Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
455/12.0PCLSB.L1-3
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
ARMA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- A delimitação do objecto do processo feita na acusação não é incontornável, uma vez que o mesmo pode ser alterado verificados que estejam os condicionalismos estabelecidos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.
II- Mas “não há alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação ou da pronúncia, quando os factos referidos se traduzem em meros factos concretizantes da actividade criminosa do arguido sem repercussões agravativas ou na estratégia da defesa do arguido”. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
III- A alteração não substancial dos factos é aquela que representando uma modificação dos factos constantes da acusação, sem descaracterizar o seu quadro factual, não tem por efeito a imputação de um crime diverso ou relevância para a determinação da moldura penal.
IV- Na impugnação da decisão sobre matéria de facto por erro de julgamento, não basta sustentar que a leitura que o tribunal fez da prova produzida, sendo uma das possíveis, não é a mais adequada; é necessário demonstrar que a análise da prova à luz das regras da experiência ou a existência de provas irrefutáveis não consentiam tal leitura.
V-A agravação do nº 3 do artº 86º da Lei das Armas (Lei nº 5/2006, de 23/02, alterada pela Lei 17/2009 de 6/05), encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, só afastada nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

Na 5ª Vara Criminal de Lisboa, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi submetido a julgamento o arguido LA..., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferido acórdão, no qual se decidiu, condená-lo na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas nos 22º, 23º, 73º, 131º e 132º nº 1 e 2 al. e), todos do Código Penal,  na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º nº 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23.2, na redacção introduzida pela Lei 17/2009, de 6 de Maio e em cúmulo jurídico na pena única de 10 (dez) anos de prisão.

Mais decidiu julgar integralmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA E.P.E. e condenar o arguido/demandado no pagamento da quantia de €7.228,05 (sete mil duzentos e vinte e oito Euros e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal e contados desde a notificação do arguido do pedido e até integral pagamento.

     Inconformado com o acórdão, dele interpôs recurso o arguido, pugnando pela sua absolvição da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada pelo qual foi condenado, a nulidade da alteração de factos a si comunicada em consequência, ser o recorrente e a reapreciação da questão da detenção de arma proibida ou subsidiariamente o reenvio do processo reenviado para novo julgamento com outro colectivo, para o que apresentou as seguintes conclusões:            (...)


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O recurso foi admitido.

Na resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação integral da decisão recorrida e pela inexistência de qualquer nulidade quanto à alteração não substancial dos factos comunicada ao recorrente, relevando que Não tendo a defesa, face a tal comunicação não requerido produção de prova.


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A Exmª Srª. Procuradora Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer, subscrevendo a posição do MºPº junto da 1ª instância, quanto à nulidade e impugnação da matéria de facto invocadas sendo que quanto à medida da pena considerou que devendo a mesma situar-se acima da média, admite que se possa aplicar uma pena ligeiramente inferior à aplicada.

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Cumpriu-se o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.

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Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre decidir.


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II FUNDAMENTAÇÃO

O Tribunal colectivo considerou como provados os seguintes factos:

A) No dia 5 de Abril de 2012, cerca das 14.30 horas, o arguido, LA.., encontrava-se na Praça de Alegria, nesta cidade e comarca de Lisboa, local onde habitualmente solicitava aos condutores algumas moedas em troca de os auxiliar a estacionar os seus veículos.

B)  A dado momento, o arguido abordou HS, a quem se dirigiu, dizendo que lhe entregasse as moedas que ia inserir no parquímetro, o que HS recusou.

C)  O arguido entrou em discussão com HS e dirigiu-se na sua direcção dizendo “vais ver que vais dar a moeda”.

D)  HS, para afastar o arguido de si, empurrou-o, fazendo-o cair no solo.

E)  Momentos após o arguido dirigiu-se ao veículo de HS e este agarrou o arguido pelos ombros para o afastar.

F)  Acto contínuo o arguido empunhou o canivete de abertura lateral que trazia consigo, com 10,5 cm de comprimento de lâmina, pontiaguda, e um só gume, o qual espetou no tórax de HS, na zona pulmonar.

G)  HS agarrou o arguido pelo braço, continuando o arguido a dirigir o canivete na direcção do corpo de HS só não o voltando a atingir porque este resistiu.

H)  Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, HS sofreu perfuração do lobo pulmonar inferior esquerdo e toracotomia antero-lateral esquerda, tendo sido, de imediato, transportado para o Hospital ....

I)  Após intervencionado foi conduzido para a unidade de cuidados intensivos, onde se manteve em estado grave e com prognóstico reservado, sedado e em ventilação artificial.

J)  Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, HS sofreu ainda traumatismo torácico penetrante a nível do precórdio e as lesões torácicas.

K)  … que lhe determinaram directa e necessariamente um período de 145 dias de doença, 90 dos quais com incapacidade para o trabalho geral e os restantes com incapacidade para o trabalho profissional.

L)  A lesão infligida pelo arguido só não lhe causou a morte por razões alheias à sua vontade, designadamente, pelo pronto atendimento prestado pelas instâncias clínicas e hospitalares.

M)  Sabia o arguido que o inesperado da agressão e a natureza corto-perfurante do instrumento que utilizava impediam qualquer tipo de defesa.

N)  Agiu o arguido ciente de que ao dirigir instrumento daquela natureza em direcção ao tórax e zona pulmonar de HS actuava de forma adequada a atingir-lhe órgãos vitais, sabendo que desse modo lhe infligia lesões susceptíveis de lhe tirar a vida, como era sua intenção.

O)  Ao praticar os factos descritos agiu o arguido contra pessoa que sabia não dispor de instrumento capaz de oferecer resistência à agressão e movido sem motivo que no plano da razoabilidade explique a sua conduta.

P) Agiu, ainda, o arguido com o intuito conseguido de manter na sua disponibilidade aquele canivete, cujas características corto-perfurantes e letais bem conhecia, bem sabendo que o mesmo se encontrava à sua guarda apenas para ser utilizado como arma de agressão.

Q)  Agiu sempre o arguido determinado por vontade livre e consciente, bem sabendo que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

Condições pessoais do arguido:

R) Após ter completado, com sucesso, o 9º ano abandonou os estudos na adolescência e envolveu-se em consumo de produtos estupefacientes.

S)  Aos 18 anos foi preso por furto e cumpriu 18 meses de prisão efectiva.

T)  Depois reintegrou o agregado familiar e foi trabalhar para uma fábrica de malas da qual o pai era proprietário.

U)  Desentendeu-se com o pai e retomou o estilo de vida assente no consumo de drogas.

V)  De 1985 até 2006 registou condenações relacionadas com o consumo de estupefacientes o que evidenciou uma dificuldade do arguido em levar uma vida orientada para objectivos ajustados do ponto de vista social e laboral.

W)  Quando foi libertado em 2006 os pais já haviam falecido e estava afastado dos irmãos.

X)  Frequentou um programa de recuperação de toxicodependentes na Associação .... de Outubro de 2006 até Junho de 2007 que abandonou sem completar.

Y)  Viveu em Porto Santo, entre 2007 e 2008, onde trabalhou como tratador de animais no Centro Hípico entre 2007 e 2008, com um contrato de trabalho com duração de cerca de um ano.

Z)  Abandonou o trabalho em virtude de divergência com a entidade patronal por causa do vencimento.

AA) Permaneceu na ilha a viver num quarto alugado até 2009 e trabalhou como servente de pedreiro.

BB) Regressou a Lisboa e pediu apoio da Instituição .... onde permaneceu alguns meses até 2009.

CC) Deixou a Instituição para passar a ficar a cargo da emergência social que lhe possibilitou um subsídio para pagar um quarto e o rendimento social de inserção até 2011.

DD) Manteve-se desocupado o que implicou a perda dos subsídios e a necessidade de reintegrar a Associação ... onde permaneceu mais cerca de seis meses.

EE) Deixou a mesma em 2012 para viver na rua como sem abrigo, pernoitando num carro e subsistindo do dinheiro obtido como arrumador de carros na Praça da Alegria em Lisboa.

FF) Na data dos factos o arguido pernoitava na rua, sem meios de subsistência ou quaisquer subsídios e sobrevivia das gorjetas obtidas como arrumador de carros.

GG) A nível sócio familiar não dispunha de qualquer apoio.

HH) Dispõe de baixa capacidade de auto-controle face a situações de frustração.

II)  Evidencia, contudo, alguma noção das suas fragilidades pessoais e no seu percurso pessoal tendo recorrido a Instituições quer para resolver a sua problemática de consumo de estupefacientes quer para garantir a sua subsistência.

JJ)  Tem antecedentes criminais: Por decisão proferida a 6/07/1976 pelo 1.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 552/76, na pena única de 19 meses de prisão e 105 dias de multa pela prática de um crime de encobrimento de furto e de um crime de furto; Por decisão proferida a 30/01/1978 pelo 3.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 19602, na pena de um ano e cinco dias de prisão pela prática de um crime de furto de automóvel; Por decisão proferida a 12/12/1979 pelo 2.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 363/79, na pena de seis anos e seis meses de prisão e 9 meses e 22 dias de multa pela prática de um crime de furto de uso de veículo; Por decisão proferida a 8/06/1984, pelo 2.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 5/84, na pena de 18 meses de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática de um crime de furto; Por decisão proferida a 31/07/1985 pelo 3.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 1405/85, na pena de cinco anos de prisão pela prática de um crime de furto qualificado; Por decisão proferida a 18/05/1988 pelo 2.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 1847/88, na pena de 70 dias de prisão e 40 dias de multa pela prática de um crime de consumo de estupefacientes; Por decisão proferida a 20/09/1991 pelo 4.º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 283/91, na pena de quatro anos e meio de prisão, pela prática em 21/02/1991 de um crime de furto; Por decisão proferida a 13/03/1995 pela 3.ª Vara Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 1/95, na pena única de oito anos de prisão pela prática em 30/09/1994 de um crime de roubo, um crime de furto de veículo, um crime de condução sem carta e um crime de detenção de estupefacientes; Por decisão proferida a 1/07/2003, transitada em julgado a 22/07/2003, pela 9.ª Vara Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 11.01.9 JBLSB, na pena de cinco anos e 10 meses de prisão, pela prática em 15/01/2001 de um crime de roubo; Por decisão proferida a 4/05/2005, transitada em julgado a 1/06/2005, pela 3.ª Vara Criminal de Lisboa, no processo que correu termos sob o n.º 2687/94.2 PBLSB, na pena de 7 anos e 10 meses de prisão, pela prática em 30/09/1994 de um crime de tráfico de estupefacientes; Por decisão proferida a 12/03/2009, transitada em julgado a 1/04/2009, pelo Tribunal Judicial de Porto Santo, no processo que correu termos sob o n.º 110/08.5 PBPST, na pena de 70 dias de multa pela prática em 25/07/2008 de um crime de consumo de estupefacientes;

KK) Em audiência o arguido assumiu uma postura justificativa, sem demonstrar qualquer arrependimento.

Do pedido de indemnização civil:

LL) Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, HS sofreu perfuração do lobo pulmonar inferior esquerdo e toracotomia Antero-lateral esquerda, tendo sido, de imediato, transportado para o Hospital de ...

 MM) Após intervencionado foi conduzido para a unidade de cuidados intensivos, onde se manteve em estado grave e com prognóstico reservado, sedado e em ventilação artificial.

NN) Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, HS sofreu ainda traumatismo torácico penetrante a nível do precórdio e as lesões torácicas.

OO) O Centro Hospitalar de Lisboa, EPE prestou-lhe a assistência referida que consistiu em realizar todos os procedimentos para obstarem ás lesões traumáticas referidas.

 PP) O custo da referida assistência foi suportado pelo demandante, no montante de €7.228,05.

Relativamente à matéria de facto não provada consignou-se que:

1. Que o arguido trouxesse o canivete no bolso.

A motivação da decisão de facto foi explicada como segue:

“Nos termos do disposto no artº 374º, nº 2, do C.P.Penal, o Tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação das provas que serviram para formar a sua convicção.

Em sede de valoração da prova, a regra primacial é a constante do artº 127º, do mesmo código, segundo a qual a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal”.

Este princípio da livre apreciação da prova traduz-se na ideia de que “o Tribunal baseia a sua decisão sobre a realidade de um facto na íntima convicção que formou a partir do exame e da ponderação das provas produzidas”[i].

“ A convicção no plano judiciário é a persuasão do julgador formada a partir de um certo número de provas, provas essas que à luz de uma comum e experiente perspectiva, fazem crer numa certa realidade”[ii]

Para a formação da convicção no caso “sub judice”, o tribunal teve em consideração o seguinte:

O arguido não quis prestar declarações, tendo optado por o fazer no final da audiência de julgamento e negou, no essencial, os factos, assumindo uma postura justificativa, sem demonstrar qualquer arrependimento.

Análise crítica das declarações de OM, médico que se encontrava de urgência no Hospital de ..., como cirurgião chefe e que recebeu a vítima transportada pelo INEM em situação crítica de lesão cardíaca e decidiu, de imediato, conduzi-la ao bloco operatório, uma vez que existia perigo de vida pela ferida penetrante pulmonar. Mais esclareceu que o doente teria morrido se não tivesse sido atendido em meia hora, mas não ficou com sequelas, em virtude da sua idade.

HF, ofendido, que explicou que tudo sucedeu em virtude de se recusar a dar uma moeda ao arguido, uma vez que optou por retirar um bilhete para estacionar a sua viatura. O arguido não gostou e começou a agredi-lo verbalmente e a dizer-lhe que ia riscar o carro. Como o ofendido repetiu que não lhe dava nada o arguido veio ao seu encontro e o depoente empurrou-o, tendo o arguido caído no chão. Depois levantou-se e referindo “que isto não vai ficar assim” deu-lhe uma facada e tenta-lhe dar outra. O depoente ainda o vê com a faca na mão enquanto está a agarra-lo e só sabe que depois foi conduzido ao Hospital já inconsciente.

Situou “a facada” perto do coração. Esteve uma semana no Hospital de ... e depois foi conduzido ao Hospital ...

Foi ouvida a Médica perita do IML, AR, que confirmou o aditamento de fls. 351 do qual consta que as lesões foram adequadas a provocar a morte.

Análise crítica do depoimento de TP que presenciou os factos uma vez que tinha estado a almoçar a cerca vinte metros do local e deslocou-se ao mesmo parquímetro. Também foi abordado pelo arguido, não tinha dinheiro e presenciou o arguido a transmitir ao ofendido que o parquímetro não estava a funcionar. Verificou que existiu uma exaltação por parte do arguido e que o ofendido referiu que não lhe dava a moeda. Entretanto, o arguido e o ofendido estavam agarrados um ao outro e tentou separa-los. Chegou a vê-los caídos no chão e ouviu um pedido de ajuda do ofendido, referindo que tinha levado uma facada e viu sangue, tendo-se, ainda, apercebido do momento em que o arguido largou a faca e a deitou ao chão. Depois, presenciou a chegada da polícia, alguma resistência por parte do arguido e viu as entidades policiais a recolher a faca do chão, no local onde o arguido a deixou cair, não deixando qualquer dúvida que presenciou os factos que relatou de forma clara.  

PD que presenciou os factos, uma vez que estava na Praça da Alegria com a testemunha TP e para além de os descrever em termos similares aos descritos pela testemunha anterior, descreveu o gesto do braço direito – movimento circular de rotação do braço direito esticado – efectuado pelo arguido quando atingiu o ofendido na zona do peito, perto das axilas e que presenciou o arguido a lançar qualquer coisa no chão que presumiu que seria a faca, de modo a não deixar dúvidas sobre a credibilidade do seu testemunho presencial.

Prova documental:

     Levou-se, ainda, em consideração para a determinação da factualidade provada a documentação clínica de fls. 7, de fls. 94 e ss. 152 e 153, fls. 204, juntamente com as declarações do Médico OM

Auto de fls. 14

Perícia de avaliação do dano corporal em Direito Penal de fls. 80 e ss. de fls. 129 e ss., 215 e ss.

Relatório de exame pericial de fls. 85 e ss.

Relatório de exame pericial de fls. 158.

CRC do arguido de fls. 23 e ss. e 330 e ss.

Aditamento de fls. 351, sublinhado pela Perita Médica subscritora AR em audiência de julgamento.

Relatório social referente ao arguido.

Do pedido Cível:

Documentação clínica referida juntamente com o documento de fls. 268.

O facto não provado resulta de ninguém ter visto onde o arguido trazia o identificado canivete

O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[iii], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[iv].

Assim sendo e face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:

- Da nulidade do despacho que procedeu à alteração não substancial dos factos, com violação do princípio do contraditório e consequente nulidade da decisão recorrida.

- erro de julgamento relativamente aos factos provados descritos nas alíneas e), f) e g) com violação do princípio in dubio pro reo e da livre apreciação da prova

- medida da pena

a) Da nulidade do despacho que procedeu à alteração não substancial dos factos, com violação do princípio do contraditório e consequente nulidade da decisão recorrida.

O recorrente alega que a decisão recorrida ao se basear em factos diversos dos que contam na acusação, introduzindo factos que já constavam do inquérito, é nula nos termos do disposto no artigo 379º nº 1 al. b) do CPP, viola o principio do acusatório, e o disposto no artigo 283º nº 3 do CPP, sendo que o Tribunal não permitiu que a defesa tivesse podido face à comunicada alteração, inquirir as testemunhas que indicou, violando-se como tal o principio do contraditório previsto no nº 5 do artigo 32º da CR.

Mais refere que a reinquirição das testemunhas HS, TP e PD por si requerida após o MºPº ter promovido a alteração dos factos constantes na acusação se deveu ao facto de durante a sua inicial audição a defesa foi sistematicamente interrompida e retirada, violando-se assim os direitos de defesa do recorrente.

Antes do mais convirá referir que conforme se afere do artº 322º do C.P.P. (diploma aos quais, salvo menção expressa em contrário, se referirão daqui para a frente os preceitos legais invocados), a disciplina da audiência e a direcção dos trabalhos compete ao presidente do tribunal, cabendo-lhe a audição dos sujeitos processuais, proceder a exames e a quaisquer outros actos de produção de prova, e garantir o contraditório. (artº 323º). E dentro destes poderes de direcção incumbe-lhe controlar a ilegalidade das perguntas colocadas às testemunhas, nomeadamente não permitindo perguntas sugestivas, impertinentes ou sugestivas, conforme ressalta dos artºs128º nº 2, 130º, 132º nº 2, 138º nº 2 e 3.

O exercício de tal poder, afectando os poderes dos sujeitos processuais, deve ser fundamentado, devendo, caso ocorra qualquer oposição aos mesmos, as decisões serem ditadas em acta, - artºs 99º nº 1 al. d) e 362º nº 1 al. f)- afim de inclusivamente serem objecto de arguição de nulidade ou de eventual recurso. Caso, por qualquer razão, o Tribunal não conceda a palavra para apresentação do requerimento, ou este não for exarado em acta, pode o advogado exercer o seu direito de protesto, o qual não pode deixar de constar na acta e é havido para todos os efeitos como arguição de nulidade (artº 75º do EAO).

Consultando-se os autos, não se afere da existência de qualquer decisão do tribunal no sentido alegado pelo recorrente quanto ao impedimento de a defesa poder inquirir as testemunhas em apreço, nem se constata da existência de qualquer protesto formulado em acta.

Aliás o recorrente apenas refere genericamente que a audição daquelas foi interrompida e retirada, sem especificar factos, nem esclarecer em que termos concretos a sua defesa ficou prejudicada.

Não basta a nosso ver alegar genericamente, remetendo-se para parte das gravações, sem alegar em concreto os factos e o modo em concreto porque considera violado o seu direito de defesa, não competindo a este Tribunal indagar e o concretizar da pretensão formulada pelo recorrente.

O recorrente deveria em concreto referir as circunstâncias em que foi impedido de efectuar perguntas ou mesmo interrompido e esclarecer até que ponto as mesmas eram importantes para a sua defesa, o que não ocorreu.

Diga-se por outro lado que caso se considerasse que a audição nos termos efectuados poderia por em causa a defesa do recorrente, prejudicando-se como tal o apuramento da verdade, então haveria que colocar tal questão à apreciação em audiência e caso o Tribunal “ a quo” mantivesse a sua posição, caberia então a arguir a nulidade prevista no artº 120 nº 2 al. d), por omissão de diligências essenciais.

Tal não ocorreu, conforme se afere dos autos, pelo que tal nulidade a existir já se encontra sanada por força do disposto no artº 120º nº 3 al. a).

Assim sendo e no que a este argumento se refere improcede a pretensão do recorrente.

Passemos agora a analisar a questão relativa à nulidade do despacho de alteração dos factos, e subsequente nulidade do acórdão proferido.

O recorrente alega que não pode ser condenado pelos factos alterados e introduzidos na acusação em sede de julgamento e que constando das declarações das três testemunhas prestadas em sede de inquérito, e não tendo sido contemplados e incluídos nos factos seleccionados para constar da acusação, não poderiam ser tidos em conta já que com aquela peça acusatória se esgotou a investigação e a opção tomada é apenas imputável ao dominus do inquérito, ou seja o MºPº.

Na perspectiva do recorrente não tendo sido requerida a abertura de instrução ou a intervenção hierárquica para "correcção" dos factos vertidos na acusação, o Tribunal de Julgamento tem um objecto definido na acusação e não podendo mudá-lo, salvo se vier a verificar-se uma alteração dos factos vertidos no processo.

Ou seja e nas palavras do recorrente em “julgamento foi efectuada uma "repristinação" do objecto do inquérito”, sendo que a alteração é uma “nova acusação, com novos factos, onde se mantém os intervenientes o local, a data e a facada tudo o resto é significativamente diverso.”

Finalmente refere ainda que não foram ouvidas as testemunhas por ele indicadas após o MPº ter promovido a alteração dos factos o que consubstancia uma violação clara do princípio do contraditório do princípio constitucional consagrado no artº 32º nº 5 da C.R.P.

Estamos de acordo com o recorrente quando este afirma que o processo penal tem uma estrutura acusatória, conforme se encontra consagrado artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

            “A estrutura acusatória do processo releva a importância da questão do objecto do processo, uma vez que o Tribunal só pode agir no pressuposto de uma acusação prévia cujo conteúdo intencional define o objecto de cognição e de decisão judiciais”[v]

            O despacho de acusação fixa assim o objecto do processo, o que impede a sua alteração pelo tribunal, quer em sede de instrução quer de julgamento, e ainda de recurso, para que a defesa não seja surpreendida por factos que dela não constem, assegurando o direito ao contraditório, essencial à defesa do arguido.

No entanto tal delimitação do objecto do processo não é incontornável uma vez que o mesmo pode ser alterado verificados que estejam os condicionalismos estabelecidos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.

A alteração em causa consubstancia-se no seguinte:

Os factos constantes na acusação, relativamente aos quais se considerou verificar-se alteração não substancial, foram, os que se encontram destacados:

    “ No dia 5 de Abril de 2012, cerca das 14.30 horas, o arguido, LA, encontrava-se na Praça de Alegria, nesta cidade e comarca de Lisboa, local onde habitualmente solicitava aos condutores algumas moedas em troca de os auxiliar a estacionar os seus veículos.

      A dado momento, o arguido abordou HS, a quem se dirigiu, dizendo que lhe entregasse as moedas que ia inserir no parquímetro, o que HS recusou.

    Na sequência, o arguido LA entrou em discussão com HS e logo empunhou o canivete de abertura lateral que trazia consigo no interior do bolso, apreendido e examinado a fls. 14 a 85 dos autos, com 10,5cm de comprimento de lâmina, pontiaguda, e um só gume, o qual espetou no tórax de HS, na zona pulmonar.

No Acórdão recorrido ficaram provados os seguintes factos:

C) O arguido entrou em discussão com HS e dirigiu-se na sua direcção dizendo “vais ver que vais dar a moeda”.

D) HS, para afastar o arguido de si, empurrou-o, fazendo-o cair no solo.

 E) Momentos após o arguido dirigiu-se ao veículo de HS e este agarrou o arguido pelos ombros para o afastar.

F) Acto contínuo o arguido empunhou o canivete de abertura lateral que trazia consigo, com 10,5 cm de comprimento de lâmina, pontiaguda, e um só gume, o qual espetou no tórax de HS, na zona pulmonar

H) HS agarrou o arguido pelo braço, continuando o arguido a dirigir o canivete na direcção do corpo de HS só não o voltando a atingir porque este resistiu. 

Para o caso em apreço haverá que ter em conta o disposto nos artigos 1º, nº 1, alínea f), 358º e 359º, todos do CPP.

Assim, no artigo 1º, nº 1, alínea f), define-se “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Por sua vez refere-se no artigo 358º, relativo à alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia:

            “1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente para a preparação da defesa.

2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3. O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”.

O artigo 359º reporta-se, por seu turno, à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e, após as alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, estabeleceu-se a distinção entre as consequências do apuramento de factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis.

Por outro lado, há que considerar também que, de acordo com o estabelecido no artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação (no caso sub judice a decisão instrutória não abrangeu o recorrente), fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º.

“A alteração substancial dos factos” significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa”, sendo que “pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.[vi]

Quanto à “alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.

E, não há alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação ou da pronúncia, quando os factos referidos se traduzem em meros factos concretizantes da actividade criminosa do arguido sem repercussões agravativas ou na estratégia da defesa do arguido.[vii]    

Mas, então, vejamos, se condenou a decisão revidenda o recorrente por factos diversos dos descritos na acusação.

Cotejando estes com os factos dados como provados no acórdão recorrido, e os inicialmente descritos na acusação e supra transcritos logo se conclui pela resposta negativa.

Com efeito da análise dos mesmos decorre que não se operou qualquer alteração do quadro factual da acusação quanto a elementos essenciais, não tendo os factos alterados relevância para alterar a qualificação jurídica ou para a determinação da moldura penal.

  Efectivamente, se os factos descritos na acusação tinham a virtualidade de integrar o crime de homicídio qualificado na forma tentada, os que foram dados como provados na decorrência do julgamento integram esse mesmo tipo de ilícito.

Na verdade, da simples leitura comparada dessas peças processuais resulta que o tribunal a quo se limitou a introduzir, na factualidade provada constante do acórdão, factos relativos às circunstâncias e modo como a conduta do arguido se desenrolou os quais porém não operaram qualquer alteração do quadro factual da acusação quanto a elementos essenciais, nem se mostraram relevante para alterar a qualificação jurídica ou para a determinação da moldura penal. Não houve quaisquer alterações relativamente aos factos consubstanciadores quer do dolo, ou da forma tentada do crime de homicídio quer das lesões e sequelas sofridas pelo ofendido.

Como supra se referiu a alteração não substancial dos factos é aquela que representando uma modificação dos factos usados ou constantes da pronuncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso nem a de penas aplicáveis.

No caso em apreço, os factos em causa no acórdão não tiveram como efeito a imputação ao recorrente de um crime diferente,[viii] nem de uma pena mais grave, pelo que forçoso será de conclui que andou bem o Tribunal “ a quo” quando considerou ocorrer uma alteração não substancial dos factos.

Ora, conforme resulta dos autos, e em cumprimento do estipulado no artº 358º ao recorrente foi-lhe dado conhecimento da alteração não substancial dos factos, e permite querendo requerer o tempo estritamente necessário para a sua defesa.

É um facto que conforme se afere da acta de fls 372 a 375 referente à audiência de discussão e julgamento de 20/12/12 o MºPº requereu a alteração dos factos, considerando-a não substancial. Dada a palavra à ilustre defensora que requereu que caso viesse a ser deferida tal alteração se procedesse de novo à inquirição das testemunhas ouvidas em julgamento, HS, TP e PD. O MºPº opôs-se a tal, inquirição, alegando a sua inutilidade uma vez que os factos em causa teriam provindo da sua inquirição. Em resposta a ilustre defensora sustentou então que não se estaria perante uma alteração não substancial dos factos, opondo-se a tal alteração e solicitando prazo para a defesa caso aquela viesse a ser aceite, nomeadamente para audição das testemunhas sobre os novos factos que viessem a ser admitidos.

Suspensa a audiência, a mesma teve continuidade no dia 11/01/13 aonde se procedeu à inquirição de uma testemunha arrolada pelo MºPº (DM, Inspector da PJ), tendo a final sido designado o dia 24/01/13 para leitura do Acórdão.

Nesta audiência, foi proferido despacho judicial exarado em acta (fls. 419 e 420), aonde se fez constar os factos resultantes das declarações prestadas pelas testemunhas HS, TP e PD, consignando-se que a factualidade descrita constituía uma alteração não substancial dos factos. Dada a palavra à ilustre defensora oficiosa esta, após referir que os factos que se tentavam introduzir nesta fase processual de julgamento já constavam do inquérito, não tendo o arguido sido acusado pelos mesmos, pelo que “não aceita a real alteração substancial dos factos ora promovida, nos termos do artº 359º do C.P.P., devendo quando muito os outros regressa a inquérito para análise em sede própria dos factos praticados e dos indícios recolhidos que constam da acusação de que o arguido poderá legalmente defender-se”.

Foi então proferido despacho judicial nos seguintes termos:

“O Tribunal já decidiu que se trata de uma alteração não substancial. Neste momento processual a defesa tem apenas o direito constante da parte final do nº 1 do artº 358º do C.P.P., independentemente do direito que lhe assiste de recorrer das decisões que lhe possam vir a ser desfavoráveis-Artigo 61º nº 1 al. i) do mesmo diploma legal.

Não tendo usado tal factualidade, já referida, passa-se à leitura do acórdão.

Notifique”

Procedeu-se de seguida à leitura do acórdão ora recorrido, após o qual se declarou encerrada a audiência.

Ora nada há a apontar à decisão tomada pelo Tribunal.

Com efeito, o Tribunal após ter exposto a nova factualidade, considerou-a como alteração não substancial.

     Ora perante tal, o recorrente quando muito poderia pedir prazo para a sua defesa, tendo optado por se pronunciar pronunciando-se, nos termos exarados em acta a fls. 420 e 421, de que “ ( …) A defesa não aceita a real alteração substancial dos factos ora promovida, nos termos do artigo 359º do CPP, devendo quando muito os autos regressar a inquérito para análise em sede própria dos factos praticados e dos indícios recolhidos que constarem da acusação de que o arguido poderá legalmente defender-se.”.

Ou seja, como se afere deste requerimento e aliás faz parte do objecto do recurso, é aquilo que a defesa considerou, foi que se estaria em presença de uma alteração substancial dos factos, caso em que, de acordo com o nº 3 do artº 359º, para que o julgamento pelos novos factos prossiga, e deles não decorra a incompetência do Tribunal, se torna necessário o acordo do MºPº, assistente e do arguido.

E daí a sua não autorização para a continuidade do julgamento.

E é dentro deste enquadramento que a defesa requer que os autos sejam remetidos para inquérito, uma vez que o nº 2 do artº 359º expressamente prevê tal situação quando não ocorrendo acordo os factos novos sejam autonomizáveis.

Só que o Tribunal, conforme se referiu, considerou tratar-se de uma alteração não substancial dos factos, pelo que nestes casos a opção dada pelo legislador ao arguido é a de querendo requerer prazo para a sua defesa.

Tendo ocorrido tal comunicação, o recorrente poderia ter requerido prazo para apresentação da sua defesa, e nomeadamente a inquirição das testemunhas arroladas e ouvidas já em audiência. Não o tendo feito, não pode vir agora invocar tal argumento.

Diga-se aliás que a audição das testemunhas requeridas aquando da promoção do MºPº referente à alteração não substancial dos factos, só poderia ter lugar como é óbvio, após a posição que o Tribunal viesse a adoptar perante o requerido por aquele magistrado. É que o Tribunal poderia considerar: não se estar perante qualquer alteração de factos (caso em que a inquirição se mostraria inútil); ocorrer uma alteração substancial de factos (ficando a apreciação da inquirição das testemunhas dependente do acordo para a continuidade do julgamento nos termos referidos) ou uma alteração não substancial dos factos (ficando a inquirição em causa, dependente de o arguido requerer prazo para a sua defesa, com a sua audição no âmbito desta e que tal pretensão fossa autorizada).

O recorrente, porém não reiterou tal audição, até porque esta terá obviamente ficado prejudicada quando, assumindo que se estaria perante uma alteração substancial de factos, se pôs à continuação do julgamento relativamente à nova factualidade que a audição daquelas no fundo serviria eventualmente para esclarecer.

Assim sendo, não se vislumbre da existência de qualquer nulidade e muito menos de violação do princípio do contraditório, uma vez que foi dada oportunamente possibilidade à defesa do arguido de se pronunciar sobra a alteração dos factos em causa, alteração esta que é não substancial,  não se vislumbrando como supra se referiu qualquer violação dos direito de defesa do recorrente, ou de norma constitucional

No que a estes se referem, apenas um reparo no sentido de que ao contrário do que o recorrente invoca, em processo penal é proibida a contradita de testemunhas.[ix]

Improcedem assim os argumentos invocados.

b) Do erro de julgamento dos factos provados descritos nas alíneas e), f) e g)

Em síntese o recorrente alega que da prova produzida resultam sérias dúvidas sobre a intenção do recorrente dar uma facada no ofendido HS, sendo de considerar que o recorrente desde sempre tentou fazer foi furar um dos pneus do veículo deste e que tendo-se envolvido fisicamente na queda o ofendido terá caído sobre a faca que o recorrente empunhava. Como tal dever-se-ia considera que o recorrente não empunhou o canivete para o espetar no tórax do ofendido, pelo que em lugar dos factos provados impugnados e descritos sob as alíneas e), f) e g) supra descritas, pretende que em seu lugar sejam considerados como provados os seguintes factos:

"(...) E. Momentos após o arguido dirigiu-se ao outro lado da rua para ir buscar um canivete que se encontrava nuns sacos próximo de outros veículos, tendo atravessado a rua em direcção à roda da frente direita do carro de HS

E.1 Quando já se encontrava agachado ao pé dessa roda, para provocar algum dos danos que tantas vezes avisara ser capaz de fazer, o Senhor HS agarrou o arguido pelos ombros para o afastar da viatura.

F. Acto contínuo ambos envolveram-se em nova luta física, e a proferir impropérios um ao outro. O arguido mantinha na não o canivete de abertura lateral que foi buscar aos sacos trazia consigo, com 10,5cm de comprimento de lâmina, pontiaguda, e um só gume, que estava a utilizar para furar o pneu do veiculo do Senhor HS. Quando ambos caem, o arguido fica no solo e o ofendido cai por cima deste.

G. Nessa altura o Senhor HS apercebe-se de uma facada que atingiu no precórdio. Segura nas mãos do arguido e depois levanta-se e corre para a estrada a pedir ajuda. O arguido levanta-se e tenta sair do local sendo interceptado pela polícia pouco tempo depois.".

Refere o recorrente que os factos assentes e dados como provados pelo Tribunal não encontram suporte na prova testemunhal produzida em julgamento, havendo sérias dúvidas na origem da “ facada”, não tendo o Tribunal valorado as declarações do arguido, não poderia ter ignorado as declarações contraditórias das testemunhas que sustentam a condenação verificada, nem a prova documental junta aos autos.

A apreciação da prova é regida pela regra geral contida no art. 127º do C.P.P., de acordo com a qual o tribunal – ressalvadas as excepções integradas no princípio da prova legal ou tarifada - forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência[x] comum e aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova ( cfr. arts. 32º nº 8 da C.R.P., 125º e 126º do C.P.P. ) e ao princípio “in dubio pro reo”.

Como é sabido, livre convicção[xi] não é sinónimo de apreciação meramente subjectiva, arbitrária, imotivável, mas tão só um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, e que sempre terá de se pautar pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, parâmetros estes que a fundamentação de facto terá de evidenciar terem sido observados.

Dentro dos limites apontados, o julgador perante o qual a prova é produzida -, e portanto em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica -, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da sua globalidade, os meios de que se serve para formar a sua convicção e de acordo com ela, fixar os factos provados e não provados. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[xii].

Decorrentemente, a impugnação eficiente da decisão proferida sobre a matéria de facto depende, para além da observância dos demais requisitos formais indicados nos nºs 3 e 4 do art. 412º do C.P.P., da especificação das concretas provas que ( no entender do recorrente ) impõem[xiii] decisão diversa da recorrida. “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.”[xiv]

Não basta, pois, sustentar que a leitura que o tribunal fez da prova produzida, sendo uma das possíveis, não é a mais adequada; é necessário demonstrar que a análise da prova à luz das regras da experiência ou a existência de provas irrefutáveis não consentiam tal leitura.

Ora, resulta à evidência das conclusões do recurso, e mais esclarecidamente ainda da sua motivação, que o ataque que o recorrente desfere à forma como o tribunal recorrido decidiu a matéria de facto não assenta na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida; ao invés, a discordância do recorrente centra-se na forma como foram valoradas as provas produzidas, insurgindo-se contra a não credibilidade que foi reconhecida ao seu depoimento e à valoração das circunstâncias em que rodearam a sua conduta, nomeadamente para o comportamento que o ofendido teria tido facto, e o envolvimento físico que ambos se envolveram, por se ter suspeitado que o recorrente iria danificar a viatura daquele, e que levou a que o ofendido caísse sobre a faca que o sobre o arguido empunhava.

Em passo algum afirma o recorrente que o tribunal a quo tenha percepcionado de forma incorrecta o sentido os depoimentos das testemunhas.

Pese embora a futilidade de uma argumentação deste jaez, não deixaremos de referir que, ouvida a gravação da prova, a convicção adquirida pelo tribunal a quo, aliás clara e suficientemente fundamentada, mostra-se adequadamente suportada pelos meios de prova - todos eles permitidos – que como relevantes e credíveis foram considerados na motivação, emergindo como perfeitamente plausível e conforme com as regras da experiência comum.

Com efeito, da leitura da matéria fáctica dada como provada e das passagens que o recorrente transcreve não há qualquer discrepância, tendo o Tribunal descrito a conduta daquele de modo consentâneo com as declarações prestadas não só no que se refere às circunstâncias em que o ilícito foi praticado, nos motivos da sua perpetração, mas também na atitude do recorrente no momento imediatamente após a ocorrência dos factos, relevando que o mesmo apresentou sentido crítico pela sua conduta e arrependimento.

Quer da audição da prova gravada quer da própria fundamentação da convicção do Tribunal nada existe, que imponha uma versão diferente daquela que foi colhida pelo Tribunal “ a quo”, sendo de referir que para além do ofendido HS e do arguido, apenas presenciaram os factos, as testemunhas TP e PD.

Antes do mais ressalta o modo como o arguido abordava os automobilistas para os convencer de que os parquímetros não estariam em funcionamento e para que lhe dessem uma moeda.

Com efeito resulta, não só nas declarações do próprio ofendido H... como da testemunha PD que o arguido não teria uma atitude passiva relativamente à gorjeta que no seu entender deveria receber por parte dos automobilistas. Para além das declarações do ofendido que classifica a atitude como de insultuosa e que o levou a envolver-se fisicamente com o arguido, o PD refere que perante o facto de lhe não dar uma moeda o arguido tornou-se um “bocadinho teimoso” levando a que se “chateasse “e lhe virasse as costas. Ou seja o arguido não aceitava de bom tom que não lhe dessem uma gorjeta, o que leva a admitir como perfeitamente possível, dentro das regras da experiência comum, que a resposta mais contundente do ofendido no sentido de que não só não lhe dava a moeda como iria utilizá-la na compra de um “ticket” para apor na viatura, tivesse despoletado uma reposta e atitudes mais violenta e agressiva.

É um facto que relativamente à testemunha TP, o arguido não terá tido tal atitude, porém tal não será de estranhar quando constatamos que esta testemunha ao contrário dos anteriores, e relativamente à gorjeta, não terá recusado dar a moeda ao arguido, tendo-lhe dito que “depois passaria por ali”.

Quanto ao envolvimento entre o ofendido e o arguido, dúvidas não existem que as mesmas foram originadas pela atitude do arguido.

É esclarecedor o depoimento da testemunha TP que refere que perante a recusa por parte do ofendido HS em dar-lhe a gorjeta, o arguido teria começado a “exaltar-se” pedindo-lhe dinheiro e a tomar atitudes agressivas que levaram a que o ofendido o empurrasse e caíssem ambos para o chão, versão esta que é no mesmo sentido da prestada pela testemunha PD que referiu ter o arguido começado com injurias relativamente à pessoa do ofendido.

Foi neste quadro que estas testemunhas intervieram e separaram o ofendido e o arguido, não podendo como é óbvio pretender retira qualquer conclusão sobre eventual menor correcção da conduta por parte do ofendido pelo facto de lhe terem tido que não valeria a pena envolver-se pelo motivo em causa.

Refere o recorrente que só o ofendido é que ouviu as ameaças de morte por parte do arguido, quando o que as testemunhas ouviram foi apenas que a ameaça de que iria danificar o carro todo.

Antes do mais convirá referir que não estando em causa o crime de ameaças (arquivado pelo MºPº por não existir queixa), nem o crime de dano, tais factos não serão relevantes para o caso.

Diga-se ainda que para a prática de um ilícito, não é necessário como é óbvio ao anuncio da sua realização. Quer isto dizer, que não é por o arguido ameaçar que iria danificar o carro que se pode concluir ser essa a sua intenção, como pelo facto de nada ter dito quanto à intenção de agredir o ofendido com uma faca, não iria por esta em prática.

Aliás sobre a questão em, apreço, note-se que o depoimento das testemunhas TP e PD não são redutores às ameaças ao carro por parte do arguido, pois ambas referem não só atitudes agressivas (depoimento do T) como injúrias (depoimento do P) por parte do arguido, sendo que as mesmas não assistiram à totalidade da troca de palavras que ocorreram entre o ofendido e o arguido nas duas ocasiões..

Por outro lado, o depoimento da testemunha PD é, e ao contrário do que pretende o recorrente perfeitamente esclarecedor quanto ao modo como o arguido agrediu o ofendido com a faca que empunhava.

Com efeito esta testemunha descreve com clareza que o arguido se encontrava agachado junto à roda do carro do ofendido, quando esta se aproximou e o agarrou pelos ombros. Aí, o arguido levantou-se, virando-se de frente para o ofendido e com o seu braço direito desferiu aquilo que à testemunha lhe apareceu um “soco mal dado”, atingindo o tronco junto ao sovaco do ofendido. Que mais tarde ao verificar que o arguido tinha na sua mão direita uma faca é que aliou tal movimento a uma facada. E aqui, diga-se de passagem, a testemunha foi plenamente credível quanto ao modo como interpretou tal movimento, esclarecendo que tal movimento não foi originado por qualquer outro motivo que não o de o arguido pretender efectivamente atingir o ofendido.

Aliás a nosso ver, é esclarecedor a expressão utilizada pelas testemunhas de “um soco mal dado”, já que o movimento que observara não seria de agressão físico com o punho, mas sim o derivado de alguém que empunhava uma faca.

Atento o depoimento conjugado nos autos das testemunhas T e P não levanta dúvidas que o arguido empunhava a faca aprendida nos autos, e atento o exame de fls 14, bem como os documentos clínicos juntos aos autos, forçoso será de concluir que o “arguido empunhou o canivete de abertura lateral que trazia consigo, apreendido e examinado a fls. 14 e 85 dos autos com 10,5 cm de cumprimento de lâmina, pontiaguda, de um só gume, o qual espetou no tórax de HS na zona pulmonar.”

Veja-se que para além do ofendido ter confirmado que o arguido empunhava uma faca, a testemunha TP refere que ouviu o ofendido a gritar por socorro, e que levou uma facada, e chegando junto daquele, constata que aquele estava a sangrar vendo então o arguido a tentar passar para o outro lado do carro, a descer com uma faca na mão que depois a atira para debaixo de uma viatura.

   De igual modo a testemunha PD refere que quando o ofendido e o arguido se levantaram do chão, aquele estava a sangrar e que o arguido tinha de facto uma faca na mão, passando à sua frente com ela e que embora não se recordando do cabo, “era uma coisa castanha”, o que confere com o tipo de facto apreendida e fotografada a fls. 52.

Por outro lado, e relativamente à facada, não vemos qualquer contradição no depoimento prestado pela testemunha PD e os relatórios médicos que fundamentasse qualquer dúvida por parte do Tribunal.

Antes de tudo haverá que ter em atenção que a testemunha estaria a uma distância de cerda de 10 a 15 metros do local aonde o ofendido e o arguido se teriam envolvidos pela última vez.

Acresce que dado o facto de se encontrarem em movimento, a testemunha apenas pode como é óbvio ter uma percepção aproximada do local aonde o ofendido é atingido. Ora do depoimento resulta que a testemunha percepcionou que o golpe teria atingido um “bocadinho” abaixo do ombro, na zona do sovaco.

Por outro lado a testemunha OM, médico cirurgião que estando de urgência no Hospital de S. José, assistiu ao ofendido, conduzindo-o de imediato ao bloco operatório, referiu  que a ferida atravessa o lobo inferior do pulmão tendo ocorrido uma lesão da artéria pulmonar.

Conjugado este depoimento com o relato cirúrgico de fls 7 aonde se refere ter o ofendido sofrido “ferida penetrante pulmonar no lobo inferior esquerdo”, não se vê qualquer contradição relativamente à zona em que a testemunha diz ter o ofendido sido atingido. Esta zona situa-se no lado esquerdo do tórax, e ao nível do pre-córdio, ou seja na zona do corpo sobre o coração situada na face inferior do esterno. Ao contrário do que o recorrente pretende, não se constata em parte alguma dos autos que a facada tenha sido frontal, mas sim do lado esquerdo, e próxima como tal da zona do coração.

Relativamente às lesões que o arguido teria sofrido e descritas no relatório clínico de fls. 80 a 82 haverá que ter em conta o seguinte: em 1º lugar foi ordenado pelo MºP o arquivamento dos autos relativamente ao eventual crime de ofensa à integridade física praticado pelo ofendido, na pessoa do arguido; em 2º lugar e conforme resulta da prova produzida a existência daquelas não se revela importantes para a apreciação da causa, uma vez que a possibilidade de a agressão sofrida pelo ofendida ter sido casual e em consequência daqueles não teve qualquer fundamento ou credibilidade; por último é de notar que na conclusão do referido exame se refere que as lesões nele descritas não são compatíveis com a informação, ou seja com as agressões que o arguido teria comunicado.

Em suma, a prova produzida em audiência não impõe decisão diversa da recorrida, inexistindo fundamento para proceder à pretendida alteração da matéria de facto provada; ao invés, a convicção formada pelos julgadores - porque possível, plausível ( aliás, a mais plausível ), conforme com as regras da experiência comum e assente em provas não proibidas por lei – tem de se considerar validamente formada ao abrigo do disposto no art. 127º do C.P.P., sendo, por isso, inatacável.

Cumpre, enfim, referir que no caso não tem qualquer cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo.

    Este princípio é uma emanação do princípio da presunção de inocência e surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se a final persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de violação do in dubio pro reo. Ora, relativamente aos factos descritos nos pontos em análise, os julgadores não se defrontaram com dúvidas que tivesse resolvido contra a recorrente, nem demonstraram qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, nada impunha que a devesse ter tido. Não se verificou, pois, qualquer violação do aludido princípio.

Assim sendo é manifesta a improcedência do recurso, nesta parte.

c) Da fixação da medida da pena

Insurge-se o recorrente quanto à pena aplicada, alegando ter o Tribunal a quo violado os artigos 40° e 71° n° 2 alínea d) do Código Penal, ao não ponderar as condições pessoais do arguido nem a importância futura da sua reintegração social futura.

O recorrente suscita ainda a questão de o acórdão revelar incongruências e contradições quer quanto à punibilidade dos ilícitos em apreço quer quanto à moldura penal abstracta que foram tidas em conta.

No que a esta última questão se refere o recorrente realça que quando no acórdão se aborda a determinação da medida da pena, refere-se que nos termos do artº 86º nº 3 da lei das armas a detenção de arma proibida agravaria a moldura penal do crime de homicídio, não sendo aquela punida autonomamente, verificando-se porém que sem qualquer fundamento, este ilícito afinal foi punido com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Por sua vez, ao fundamentar o cúmulo das penas aplicadas aos crimes de homicídio tentado e detenção de arma proibida, o Tribunal a quo refere que havendo lugar a uma pena única, nos termos do artº 77º nº 1 do C.P., cujo limite mínimo, nos termos do nº 2 do mesmo preceito será de quatro anos e nove meses de prisão e máximo de cinco anos e três meses de prisão, em conformidade com o art.° 77 n.° 2 CP, conclui pela aplicação de uma pena única de 10 anos de prisão, ou seja bem superior ao limite máximo que teve em conta.

Comecemos por apreciar esta última questão, sendo de realçar desde já que o recorrente tem razão, conforme se afere das passagens da decisão recorrida que de seguida se transcrevem:

"Sucede, porém, que nos termos do disposto pelo referido art.° 86.° n.° 3 a utilização de uma arma no cometimento de crime tem como efeito a agravação da moldura penal do crime de um terço nos seus limites máximo e mínimo e não a punição autónoma do crime de detenção de arma proibida". (fls. 11 e 12 do acórdão e referente ao crime de detenção de arma proibida.)

"Os crimes pelos quais o arguido é condenado nestes autos encontram-se numa relação de concurso — art.° 77.° n.° 1 do CP, pelo que há lugar à aplicação de uma pena única, tendo como limite mínimo a pena de quatro anos e nove meses de prisão e máximo de cinco anos e três meses de prisão, em conformidade com o art.° 77 n.° 2 CP" fls. 15, 1º parágrafo relativo ao concurso de penas

"Tomando em consideração o conjunto dos factos praticados e a personalidade do arguido, já aludidos supra e para os quais se remete, numa ponderação global dos referidos factores, considera-se adequada a pena única de 10 (dez) anos de prisão."(fls. 15 3º parágrafo)

e

"Pelo exposto, acordam em:

8.1 Condenar o arguido LA na pena de 9 (nove) anos e 6 meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas nos artigos 22°, 23°, 73°, 131°, e 132° n.° 1 e 2 al. e), todos do Código Penal na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão

8.2 Condenar o mesmo arguido na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses e prisão pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86° n.° 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23.2, na redacção introduzida pela Lei 17/2009, de 6 de Maio

8.3 Em cúmulo Jurídico de penas, condenar o arguido na pena única de 10 (dez) anos de prisão — art.º 77º CP"( fls. 16 referente ao Dispositivo)

É o seguinte o texto do nº 3 do artº 86º da Lei da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei 17/2009, de 6 de Maio, vulgo Lei das Armas:

«As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

E, em complemento, estabelece-se no nº 4:

«Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».

Como se diz no nº 3, a agravação aí prevista só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no artº 131º do CP. Pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da alínea h) do nº 2 do artº 132º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto a agravação do nº 3 do artº 86º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do artº 132º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime; aqui não.

O nº 3 do artº 86º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do artº 86º, nº 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação.

Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, como se disse, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artº 132º.

Não há, assim, fundamento para afastar a agravação daquele artº 86º, nº 3.

Na situação sub specie o homicídio é qualificado por verificação da circunstância prevista na alínea e) do nº2 do artigo 132º do C.Penal, na justa medida em que o Tribunal viu, na factualidade comprovada, circunstâncias reveladoras de uma especial censurabilidade ou perversidade.

Não vinha o recorrente acusado com referência à circunstância prevista na alínea h) daquele mesmo item 2, (meio particularmente perigoso) nem de todo o modo o tribunal, no concreto circunstancialismo da prática dos factos, encontrou fundamento para poder concluir (juízo de facto) pela verificação de uma especial censurabilidade ou perversidade.

No tipo do crime, assim definido, não foi considerado o recurso à arma de fogo como seu elemento constitutivo.

Resulta, então, que sobre o homicídio qualificado tentado deverá incidir a circunstância modificativa de carácter agravativo definida no nº 3 do artigo 86º do RJAM.

A pena aplicável ao crime de homicídio qualificado – art.º 132º do C. Penal – é de 12 a 16 anos de prisão.

Tal pena é agravada em 1/3 nos seus limites mínimo e máximo, por o crime em causa ter sido cometido com arma de fogo – art. 86º, 3, da lei 5/2006, com as alterações da Lei 17/2009, de 6/5.

Assim, a moldura abstracta do crime passa a ser de 16 a 25 anos de prisão

A tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada (art. 23º, n.º 2 do C. Penal) pelo que, nos termos do art. 73º, 1 do C. Penal, o limite máximo da pena será então reduzido de 1/3 e o mínimo a 1/5.

Deste modo, a moldura penal abstracta situa-se entre um mínimo de 3 anos e 2 meses (1/5 de 16 anos) e um máximo de 16 anos, e 9 meses (2/3 de 25 anos).

Posto isto, haverá que reconhecer que não andou bem o Tribunal “ a quo” quanto à fixação da moldura penal abstracta da pena aplicada ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, nem na afirmação da não punibilidade do crime de detenção de arma proibida. Note-se que relativamente a este último afigura-se-nos que poderá ter havido lapso ao inserir tal afirmação, uma vez que, ressalta do restante da decisão recorrida que o Tribunal “ a quo” nunca pôs em dúvida a punibilidade de tal ilícito como aliás o veio a fazer.

Passemos pois a apreciar a medida da pena aplicada aos ilícitos em causa.

De acordo com o disposto nos nºs 1 e 2 do art. 40º do C. Penal, as penas têm como finalidade a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a medida da pena ultrapassar a medida da culpa.

Em consonância com esta norma, o nº 1 do art. 71º do C. Penal estabelece que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, operação na qual, e de acordo com o nº 2 do mesmo preceito, o tribunal terá de atender àquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

O equilíbrio desejável entre as finalidades relativas à prevenção geral e à prevenção especial não obsta a que, perante as especificidades do caso concreto, uma dessas finalidades haja de prevalecer sobre a outra.

Relativamente ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, a decisão recorrida partindo de uma moldura penal abstracta incorrecta (2 anos e 4 meses a 16 anos e 8 meses) entendeu adequada a pena de 9 anos de prisão, e 6 meses ponderando, em especial, as seguintes circunstâncias:

-  grau de ilicitude do facto típico, que situou num nível acima do médio, tendo em conta, desde logo que o arguido demonstrou forte energia criminosa - artº 71º, nº 2, al.a) do C.P.

- intensidade do dolo, tendo o arguido agido com dolo directo quanto ao crime de homicídio – artº 71º, nº2, al. b) do C.P.

-os antecedentes criminais, embora os bens jurídicos atingidos sejam diferentes - artº 71,nº2, al.e).

- a sua situação económica débil do arguido é débil

-  a sua condição familiar e social – artº 71º, nº2, al. d) do C.P.

Tudo ponderado, e tendo em atenção a moldura penal abstracta aplicada ao caso julgamos adequada escolha da medida concreta da pena.

Na verdade, as circunstâncias favoráveis ao arguido são pouco significativas, os sentimentos expressos após a agressão, abandonado o local, adoptando um quadro desculpante em audiência de julgamento, sendo não houve que acções concretas que demonstrem arrependimento, e revelando os antecedentes criminais um longo percurso delinquencial, tendo sido condenado em várias penas de prisão suspensas e efectivas, por crimes de furto, roubo e de tráfico de estupefacientes entre outras, demonstrando ter uma personalidade distanciada dos valores mais elementares, o que leva, a que as necessidades de prevenção especial sejam elevadíssimas.

Por outro lado, não podemos ignorar que a primeira finalidade da punição, como decorre do art. 40º, 1 do C. Penal, é a “protecção de bens jurídicos”.

O direito penal protege os bens jurídicos, impondo aos cidadãos em geral que não ofendam tais bens, através da ameaça de sanções. Desse modo, cria na comunidade a expectativa de uma sociedade onde o crime é punido, onde não vale a pena cometer crimes. Esta expectativa de vigência do Direito Penal (prevenção geral positiva) é cimentada com a punição efectiva dos crimes que atentam contra os bens jurídicos penalmente mais relevantes, como é o caso do direito à vida.

O sentimento geral da sociedade, de expectativa de que não haja crimes contra a vida, só é conseguido com uma reacção punitiva séria e efectiva que não redunde num sentimento geral de impunidade “de facto”.

Assim, tudo ponderado (ilicitude do facto, culpa do agente e razões de prevenção geral positiva), as necessidades de prevenção geral, impõem a meu ver, a aplicação de uma pena severa, apenas atenuada pela inexistência de sequelas resultante da agressão do arguido pelo que a medida da pena deverá situar-se acima da média, consideramos justa e ponderada a pena de 9 anos e 6 meses aplicada ao arguido.

Deste modo, nada há a censurar à decisão recorrida.

Relativamente ao uso da arma proibida nos termos do art. 86º, 1, d) da Lei 5/2006, de 23/2, o crime de detenção de arma proibida é punido com uma pena de prisão até 4 anos ou multa até 480 dias.

O arguido, para além de deter a arma, usou-a para a prática de um crime, o que torna o facto ilícito substancialmente mais gravoso.

A mera detenção da arma com as características da que foi usada, já é punida por lei pelo perigo que representa; quando esse perigo se concretiza através do seu uso, a ilicitude é bem mais gravosa, justificando claramente a opção pela pena de prisão, em detrimento da multa, como fez a decisão recorrida.

Sendo ajustada a opção pela pena de prisão, e perante o quadro factual em que ocorreu a utilização da arma, consideramos adequada e justa uma pena claramente superior ao limite mínimo, e mais próxima ao termo médio pelo que não reparos a fazer quanto à pena de 1 ano e 9 meses de prisão aplicada na decisão recorrida.

Nos termos do disposto no art. 77º, do Código Penal, há que efectuar o cúmulo jurídico destas penas, pois verificam-se os pressupostos de aplicação deste regime de punição, que consistem em o agente ter praticado vários crimes antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles.

Tendo presentes as penas parcelares acima mencionadas, a moldura penal do concurso será a seguinte:

- Limite máximo 9 anos e 6 meses de prisão.

- Limite mínimo: 1 ano e 9 meses de prisão.

Dentro desta moldura há que determinar a pena única, para o que serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, conforme o previsto no art. 77º, nº1, 2ª parte, do Código Penal.

Considerando estes factores, e tendo presente que na determinação da pena relevará também a análise do efeito previsível que aquela terá sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de ressocialização), julgamos adequada e equilibrada a pena única de 10 anos de prisão, aplicada pelo Tribunal “ a quo”.


*

III DECISÃO

Por todo o exposto os Juízes desta Relação, julgam improcedente o recurso e, em consequência, pelos fundamentos e nos termos supra expostos mantêm a decisão recorrida.

O recorrente pagará 2 UCs de taxa de justiça.

(processado por computador e revisto pelo 1º signatário)

Lisboa,  22 de Maio de 2012

 Vasco Freitas

    Rui Gonçalves


[i] Vide Carlos Matias, revista “Sub Judice”, nº 4, pag. 148;
[ii] José IM Rainho, Revista do CEJ, 2006, nº4, pag 146 e ss. “Decisão Da Matéria De Facto Exame Crítico Das Provas”
[iii] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335  e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[iv]  Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[v] CPP Anotado de Manuel Simas Santos e Leal-Henriques, 2ª Edição, pag.412
[vi] Ac. do STJ de 21/03/07, Proc.nº 07P024, in em www.dgsi.pt, e de 07/10/92, proc. nº 42891
[vii] Neste sentido Ac. R. do Porto de 07/02/01, Proc. nº 0011271 e Ac. R. de Coimbra de 21/04/2010, Proc. nº 51/06.1TAFZZ.C1,
[viii] Não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo, o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime) desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário “-Comentário ao CPP de Paulo Albuquerque, 2ª Edição, pag. 39
[ix] Vide Ac.STJ de 28/02/96 in CJ, Acs STJ, IV, 1, 213, Acs TRL de 18/10/94 in CJ, XIX, 4 143, e de 04/06/2003 in CJ, XXVIII, 3, 137 e Ac TRE de 27/11/2001 in CJ, XXVI, 5, 281
[x] As regras da experiência são “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.” - cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, vol. II , pág. 300.
[xi] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr.  Idem, Ibidem, pág.298.
[xii]“(…)há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” Ac. RG 20/3/06, proc. nº 245/06-1.

[xiii] “Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” - Ac. STJ 17/2/05, proc. nº 04P4324
[xiv] cfr. Ac. T.C. nº 198/2004 de 24/3/04, DR II s. de 2/6/04.