Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3112/16.5T8BRR.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PERCURSO HABITUAL
ALMOÇO
SUPERMERCADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: Tendo o acidente ocorrido quando a sinistrada regressava do supermercado onde se dirigira para comprar alimentos para o seu almoço e encontrando-se no percurso que cumpria habitualmente entre o local onde se abastecia para o almoço e o local de trabalho, impõe-se concluir que o acidente em causa é de caracterizar como acidente de trabalho.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
Nos presentes autos emergentes e acidente de trabalho, tendo-se frustrado a tentativa de conciliação, veio a sinistrada AAA, residente na Rua (…), com o patrocínio do Ministério Público, intentar a presente acção emergente de acidente de trabalho, contra BBB., com sede no (…), pedindo que esta seja julgada procedente e, em consequência, seja reconhecido o acidente dos autos como acidente de trabalho, o nexo de causalidade, a IPP atribuída em exame médico, bem como o salário alegado nos autos e as respectivas consequências nos termos por si referidos.
Invocou, para tanto, em síntese, o seguinte:
1- Em 15.7.2016, trabalhava sob a autoridade e direcção de “(…)”, quando foi vítima de um acidente de trabalho em (…);
- Nessa data, entre as 16.30-17.30 horas, na hora do almoço, saiu do “(…)” e teve de ir ao supermercado mais próximo “(…)”, por se encontrar menstruada, para comprar produtos para a sua higiene pessoal (pensos ou “tampões”) e alimentos para a sua refeição;
- No decurso desta deslocação, à saída da porta do “(…)”, para voltar ao seu posto de trabalho, ao descer um degrau, deu um mau-jeito ao tornozelo esquerdo;
-Deste evento traumático resultaram um período de ITA, entre 16-07-2016 e 12- 10-2016 e as sequelas descritas no relatório de exame médico;
-À data, auferia um salário anual de €10.827,18; e
- A R. declinou a sua responsabilidade, não aceitando a caracterização do acidente como de trabalho, não pagando as despesas de tratamento em fisioterapia, no montante de € 30,00;
Concluiu no sentido de que deve entender-se que a Autora, no momento do acidente, continuava na dependência e disponibilidade da sua entidade patronal e que a conduta está abrangida no actual conceito de acidente de trabalho, em especial no n.º 2, al.e) e n.º 3 do artigo 9º da Lei n.º 98/2009, de 4.9., devendo ser-lhe atribuída uma IPP de 2% desde 13.10.2016, conferindo-se à sinistrada o direito a receber o reembolso referido em 6º, bem como uma indemnização de 88 dias de ITA no valor de € 1.826,88 e uma pensão anual e vitalícia de €156,56, obrigatoriamente remível e €30,00 de despesas de deslocação ao tribunal.
Citada, a Ré contestou invocando, em resumo, que entre a contestante e a (…)foi celebrado um contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice nº AT(…), ao abrigo da qual a responsabilidade infortunística relativa à Autora estava transferida para a contestante pela remuneração anual de 10.827,18 €, que o evento em apreço não é um acidente de trabalho pois nem ocorre no local de trabalho, nem em nenhuma das situações de extensão do conceito de acidente de trabalho, estando completamente à margem da autoridade patronal, que se a queda da sinistrada ocorreu como é descrito, à saída de uma superfície comercial, depois de comprar produtos de higiene pessoal e alimentos para uma refeição, não há a mínima conexão com o labor, que a sinistrada não executava qualquer tarefa determinada pelo empregador, estava, sim, no âmbito da sua vida privada, num espaço que escolheu para fazer as suas compras, em benefício e no interesse próprio, nada tendo a ver com a sua prestação laboral e não foi por causa do trabalho que a sinistrada se deslocou àquele supermercado, mas por sua iniciativa, no âmbito da liberdade e independência que o alegado período de almoço representa para fazer o que quiser onde quiser, pelo que as indemnizações por alegados períodos de incapacidade não podem ser exigidas.
Concluiu que a alegada deslocação ao “(…)” não se integra em nenhuma das alíneas do nº 2 do art.º 9º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro e pediu a sua absolvição do pedido.
À cautela, ainda requereu que a sinistrada fosse submetida a exame por junta médica
Foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, tendo a Autora, nessa sequência, esclarecido que: à data do acidente o local de trabalho era no (…), localizado na (…); entrava às 13.00 e saía às 21.00 horas, com intervalo para almoço, de 1 hora, entre as 16.00 e as 17.00 horas; a localização do “(…)” e distância: Na Rua (…), a cerca de 10 minutos, a pé; nos dias em que trabalhava, por já se encontrar encerrado o refeitório, por ali já não haver serviços de venda de refeição tinha de se deslocar à rua para adquirir comida para a consumir no local de trabalho; recorria habitualmente à compra de alimentos no referido “(…)”, seja pela proximidade, seja por ter preços mais acessíveis; para o almoço, mais ocasionalmente, recorria também à Pastelaria/Padaria (…), muito próximo do “(…)”, na mesma Rua, n. (…); no dia do evento, além da refeição a Autora procurava obter pensos higiénicos de que carecia, de modo inesperado e inadiavelmente; neste percurso para o almoço, (regresso ou ida) passava pela Rua (…)- estação do metro de (…); o intervalo de almoço no dia do evento teve início exactamente pelas 16:15, tendo registado digitalmente a saída do (…), por só então ter terminado de atender a última chamada de um cliente; o evento ocorreu ao sair do “(…)”, com queda no degrau da porta de saída; regressou a cambalear, com registo digital da entrada, cerca de 30 minutos depois da saída, tendo falado com o supervisor (…), com (…) e (…) que tomaram conta do acidente.
Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e organizada a base instrutória.
 Foi determinado o desdobramento do processo para fixação da incapacidade para o trabalho, vindo a ser proferida decisão que fixou à sinistrada uma IPP de 2%
Procedeu-se a julgamento tendo as partes acordado quanto à matéria do artigo 12.º da base instrutória.
Foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, o tribunal julga a ação parcialmente procedente porque parcialmente provada e, em consequência, decide:
1. Condenar a Ré no pagamento à Autora das seguintes quantias:
i. Indemnização a título de incapacidade temporária absoluta no montante de € 1785,74
ii. Capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia de € 151,58;
iii. Juros moratórios vencidos à taxa legal sobre a quantia referida em i. desde 15.07.2016 até efetivo e integral pagamento;
iv. Juros moratórios vencidos à taxa legal sobre a quantia referida em ii. desde o dia seguinte ao da alta até efetivo e integral pagamento.
2. Absolver a Ré do demais peticionado.
Custas a cargo de ambas as partes na proporção do respetivo decaimento, fixando-se o decaimento da Ré em 88,7% e o da Autora no remanescente e na proporção da respectiva responsabilidade (art. 527.º do Código de Processo Civil).
Valor da ação: € 4 255,89 (art. 120.º do Código de Processo do Trabalho).
Registe e Notifique.”
Inconformada com a sentença, a Ré recorreu e formulou as seguintes conclusões:
(…)
A Autora contra-alegou e sem formular conclusões, pugnou pela caracterização do acidente como acidente de trabalho e consequente improcedência do recurso.
O recurso foi admitido.
Subidos os autos a este Tribunal, foi colhido o visto à Exma. 1ª Adjunta e, obtida a concordância da actual Exma. 2ª Adjunta, foi dispensado o seu visto.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso limitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), no presente recurso importa apreciar:
1ª- Se a Recorrente impugnou a decisão relativa à matéria de facto.
2ª-Se a sentença errou ao qualificar o acidente dos autos como acidente in itinere
Fundamentação de facto
A sentença considerou provada a seguinte factualidade:
A.
À data de 15-07-2016, a Autora trabalhava sob a autoridade e direção de “(…)”, sito (…) Lisboa.
B.
À data indicada em A. a Autora auferia a remuneração anual de €10.827,18.
C.
À data indicada em A. (…)tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Ré pela apólice nº AT (…), em função da retribuição anual indicada em B.
D.
Na tentativa de conciliação realizada em 3 de outubro de 2017, a Autora concordou com a IPP de 2% que lhe foi atribuída pelo Perito Médico do Tribunal, e reclamou o pagamento das quantias de €1.826,88 relativos a ITA no período temporal compreendido entre 16-07- 2016 e 12-10-2016, €30,00 de despesas com transportes e €40,00 de despesas com tratamentos de fisioterapia.
E.
A Ré não aceitou a existência do evento, nem a sua caracterização como acidente de trabalho, nem o nexo de causalidade entre as lesões da Autora e o evento.
F.
Na data indicada em A. o horário diário da Autora era das 13h00 às 21h00, com intervalo de 1h para almoço, das 16h00, às 17h00.
G.
Na data indicada em A., pelas 16h15, a Autora saiu do “call center”, sito na morada indicada em A.
H.
E deslocou-se ao supermercado “(…)”, sito na Rua (…).
I.
A Autora deslocou-se ao supermercado “(…)”, para comprar produtos para a sua higiene pessoal (pensos ou “tampões”) e alimentos para o seu almoço.
J.
O refeitório sito no edifício da entidade empregadora encerrava antes das 16h00.
K.
A Autora adquiria de forma habitual os alimentos para o seu almoço no supermercado “(…)”, sito na morada indicada em H ou na Pastelaria/Padaria (…), sita na Rua (…)
L.
À saída da porta do “(…)”, e quando se preparava para voltar ao seu posto de trabalho, a Autora, ao descer um degrau, caiu e deu um mau-jeito ao tornozelo esquerdo.
M.
Na sequência da queda indicada em L. a Autora sofreu contusão óssea do astrágalo com lesão do ligamento tibioperonial anterior.
N.
As lesões indicadas em M. determinaram à Autora ITA no período temporal compreendido entre 16-07-2016 e 12-10-2016.
O.
A Autora apresenta pequena deformidade óssea ao nível do maléolo lateral esquerdo, dolorosa à palpação.
P.
A Autora padece de IPP de 2% desde 02.10.2016.
Q.
O percurso realizado pela Autora, entre a morada indicada em A. e as moradas indicadas em I. e K. implica que esta passe pela Rua (…) – (…).
*
Foram considerados não provados os seguintes factos:
a. Que o refeitório referido em J. pertencesse à entidade empregadora.
b. Que a Autora tenha despendido €40,00 em despesas com tratamentos de fisioterapia.
c. Que a Autora tenha despendido a quantia de €30 em despesas com transportes.
Fundamentação de direito
(….)
Ou seja, a Recorrente não observou os ónus a que alude o citado preceito legal, razão pela qual, caso tenha sido seu propósito impugnar a decisão relativa à matéria de facto, a impugnação sempre seria rejeitada, de imediato, conforme determina o n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
*
Apreciemos, agora, se a sentença errou ao qualificar o acidente dos autos como um acidente in itinere.
Previamente importa referir que, tendo o acidente dos autos ocorrido no dia 15.06.2016, ao caso é aplicável a Lei n.º 98/2009, de 04.09. (cfr. arts. 187.º n.º 1 e 188.º da referida Lei).
Após citar o disposto nos artigos 8º e 9º da Lei n.º 98/2009, de 04.09. (LAT), definir acidente como“ um acontecimento imprevisto e involuntário, por oposição a uma ocorrência voluntária e intencional por parte de quem sofre as respetivas consequências”, aludir às situações que descaracterizam o acidente como de trabalho (art.14.º da LAT), sobre a questão escreve-se na sentença recorrida o seguinte:
“Por reporte à factualidade provada, e com relevo para a caracterização do acidente como de trabalho ou a sua descaracterização, salientam-se os seguintes factos:
Na data indicada em A. o horário diário da Autora era das 13h00 às 21h00, com intervalo de 1h para almoço, das 16h00, às 17h00.
- No dia do sinistro pelas 16h15, a Autora saiu do “call center”, e deslocou-se ao supermercado “(…)”, sito na Rua (…), para comprar produtos para a sua higiene pessoal (pensos ou “tampões”) e alimentos para o seu almoço.
- O refeitório sito no edifício da entidade empregadora encerrava antes das 16h00.
- A Autora adquiria de forma diária os alimentos para o seu almoço no supermercado “(…)”, ou na Pastelaria/Padaria (…), sita na (…)
- À saída da porta do “(…)”, e quando se preparava para voltar ao seu posto de trabalho, a Autora, ao descer um degrau, caiu e deu um mau-jeito ao tornozelo esquerdo.
- O percurso realizado pela Autora, entre o seu local de trabalho e o local onde ia buscar as refeições implica que esta passe pela Rua (…) (…).
Importa dar especial ênfase ao disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 14 da LAT: o acidente ocorrido entre o local de trabalho e o local de refeição.
Entende este tribunal que para que se verifique a extensão do acidente como de trabalho nas circunstâncias em que o trabalhador não está a exercer as suas funções, tem pelo menos que se verificar que o trabalhador está exposto a um risco que não domina mas pelo exercício das suas funções, risco ocorrido por força do trabalho.
É, no entanto, necessário que exista uma ligação ao trabalho e esta ligação ocorre naturalmente pela habitualidade ou reiteração dos atos praticados.
Por reporte à situação dos autos, entende o tribunal que, encontrando-se provado que inexistindo refeitório que a Autora pudesse utilizar e que era prática habitual que a mesma se deslocasse ao (…)ou a uma Pastelaria para adquirir a sua refeição, este trajeto fosse tutelado pela norma em causa (cfr. por todos neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.12.2012 in www.dgsi.pt).
Em face do exposto, é de caracterizar como acidente de trabalho o sofrido pela Autora.”
Discordando do entendimento do Tribunal a quo invoca a Recorrente, em suma, que os trajectos entre um supermercado e o local de trabalho, entre um supermercado onde é frequente comprar alimentos para o almoço e o local de trabalho e entre um supermercado onde não foi adquirido qualquer bem (naquele concreto dia) e o local de trabalho não estão tutelados nas alíneas do n.º 2 do artigo 9.º da LAT, por isso, a queda ocorrida nas circunstâncias descritas não pode ser considerada de índole laboral, que o que aconteceu naquele concreto dia, hora e lugar foi a queda à saída de um supermercado onde, efectivamente, a Recorrida não comprou qualquer bem e num trajecto que não está tutelado na LAT (neste sentido, vai o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/02/2018, proferido no âmbito do processo nº 10559/16.5T8LSB.L1-4, em www.dgsi.pt), que o acórdão de 05.12.2012, Proc. nº 252/10.8TTLSB.L1-4, não tem paralelo com o assunto em apreço nos presentes autos, que  não é certamente pelo facto de não haver um refeitório do empregador – mas antes uma copa, que o trajecto entre um supermercado onde não foi adquirido qualquer bem e o local de trabalho já pode ser considerado tutelado pela LAT e que não é, certamente, por haver um acórdão que considera justificado, por necessidade atendível, um desvio ao trajecto casa-trabalho para o sinistrado tomar o pequeno-almoço, que a queda no trajecto entre um supermercado - onde a sinistrada não adquiriu qualquer bem – e o local de trabalho será considerada acidente de trabalho.
Vejamos:
Assinala-se, desde logo, o lapso manifesto existente na sentença recorrida quando se refere à alínea e) do n.º 1 do art.º 14.º da LAT, posto que esta norma não comporta al.e), devendo, pois, considerar-se que, certamente, se pretendeu invocar a al.e) do n.º 2 do art.º 9.º da LAT.
Com efeito, está em causa a qualificação de um acidente ocorrido entre o local de trabalho e o local onde a sinistrada se dirigiu com vista a adquirir alimentos para o seu almoço e durante o intervalo para o almoço que se estendia das 16h às 17h (factos provados em F), G) e I).
Dispõe o artigo 8º da LAT:
“ 1. É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte.
2. Para efeitos do presente capítulo entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
Por seu turno, determina o artigo 9º da mesma Lei sob a epígrafe “ Extensão do conceito”:
“1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e)(…);
f) (…);
g) (…);
h) (…);
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a)(…);
b)(…);
c)(…);
d) (…);
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f)(…).
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.”
Assim, resulta do citado artigo que o legislador estendeu o conceito de acidente de trabalho, além de outros, aos acidentes que se verifiquem no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, que sejam normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, aí incluindo os acidentes que ocorram entre o local de trabalho e o local da refeição. Ou seja, a lei caracteriza e aceita como constituindo acidente de trabalho e tutelado pela Lei dos Acidentes de trabalho, os denominados acidentes in itinere.
Sobre os acidentes in itinere escreve-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.6.2014, pesquisa em www.dgsi.pt que temos acompanhado de perto:
“No que aos acidentes in itinere toca ainda se pode discutir se tem alguma especificidade ou, no fundo, não é mais do que um acidente de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho.
A verdade, porém, é que o acidente in itinere se caracteriza precisamente por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir, porém, que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito [14]) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho – lesão [15], não partilham os demais elementos “tempo e local de trabalho”[16] [17]. Em suma: os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo [18]: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal [19] [20], traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente [21], compreendidos no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4.9[22]. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro.”
Na sentença chamou-se à colação o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5.12.2012, publicado em www.dgsi.pt, proferido à luz da anterior LAT e em cujo sumário se escreve: "I – Deve ser qualificada como acidente de trabalho in itinere a queda que o sinistrado sofreu na via pública, depois de ter saído do estabelecimento onde esteve a tomar o pequeno almoço, durante cerca de 15 minutos, com o propósito de se encaminhar para o seu local de trabalho, pelo caminho que habitualmente percorria, sendo certo que se tinha deslocado desde a sua casa até ali na sua viatura automóvel, que entretanto estacionara, fazendo, para o efeito, o trajeto que normalmente adotava.
II – Essa ingestão do pequeno-almoço traduz-se numa interrupção/desvio do seu percurso ou trajeto normal, determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04.
Entende a Recorrente que este aresto não tem paralelo com o caso dos autos e apelou ao Acórdão do mesmo Tribunal e Secção de 21.2.2018, pesquisa em www.dgsi.pt, no âmbito do qual ficou provado, no que ao caso importa, que:
 “3.– Na data referida em A), a autora dirigiu-se a um estabelecimento comercial vulgarmente designado por '(…)', tendo escorregado no piso molhado, acabando por cair –
6.– A autora dirigiu-se ao estabelecimento identificado na alínea C) dos factos assentes à hora do almoço para aí adquirir bens alimentares não concretamente apurados com o esclarecimento que é habitual esta e outros trabalhadores ali se deslocarem para esse efeito – (1.º)
E considerou:
«O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de qualificar a queda sofrida pela sinistrada como um acidente de trabalho in itinere com base na seguinte ordem de considerações:
"Considerando o disposto no art.º 9.º, n.º 2, alínea e) do diploma legal citado, não pode deixar de se considerar que, estando a autora na hora de almoço se deslocou ao supermercado (…) para adquirir bens alimentares que, naturalmente se destinavam ao consumo naquela hora e por isso estaremos perante um acidente de trabalho in itinere.
Com efeito, o facto de não estarmos perante uma deslocação a casa ou restaurante para aí tomar a sua refeição, caso em que não teríamos dúvida em classificar a situação como um acidente de trabalho in itinere, não vislumbramos razão para deixar desprotegido o trabalhador que numa deslocação para adquirir algo para almoçar ou este completar tenha nesse trajecto um acidente.
Assim somos a concluir que no caso estamos perante um acidente de trabalho in itinere entre o local de trabalho e o local da refeição".
(…)
 Não podemos estar mais de acordo com a afirmação feita na sentença apelada, a não ser na parte em que afirma que os "bens alimentares … naturalmente se destinavam ao consumo naquela hora", pois que não vemos que tal lhe fosse permitisse fazer.
Com efeito, a sentença apelada apenas poderia fazer essa afirmação se o facto tivesse sido julgado provado no despacho que decidiu acerca da matéria de facto[14] ou, não tendo sido o caso, como não foi, resultasse de praesumptio hominis, [15] o que no caso sub iudicio não nos parece admissível retirar. Aliás, parafraseando o que algures foi dito no processo, o que aqui interessava e interessa considerar não é o que normalmente acontece mas o que aconteceu naquele concreto dia, hora e lugar.
Assim sendo, teremos que concordar com a apelante BBB, S. A. quando sustenta que o caso não pode ser considerado como acidente de trabalho in itinere e, por conseguinte, ser responsabilizada pela reparação das consequências que causou na sinistrada, pelo que a sentença apelada deverá ser revogada e aquela absolvida do pedido.”
Ora, da leitura do citado aresto extrai-se que se aceitou o entendimento de que um acidente ocorrido numa deslocação do trabalhador a casa ou a um restaurante para aí tomar a sua refeição se enquadra no conceito de acidente de trabalho.
O que não se aceitou foi a conclusão retirada pela sentença posta em crise de que os bens alimentares adquiridos " naturalmente se destinavam ao consumo naquela hora", isto por tal facto não resultar da factualidade provada, nem das regras da experiência.
E foi por isso que concluiu não estarmos perante um acidente de trabalho in itinere.
Regressando ao caso sub judice, admitimos não ser exactamente uma cópia da situação descrita no Acórdão de 5.12.2015, acima citado, mas também não o é relativamente a este último aresto.
Com efeito, no caso em análise constata-se que ficou provado que no dia 15.6.2017, o horário diário da Autora era das 13h00 às 21h00, com intervalo de 1h para almoço, das 16h00, às 17h00 (facto G), na mesma data, pelas 16h15, a Autora saiu do “(…)”, sito na morada indicada em A. (facto H) e deslocou-se ao supermercado “(…)”, sito na Rua (…)(facto I), a Autora deslocou-se ao supermercado “(…)” para comprar produtos para a sua higiene pessoal (pensos ou “tampões”) e alimentos para o seu almoço (facto J), o refeitório sito no edifício da entidade empregadora encerrava antes das 16h00 (ponto K), a Autora adquiria de forma habitual os alimentos para o seu almoço no supermercado “(…)”, sito na morada indicada em H ou na Pastelaria/Padaria (…), sita na Rua (…) (facto L) e à saída da porta do “(…)”, e quando se preparava para voltar ao seu posto de trabalho, a Autora, ao descer um degrau, caiu e deu um mau-jeito ao tornozelo esquerdo (facto M).
Ora, face à factualidade descrita, também cremos que se verificou um acidente in itinere.
Com efeito, a sinistrada deslocou-se ao supermercado no intervalo do almoço e para comprar alimentos para o almoço, sendo certo que o refeitório existente no edifício da empregadora encerrava antes das 16h00, ou seja, antes da hora de almoço da Autora, o que, naturalmente, impedia que pudesse almoçar nesse local.
Não vislumbramos que se possa diferenciar esta situação daquela em que o sinistrado sofre um acidente quando se desloca a casa ou a um restaurante para aí tomar a sua refeição, tanto mais que ficou provado que a sinistrada adquiria de forma habitual os alimentos para o seu almoço no dito supermercado, ou na padaria sita na mesma rua.
Naqueles casos, como se afirma no Acórdão do STJ de 30.3.2011, in www.dgsi.pt, embora proferido no âmbito da anterior LAT, mas cuja actualidade se mantém, “I-Cabem na previsão do artigo 6º nº 2 alínea c) do DL nº 143/99 de 30/4, os acidentes ocorridos no trajecto entre o local de trabalho e o local da toma da refeição intercalar, quer esta ocorra na residência do trabalhador, quer fora dela. II- Assim sendo, tendo o sinistrado ido almoçar a sua casa, temos de qualificar o acidente ocorrido no regresso ao local de trabalho, como um acidente de trabalho indemnizável, pois encontrava-se no percurso que utilizava normalmente entre a sua casa e o local de trabalho.”
 E por pertinente, ainda transcrevemos o seguinte excerto do referido acórdão: ”Entendemos assim que na previsão da alínea c) agora em análise, cabem todos os acidentes ocorridos no trajecto entre o local de trabalho e o local da toma da refeição intercalar, quer esta ocorra na sua residência, quer fora dela, pois o risco de acidentes neste percurso, sendo inerente à satisfação duma necessidade normal para quem está a trabalhar, ainda se pode considerar integrado no âmbito das obrigações instrumentais ou acessórias do trabalhador a que já nos referimos.
Assim sendo, tendo o A ido almoçar a sua casa, temos de qualificar o acidente ocorrido no regresso ao local de trabalho como um acidente de trabalho, pois o trabalhador encontrava-se no percurso que habitualmente seguia para ir trabalhar, conforme consta do facto 2.14.”
No caso, tendo o acidente ocorrido quando a sinistrada regressava do supermercado onde se dirigira para comprar alimentos para o seu almoço e encontrando-se no percurso que cumpria habitualmente entre o local onde se abastecia para o almoço e o local de trabalho, impõe-se concluir, como concluiu a sentença recorrida, que o acidente em causa é de caracterizar como acidente de trabalho.
Em consequência, o recurso deverá ser julgado improcedente e confirmada a sentença recorrida.
Considerando o disposto no artigo 527.º nºs 1 e 2 do CPC as custas do recurso são da responsabilidade da Recorrente.
Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal e Secção em julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 29 de Abril de 2020
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Filomena Manso