caso, a indemnização deve ser adequada e proporcional à gravidade objectiva dos factos, tomando em conta todas as regras de bom senso e da justa medida das realidades da vida. Como tem sido assinalado na jurisprudência, a indemnização por danos não patrimoniais, se nunca poderá constituir um enriquecimento sem causa, também não pode ser meramente simbólica ou miserabilista, devendo fixar-se em montante que tendencialmente viabilize o fim a que se destina.
Tendo em conta a natureza e a gravidade dos danos sofridos pela vítima nos termos provados, a capacidade económica do demandado e do demandante e os valores fixados pela jurisprudência em situações semelhantes, consideramos como justo e equitativo fixar em cinco mil euros o valor da indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela demandante em consequência dos factos destes autos.

IIIDISPOSITIVO.
14. Pelos fundamentos de facto e de direito acima expostos e aqui dados por reproduzidos, acordam os juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso da assistente MG… e, em consequência:
A- Condenam o arguido JE… pelo cometimento em autoria material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1, alínea i), 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de nove meses de prisão e, em cúmulo jurídico, condenam o arguido JE… na pena única de quatro anos e nove meses de prisão, de execução suspensa pelo período de quatro anos e nove meses, com regime de prova, mediante um plano a elaborar pela DGRSP, nele se incluindo a preocupação de assegurar que o arguido desenvolve actividade profissional remunerada e a estrita proibição de contacto, por qualquer modo, com MM… e AL…, bem como de se dirigir ao domicílio das ofendidas.
B- Condenam o demandado JE… no pagamento à demandante MG… da quantia de € 5000 (cinco mil euros).
Em tudo o mais, mantêm o acórdão recorrido.
Sem tributação.



Lisboa, 28 de Novembro de 2018.


(Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem).
                                     
                                                                                                               
João Lee Ferreira                                                                               
Nuno Coelho                                                                                                                                                                                                                         
[1]Sobre o tema da aplicação do artigo 70.º do Código Penal, com escolha entre pena de multa ou de prisão em caso de apreciação conjunta com outros comportamentos merecedores de aplicação de pena detentiva, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2011, processo n.º 250/10.1PDAMD.S1, Rel. Raul Borges.