Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1320/17.0YRLSB-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: ÁRBITRO
ISENÇÃO E/OU IMPARCIALIDADE
RECUSA DE ÁRBITRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.– O facto do árbitro ter um pensamento sobre determinadas questões
não acarreta, por si só, falta de isenção ou imparcialidade

2.– Em domínios de grande especialização, as nomeações de determinados
árbitros, pode tornar-se habitual, sem que a imparcialidade e
independência sejam afetadas.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


MD demandou, nos autos de acção arbitral necessária, AC com fundamento nos direitos de propriedade industrial de que é titular e a comercialização de medicamentos genéricos contendo Fosaprepitant para os quais a AC requereu uma autorização de introdução no mercado (AIM), ex vi arts. 14/3, 59/1 b) da Lei 63/2011 de 14/12.

Em 9/5/17, como consta da acta de instalação, o Tribunal Arbitral ficou constituído pelos Srs. Árbitros PN (árbitro indicada pela requerente), PR (árbitro indicado pela requerida Accord) e R...M... (árbitro presidente convidado pelos demais), tendo os Srs. árbitros anexado as respectivas declarações de independência e imparcialidade.

Na declaração de independência e imparcialidade, subscrita pelo Árbitro indicado pela requerida, foi mencionado que exerceu, anteriormente, funções idênticas em outras arbitragens respeitantes a litígios entre titulares de patentes relativas a produtos farmacêuticos e fabricantes/importadores de medicamentos genéricos, por designação das entidades demandadas mas também pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência da entrada em vigor da Lei 62/2011 de 12/12, exerceu funções de Juiz – árbitro indicado pela demandada (uma vez), relativamente a outra patente, certificado complementar de protecção e outra substância activa, exerce, neste momento, funções, como Juiz – árbitro em 5 processos arbitrais respeitantes a titulares de patentes sobre produtos farmacêuticos e fabricantes/importadores de medicamentos genéricos, indicado por outras demandadas, desconhece quaisquer circunstâncias susceptíveis de fundarem dúvidas sobre a sua independência e imparcialidade – cfr. doc. de fls. 42 (datado de 26/4/17).

Por requerimento, de 15/5/17, a requerente suscitou o incidente de recusa de árbitro relativamente ao Sr. Professor Doutor R... M..., neste processo arbitral, tendo solicitado um conjunto de esclarecimentos adicionais, com fundamento na obra publicada e sucessivas nomeações como árbitro, concluindo pela sua destituição – fls. 56 e sgs. aqui dado por reproduzido.

Foi apresentada resposta pelo Sr. Árbitro na qual, não só prestou os esclarecimentos solicitados, como também efectuou algumas observações sobre as questões colocadas pela requerente, concluindo serem infundadas as dúvidas suscitadas relativamente à sua independência e imparcialidade – doc. de fls. 83 e sgs. aqui dado por reproduzido.

O Tribunal Arbitral, em 28/6/2017, julgou, por maioria (voto de vencido por parte do Sr. Árbitro indicado pela requerente) improcedente o pedido de recusa por inexistência de fundamento para a mesma – fls. 169 e sgs., aqui dadas por reproduzidas.

Dessa decisão suscitou a requerente, junto deste Tribunal da Relação, a recusa do árbitro Sr. R...M..., alegando em suma que:

A requerida AC nomeou como árbitro o Sr. R...M... que aceitou a nomeação.

Aquando da instalação do Tribunal Arbitral, 9/5/17, foram designados como árbitro Presidente o Exmo. Sr. Prof. R...M..., como árbitro designado pela requerente o Exmo. PM de Nápoles e pela requerida, o R...M..., tendo estes aceite as funções de forma independente e imparcial, anexando as declarações de independência e imparcialidade.

Posteriormente, em 15/5/17, a requerente requereu, por dúvidas sobre a isenção de imparcialidade, a recusa do árbitro da requerida.

Os esclarecimentos prestados pelo Sr. Árbitro não afastaram as dúvidas suscitadas.

O Sr. Prof. Dr. é autor de várias obras e artigos científicos nos quais manifesta uma radical oposição não só em relação às posições jurídicas geralmente defendidas pelos titulares de patentes farmacêuticas, mas também relativamente às práticas de defesa desses direitos que as mesmas adoptavam, nomeadamente, pela via judicial, revelando um antagonismo exacerbado e uma crítica acérrima em relação às empresas farmacêuticas em benefício das genéricas.

Neles não esconde as suas preferências pelos medicamentos genéricos e empresas que os comercializam, propondo soluções legislativas com vista a cortar as “manobras” das empresas de medicamentos de referência que as prejudicavam.

A forma redutora como o Sr. R...M... sempre viu as iniciativas tomadas pelas empresas titulares das patentes com vista à defesa dos seus direitos e o cariz marcadamente ideológico das posições que sempre assumiu, vieram a revelar-se, no entender da requerente, um inultrapassável impedimento a que o mesmo pudesse participar no julgamento das acções arbitrais de forma distanciada e imparcial, por muito boa vontade que tivesse de que tal ocorresse.

E nas acções, em que interveio, tomou reiterada e invariavelmente posições, em determinados temas de clássica e habitual discussão, diametralmente opostas às posições das
empresas titulares dos direitos de propriedade industrial, demandantes nas mesmas, lavrando voto de vencido.

Dos esclarecimentos prestados não resultou claro em quantas dessas arbitragens houve lugar à prolação da decisão sobre o mérito da causa, com uma efectiva análise sobre a infracção dos direitos de propriedade industrial em causa, em que a infracção tenha sido julgada provada e tenha sido deduzido voto de vencido pelo árbitro designado pela parte vencida ou em quantos lavrou voto de vencido.

Ora, estas circunstâncias aliadas às demais, revelam que o Árbitro visado tem um impedimento subjectivo de natureza intelectual, tornando particularmente difícil participar no julgamento das acções arbitrais de forma distanciada e imparcial, por muita vontade e intenção que tenha.

Não obstante o Árbitro em causa não tenha tomado posições relativamente a este processo, certo é que ao ter tomado publicamente posições sobre questões como as mencionadas, equivale a pronúncia no caso concreto.

O Sr. Árbitro pronunciou-se publicamente, nas obras e artigos publicados, defendendo a competência do tribunal Arbitral para conhece da validade de direitos da propriedade industrial em sede de defesa por excepção, com efeitos inter-partes, em favor da tese das empresas de medicamentos genéricos, é contrário ao pedido de condenação das demandadas numa sanção pecuniária compulsória e quanto à possibilidade de proibição a transmissão das autorizações de introdução no mercado de medicamentos genéricos.

Ora, face à posição, reduzida a escrito, do Sr. Árbitro, a requerente já sabe, de antemão, a sua decisão relativamente às questões potencialmente irão ser colocadas aos Srs. Árbitros.

Apesar de não defender que a nomeação repetida de um árbitro possa suscitar dúvidas sobre a independência e imparcialidade, não se descarta o pensamento de que, tal como defendido pela X, de que a repetição constitui fundamento suficiente para que se suscitem dúvidas quanto àquele.

Na verdade, o Sr. Árbitro já foi nomeado 18 vezes, nos últimos 3 anos, para exercer as funções de Juiz - árbitro, pela mesma sociedade de advogados, X), ora requerida.

Concluiu que, estando preenchidos os pressupostos de recusa (arts. 12/1 Regulamento de 2014 e 13/3 LAV) o Sr. Árbitro deve ser destituído, nomeando-se outro que não levante, aos olhos da requerente, dúvidas quanto à sua imparcialidade.

Foram dispensados os vistos.

A questão a decidir consiste em saber se há ou não lugar à recusa do Árbitro indicado pela demandada AC– Exmo. Sr. Professor Doutor R...M... com fundamento na obra publicada e posições assumidas publicamente, bem como na repetição de nomeações para exercer as funções de Juiz – árbitro.

Vejamos, então.
 
Decorre do auto de instalação do Tribunal Arbitral que à arbitragem em causa são aplicáveis as regras específicas da arbitragem constantes do acto de instalação do Tribunal Arbitral (Lei 62/2011 de 12/12), o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (em vigor, desde 1/3/14) e, subsidiariamente, a Lei de Arbitragem Voluntária (Lei 63/2011 de 14/12).

Tendo em atenção o preceituado no art. 14/2 LAV (15 dias), decisão proferida pelo Tribunal Arbitral (28/6/17) e a data de entrada do pedido (19/7/17), o pedido de recusa é tempestivo.

É consensual, o entendimento de que os tribunais arbitrais são verdadeiros e próprios tribunais, constituindo uma categoria autónoma destes (art. 209 CRP), sendo um meio de concretização do direito fundamental do acesso à justiça (art. 20 CRP), não como consequência de uma renúncia, ainda que necessária, à tutela judicial, mas antes como meio alternativo de a obter, desde que seja respeitada a reserva de jurisdição constitucionalmente consagrada (há domínios que estão reservados à jurisdição dos tribunais estaduais) e se garantam as características inerentes ao conceito de tribunal: a independência, imparcialidade e o julgamento segundo processo equitativo – cfr. Acs. TC 203/2013 de 24/4/2013, 781/13 de 20/11/2013, 123/2015 de 12/2/2015, 108/2016 de 24/2/2016 e Ac. STJ de 12/7/2011, Ac. TC nº 256, in D.R. 187, IIª série, 26/11/2012.

A independência traduz-se no facto do juiz se encontrar exclusivamente sujeito à lei (ou equidade) insusceptível de subordinação a ordens ou instruções (externas ou internas à ordem judicial), a eficácia da decisão proferida não está/fica sujeita a acto exterior ao tribunal (não pode ser impedida, modificada ou anulada por acto externo à ordem judicial) e um regime legal que não permite o exercício de qualquer pressão sobre o juiz.

A imparcialidade pressupõe a composição de interesses, ou seja, o juiz deve compor interesses alheios, sendo o seu único escopo o de buscar uma solução correcta, na qual a predeterminação ou preconceito estão arredados.

Na aferição da independência e da imparcialidade a aparência pode desempenhar um papel importante na medida em que os atributos se devem considerar comprometidos quando as concretas circunstâncias envolventes sejam de modo a, segundo o ponto de vista, do observador objectivo, criar um justificado receio de falta de independência e imparcialidade.

Não obstante a independência e imparcialidade dos tribunais, estas devem ter-se por presumidas até prova em contrário - cfr.     Acs. RL, de 13/9/16, relator Rijo Ferreira e de 3/10/17, relatora Maria Amélia Ribeiro, in www.dgsi.pt. e apelação 1093/17.7YRLSB, relatora Catarina Arêlo Manso.

Sobre o árbitro, enquanto investido de pode jurisdicional é imposta uma particular responsabilidade social e deontológica.

Corolário dos princípios de imparcialidade e independência dos juízes/árbitros (cfr. art. 9 LAV) é o denominado dever de revelação que sobre eles impende – cfr. 13 LAV.

O dever de revelação implica a consideração, na perspectiva das partes de todos os factos e circunstâncias que possam suscitar dúvidas fundadas quanto à independência e imparcialidade.

A nível internacional relevam particularmente as directivas do Conseil Consultive des Barreaux de la Comunauté Europeénne/Código de Deontologia e as Regras de Ética da IBA/International Bar Association, relativas a Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional, aprovadas, em 22/5/2004, pelo Conselho Internacional da Bar Association e revistas, em 23/10/2014, in www.ibanet.org e Google.

As Directrizes da IBA (IBA Guidelines) estabelecem, em anexo 3 listas (Vermelha, Laranja e Verde, consoante a maior ou menor gravidade), descrevendo as circunstâncias concretas que devem ser objecto de atenção por parte do árbitro e das partes no que concerne a situações que revelem conflitos de interesses ou que possam suscitar dúvidas razoáveis sobre a imparcialidade e independência dos árbitros.

A nível nacional de realçar, não só a legislação indicada supra, mas também o Código Deontológico do Árbitro, aprovado em 11/4/14, pela Associação Portuguesa de Arbitragem que, no seu    art. 3, alude ao princípios de independência e imparcialidade, in www.caad.pt.

Um dos fundamentos em que se alicerça a recusa consiste na obra e artigos científicos publicados pelo Sr. Árbitro que, no entender da requerente, expressam posições contrárias às defendidas pelas sociedades farmacêuticas, susceptíveis de originar fundadas dúvidas sobre a sua independência e imparcialidade, em consonância com a IBA Guidelines (Laranja).

Ora, as obras e artigos científicos publicados pelo Sr. R...M..., não dizem respeito a esta arbitragem, sendo, de todo, omissa a factualidade aqui em questão, não respeitam a outras arbitragens em que também assumiu a posição de Juiz - árbitro, mas sim, à sua actividade académica enquanto Professor Universitário.

Tal como mencionado na decisão de recusa proferida pelo Tribunal Arbitral, “a concretização de um dos objectivos precípuos da arbitragem num domínio altamente especializado, seria inviabilizado porquanto, os especialistas nestas matérias, estariam arredados das arbitragens que versam justamente sobre uma das temáticas centrais que elegeram para a sua investigação.

Num domínio altamente especializado, inevitavelmente, tais árbitros, verdadeiramente especialistas, já terão reflectido e expresso a sua reflexão sobre questões de direito recorrentes nesta matéria,  nomeadamente, sanção pecuniária compulsória, transmissão de AIM, admissibilidade de defesa por excepção através da invocação da invalidade da patente, etc”.

“A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas; uma das situações susceptível de gerar suspeita relevante decorre de contingências de relação com algum ou alguns dos interessados, as quais consoante a intensidade da relação existente, podem justificar a escusa com fundamento de afectação da imparcialidade objectiva – cfr. Ac. STJ de 8/1/2015, in www.dgsi.pt.

Acresce, que pelo facto de cada árbitro ter um pensamento sobre determinada questão não acarreta, por si só, falta de isenção ou imparcialidade.

Destarte, soçobra a pretensão de recusa do Sr. Professor Doutor R... M... como Árbitro, com fundamento na obra e artigos científicos publicados.

Sustenta a requerente como fundamento de recusa o facto do Sr. Prof. Doutor ter sido nomeado, bastas vezes, para exercer as funções de árbitro, em Tribunais Arbitrais e, em grande parte deles ter sido indicado pela mesma Sociedade de Advogados, a saber a X, sendo que esta tem suscitado incidentes de escusa relativamente a outros árbitros com base neste fundamento (3.1.3 e 3.1.5 Guidelines – Laranja).

Tal como referido pelo Sr. Professor Doutor, foi indicado pela Sociedade de Advogados, onze vezes, nos últimos 3 anos.

Não obstante, tal como referido pelo Tribunal Arbitral, esta circunstância, por si só, não constitui motivo de recusa.

Na verdade, em determinadas áreas de especialização, como é o caso, restrito é o número de especialistas na área.

A especialização em determinada área não pode, nem se subsume a uma manifestação de parcialidade e dependência do árbitro (s) designado, devendo ser encarada tão só como consequência natural da especialização, sob pena de exercerem funções como Juiz - árbitro pessoas sem qualquer conhecimento sobre as matérias em discussão com o consequente prejuízo que daí poderia advir para todos.

Em domínios de grande especialização, a nomeação de determinados árbitros, pode tornar-se habitual, sem que a imparcialidade e independência sejam afectados – cfr. IBA Guidelines .

Acresce, que com a publicação da Lei 62/2011, a necessidade dos tribunais arbitrais para dirimir as situações de conflito avolumou-se e uma vez que, nos meios jurídicos e académicos as pessoas qualificadas para exercerem funções de árbitros nesses litígios (e, em particular, especialistas em propriedade industrial), não são assim tantas, o que obriga a que, por um lado, as partes se socorram dos especialistas existentes como, por outro, a realidade impõe a múltipla nomeação, sob pena de paralisação do sistema.

Destarte, soçobra a pretensão de recusa de Árbitro alicerçada neste fundamento.

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o pedido de recusa do Árbitro.
Custas pela requerente



Lisboa, 01/02/2018   


                               
(Carla Mendes)
(Octávia Viegas)
(Rui da Ponte Gomes)