Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21107/20.2T8LSB.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: TESTAMENTO
DECLARAÇÕES
VALIDADE
MEIO DE PROVA
NEGÓCIO USURÁRIO
INFERIORIDADE
DEPENDÊNCIA
FRAGILIDADE
NECESSIDADE
VULNERABILIDADE
TESTADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. As declarações das partes, enquanto meio de prova, têm de ser ponderadas com todas as cautelas pelo tribunal, não podendo olvidar-se que estas partes estão diretamente interessadas no desfecho da ação e que, por isso, não raras vezes prestam declarações de forma não isenta e comprometida, quando estão em causa factos que não lhes são favoráveis.
2. O negócio usurário previsto no art.º 282.º do C.Civil pressupõe uma situação de debilidade ou inferioridade do declarante; a exploração dessa situação por parte do usurário e a obtenção por este de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados.
3. A aplicação do regime do negócio usurário previsto no art.º 282.º do C.Civil ao testamento, tem de ser feita na consideração da especificidade deste ato, atenta a sua natureza negócio jurídico unilateral e a sua característica de gratuitidade, pela dificuldade que pode existir na concretização e verificação do requisito do negócio usurário reportado a “um benefício excessivo ou injustificado” obtido por parte do beneficiário, já que não existindo contrapartida poderia dizer-se que qualquer benefício obtido por via de testamento seria à partida excessivo ou injustificado, não podendo também de falar-se de um prejuízo para o testador ou de desequilíbrio de prestações.
4. É neste contexto, que se considera que não obstante no negócio usurário tenham de estar identificados todos os elementos previstos no art.º 282.º do C.Civil, quer os subjetivos - relativos ao declarante na verificação das fragilidades previstas na norma e ao usurário na exploração daquela situação de debilidade ou dependência - quer o objetivo reportado ao negócio, com a concessão ou promessa de benefícios excessivos ou injustificados, o instituto da usura impõe que a situação seja avaliada no seu conjunto, do que poderá resultar, conforme os casos, num diferente peso de cada um dos seus elementos.
5. Verifica-se uma situação de inferioridade, dependência e fragilidade da testadora quando na data em que o testamento é realizado, treze dias antes de falecer, os seus cuidados de higiene, alimentação e administração de medicamentos eram assegurados pelos AA., no âmbito de um contrato de prestação de serviços com eles celebrado, estando aquela acamada e não conseguindo por si só fazer face e satisfazer a essas suas necessidades mais básicas, num estado de fragilidade, dependência e debilidade física e psíquica que é ainda mais acentuado pela circunstância de não ter qualquer família, mas apenas alguns amigos que por vezes a visitavam.
6. Verifica-se uma exploração desta situação de necessidade, vulnerabilidade e dependência da testadora pelo A. quando é inequívoco que este tinha conhecimento da mesma, tendo-se apurado que não foi a testadora quem contratou os serviços da Notária, escolheu as testemunhas que vieram a assinar o testamento, ou pagou aqueles serviços, não tendo também resultado provado que o testamento tenha sido escrito pela Notária após a testadora expressar a sua vontade - esta afirmou que foi o A. quem solicitou os seus serviços e lhe deu as informações a respeito das deixas testamentárias que veio a incluir no testamento que levou redigido antes de contactar a testadora, sendo evidente que o A. não só tinha conhecimento do teor do testamento outorgado pela falecida a seu favor, como manifestamente diligenciou para esse efeito, nada revelando que a sua realização tenha correspondido a um ato espontâneo da testadora.
7. Verifica-se também o elemento objetivo da usura, pela obtenção de benefícios excessivos e injustificados por parte do A., quando não se descortinam razões válidas ou justificadas que pudessem ter levado a testadora a outorgar um testamento favor do A. treze dias antes de falecer, beneficiando-o com a totalidade dos seus bens com um valor considerável, quando entre eles não existia qualquer relação de parentesco ou afinidade revelando os factos provados apenas a existência de um contrato de prestação de serviços pelo qual o A. era remunerado mensalmente, não estando evidenciado sequer que ao longo dos mais de dois anos em que o mesmo foi executado tivessem sido criados entre eles especiais laços afetivos, designadamente de amizade ou cumplicidade mútua e quando existia um testamento anterior, feito pela falecida cerca de 20 anos antes, em que os beneficiários eram a sua amiga de infância e os seus filhos a quem tratava como família.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Vêm “AA” e mulher “BB” intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “CC” e marido “DD”, “EE” e mulher “FF” e “GG”, pedindo que se:
a) Declare nulo e de nenhum efeito registo de aquisição a favor de “CC” e “EE” e usufruto a favor de “GG” efetuado na Conservatória do Registo Predial de Portimão pela Ap. (…)94 de 2019/12/10;
b) Declare nulo e de nenhum efeito escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 10-12-2019 no Cartório Notarial da Notária (…), em Portimão, a fls 68 do Lº25;
c) Ordene o cancelamento dos registos supra referidos e, em consequência, todos e quaisquer outros registos que porventura hajam sido feitos, posteriormente, sobre o mencionado imóvel;
d) Condene os RR a entregar o prédio descrito Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número (…)7-H da freguesia de (…) e inscrito na matriz (…)39 da freguesia de Campo de Ourique, livre de ónus ou encargos, de pessoas e de bens que não façam parte da herança por óbito de “ZZ”;
e) Reconheça o direito de propriedade do A. no prédio supra indicado;
Mais requerem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º e alíneas a) e d) do n.º 1 do art.º 3.º, todos do Código do Registo Predial, que seja comunicado de imediato à Conservatória do Registo Predial competente, a instauração do presente procedimento, com inscrição no respetivo registo predial.
Alegam, em síntese, que com base num testamento que foi revogado e numa habilitação de herdeiros outorgada com esse fundamento, foi registada a propriedade de uma fração em nome dos RR, sendo que, por ter sido lavrado o registo com base em factos falsos, o registo é nulo.
Citados, os RR. apresentaram contestação, concluindo pela improcedência dos pedidos, referindo que o registo que efetuaram foi com base em títulos válidos e verdadeiros, que o testamento que o A invoca foi efetuado de forma fraudulenta, 13 dias antes da morte de “ZZ”, estando esta num estado de debilidade notória tanto física como mental que não lhe permitia as condições mínimas para avaliar o ato.
Mais formulam os RR. pedido reconvencional para que seja declarado inexistente o testamento que instituiu como herdeiro o A., ou se assim não se entender, nulo ou anulado.
Foi efetuado convite aos RR para aperfeiçoarem a contestação no que respeita ao pedido reconvencional, o que fizeram.
Os AA replicaram concluindo pela improcedência do pedido reconvencional.
Foi proferido despacho que indeferiu o incidente de intervenção provocada de “JJ”, notária que exarou o testamento que beneficiou o A.
Foi designada data para audiência prévia que se realizou tendo sido fixado o valor da causa; admitido o pedido reconvencional; proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção da ineptidão do pedido reconvencional, tendo sido absolvidos da instância, por ilegitimidade, os RR. “DD” e “FF”.
Foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, com observância do legal formalismo.
Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente por não provada e absolveu os RR do pedido, mais julgou o pedido reconvencional procedente, por provado, anulando o testamento efetuado em 8.11.2019 por “ZZ” que instituía o A como seu único e universal herdeiro, por constituir um negócio usurário.
É com esta sentença que os AA. não se conformam e dela vem interpor recurso, com pedido de apoio judiciário, pedindo a revogação da sentença e substituição por outra “na qual se declare a existência e validade do testamento, declarando-se o teor do mesmo como válido, suficiente e eficaz, com força probatória plena, para os fins tidos por convenientes, declarando-se a existência do direito Recorrente a ser legitimamente considerado herdeiro único e universal do testador”, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. O Recorrente considera que foram incorretamente julgados como provados alguns factos pelo Tribunal a quo.
2. Os factos que ora se impugnam são os que infra se transcrevem:
ee) “ZZ” há mais de dois meses antes da sua morte estava completamente dependente dos Autores para se alimentar, fazer a higiene, satisfazer as suas necessidades básicas, não se conseguindo alimentar, cheia de dores e acamada, dependendo dos mesmos para tudo, inclusive para tomar a medicação.
ff) Deixou nos meses que antecederam a sua morte, deixou de ter força física para se locomover pelos seus próprios meios.
gg) Passou a não comer e a não beber pelos seus próprios meios, carecendo de ajuda dos Autores e ou de terceiros para comer ou para ingerir bebidas, Deixou de conhecer as pessoas, designadamente as Rés, passou a revelar falhas significativas de memória.
hh) Não conseguia levanta-se da cama pelo seu pé, não conseguia assinar qualquer documento.
mm) Em Novembro de 2019, foi visitada pelo Réu “EE” e a “ZZ” não o Reconheceu, não falou, estava acamada e só olhava para o tecto.
Este como factos provados e como não provados os seguintes factos:
- que a testadora exprimiu cumprida e claramente as suas vontades e necessidades, com facilidade na sua compreensão assim como verbalizou de forma clara e audível.
3. Com o devido respeito, que é muito, fazendo-se a subsunção da matéria de facto considerada provada à prova produzida em sede de audiência final, parece ao Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal a quo não foi a mais justa.
4. Desde logo ao considerar como provado os facto provados ee), ff), gg) e hh)), atendendo que não resulta do depoimento de qualquer das testemunhas que concretizem que há mais de dois meses que não se conseguia alimentar, cheia de dores e acamada, inclusivamente, nenhuma das testemunhas conseguiu precisar qual o dia em que foi visitar a “ZZ” e a ter visto na acamada, sendo qua aqueles que conseguiram concretizar, identificaram que foi dias antes de falecer.
5. Nesta senda, despôs o Réu “EE” (ficheiro áudio 20230110095516_20078496_2871022), dos minutos 00:37:38 a 00:38:43, que identificou, com alguma dificuldade que visitou a sua tia cerca de 10 dias antes do óbito e que estava acamada, não os tendo reconhecido.
6. Assim como a Ré “CC”, refere que a “ZZ” iria ser entubada por não se alimentar (no mesmo ficheiro áudio), nos minutos 00:23:40 a 00:24:31.
7. Tendo sido única e exclusivamente pelo Autor, “AA”, mais discriminadamente os dias em que a testadora “ZZ”, ficou acamada, que ficou
sem capacidade de se alimentar e de reconhecer os Réus, (no mesmo ficheiro áudio), dos minutos 01:08:17 a 01:11:18.
8. Considerando-se assim, salvo o devido respeito, que os factos ee), ff), gg), hh), que devem ser considerados como não provados.
9. E o facto mm) alterado e ser dado como provado que “10 dias antes do óbito, foi visitada pelo Réu “EE” e a “ZZ” não o Reconheceu, não falou, estava acamada e só olhava para o tecto.”, conforme depoimento do Ré “EE” fez identificar e que já supra se referiu.
10. Relativamente ao facto não provado, - que a testadora exprimiu cumprida e claramente as suas vontades e necessidades, com facilidade na sua compreensão
assim como verbalizou de forma clara e audível – que não se consegue compreender como não se dá como provado, quando a notária foi esmiuçada sobre todos os procedimentos que efetuou para atestar que a testadora estava capaz e que tinha compreendido todo o teor e alcance da sua pretensão, não lhe restando duvidas que exprimiu esclarecidamente a sua vontade, tendo verbalizado de forma clara e audível, conforme resulta do testemunho desta constante no ficheiro áudio 20230329102208_20078496_2871022 nos minutos 00:13:32 a 00:18:00 e 00:19:33 a 00:27:13.
11. Assim como as testemunhas do testamento – “GG” e “HH”- o referiram, que ouviram a testadora falar que era o que ela queria e que era o que queria fazer, conforme resulta no ficheiro áudio 20230110141627_20078496_2871022, nos minutos 01:08:47 a 01:09:08 e 01:16:10 a 01:19:31.
12. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-06-09, em que é relator Abrantes Geraldes, “…sublinhou-se o seguinte a propósito da intervenção do notário: «Notários são profissionais familiarizados tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamentos, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais dos testadores ou dos efeitos que podem projectar-se
a partir de situações de dependência em que se encontrem».”
13. Entende o Recorrente que, no momento da outorga do testamento, perante os depoimentos de todos quantos estavam presentes na leitura do testamento, não se consegue concluir que o testador não tivesse de entendido o sentido da sua declaração ou que não estivesse o livre exercício da sua vontade.
14. Conforme refere o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/06/2017, processo n.º 13/15.8T8VCT.G1, “Como salienta Abrantes Geraldes, “A exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respectiva apreciação crítica nos seus aspectos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (…), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. É na motivação que agora devem ser inequivocamente integradas as presunções judiciais e correspondentes factos instrumentais (…). Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.”
15. A partir destes, podemos dizer, com Pires de Lima e Antunes Varela, que «a simples presença do notário (aditada à das testemunhas que, segundo a lei notarial, devem presenciar o ato) é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade (Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, nota 3 ao art. 2205).”
16. Efetivamente, foi referido pela própria Notária que, caso duvidasse da capacidade do testador, aquando da celebração do ato jurídico, teria diligenciado de acordo com essa constatação, o que efetivamente não fez.
17. Do depoimento da senhora notária, prestado em sede de audiência final, resultou claro que, na situação em apreço, como é prática sua, seguiu o mesmo formalismo que subjaz a qualquer outro testamento, tendo, designadamente, iniciado o procedimento com a realização de algumas questões ao testador, uma conversa, que lhe permite aferir da sua capacidade para o ato, concluindo, pelas respostas que lhe foram dadas pelo testador, que não se manifestava a doença e que o testador não foi influenciado pelo estado demencial de que padecia, sendo capaz de transmitir de forma livre e esclarecida a sua vontade e sendo capaz de entender o sentido e o alcance da sua manifestação, portanto, nada impedindo a realização do ato jurídico em causa.
18. Desde logo, a Sr. notaria foi peremptório em afirmar que não hesitaria em recusar o testamento se não estivesse absolutamente certo da livre vontade do testador. É, de resto, essa a sua prática habitual: quando se lhe suscitam dúvidas quanto à capacidade do testador -designadamente se o mesmo padece de alguma doença que pode ser incapacitante-, faz-se acompanhar de médicos, recusando o acto se estes não atestarem a capacidade. Por vezes, mesmo conhecendo a capacidade do testador, visando acautelar impugnações futuras, designadamente se aquele for muito idoso, faz-se também acompanhar de médicos que atestam a capacidade para o acto.
19. Nessa conversa não se lhe suscitou qualquer dúvida, quer quanto à capacidade do testador, quer quanto à sua real vontade, pois, como se disse já, se tal dúvida tivesse, não celebraria o testamento.
20. Ora, estando em causa um notário, experiente e visivelmente preocupado em não desvirtuar a vontade dos testadores, não há razão alguma para duvidar de que manteve com o autor do testamento um tipo de conversa que lhe permitiu, por um lado, perceber se o mesmo estava capaz, por outro, se o texto do testamento correspondia efetivamente ao que aquele pretendia.
21. Ainda no mesmo aresto, apenas realçar que o depoimento mais importante e decisivo, nesta matéria, foi o da testemunha “JJ”, a Notária que elaborou o testamento. Pela sua preparação técnica e pela sua experiência profissional, esta testemunha era a que melhor estava em condições de se aperceber se a testadora estava ou não estava na plena posse das suas capacidades intelectuais, se estava livre e esclarecida. E se fez o testamento foi porque nada na conversa nem no comportamento do testador o fez suspeitar de que o mesmo não estivesse totalmente capaz de lhe transmitir de forma livre e esclarecida a sua vontade.
22. A única forma de abalar o peso probatório deste depoimento seria minando a credibilidade da testemunha. O que não foi feito, nem sequer tentado.
23. Com o devido respeito, as únicas pessoas que podem atestar o estado mental, liberdade e convicção do testador aquando da celebração do testamento são as pessoas que estiveram presentes naquele ato, sendo que todas informaram que o testador se apresentava lúcido naquele ato notarial.
24. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-06-09, em que é relator Abrantes Geraldes, “…sublinhou-se o seguinte a propósito da intervenção do notário: «Para além de a matéria de facto provada não sustentar a afirmação de uma situação de incapacidade para testar, uma tal conclusão debater-se-ia com a forte presunção em sentido inverso emergente do facto de o testamento ter sido exarado perante Notário.
25. Tratou-se de testamento público, acto jurídico regulado pela lei substantiva de forma extremamente rigorosa, o que, por exemplo, se revela através da sua natureza pessoal, nos termos que constam do art. 2182º do CC, ou da previsão de um conjunto de indisponibilidades relativas decorrentes dos arts. 2192º e segs. semelhante rigor foi espelhado na solenidade que rodeia a sua outorga.
26. Sendo lavrado pelo próprio Notário, segundo as declarações do testador, o testamento fica exarado no respectivo Livro de Notas. Na ocasião em que recebe a declaração, cumpre ao Notário esclarecer o testador acerca dos seus efeitos, devendo estar atento ainda a qualquer aspecto que faça duvidar das suas faculdades mentais.
27. Mais do que acontecerá com a generalidade das pessoas, os Notários são
profissionais familiarizados tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamentos, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais dos testadores ou dos efeitos que podem projectar-se a partir de situações de dependência em que se encontrem».”
28. O Tribunal a quo, refere e corretamente “que o negócio usurário só existe quando se verifiquem, cumulativamente, os respectivos requisitos subjectivos e objectivo: uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter do lesado (1); a exploração dessa situação pelo usurário (2); para obter para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados (3 – requisito objectivo).” Tal como resulta do explanado no artigo 282.º n.º 2 do Código Civil.
29. A tese da aplicabilidade da usura ao testamento, por funcionar como uma “válvula do sistema”, permitindo ampliar as possibilidades de promover a equidade das soluções jurídicas nos casos em que os tribunais têm de aferir da validade substancial do testamento, por falta de liberdade na formação da vontade, sem que se verifiquem os pressupostos da incapacidade acidental ou da coação moral.
30. O pressuposto da usura relativamente à vítima exprime-se através de um elenco bastante aberto - “o estado de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza e caráter” – que tem a virtualidade de alargar a proteção das pessoas idosas afetadas por doenças físicas ou psíquicas, para além das situações de coação moral ou de incapacidade de entender e querer.
31. A aplicabilidade do regime do negócio usurário ao testamento só pode ocorrer em casos muito excecionais em que da valoração dos factos do caso decorra um elevado juízo de censura sobre a conduta da pessoa beneficiária do testamento, pois que a figura do negócio usurário pressupõe um desequilíbrio de prestações mais adaptado a surgir em negócios jurídicos bilaterais, sendo uma situação dificilmente equacionável no testamento em que as deixas testamentárias não têm de obedecer a qualquer contraprestação ou contrapartida das pessoas beneficiárias, ou de ter ainda qualquer finalidade retributiva da conduta destas.
32. Neste sentido, a propósito da aplicação desta norma ao testamento, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-06-2016 (proc. n.º 1579/14), apesar de ter decidido anular o testamento com base no artigo 282.º do Código Civil, considerando verificados os requisitos do preceito, adverte que só em situações limite se poderá anular um testamento com base em usura, alertando para a circunstância de fazer parte da natureza do testamento a possibilidade de beneficiar uma única pessoa, sem outra justificação que não a vontade do testador. Prossegue o citado Acórdão, afirmando que a prova do requisito da “lesão”, i.e. a concessão de benefícios injustificados ou excessivos, não deve ser muito exigente, tendo a fragilidade da prova deste requisito que ser compensada por uma maior intensidade da prova dos restantes, de acordo com uma conceção de sistema móvel, tal como defendido por RR (in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, ..., 2009, p. 651), que entende que «[a]s proposições do artigo 282.º devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, dentro da mecânica de um sistema móvel».
33. O regime fixado no artigo 282º, n.º1, do Código Civil (negócios usurários) é, assim, aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, e exige a verificação dos seguintes requisitos: (i) existência de uma situação de inferioridade ou dependência do declarante; (ii) exploração da situação de inferioridade ou de dependência pelo usurário; (iii) lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.
34. Os negócio usurários, regulados nos artigos 282.º e seguintes, como afirmam Hörster/Eva Sónia Moreira (in Parte Geral do Código Civil português, 2.ª edição, 2019, Almedina, Coimbra, p. 619) «(…) pertencem aos negócio jurídicos com conteúdo desaprovado pela ordem jurídica – e isto em virtude do desequilíbrio de prestações neles acordadas devido à inferioridade de uma das partes com a consequente falta de justiça comutativa entre elas.», sucedendo com frequência, como esclarecem os autores, que um negócio com as características aparentes de um negócio usurário possa ser qualificado como sendo ofensivo dos bons costumes, e, portanto, nulo, nos termos do artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil.
35. Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, reimpressão, 1998, pp. 282 a 284 e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2005, p. 535) referem que, se o negócio realizado em estado de necessidade for feito a favor de um sujeito que tem o dever moral ou jurídico de socorrer o disponente, a disposição não é meramente anulável, mas nula por ofensa aos bons costumes.
36. A usura, na designação de Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (in Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 675-676), tem uma dupla dimensão de vício de vontade e vício de conteúdo: «É vício da vontade enquanto o discernimento e a liberdade de decisão vítima da usura estão diminuídos. Mas isso não é suficiente: é necessário que haja um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima e ainda que o negócio assim celebrado esteja desequilibrado injustificadamente. O negócio usurário, além de sofrer de um defeito de formação, sofre de um defeito de conteúdo e colide ainda com os bons costumes».
37. É consensual na doutrina que a aplicação da usura esteja reservada para situações em que dos factos provados se possa extrair um elevado juízo de censurabilidade da conduta da contraparte, neste caso, da conduta do beneficiário do testamento.
38. Os factos do caso mostram-nos uma senhora idosa, “ZZ”, divorciada, falecida em 21/11/2019, com 84 anos e meio de idade, sem descendentes e sem ascendentes, que outorgou testamento em 08/11/2019, cerca de 13 dias antes da sua morte, contemplando o aqui Recorrente, “AA”, como seu único e universal herdeiro, pessoa que com quem esta residiu cerca de dois anos, até ao dia da sua morte.
39. A testadora com 81 anos de idade, que tomava para as doenças de que sofria, concretamente aterosclerose e hipertensão, doze tipos Medicamentos: para o
Estomago, para a Tensão alta, para o Equilíbrio, para a Circulação sanguínea, para a Osteoporose, para as Articulações, para Dormir, para a Obstipação, e ainda vitamina D.
40. Era uma pessoa autónoma e que já tinha feito pelo menos um testamento, vendido um imóvel e comprado outro imóvel.
41. Apesar dos múltiplos problemas de saúde de que padecia, a testadora manteve-se lúcida e com discurso coerente e adequado até poucos dias antes da sua morte.
42. Pela circunstância de estar fisicamente fragilizada, como em regra estará qualquer pessoa idosa na parte final da sua vida, mas não se poderá entender que também estaria psicologicamente como o tribunal a quo faz crer, ou presumir.
43. Todavia, o facto de estarmos perante uma testadora consciente do seu património, que tinha outorgado anteriormente testamento, portanto, a refletir sobre o destino dos seus bens depois da sua morte e a mudar as pessoas que pretendia beneficiar, torna mais provável que o testamento tenha sido o resultado de uma manifestação livre da vontade da testadora.
44. Pode bem ter sido a testadora, de mote próprio, a querer alterar o testamento, e a Recorrente ter-se limitado a prestar ajuda nas diligências a providenciar para o efeito, e aquele a quem ela, na maior parte do tempo, a acompanhava, sendo certo que, também nada consta dos factos provados que nos diga que o recorrente sabia qual ia ser o conteúdo desse testamento e muito menos que tivesse condicionado a vontade da testadora por forma a dela receber benefícios excessivos ou injustificados.
45. A notária que elaborou o testamento, através de um testemunho claro, firme e resistente ao contraditório, esclareceu o tribunal que a sua prática nestas situações é ter uma conversa demorada a sós, sobre diversos assuntos, com a pessoa que pretende celebrar a escritura, de forma a determinar se ela tem conhecimento e consciência do ato que vai praticar e se ela corresponde mesmo à sua vontade, comportamento que, segundo relata a sentença, adotou igualmente aqui, nada tendo sido detetado que pusesse em dúvida a capacidade e a vontade de testar.
46. A existência de fragilidade e de dependência da parte da testadora, decorrente da idade e de problemas de saúde, não são, por si só, suficientes para que fique demonstrada a exploração, nem esta se pode deduzir, sem mais, da prova do estado de dependência.
47. Como afirma a doutrina (cfr. Pedro Eiró, “Anotação ao artigo 282.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa Editora, Lisboa, 2014, pp. 698-701), «(…) o elemento subjectivo do vício da usura não se reduz à situação de inferioridade em que se encontra o declarante. Tem outra componente agora respeitante ao usurário- exige-se que este tenha tido um certo comportamento: a exploração daquela situação de inferioridade». Prossegue o autor, afirmando que «(…) a exploração não se presume antes tem de ser provada», daqui resultando como evidente, como também conclui o autor, que a circunstância de o declarante se encontrar numa situação de inferioridade não demonstra a existência da exploração, que pode não ter acontecido.
48. Analisando a conduta do recorrente, tal como resulta da factualidade provada e não provada, não é possível dela deduzir com segurança qualquer atitude de exploração da fragilidade da testadora, tanto mais que, conforme defendido pela doutrina e pela jurisprudência, a exploração não se presume e a prova dos requisitos da usura, quando aplicada a um testamento, tem de ser particularmente rigorosa e exigente.
49. A conduta do Recorrente sempre foi correta com os sobrinhos por afinidade, desconhecendo ou conhecendo da existência de anterior testamento, contactando telefonicamente sobre o estado de saúde da testadora, facultando todos os telefonemas aquele quando os recebia, não se vislumbra deste qualquer comportamento que revista algum do grau de censurabilidade exigível para se poder
concluir que o Recorrente explorou a fragilidade e a dependência da testadora para obter benefícios injustificados ou excessivos no testamento.
50. Neste quadro também não se pode considerar que os benefícios constantes do testamento em relação ao recorrente tenham sido excessivos ou injustificados, pois faz parte da própria natureza do testamento a sua gratuidade e a intenção de beneficiar as pessoas contempladas, sendo indiferente à ordem jurídica (desde que não afete a legítima dos herdeiros legitimários, aqui inexistentes) que o testador disponha dos seus bens, distribuindo-os de forma equitativa por várias pessoas ou que atribua os mais valiosos a uma só pessoa.
51. Em consequência, na falta de prova do requisito da exploração, é válido o testamento, elaborado dias antes da morte da testadora, em instituiu como único e universal herdeiro uma pessoa com quem a testadora passou a conviver com mais frequência, estabelecendo com ela uma relação de amizade, e que acompanhou a testadora nos dois últimos anos da sua vida.
52. Perante a insuficiência da matéria de facto provada, não podemos considerar, no caso sub judice, preenchidos os requisitos cumulativos da usura, desde logo que tenha havido qualquer exploração da testadora por parte do Recorrente e que tenha sido atribuído um benefício injustificado ou excessivo aquele.
53. Mesmo entendimento teve o acórdão do Supremo Tribunal de justiça, de 09/05/2023, proc. 1084/19.3GDM.P1. S1
54. Já quanto aos acórdãos indicados pelo douto tribunal a quo, têm paradigmas diferente do caso aqui em concreto, ou seja, Acórdão STJ de 22 de maio de 2003 – proc. 03B1300 é sobre uma testadora, pela sua idade e condições psíquicas, estava em situação de grande dependência em relação à recorrida e esta por outro, sabendo das fraquezas, angústias e preocupações da testadora, pelo modo como geriu o seu isolamento, privando-a do contacto telefónico com os familiares e amigos, agravou a dependência acima referida, a recorrida exerceu pressão para a testadora alterar o testamento anterior e que preparou habilidosamente o novo, outorgado pela segunda apenas dois meses e seis dias depois de haver começado a trabalhar em casa da primeira, com o registo de visar o reconhecimento da outorgante pelo tratamento dispensado, importa concluir que a disposição testamentária em causa foi determinada pelo medo da testadora de ficar, em alguma ocasião, sem a necessária assistência por parte da recorrida.
55. No entanto, outro acórdão - Acórdão STJ 24 de novembro de 2003, proc. 04B1452 - referido na douta sentença do tribunal a quo, teve diferente entendimento ao anterior acórdão e ao tribunal a quo, quando a situação clinica do testador eram mais critica que a caso aqui em concreto, tanto que na altura da outorga do testamento, em 2 de Abril de 1997, o testador vivia na dependência do apoio do G e de seu pai, L, e da ministração de medicamentos por eles feita para diminuição ou supressão das pungentes dores que o martirizavam, de tal modo que na data do testamento o estado de J era tão crítico que praticamente já não se alimentava e quase só carecia dos tratamentos paliativos referidos, sendo-lhe quase impossível mover-se e tinha dificuldade em falar, encontrando-se sempre sob os efeitos de forte medicação analgésica, que lhe era administrada pelo primeiro réu G e também por seu pai L e o testador viria a falecer em 5 de Abril de 1997, em consequência da doença de que sofria, mesmo assim considerou que não merece, pois, qualquer censura o acórdão recorrido, que há-de ser confirmado.”
56. Capacidade que, com o devido respeito, logrou o Recorrente provar com os depoimentos da Sr.ª Notária e das testemunhas do testamento.
57. Face a tudo supra exposto, parece-nos apodítico que o Recorrente logrou provar que, aquando da celebração do testamento, a 8 de novembro de 2019, a testadora encontrava-se lucida, capaz, exerceu a sua vontade, livre e esclarecida sem qualquer exploração do recorrente.
Os RR. vieram responder pugnando pela improcedência do recurso com a confirmação da sentença proferida. Mais invocam como questão prévia a situação de a A. mulher não dispor de apoio judiciário, benefício que apenas foi concedido ao A. marido, requerendo que a mesma seja notificada para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida.
A A. veio juntar documento relativo ao apoio judiciário.
O recurso foi admitido.
II. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da impugnação da matéria de facto;
- da (in)validade do testamento outorgado pela falecida em benefício do A.
III. Fundamentos de Facto
Com interesse para a decisão da causa, são os seguintes os factos que resultaram provados e não provados, assinalando-se as alterações introduzidas em razão da parcial procedência da impugnação da matéria de facto:
a) No dia 08 de novembro de 2019, pela notária “JJ” com Cartório Notarial em Loures, foi lavrado testamento de “ZZ”, a qual revogou todos e quaisquer testamentos que tenha outorgado anteriormente e instituiu como seu único e universal herdeiro o aqui Autor, como consta de fls.7 e 8, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;
b) A testadora veio a falecer no dia 21 de novembro de 2019, no estado de divorciada, com 84 anos e meio, no dia 21/11/2019, quinta-feira, pelas 20h45mn, na Rua do (…), freguesia de (…), concelho de Loures, conforme consta do Assento de óbito nº (…)9 de 2019, exarado no Processo nº (…)6/2019, em 25/11/2019.
c) A R. “CC” no início de Dezembro de 2019 tomou conhecimento que o A. era herdeiro universal de “ZZ”, tendo contactado este telefonicamente a questionar sobre a existência do testamento e que tinha tido conhecimento através do balcão Millenium BCP onde a Testadora tinha conta bancária.
d) A 2 de dezembro de 2019 foi averbado no testamento referido em a) o óbito da testadora e a 4 de dezembro de 2019 pela notária “JJ” com Cartório Notarial em Loures, foi lavrada Habilitação de Herdeiros que consta de fls.10 e 11, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;
e) O A. a 28 de fevereiro de 2020 fez participação do testamento no serviço de finanças Lisboa -2, tendo aí o A. tomado conhecimento que a R. “CC” tinha também efetuado a participação de um testamento.
f) Aquele serviço de finanças tendo verificado que o testamento do A. revogava todos e quaisquer testamentos que a testadora tivesse outorgado anteriormente, retificou o Imposto de Selo passando a constar o A. como cabeça de casal da herança de “ZZ”
g) O A. procedeu às liquidações correspondentes à participação de transmissões gratuitas.
h) A 26 de junho de 2020 o A. procedeu ao registo online de aquisição do prédio em regime de propriedade horizontal sito na rua ... (…), fração (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número (…)57 da freguesia de (…) e inscrito na matriz (…)39 da freguesia de Campo de Ourique que teve origem do artigo … da extinta freguesia de (…), o qual ficou provisório por dúvidas.
i) A 10/07/2020 foi notificado pela Conservatória do Registo predial de Ansião “(…) que o registo online que solicitou sobre o prédio (…) fração (…)da freguesia de (…), concelho de Lisboa, com o nº (…) 26-06-2020, ao qual coube a Ap. (…)31 e Req. (…)41, entra em suprimento de deficiências porque viola o princípio do trato sucessivo, nos termos do artº 34º, nº4 do CRP, porquanto sobre o prédio existe registo de aquisição a favor de “CC” e “EE” (e usufruto a favor de “GG”)”
j) A aquisição da nua propriedade a favor dos ora Réus, “CC” e “EE” por Sucessão Hereditária e Testamentária e a constituição do usufruto por Legado a favor de “GG”, foram registados na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob a ap. (…)94 de 10/12/2019,
k) Os RR. efetuaram escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 10-12- 2019 no Cartório Notarial da Notária (…), em Portimão, a fls 68 do Lº25, tendo a R “CC”, na qualidade de cabeça de casal declarado “que no dia vinte e um de novembro de dois mil e dezanove, na freguesia de (…)s, concelho de Loures, de onde era natural, faleceu a referida “ZZ”, com última residência habitual na Rua (…), Loures. Que a autora da herança, não deixou descendentes nem ascendentes vivos, e deixou testamento público, outorgado em doze de Outubro de mil novecentos e noventa, lavrado a folhas vinte e cinco a folhas vinte e cinco verso, do livro para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos número (…) pelo qual fez um legado e instituiu herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais: a) “CC”, … b) “EE”, … Que, assim, segundo a lei e o aludido testamento, e não havendo herdeiros legitimários, são eles “CC” e “EE”, os seus únicos e universais herdeiros não havendo outras pessoas que com eles possam concorrer ou preferir na sucessão à mencionada herança.”, ficando arquivado no Cartório Notarial o Assento de óbito da autora da herança e a Certidão do referido testamento.
(contestação)
a) A testadora “ZZ” adquiriu por escritura pública de compra e venda exarada em 19/03/2001, no (…) Cartório Notarial de Lisboa, a fracção autónoma objecto dos atos, no estado de divorciada, residente à data na Rua (…), Venda Nova, Amadora, cujo o registo de aquisição foi averbado a seu favor pela Ap. (…) de 10/04/2001.
b) A Testadora “ZZ”, natural da freguesia de (…), concelho de Loures, nascida em (…)/05/1935, era portadora do Bilhete de Identidade nº (…), vitalício e era Beneficiária nº (…)62 da Caixa Nacional de Pensões, desde 01/05/1973, encontrando-se inscrita no Hospital (…) e no Hospital (…), onde era seguida a sua situação clínica, pelo menos, desde Julho de 1982,
c) Encontrava-se inscrita no Serviço Nacional de Saúde com o nº (…) no Centro de Saúde (…), desde 27/01/1999, sendo Beneficiária da Segurança Social o nº (…), com o regime especial de comparticipação de Medicamentos, conforme Ficha de Identificação do Ministério da Saúde de Primeira Inscrição nos Cuidados Primários datada de 2017
d) “ZZ” era portadora de deficiência com uma incapacidade permanente global de oitenta e dois por cento, definitiva, (82%), conforme Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, emitido em 10/07/2013, pela ARS de Lisboa e Vale do Tejo, ACES de Lisboa Oriental, assinado pelo Presidente da Junta Médica, quando contava 78 anos de idade,
e) Desde 10/10/2016, com 81 anos de idade, que tomava para as doenças de que sofria, concretamente aterosclerose e hipertensão, doze tipos Medicamentos: para o Estomago, para a Tensão alta, para o Equilíbrio, para a Circulação sanguínea, para a Osteoporose, para as Articulações, para Dormir, para a Obstipação, e ainda vitamina D,
f) A falecida “ZZ” era amiga de infância da Ré “GG”, nascida em 09/09/1936, mais nova um ano.
g) E por esse facto, e por não ter praticamente família, tratava-a como se sua família fosse, tal como os seus filhos e particularmente, a filha da “GG”, a ora Ré “CC”, a quem a “ZZ” tratava também como se fosse sua filha, dando-lhe tal tratamento.
h) E por isso, eram ambas as Rés contitulares da conta bancária que tinha no Millenium com a falecida, encontrando-se em tal conta à data do óbito depositados valores na ordem cerca de 233.000€.
i) Por os considerar família autorizou o neto da Ré “GG”, “SS” a viver no seu apartamento, enquanto estudante universitário, em 2018.
j) O falecimento de “ZZ” só foi transmitido por telefone à Ré “CC” pelo Autor, no dia seguinte ao decesso, já depois de ter organizado o Funeral da mesma, para o dia seguinte, sábado, pelas 10h00.
k) A morte ocorreu numa moradia destinada a habitação, onde os AA recebem idosos e lhes prestam assistência em contrapartida do pagamento de uma quantia monetária mensal e onde se encontrava a falecida “ZZ” ao seu cuidado desde 07/06/2017.
l) “ZZ”, no dia 7.06.2017 havia ido ao Hospital de S. José, em Lisboa, depois de uma queda na sua habitação, onde esteve em observação, tendo depois sido levada para casa, mas com a participação desta, as RR “GG” e “CC”, decidiram que devido à sua reduzida mobilidade e à sua idade (82), não poderia continuar a permanecer na sua casa sozinha, sob pena de sofrer uma fatalidade.
m) Então, após contacto com o Autor, que aceitou o internamento da “ZZ”, foi a mesma transportada por ambulância da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Bucelas.
n) Nessa altura, “ZZ” tinha grandes dificuldades de locomoção e só se movia com a ajuda de um andarilho.
o) “ZZ” permaneceu na referida Residência cerca de dois anos, até ao dia da sua morte, na localidade havia nascido e onde ainda tinha algumas pessoas conhecidas, da sua infância, caso da Ré “GG”, que lá tinha e tem uma casa de família, podendo por tal facto visitá-la juntamente com os seus filhos, o que sucedeu até ao seu óbito.
p) Foi, assim, celebrado um contrato verbal de prestação de serviços entre a “ZZ”, a Ré “CC” e Autor “AA”, mediante o pagamento mensal de uma quantia de cerca de 950 euros, para que o Autor e a sua esposa cuidassem dela nos seus últimos anos de vida, como faziam com outros idosos.
q) O Autor nunca emitiu recibo das quantias pagas por transferência bancária mensal da Conta bancária nº (…)82, com o NIB (…)05, do Millennium BCP, de que eram contitulares a “ZZ”, as Rés “GG” e “CC”.
r) As transferências bancária eram operada pela Ré “CC” para a conta à ordem da titularidade de “AA” com o IBAN PT50(…)46.
s) O Funeral foi organizado e pago pelo Autor “AA”, que para o efeito contratou a Agência Funerária (…), Lda, e a falecida foi sepultada no Cemitério de (…), no sábado seguinte ao óbito, sem autópsia ou teste toxicológico.
t) No dia 12/10/1990, foi exarado por “ZZ” Testamento Público no Nono Cartório Notarial de Lisboa, sito na Rua (…) Lisboa, perante a Notária Dra.(…), na plenitude das suas faculdades mentais, com as disposições seguintes: “ZZ”, divorciada, natural da freguesia de (…), concelho de Loures, onde nasceu no dia três de Maio de mil novecentos e trinta e cinco, filha de(…), residente na (…), Lisboa, portadora do Bilhete de Identidade (…) emitido aos (…)pelo Centro de Identificação Civil e Criminal, face ao qual verifiquei a sua identidade. E declarou que faz o seu testamento pelo qual revoga todos os que anteriormente haja feito, do seguinte modo: Lega o usufruto de todos os seus bens a “GG”, instituindo herdeiros dos mesmos bens, em comum e partes iguais, ”EE” e “CC”, filhos da Legatária. Foram testemunhas: (…) e (…). Este testamento foi lido e explicado quanto ao seu conteúdo em voz alta, na presença simultânea de todos os intervenientes.”
u) Foi averbado, em 09/12/2019, no referido testamento público, o óbito da testadora, com a seguinte menção: ”A testadora faleceu em 21 de Novembro de 2019 conforme assento de óbito nº (…) do ano de 2019 da Conservatória do Registo Civil de Loures, Lisboa. 9 de Dezembro de 2019. A Notária “JJ”. Conta Registada sob o nº (…)”, Doc.10, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
v) Foi, ainda, apresentada a Participação do Imposto de Selo pela ora Ré, “CC”, no Serviço de Finanças de Campo de Ourique - Serviço de Finanças de Lisboa, 3247- Lisboa 2, sito na Rua Rodrigo da Fonseca, 57, 1250-190 Lisboa, no mesmo dia, tendo sido atribuído à herança pelo Serviço de Finanças de Campo de Ourique o número fiscal (…).
w) Da referida Participação com o registo de recepção nº (…)90, constam como Beneficiários da Transmissão do óbito os ora Réus, “CC”  e seu irmão “EE”, na qualidade de titulares da Nua Propriedade e a mãe de ambos, “GG” na qualidade de Usufrutuária, da fracção autónoma denominada pela letra “(…)”, inscrita na matriz predial urbana sob o nº (…), freguesia de Campo de Ourique, concelho de Lisboa, com o valor matricial de €59.996,65.
x) Ao fazer a Participação do Modelo 1, no Serviço de Finanças de Campo de Ourique, a ora Ré apresentou o Assento de óbito, a Certidão do Testamento Público com o averbamento do óbito, o número de identificação fiscal dos herdeiros e da legatária, bem como a identificação matricial do prédio urbano correspondente à Verba Um.
y) Posteriormente, em 23/12/2019, foi recebida, por carta registada da Autoridade Tributária, com o registo número R(…)PT, datada de 18/12/2019, a notificação da Demonstração da Liquidação - Herança da matéria colectável no valor de 50.997,16€ pela ora Ré, “CC”, na sua qualidade de Cabeça de Casal, para pagamento do Imposto de Selo que lhe cabia a ela e ao irmão, ora Réu, no valor total de 5.099,72€.
z) A Ré “CC” efectuou o pagamento da Liquidação de Imposto de Selo, com o referido desconto, numa única prestação, no valor total de 4.411,26€, no dia 10/02/2020, por transferência da conta do Banco Millennium BCP, conforme Doc.13, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
aa) Em 18/12/2019 foi também emitida pela Autoridade Tributária a Demonstração de Liquidação – Legado, por carta registada com o registo número RY837517789PT, recebida em 26/12/2019, com a matéria colectável no valor de 8.999,50€, para pagamento do valor de 899,95€, pela Usufrutuária, ora Ré, “GG”, pagamento que foi igualmente realizado em 10/02/2020 pela Ré, “CC”, por transferência da conta do Banco Millennium BCP, da sua titularidade no referido valor.
bb) Posteriormente, em 28/02/2020, ainda, dentro do prazo legal, foi apresentada no Serviço de Finanças de Campo de Ourique a relação de bens adicional com o número de entrada 202(…), pela Cabeça de casal, “CC”, relativa à verba Dois, Títulos e Certificados da Dívida Pública detidos pela falecida “ZZ”, na conta bancária com o número (…)82 no Banco Millennium BCP, com o valor de 566,69€, de cotação.
cc) O Autor promoveu o registo predial a seu favor pela Ap. (…) de 26/06/2020, registo que ficou provisório por dúvidas, tendo sido o Autor notificado do respectivo despacho em 10.07.2020.
dd) O Autor “AA” tentou tomar posse, com arrobamento com mudança de fechadura do apartamento, objecto da herança, solicitando a prestação de serviços de duas empresas de mudança de fechaduras para o efeito, o que ocorreu por duas vezes, no dia 08/05/2020, pelas 15h, e pelas 20h, tomada de posse que só não se consumou porquanto se encontrava no apartamento, nesse dia, a filha e sobrinha dos Réus, “TT”, que se havia deslocado de Portimão a Lisboa, e porque a porteira do prédio, “UU”, não o permitiu, e atenta a intervenção do piquete da PSP da 24ª Esquadra de Lisboa - Campo de Ourique, conforme Participação com o NPP: (…)2020, efectuada pelo Réu “EE”, em pleno período de confinamento.
ee) “ZZ” há mais de dois meses antes da sua morte estava completamente dependente dos Autores para se alimentar, fazer a higiene, satisfazer as suas necessidades básicas, não se conseguindo alimentar, cheia de dores e acamada, dependendo dos mesmos para tudo, inclusive para tomar a medicação.
ff) Deixou nos meses que antecederam a sua morte, deixou de ter força física para se locomover pelos seus próprios meios.
gg) Passou a não comer e a não beber pelos seus próprios meios, carecendo de ajuda dos Autores e ou de terceiros para comer ou para ingerir bebidas, Deixou de conhecer as pessoas, designadamente as Rés, passou a revelar falhas significativas de memória. (alterado)
hh) Não conseguia levanta-se da cama pelo seu pé, não conseguia assinar qualquer documento.
ii) “ZZ” usava fraldas.
jj) o Testamento não foi sequer assinado pela “Testadora”, que aliás, estava impossibilitada de o fazer.
kk) A Ré “GG” até a sua situação se degradar, visitava-a amiúde, ao passo que a Ré “CC” a visitava sempre que se deslocava a Lisboa.
ll) Em Agosto de 2019, foi a uma consulta ao Hospital Beatriz Ângelo com quebra de tensão arterial e desidratação.
mm) Cerca de 10 dias antes de falecer Em Novembro de 2019, foi visitada pelo Réu “EE” e “ZZ” não o reconheceu, não falou, estava acamada e só olhava para o tecto. (alterado).
nn) Antes de “ZZ” falecer foi comunicado à Ré ”CC” pelo Autor que iria lá ao Lar um(a) enfermeiro(a), para a entubar, uma vez que a tia já não conseguia ter força para comer.
oo) No dia 21/11/2019, pelas 19:00 o Autor ligou novamente a informar que o Enfermeiro não a tinha conseguido entubar porque ela não deglutia.
pp) Por tal facto, os Réus contactaram o Padre (…)da Paróquia para lhe dar a extrema unção, por ser católica, o que sucedeu no dia em que veio a falecer.
qq) No dia 22/11/2019, pelas 08:00h da manhã a Ré “CC” recebeu um telefonema do Autor “AA” a comunicar que a tia tinha falecido durante a noite.
rr) “ZZ” não contratou os serviços da Notária, não se deslocou ao Cartório Notarial, não escolheu as testemunhas entre as pessoas das suas relações, não pagou o testamento e nem do mesmo ficou a constar que revogava o Legado ou que pretendia revogar o testamento anterior feito em 1990.
(da réplica) 
a) Para além daquela padecer de osteoporose, o que já sucedia desde que foi para junto dos Autores, a sua locomoção foi progressivamente afectada, tendo a sua mobilidade já reduzida, acompanhando-se por andarilho.
b) quando foi para casa do A, “ZZ” estava lúcida, solicitava ao Autor para a ajudar a sair da cama para ir para o sofá, assim como ir à casa de banho ou outros afazeres pessoais e até manifestava ao Autor se aquele necessitava da sua a ajuda na cozinha, atendendo que tinha sido cozinheira e que o podia ajudar.
c) “ZZ” colocou o dedo como sua assinatura, por não conseguir assinar devido à osteoporose da qual padecia que afectou a motricidade daquela
d) A senhora Notária leu o testamento em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes, nomeadamente das testemunhas.
e) E não suscitou a testadora, na data em que foi outorgado o testamento, qualquer dúvida ou discordância entre a declaração de vontade que manifestou e a que ficou exarada no documento.
Factos não provados:
- que o A desconhecia, a 28.02.2020, a existência de testamento anterior.
- que os RR, sabendo da existência de testamento posterior ao deles, que revogava o deles, fizeram registar o prédio supra, a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Portimão pela Ap. (…) de 2019/12/10.
- que não foi efetuada pelo Notário qualquer pesquisa sobre a existência de outro testamento online.
- que o Autor “AA”, tentou levantar em Dezembro, em data que não é possível precisar, e que terá constituído o móbil para forjar o Testamento a seu favor.
- que na moradia onde os AA vivem funciona um estabelecimento de serviços de Residência Assistida de Idosos gerida pelo Autor “AA” e sua mulher, e aparentemente não licenciada pela Segurança Social portuguesa.
- que “ZZ”, em Junho de 2017, sofria de senilidade.
- que o Autor à data em que promoveu o registo a seu favor já sabia do registo predial de aquisição a favor dos ora Réus.
- que o testamento de 08/11/2019 foi exarado sem a intervenção de “ZZ”.
- que “ZZ” há mais de dois meses antes da sua morte estava completamente apática e com perturbações de memória
- que “ZZ”, no mesmo período, deixou de conseguir dizer as palavras de forma coerente, afirmado várias vezes e de forma repetida “que tinha que ir para a cozinha fazer o almoço”.
- que, atentas as referidas dificuldades de fala, não conseguia pedir auxílio.
- que deixou de conseguir tomar decisões e de dar instruções sobre a sua casa e os respectivos pagamentos, bem como, a dar instruções para a representarem como proprietária nas reuniões de condomínio.
- que não conseguia apreciar o valor do dinheiro, perdendo a capacidade de o contar e tinha, também, a visão reduzida.
- que sofria de incontinência urinária e fecal.
- que apresentava um quadro de demência crónica e irreversível,
- que “ZZ” não teve certamente a capacidade para entender e interpretar o testamento que lhe foi lido.
- que a Ré “GG” a visitava diariamente e a ré “CC” de dois em dois meses.
- que a testadora há mais de 8 meses, antes da sua morte, manifestava a vontade de celebrar novo testamento.
- que foi a testadora quem contactou a Notária, ligando para o Cartório, a solicitar os seus serviços para fazer o Testamento que revogou o que anteriormente tinha feito a favor dos Réus, por sua manifesta vontade, sem a presença dos Autores.
- que a testadora exprimiu cumprida e claramente as suas vontades e necessidades, com facilidade na sua compreensão assim como verbalizou de forma clara e audível.
- que após a testadora expressar a sua referida vontade perante a Senhora Notária, esta redigiu o testamento.
- que o autor tomou conhecimento que a Testadora já tinha tentado mudar o testamento que outorgou aos Réus muito antes de estar aos cuidados do Autor, tendo de designado uma outra pessoa em 2016 para movimentadora dos certificados de aforro que era titular.
- que ainda, tinha pedido a uma amiga para a ajudar e acompanhar para anular o testamento que tinha outorgado aos Réus e quando os réus tomaram conhecimento, tiraram a testadora da casa dessa amiga.
- que a testadora ficou revoltada depois de saber que o filho da Ré “CC” estava a morar na casa daquela.
- que o irmão da Ré “CC” visitou 2 vezes a testadora e o filho da Ré “CC” nunca visitou a testadora.
- que a filha da Ré “CC” visitou 2 vezes acompanhada pela mãe e a Ré “CC” 3 vezes, mesmo dizendo que a testadora era como uma mãe para eles, nunca a vieram visitar ou buscar em épocas festivas, Natal, Aniversários, Páscoa, Férias de Verão ou outros dias festivos.
- da impugnação da matéria de facto
Os Recorrentes vêm impugnar a decisão da matéria de facto quanto aos factos provados nos pontos ee), ff), gg) hh) e mm) e quanto a um ponto dos factos não provados.
Por terem sido por eles cumpridos os requisitos da impugnação da matéria de facto previstos no art.º 640.º n.º 1 al. a), b) e c) e n.º 2 al. a) do CPC importa proceder à sua apreciação.
- quanto ao pontos ee), ff), gg), hh) e mm) dos factos provados é a seguinte a sua redação:
ee) “ZZ” há mais de dois meses antes da sua morte estava completamente dependente dos Autores para se alimentar, fazer a higiene, satisfazer as suas necessidades básicas, não se conseguindo alimentar, cheia de dores e acamada, dependendo dos mesmos para tudo, inclusive para tomar a medicação.
ff) Deixou nos meses que antecederam a sua morte, deixou de ter força física para se locomover pelos seus próprios meios.
gg) Passou a não comer e a não beber pelos seus próprios meios, carecendo de ajuda dos Autores e ou de terceiros para comer ou para ingerir bebidas, Deixou de conhecer as pessoas, designadamente as Rés, passou a revelar falhas significativas de memória.
hh) Não conseguia levanta-se da cama pelo seu pé, não conseguia assinar qualquer documento.
mm) Em Novembro de 2019, foi visitada pelo Réu “EE” e a “ZZ” não o reconheceu, não falou, estava acamada e só olhava para o tecto.
Entendem os Recorrentes que os factos que constam das alíneas ee), ff), gg) e hh) devem ser dados como não provados e que o facto que consta da al. mm) deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação:
“mm) 10 dias antes do óbito, foi visitada pelo Réu “EE” e a “ZZ” não o Reconheceu, não falou, estava acamada e só olhava para o tecto.
Para fundamentar as alterações pretendidas referem os Recorrentes que nenhuma testemunha soube concretizar que há mais de dois meses a “ZZ” estava acamada e com dores, nem tão pouco o dia em que a foram visitar.
Como elementos de prova invocam as declarações dos RR. “EE” e “CC” e as declarações de parte do próprio Recorrente, nos excertos de gravação que indicam, dizendo que este foi o único que soube descriminar os dias em que isso aconteceu.
Pugnando pela improcedência da impugnação da matéria de facto, invocam os Recorridos para o esclarecimento desta matéria o depoimento testemunhas “KK”, “LL”, “JJ” e também as declarações de parte da R. “CC” e do A. “AA”.
Os excertos das declarações do R. “EE” que os Recorrentes invocam reportam-se à indicação da última visita que fez à “ZZ”, requerendo que seja concretizado nos factos provados que a visita foi 10 dias antes da sua morte; relativamente às declarações da R. “CC” a referência que é feita é ao momento em que a mesma afirma que foi na 4ª feira antes da “ZZ” falecer que a informaram que ela iria ser entubada, tendo sido informada da sua morte na 6ª feira. Já o A. “AA”  declarou, por referência a 15 dias antes da “ZZ” falecer, que a mesma se levantava com dificuldade, não precisava de ajuda para se alimentar e não tinha falhas de memória.
O tribunal a quo não apresenta uma motivação da decisão de facto com a correspondência dos factos aos meios de prova produzidos, antes faz uma menção descritiva dos elementos probatórios, referenciando os documentos relevantes e mencionando o que foi dito pelas testemunhas e pelas partes ouvidas em audiência. Referiu o seguinte quanto às declarações das partes: “Ainda depuseram como parte, os RR “CC” e “EE” e o Autor “AA”. No seu depoimento, a Ré “CC” explicou a relação que tinha com a sua “tia”, a ligação forte que a unia à sua mãe e as razões pelas quais consideraram todos que não era possível a mesma manter-se a viver em Lisboa. Foi perceptível também a explicação que deram por terem optado por aquele lugar, onde a Ré “GG” se encontrava e a podia visitar. No que diz respeito às visitas e sua frequência, os depoimentos dos RR e do A são um pouco contraditórios (por natural parcialidade também), mas demonstrado ficou que estas existiam e existiram até quase ao fim da vida de “ZZ”, com maior ou menor assiduidade conforme as possibilidades, conforme a disponibilidade da R “GG”, também já de avançada idade, e também de acordo com a disponibilidade da Ré “CC” que vive no Algarve, sendo natural que não o faça tão regularmente. Do que todos referiram, também nos parece natural que “ZZ” tenha resistido a sair de casa, mas as dificuldades de locomoção eram notórias até para esta após as quedas. O estado de locomoção e de autonomia foi também se desenvolvendo até “ZZ” se encontrar já acamada, como todos foram consensuais em referir. Esta senhora esteve em casa dos AA durante cerca de dois anos, é natural que a forma como a mesma se encontrava no início tenha se deteriorado progressivamente, o que dá azo a que exista alguma incoerência nos vários depoimentos no que concerne ao que esta conseguia ou não fazer e ao seu estado de saúde, pois este foi também progressivamente se agravando. Isso explica essas incoerências, o que também nos parece natural face à parcialidade destes depoimentos.
O art.º 466.º do CPC refere-se às declarações de parte, enquanto meio probatório, estabelecendo no seu n.º 3 que “o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”
Como nos diz, a respeito da valoração deste meio prova, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/05/2017, no proc. 3456/16.6T8VNG.P1: “A norma não fornece, contudo, qualquer pista sobre o modo como essa apreciação deverá ser feita, designadamente se as declarações da parte apenas devem ser aceites como prova complementar ou supletiva dos demais meios de prova, se devem ser aceites como mero princípio de prova ou se podem ser suficientes para permitir ao tribunal julgar provados factos favoráveis é apenas demonstrados através das suas declarações. Não tendo o legislador tomado posição sobre esse aspecto parece que o intérprete não deve assumir aí uma atitude dogmática, de puro princípio, seja ela qual for. Se não basta à parte alegar um facto para que o tribunal o tenha de aceitar e se o direito ao contraditório implica que tendo um facto sido impugnado pela parte contrária ele deve ser objecto de produção de prova que o demonstre, parece adequado entender que, em condições normais, para fazer a prova de um facto favorável a uma das partes não será suficiente que esse facto seja afirmado pela própria parte no decurso das suas declarações de parte.”
As declarações das partes, enquanto meio de prova, têm de ser ponderadas com todas as cautelas pelo tribunal, não podendo olvidar-se que as partes estão diretamente interessadas no desfecho da ação e que, por isso, não raras vezes prestam declarações de forma não isenta e comprometida, quando estão em causa factos que não lhes são favoráveis.
Na situação em presença, as declarações de parte do A. relativamente a esta matéria relativa à situação de saúde da testadora, apresentam-se com muito escasso ou mesmo sem valor probatório, sendo patente o seu comprometimento com a posição que assume nos autos, afigurando-se insuficientes para permitir que os factos que se reportam à concreta situação da falecida uns tempos antes da sua morte sejam dados como provados apenas pelo facto dele assim o declarar.
Regista-se, que outras pessoas foram ouvidas como testemunhas que também contactaram a falecida “ZZ” uns meses antes da sua morte, não coincidindo o quadro com que as mesmas dizem ter-se deparado com aquele que é relatado pelo A., que também dificilmente se concilia com alguns factos que resultaram provados e que não foram impugnados.
A testemunha “KK”, amiga da falecida, referiu que na última visita que fez à “ZZ” esta estava acamada e que não lhe ligou nenhuma e percebeu que não estava bem. Situa a sua visita 2 ou 3 meses antes daquela ter falecido.
A testemunha “LL” é médico, tendo sido ele a assinar a certidão de óbito da “ZZ”, dizendo ter estado na casa para consulta à mesma em 16.03.2019 e em 15.06.2019, queixando-se aquela de alguns desequilíbrios apitos nos ouvidos, algumas dores de cabeça e dificuldades em dormir, esclarecendo que a queixa das tonturas já vinha de antes e que a observou na cama onde se encontrava de ambas as vezes, não sabendo se ela se levantava, afirmando que a mesma estava consciente e orientada.
A testemunha “MM”, técnico de farmácia que fornecia produtos para a incontinência, pelo menos uma vez por mês, refere que das vezes que lá foi a Senhora se encontrava na cama.
Por seu turno a testemunha “JJ”, notária que lavrou o testamento, tendo contactado a falecida por duas vezes, ainda que com um intervalo de tempo que não soube precisar mas referindo que não foi logo lá a correr da segunda vez (em 08.11.2019), diz que a mesma das duas vezes estava acamada mas que se sentou na cama, revelando fragilidade física, que a encontrou a rezar o terço e que apresentava um discurso perfeitamente claro, tendo colocado a impressão digital porque ela disse que não podia assinar, enfatizando que a vontade da falecida é a que está no testamento.
Também o A. nas suas declarações de parte refere que a “ZZ” tinha dificuldade em mexer os dedos, não conseguia fechar a mão e segurar a caneta.
Se atentarmos nos factos que resultaram provados da contestação, nas al. d), e), l), n), ii), jj), ll), bem como nos factos provados da réplica com as al. a), b) e c) pode perceber-se que a “ZZ” tinha uma situação de saúde difícil. Já em 2013 apresentava um atestado de incapacidade permanente de 82%, que se terá agravado a partir de junho de 2017 em consequência de uma queda, tendo sido a partir daí que passou a ficar aos cuidados do A., em face da sua reduzida mobilidade, que veio sendo progressivamente afetada, sendo que em agosto de 2019 foi a uma consulta hospitalar com quebra de tensão e desidratação, o que mostra um agravamento da sua situação de saúde nessa data, sendo que pouco antes disso o médico esteve lá por duas vezes para a ver.
Este quadro de saúde a par dos depoimentos das testemunhas que se referiram e até das declarações de parte do A. permitem afirmar que pelo menos cerca de dois meses antes de morrer a “ZZ” estava numa situação de grande fragilidade física, acamada, sendo assim que a encontraram todos os que com ela contactaram nesse período e até antes, incontinente, do que resulta a sua dependência dos AA. para a sua higiene, para se alimentar e tomar a medicação – veja-se que é o próprio A. que afirma dificuldade que aquela tinha com os dedos, tanto que não pôde assinar, o que indicia que também não conseguiria comer sozinha com os talheres.
Contudo, não temos efetivamente elementos probatórios que nos permitam dizer, com referência aos dois meses anteriores à sua morte, que a “ZZ” deixou de conhecer os RR. e passou a revelar falhas significativas de memória – o médico que a seguia não o mencionou, pelo contrário, afirmou-a consciente e orientada quando a visitou em junho de 2019 e a Sr.ª Notária que com ela contactou, enfatizou a sua lucidez, num depoimento que se nos afigurou credível, tal como ao tribunal a quo. Por outro lado, não podemos dizer que nos dois meses anteriores à sua morte deixou de conhecer os RR., porque os factos provados apenas mostram que o R. “EE” a visitou cerca de 10 dias antes da sua morte, não se tendo apurado que tenha existido qualquer outra visita dos RR. naquele período de tempo.
No que respeita a esta visita, a que alude a al. mm) dos factos provados cuja alteração relativamente à data o Recorrente defende com recurso às declarações do próprio R. “EE”, verifica-se que este não sabendo concretizar o dia em que a visita teve lugar, começando por indicar a 1ª ou 2ª semana de novembro, depois a instâncias do tribunal diz que não foi um ou dois dias antes da “ZZ” falecer, mas alguns dias antes, talvez 10. Não podendo reconhecer-se uma certeza, pode afirmar-se uma aproximação a esta data, relevando por isso as suas declarações para a alteração da al. mm) dos factos provados.
Em razão da avaliação de todos estes elementos probatórios, importa concluir que os mesmos não são suscetíveis de determinar a alteração dos pontos ee), ff) e hh) dos factos provados, mas já impõem a alteração dos pontos gg) e mm).
Relativamente à al. gg) não vislumbramos elementos de prova consistentes que nos permita concluir que mais de dois meses antes da sua morte a “ZZ” “deixou de conhecer as pessoas, designadamente as Rés, passou a revelar falhas significativas de memória”, pelo que este segmento deve ser eliminado dos factos provados, considerando-se não provado.
Quanto à al. mm) dos factos provados, altera-se a mesma, no sentido de passar a precisar um pouco melhor a data da visita do R. “EE”, passando a sua redação a ser a seguinte:
“mm) Cerca de 10 dias antes de falecer a “ZZ” foi visitada pelo R. “EE” e não o reconheceu, não falou, estava acamada e só olhava para o teto.”
No que se refere ao facto não provado impugnado pelo Recorrente, relembra-se o seu teor: “que a testadora exprimiu cumprida e claramente as suas vontades e necessidades, com facilidade na sua compreensão assim como verbalizou de forma clara e audível”.
Regista-se que as testemunhas ER e PQ, que assinaram o testamento enquanto testemunhas, estavam na sala e não no quarto onde a “ZZ” estava com a Notária, tendo apenas entrado no final para assistir à leitura do testamento, como consta da al. d) dos factos provados da réplica, e assinar o documento, não tendo por isso assistido a qualquer conversa da Sr.ª Notária com a falecida. Acompanhamos, além do mais, a perceção do tribunal a quo quanto à falta de credibilidade destes depoimentos, que decorre também das testemunhas não terem referido que lá tinham estado anteriormente, numa primeira vez em que a Sr.ª Notária lá foi para o mesmo efeito, e em que optou por não lavrar o testamento em razão da surpresa e das dúvidas manifestadas pela testadora em instituir o A. seu herdeiro, o que seria normal que tivessem feito.
Do depoimento da Sr.ª Notária, salienta-se que quando a mesma foi ter com a falecida, o que aconteceu por duas vezes, já levava o testamento feito de acordo com as orientações que lhe haviam sido fornecidas pelo A. que como disse foi quem a contactou. Na primeira deslocação não fez o testamento porque a “ZZ” manifestou estar com algumas dúvidas, ficando ligeiramente desconfiada quando mencionou o testamento a beneficiar o A.; foi lá uma segunda vez após ter sido novamente contactada para o efeito, tendo aquela dito nessa altura que era a sua vontade beneficiar o A.; esclarece que a Sr.ª estava “impecavelmente tratada”, tinha um discurso “perfeitamente claro”, disse-lhe que estava sozinha e não tinha outros familiares e percebeu que havia uma relação de confiança com o A., afirmando que as declarações que constam do testamento são a vontade da testadora.
Não obstante, tal afigura-se insuficiente para que possa concluir-se que a testadora expressou a sua vontade de forma clara e audível, já que ficamos na dúvida se apenas aderiu ao que lhe foi sendo explicado que ali estava em questão, salientando-se que não foi a testadora quem previamente ou ali indicou à Sr.ª Notária as suas vontades, mas antes o A., uma vez que o testamento já ia redigido, embora tenha manifestado que o mesmo correspondia à sua vontade, como resulta das al. d) e e) dos factos provados da réplica não impugnados.
Veja-se que, numa primeira visita a Sr.ª Notária indica que houve uma desconfiança da parte da “ZZ” quando disse ao que vinha (o que indicia que a iniciativa de lavrar aquele testamento não foi dela, nem ela a primeira a expressar a sua vontade à Sr.ª Notária) tendo depois afirmado que tinha dúvidas em instituir o A. seu herdeiro, registando-se também que por ela não foi indicada a existência de um anterior testamento, que não podia deixar de conhecer.
O depoimento da Sr.ª Notária vai ao encontro da matéria que foi considerada provada nas al. d) e e) dos factos da réplica, mas não permite só por si dar como provado este facto impugnado.
Em conclusão, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto, alterando-se os pontos gg) e mm) dos factos provados de acordo com o que ficou exposto, improcedendo no demais.
IV. Razões de Direito
- da (in)validade do testamento outorgado pela falecida em benefício do A.
Alegam os Recorrentes, não questionando possibilidade de aplicação do regime do negócio usurário ao testamento, que tal só pode verificar-se em casos muitos excecionais em que ocorra um elevado juízo de censura sobre a conduta do beneficiário do testamento, o que os factos provados não revelam, por a testadora não obstante estar fisicamente fragilizada, estar lúcida, tendo de livre vontade decidido alterar o beneficiário do seu testamento, sem que o A. tenha explorado a sua fragilidade para obter qualquer benefício injustificado.
A sentença sob recurso depois de ter afastado a inexistência de testamento por falta de declaração da testadora, bem como a sua nulidade por incapacidade acidental da testadora, conforme havia sido invocado pelos RR., fez apelo ao regime dos negócios usurários, concluindo que a “ZZ” se encontrava absolutamente dependente de terceiros e a sua vontade enfraquecida e tal representar um benefício injustificado para o A. e um negócio usurário, anulando o testamento por ela outorgado em benefício deste.
O testamento, atenta a previsão do art.º 2179.º do C.Civil, representa um ato unilateral e revogável através do qual uma pessoa dispõe para depois da morte de todos os seus bens ou de parte deles, podendo testar todos os indivíduos que a lei não declare incapaz de o fazer, como estabelece o art.º 2188.º do C.Civil.
Entendeu a sentença proferida e não é questionado pelas partes, que ao testamento aplicam-se as regras específicas da falta e vícios da vontade previstas nos art.º 2199.º a 2203.º do C.Civil, bem como as regras gerais relativas à falta e vícios da vontade previstas no art.º 247.º. 253.º e 255.º do C.Civil e aos negócios jurídicos em geral, designadamente aos negócios usurários.
O legislador vem ainda nos art.º 2192.º ss. do Código Civil contemplar casos de indisponibilidade relativa do testador, afirmando a invalidade de disposições testamentárias feitas a favor de determinadas pessoas, do que se destacam aqueles que sejam os administradores legais dos bens do testador, ou os médicos e enfermeiros que o tratam na doença que venha a determinar a sua morte, se não forem seus herdeiros legitimários, partindo do princípio de que nesses casos existe uma maior dependência psicológica do testador que é suscetível de afetar a sua liberdade.
A decisão recorrida, como se referiu, afastou a existência de incapacidade acidental da testadora, o que não foi contestado, fundamentando a invalidade do testamento outorgado a favor do A. no art.º 282.º do C.Civil, concluindo que se está perante um negócio usurário.
O art.º 282.º do C.Civil que rege sobre os negócios usurários, estabelece no seu n.º 1: “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caracter de outrem, obtiver deste, para si, ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”
Sobre os requisitos do negócio usurário, diz-nos Luís A. Carvalho Fernandes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 310: “Da análise deste preceito resultam como elementos do conceito de usura: a) situação de inferioridade do declarante; b) obtenção de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados; c) intenção ou consciência do usurário de explorar aquela situação de inferioridade.”
A respeito deste último requisito ensina este Ilustre Professor a pág. 313: “Para a usura ser relevante tem de haver da parte de alguém, como diz a lei, uma situação de exploração da situação de inferioridade do declarante. (…) O que está em causa é que haja por parte do usurário a representação da situação de inferioridade do declarante, para a explorar, mediante a obtenção de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados. Assim, a ideia de exploração daquela situação, que da lei expressamente consta, mostra que o autor do vício deve ter tanto consciência de que o declarante se encontra inferiorizado, como ainda do benefício excessivo ou injustificado que vai obter para ele ou para outrem.
Tem vindo a ser entendido que o regime do art.º 282.º do C.Cvil, relativo aos negócios usurários se aplica a todos os negócios, quer se trate de contratos bilaterais ou unilaterais, ou mesmo negócios unilaterais – vd. neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, in. Código Civil anotado, Vol. I, pág. 183, em anotação a este artigo.
Com respeito ao testamento, considerando a natureza jurídica desde negócio unilateral e a sua característica de gratuitidade, a dificuldade coloca-se desde logo na concretização e verificação do requisito do negócio que exige “um benefício excessivo ou injustificado” obtido por parte do beneficiário, já que não existindo contrapartida poderia dizer-se que qualquer benefício seria à partida excessivo ou injustificado, não podendo também de falar-se em bom rigor de um prejuízo para o testador ou de desequilíbrio de prestações.
Nesta medida é com particulares cautelas que pode haver lugar à aplicação do regime da usura ao testamento, ainda que tal tenha vindo a ser admitido pela nossa jurisprudência. Neste sentido, vd. Acórdão do STJ de 9 de maio de 2023, no proc. 1084/19.3T8GDM.P1.S1 in www.dgsi.pt que depois de citar jurisprudência nesse sentido, adianta: “Aceitamos como boa a tese da aplicabilidade da usura ao testamento, por funcionar como uma “válvula do sistema”, permitindo ampliar as possibilidades de promover a equidade das soluções jurídicas nos casos em que os tribunais têm de aferir da validade substancial do testamento, por falta de liberdade na formação da vontade, sem que se verifiquem os pressupostos da incapacidade acidental ou da coação moral. O pressuposto da usura relativamente à vítima exprime-se através de um elenco bastante aberto - “o estado de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza e caráter” – que tem a virtualidade de alargar a proteção das pessoas idosas afetadas por doenças físicas ou psíquicas, para além das situações de coação moral ou de incapacidade de entender e querer. 3. Importa, todavia, fazer uma ressalva a este propósito. A aplicabilidade do regime do negócio usurário ao testamento só pode ocorrer em casos muito excecionais em que da valoração dos factos do caso decorra um elevado juízo de censura sobre a conduta da pessoa beneficiária do testamento, pois que a figura do negócio usurário pressupõe um desequilíbrio de prestações mais adaptado a surgir em negócios jurídicos bilaterais, sendo uma situação dificilmente equacionável no testamento em que as deixas testamentárias não têm de obedecer a qualquer contraprestação ou contrapartida das pessoas beneficiárias, ou de ter ainda qualquer finalidade retributiva da conduta destas.”
Na avaliação da aplicabilidade do regime da usura ao testamento, consideramos de toda a pertinência reproduzir o estudo e pensamento expresso com toda a clareza no Acórdão do STJ de 23 de junho de 2016 no proc. 1579/14.5TBVNG.P1.S1 in www.dgsi.pt que nos diz: “O problema da aplicabilidade do regime dos negócios usurários ao testamento não se encontra tratado de forma aprofundada no direito português. Em tese geral, defende-se em alguma doutrina nacional (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, pág. 260; Pedro Eiró, Negócio usurário, 1990, págs. 68 e segs.; H. E. Hörster, A parte geral do Código Civil Português, 2014, reimp., pág. 556) a possibilidade de tal aplicação à generalidade dos negócios jurídicos, tanto bilaterais como unilaterais, sem, contudo, se referir directamente o testamento. Entre os cultores do direito sucessório, há autores que defendem a sujeição do testamento ao regime da usura (Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, pág. 185; Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2013, pág. 135). A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem admitindo a aplicação da usura aos negócios jurídicos unilaterais: em tese geral, no acórdão de 12/09/2006 (proc. nº 06A1988, in www.dgsi.pt); (…) Relativamente aos negócios testamentários, são de referir as seguintes decisões deste Supremo Tribunal: - No acórdão de 22/05/2003 (proc. nº 03B1300, in www.dgsi.pt), num caso em que o testamento foi anulado por coacção, admitiu-se, em tese geral, que o regime da usura possa aplicar-se ao testamento “A lei prescreve, por outro lado, ser anulável o negócio jurídico quanto alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou não justificados (artigo 282º, n.º 1, do Código Civil). Visa este normativo proteger as pessoas em situações de fraqueza contra quem se pretende aproveitar dela e pressupõe um estado de inferioridade de um dos contraentes e a obtenção consciente de benefícios excessivos ou injustificados para o outro ou para terceiro. A verificação do vício de vontade a que este artigo se reporta, envolve, pois, três elementos, designadamente uma situação de inferioridade do declarante, a actuação consciente do declaratário ou de terceiro e o excesso ou a injustiça do proveito. Conforme decorre dos termos da lei, a referida situação de inferioridade do declarante há-de resultar de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter. É um normativo aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, face à sua especificidade.”- No acórdão de 13/05/2004 (proc. nº 1452/04, in www.dgsi.pt), num caso em que se concluiu não ter sido feita prova que permitisse anular o testamento, considerou-se, em tese geral, o seguinte: “Por isso, a situação de qualquer beneficiado em testamento, que haja assistido o testador - e não seja médico, enfermeiro ou sacerdote - há-de inserir-se nas demais disposições sobre vícios de vontade, conduzindo à invalidade do testamento apenas na medida em que a sua actuação tenha determinado o testador, privando-o de vontade esclarecida (dolo ou coação) ou aproveitando-se de uma deficiência desta vontade (erro, incapacidade acidental) a celebrar o testamento ou a beneficiá-lo nele. Ou então, atenta a natureza genérica do art. 282º (negócios usurários) aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais como é o caso das disposições testamentárias, ficarão sujeitos à anulabilidade advinda do facto de terem explorado a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador para deste obterem a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”A jurisprudência deste Supremo Tribunal não é, por si só, conclusiva, uma vez que se limita a enunciar, em abstracto, a possibilidade de sujeição dos testamentos à usura, sem chegar a concretizar a transposição do instituto e dos seus requisitos. Mesmo que se admita que esta autonomização da usura vale também para o testamento, surge a dificuldade em operar a transposição dos requisitos do instituto tendo em conta as características essenciais do testamento enquanto negócio jurídico unilateral não receptício com efeitos sucessórios. Carvalho Fernandes – escrevendo a respeito do erro-vício, mas em termos válidos para outros institutos – identifica claramente o problema do “risco envolvido na transposição, para o regime geral dos negócios unilaterais não recipiendos, de disposições relativas a um acto que se reveste de particularidades significativas, como acontece com o testamento” (cit., pág. 215). A possibilidade de transpor para o testamento o requisito subjectivo relativo ao declarante não oferece especiais dúvidas. Também será de admitir a transposição do requisito subjectivo relativo ao usurário, uma vez que a redacção do art. 282º, nº 1, do CC, é suficientemente ampla para incluir situações em que o usurário não é o declaratário ou em que nem sequer existe declaratário. Maiores dificuldades suscita, porém, a transposição do requisito objectivo da “lesão”, já que, por natureza, o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe. Rejeita-se a posição (Capelo de Sousa, cit., p. 185) que, pura e simplesmente, dispensa a verificação deste requisito no caso dos testamentos porque tal desvirtuaria a essência do regime dos negócios usurários. Nas palavras de Pedro Eiró (cit., pág. 15), “É no negócio usurário que o ordenamento jurídico português atribui relevância à lesão como causa invalidante do negócio jurídico. Lesão e usura estão hoje indissociavelmente ligadas. Se por um lado não existe usura sem lesão – esta é um dos seus elementos componentes –, por outro lado a lesão, como vício do negócio, só é relevante em sede de negócio usurário.” Se a usura não pode, por definição, existir sem um elemento objectivo, a sua aplicação não poderá verificar-se se o testamento ou testamentos forem valorados de forma isolada. Apenas se poderá afirmar em circunstâncias muito excepcionais – como parecem ser as dos autos – em que esses negócios jurídicos se insiram num contexto mais alargado, no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração. Diferente valoração associada ao recurso à concepção de “sistema móvel”, desenvolvida por Wilburg (na obra Elementen des Schadensrecht de 1941) a respeito do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, aceite pela doutrina nacional e igualmente válida para o instituto da usura (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, I, 2005, pág. 651), permitindo considerar que, se for particularmente intensa a prova de factos que revelam um dos pressupostos do art. 282º, nº 1, do CC, será aceitável um menor grau de exigência na verificação de um outro pressuposto.”
Também Menezes Cordeiro, in. Tratado de Direito Civil II, Parte Geral, Negócio Jurídico, pág. 501 se refere à usura como “mais uma válvula do sistema”. Sobre o regime vigente, depois de distinguir na usura os elementos relativos aos sujeitos - usurário e vítima da lesão -, dos elementos relativos ao negócio, ensina este Ilustre Professor, in. ob cit. pág. 497 a 499: “Em relação ao usurário, a lei atual exige que ele “explore” determinada situação de vulnerabilidade da vítima. Trata-se de uma fórmula que equivale, na prática ao “aproveitamento consciente” exigido pelo artigo 282.º na versão inicial do Código Civil. Mas não totalmente: a exploração pode ser objetiva, isto é, pode não implicar o conhecimento da franqueza da contraparte. A supressão do adjetivo “consciente” é demasiado impressivo para não ter qualquer significado. (…) A análise acima efetuada dos diversos elementos da usura não deve fazer esquecer a natureza unitária do instituto. As proposições do artigo 282.º devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, dentro da mecânica de um sistema móvel: quando a lesão seja muito grande, a “exploração” e fraqueza do prejudicado poderão estar menos caracterizadas. E quando a dependência do prejudicado seja escandalosa – por exemplo – não será de exigir um tão grande desiquilíbrio.”
É neste contexto, que se considera também que não obstante no negócio usurário tenham de estar identificados todos os seus elementos previstos no art.º 282.º do C.Civil, quer os subjetivos - relativos ao declarante na verificação das fragilidades previstas na norma, quer ao usurário na exploração de tal situação de debilidade ou dependência - quer o objetivo reportado ao negócio com a concessão ou promessa de benefícios excessivos ou injustificados, este instituto da usura impõe que a situação seja avaliado no seu conjunto, do que poderá resultar, conforme os casos, num diferente peso de cada um dos seus elementos.
Passando ao caso concreto, verifica-se que os factos provados evidenciam bem a situação de necessidade, debilidade e dependência de terceiros da testamentária, em razão da sua incapacidade para fazer face por si só às suas mais elementares necessidades básicas, de alimentação, higiene e saúde, em razão não só da sua idade, mas sobretudo das doenças de que padecia. Foi aliás essa situação de incapacidade inicialmente mais associada à falta de mobilidade, o motivo da falecida ter ido para a casa dos AA. em junho de 2017 na sequência de uma queda, com quem foi celebrado um contrato de prestação de serviços para que dela cuidassem nos últimos anos de vida, como faziam com outros idosos.
Contata-se que, pelo menos nos dois meses que antecederam a sua morte, e mais concretamente na data em que foi feito o testamento, 13 dias antes da testadora falecer, os seus cuidados de higiene, alimentação e administração de medicamentos eram assegurados pelos AA., no âmbito do contrato de prestação de serviços com eles celebrado, num agravamento da situação de saúde da testadora que passou a estar acamada e não conseguia por si só fazer face e satisfazer sequer essas suas necessidades mais básicas.
Este estado de fragilidade, dependência e debilidade física e psíquica da “ZZ” ainda é mais acentuado pela circunstância da mesma não ter qualquer família, mas apenas alguns amigos que por vezes a visitavam.
Tem-se por isso como verificado o primeiro requisito da usura, relativamente à vítima – uma situação de inferioridade da mesma, em razão do seu estado de dependência e necessidade de assistência de terceiros, no caso do A. com quem havia contratado os serviços que ele lhe prestava e que remunerava. 
Vejamos agora se podemos falar de uma exploração dessa situação de dependência pelo A., tal como foi entendido pela sentença recorrida.
Ali se refere a este propósito: “Para a usura ser relevante tem de haver da parte de alguém a exploração da situação de inferioridade do declarante: a situação de inferioridade de “ZZ” é notória, o A recebia uma quantia mensal para prestar cuidados a “ZZ”, “ZZ” tinha uma idade avançada, um estado de saúde progressivamente a deteriorar-se, não tinha família e as pessoas mais próximas não a visitavam provavelmente com a regularidade que gostaria, encontrava-se há pouco mais de dois anos em casa do A, a quem sabia que pagava, o que não nos parece suficiente justificação para um tamanho acto de generosidade desta para com aquele. Note-se que a moradia do A não era um lar, não tinha cuidados geriátricos quer de enfermaria ou fisioterapia, era – como referiu o Senhor Padre – um ambiente pobre, sem condições, e o A recebia uma quantia mensal para acolher “ZZ” que é bastante significativa e reveladora já de um contrapartida pelos cuidados que prestava. Se “ZZ” estava lúcida o suficiente para ter o discernimento de fazer um testamento também o estava para perceber que o Autor só a acolhia e dela cuidava porque recebia uma contrapartida monetária generosa para esse efeito. Mesmo que as visitas das pessoas que sempre foram consideradas por esta como sendo família não tenham sido muito abundantes (sendo certo que não se provou também que era assim tão parcas), a factualidade que se provou não revela qualquer abandono, nem menos cuidado ou preocupação, nem – por outro lado – revela uma tamanha dedicação do A a esta senhora que, num relativamente curto espaço de tempo, demonstre um afecto similar ao de um filho ou um neto. Nada na factualidade que se provou permite entender que 13 dias antes da sua morte, “ZZ” tenha decidido deixar todos os seus e bens e poupanças de uma vida inteira ao Autor. Pelo contrário, o que transparece é que a iniciativa partiu do Autor, que tratou de tudo.”
Por um lado, é inequívoco que o A. tinha conhecimento da situação de vulnerabilidade e dependência em que a “ZZ” se encontrava, não podendo deixar de constatar o agravamento da sua situação de saúde nos meses que antecederam a sua morte.
Por outro lado, conforme resultou provado (al. rr) dos factos provados da contestação) não foi a “ZZ” que contratou os serviços da Notária, escolheu as testemunhas que vieram a assinar o testamento, ou pagou aqueles serviços, não tendo também resultado provado que o testamento tenha sido escrito pela Notária após a testadora expressar a sua vontade (esta afirmou que foi o A. quem solicitou os seus serviços e lhe deu as informações a respeito das deixas testamentárias que veio a incluir no testamento que levou redigido antes de contactar a A.). É evidente que o A. não só tinha conhecimento do teor do testamento outorgado pela “ZZ” a seu favor, como manifestamente diligenciou para esse efeito.
Não temos sequer qualquer facto que nos permita dizer que foi da “ZZ” a iniciativa de fazer um testamento a deixar todos os seus bens ao A., nada revelando que tenha sido um ato espontâneo da sua parte.
Não pode deixar de salientar-se a proximidade desta situação com aquelas a que o legislador quis obviar, ao instituir nos artigos 2192.º a 2198.º do C.Civil os casos de indisponibilidade relativa, reconhecendo precisamente a possibilidade de exploração da situação de inferioridade do testador por quem lhe presta determinados serviços de que ele depende, invalidando as disposições testamentárias feitas a favor de acompanhante ou administrador legal de bens, de médicos, enfermeiros ou sacerdotes quando prestem assistência ao testador durante doença de que ele venha a falecer, quando não sejam seus descendentes, ascendentes, colaterais até ao terceiro grau, cônjuge do testador ou pessoa que com ele viva em união de facto.
Em face do exposto, tem-se como demonstrado de uma forma patente este segundo pressuposto da usura, na verificação de uma situação de exploração da situação de debilidade e dependência da “ZZ” por parte do A., com quem havia sido outorgado um contrato de prestação de serviços para dela cuidar, pelo qual era remunerado mensalmente, que poucos dias antes da sua morte diligenciou para que a “ZZ” pudesse fazer um testamento a seu favor.
Resta então avaliar se está verificado o último requisito do negócio usurário que se reporta à concessão ou promessa de benefícios excessivos ou injustificados, com as ressalvas que já foram enunciadas de estamos perante um negócio unilateral gratuito, que não permite que se fale com propriedade de uma equivalência de prestações, nem tão pouco da existência de um prejuízo para o declarante.
A nosso ver tal passa por perceber se se podem descortinar razões válidas ou justificadas que pudessem ter levado a testadora a outorgar um testamento a favor do A. beneficiando-o da totalidade dos seus bens, para o que temos de fazer apelo aos factos que resultaram provados.
Constata-se que entre a testadora e o A. não existia qualquer relação de parentesco ou afinidade, tenho aquela ido viver na moradia do A. em junho de 2017, onde este recebe idosos a quem presta assistência, mediante o pagamento de uma remuneração mensal, quando teve alta hospitalar onde foi assistida na sequência de uma queda, em face da sua reduzida mobilidade, tendo aí permanecido até à sua morte em 21 de novembro de 2019, sendo que pelo menos nos dois meses que a antecederam se encontrava numa situação de total dependência do A. para satisfazer as suas necessidades mais básicas.
Os factos provados revelam apenas a existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre eles, não estando evidenciado sequer que ao longo desses mais de dois anos tivessem sido criados entre eles quaisquer laços afetivos, designadamente de especial amizade ou cumplicidade mútua, não se descortinando nos factos que se apuraram mais do que a prestação de uma assistência feita pelo A. à “ZZ” como contrapartida da retribuição que dela recebia.
Regista-se ainda que o testamento feito pela “ZZ” instituiu o A. como único e universal herdeiro, deixando-lhe todos os seus bens e não apenas uma parte deles, como podia ter feito, na medida em que pelo menos tinha um imóvel correspondente a uma fração autónoma sita num prédio da freguesia de (…), Campo de Ourique, em Lisboa e uma conta bancária com uma quantia que pode considerar-se muito relevante, tendo depositados cerca de € 233.000,00 à data da sua morte.
Por outro lado, contata-se a existência de um testamento anterior, feito pela falecida cerca de 20 anos antes, em que os beneficiários eram a sua amiga de infância “GG”, a quem tratava como família e os seus filhos (factos provados da contestação que constam das al. f), g), h) e i). Esta proximidade e amizade com a “GG” e a sua filha “CC” é evidenciada não só pelo teor do testamento que lavrou, mas também pelo facto destas serem contitulares da conta bancária que a “ZZ” tinha no Banco Millennium, sendo a R. “CC” que operava para o A. as transferências bancárias para pagamento dos seus serviços.
Não se vê justificação válida para que a “ZZ” tivesse revogado o testamento anterior em que instituiu beneficiários aqueles com quem tinha uma relação de amizade e que considerava família, nos termos em que o fez, instituindo o A. herdeiro da totalidade dos seus bens, sem sequer ter feito menção àquele anterior testamento. Além do mais, não haveria razão para que a “ZZ” pudesse ter uma dívida de gratidão para com o A., na medida em que remunerava os serviços de assistência que ele lhe prestava, de acordo com o contratado, afigurando-se excessiva a atribuição ao mesmo de todo o seu património com a dimensão algo relevante que tinha.
Tudo isto nos leva a dizer que se verifica também do pressuposto objetivo da usura, pela obtenção de benefícios excessivos e injustificados por parte do A.
Em conclusão, em face da patente situação de fragilidade, necessidade e dependência do A. em que se encontrava a “ZZ” sobretudo nos meses que antecederam a sua morte, mas seguramente quanto outorgou o testamento 13 dias antes de falecer, situação de que aquele conhecia e de que se aproveitou no sentido de diligenciar para que pudesse ser outorgado um testamento a seu favor, sem que se tenha sequer apurado que tal correspondeu a uma decisão espontânea da testadora, instituindo-o como herdeiro de todo o seu património sem que os factos provados revelem qualquer justificação válida para isso, ainda para mais em alteração de um anterior testamento que não foi mencionado, considera-se que não merece censura a sentença recorrida quando decide anular o testamento em questão por usura, nos termos do art.º 282.º do C.Civil.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente o presente recurso interposto pelos AA., confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes por terem ficado vencidos – art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC.
Notifique.
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Lisboa, 7 de março de 2022
Inês Moura
Vaz Gomes
Higina Castelo