Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
404/12.6YYLSB-B.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA
Sumário: Em acção executiva em que o exequente pretenda fazer valer o direito de garantia real de que é titular pode fazer intervir nesse processo o titular do bem objecto daquela garantia, através do recurso ao incidente de intervenção principal provocada (ainda que o pudesse ter demandado desde início) e desde que sejam salvaguardadas as garantias de defesa do interveniente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO.
Em 6.01.2012, Banco …, SA intentou contra L e R, acção executiva para pagamento de quantia certa, com vista à obtenção do pagamento da quantia de € 32.490,59, bem como os juros de mora vincendos sobre o capital em dívida.
Indicou à penhora a fracção designada pela letra “C” do prédio urbano sito na Rua …, nº …, freguesia de …, concelho de …, que se encontra hipotecada a favor do exequente para garantia do seu crédito.
Posteriormente, em …/2012, veio deduzir incidente de intervenção principal provocada de Maria, nos termos dos arts. 56º, nº 2 e 325º, nº 1 do CPC, porquanto pretende fazer valer nos presentes autos a garantia constituída a seu favor (hipoteca) sobre a fracção indicada à penhora que se encontra, actualmente, inscrita a favor da referida Maria.
Foi proferido despacho com o seguinte teor: “Veio o exequente, Banco…, SA – Sociedade Aberta requerer, oito meses após instauração da execução, a intervenção provocada passiva de Maria, alegando que a mesma adquiriu o imóvel sujeito a hipoteca. Cumpre decidir: A intervenção provocada insere-se no âmbito, mais vasto, da intervenção de terceiros. E consiste no chamamento a juízo, por qualquer das partes, de interessado com direito a intervir na causa, como associado do chamante ou da parte contrária, nos termos do disposto no art. 325º, nº 1 do CPC. Por seu turno, a finalidade da acção executiva, é a reparação efectiva do direito violado, cfr. art. 4º, 3 do CPC, “tratando-se de providenciar pela reparação material coactiva do direito do exequente, passando-se da declaração concreta da norma jurídica para a sua actuação prática, mediante o desencadear do mecanismo da garantia” (Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra, 1997, p. 9). Isto para concluir que “o incidente de intervenção principal provocada é inadmissível na acção executiva por virtude do objecto de um e de outra e das regras da legitimidade desta” (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 3ª edição, Almedina, p. 108), “além do mais porque a acção executiva não comporta decisão condenatória, pressuposto essencial do incidente em análise” (Ac. da RL de 26.11.2009, proc. nº 47669/06.9YYLSB-A.L1-8, relatado pela Desemb. Carla Mendes, em www.dgsi.pt). Na verdade, uma vez que na acção executiva a obrigação tem de estar já definida, não se visando com a mesma declaração do direito ou a condenação da parte no seu cumprimento, a estrutura e finalidade do incidente de intervenção de terceiros não se mostra compatível com a mesma. A execução deve, em regra, ser dirigida contra a pessoa que no título executivo figure como devedor (art. 55º, nº 1 do CPC). Uma vez que a acção executiva é instaurada com base nesse mesmo título, aquando da propositura da mesma o exequente sabe contra quem a pode instaurar, sendo opção sua instaurar a execução contra todos os devedores que constam do título ou apenas contra alguns, sendo certo que, aliás, a pessoa cuja intervenção requer não consta como devedora no título executivo, pelo que a execução não poderia ser contra si intentada. Quer tenha sido lapso quer tenha sido estratégia (considerando, aliás, quer a entrada da execução quer o registo de aquisição), o certo é que a intervenção deste último é inadmissível em sede de acção executiva, conforme supra exposto. Assim sendo, indefiro a requerida intervenção de Maria… .”.
Não se conformando com a decisão, apelou o exequente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
(…)
Termina pedindo que se revogue a sentença recorrida, considerando-se que o incidente de intervenção principal provocada é o meio processual indicado para o Exequente ver satisfeito o seu direito e, consequentemente, se ordene a intervenção da Requerida Maria, para intervir na causa como associada dos Executados.
Não foram apresentadas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente, a única questão a decidir é se deve ser admitido o incidente de intervenção provocada deduzido pelo exequente.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A materialidade fáctica relevante é a supra descrita no relatório e, ainda:
- Mostra-se descrita na CRP de …, sob o nº …/… da freguesia de …, a fracção correspondente ao rés-do-chão direito do prédio sito na Rua …, nº …, ….
- Pela Ap. … de 1999/…, foi inscrita a favor de R, a aquisição, por compra.
- Pela AP. … de 2004/…, foi inscrita a favor do B…,SA, hipoteca para garantia de empréstimo.
- Pela Ap. … de 2011/…, foi inscrita a favor de Maria  a aquisição, por compra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Como resulta do relatório supra, a presente execução foi instaurada contra L e R, com vista a obter o pagamento da quantia de € 32.490,59 em dívida, relativa a um empréstimo pelos executados solicitado ao exequente e cuja restituição não foi, integralmente, feita.
Pelo exequente foi indicada à penhora a fracção dada em hipoteca para garantia do pagamento das quantias mutuadas no referido empréstimo.
Posteriormente (segundo informação do apelante que não resulta confirmada nestes autos), aquando da promoção do registo da penhora sobre a mencionada fracção, foi o mesmo lavrado provisoriamente por o registo se encontrar feito em nome da Maria, cuja intervenção principal provocada o exequente veio, então, requerer nos autos.
Incidente que o tribunal recorrido indeferiu porquanto entende que o incidente de intervenção principal provocada é inadmissível na acção executiva quer por virtude do objecto, quer das regras da legitimidade da acção executiva, para além da requerida interveniente não constar do título.
Discorda o apelante deste entendimento sustentando que, sendo a requerida proprietária do imóvel em questão, tem a mesma legitimidade para, com os demais executados, intervir na execução, sendo a sua intervenção possível através do incidente deduzido, por força do disposto nos arts. 56º, nº 2, 821º, 320º, al. a), 325º e 466º, nº 1, todos do CPC [1].
Analisemos.
A regra geral sobre a determinação da legitimidade no processo executivo consta do art. 55º, nº 1 que dispõe que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.
No art. 56º prevêem-se, porém, desvios à referida regra geral [2].
Assim, estatui o nº 2 deste artigo que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”.
Por seu turno, o art. 818º do CC dispõe que “o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado”.
O artigo 56º, nº 2, não prevê a intervenção do terceiro titular do bem onerado com a garantia real no decurso da execução, mas a legitimidade passiva (inicial) do mesmo para a acção executiva, optando o exequente por fazer valer a garantia, e em consonância com o disposto no art. 818º do CC.
Em anotação ao art. 56º do CPC escreve Lopes do Rego, in Comentários ao CPC, Vol. I, pág. 93 que “o DL nº 180/96 – que aditou o nº 4 – veio, porém, cindir claramente o regime de legitimidade passiva, consoante: - os bens onerados com a garantia real pertençam a terceiro (nº 2); tais bens pertençam ao devedor e apenas estejam na posse de terceiro ( nº4). Na primeira hipótese, goza o exequente de um irrestrito direito de escolha sobre quem pretende executar: - só o terceiro, titular dos bens, se pretender fazer valer a garantia real; - este, conjuntamente com o devedor, logo no início da execução; - e, naturalmente, apenas o devedor, se o exequente não pretender actuar e fazer valer a garantia real incidente sobre os bens de terceiro, cumprindo notar que o art. 835º só manda começar necessariamente a penhora sobre os bens onerados com a garantia quando estes pertençam ao próprio devedor”.
O que resulta do requerimento inicial de execução é que o exequente pretendeu, desde logo, actuar e fazer valer a garantia real (hipoteca) incidente sobre a fracção em causa, tanto mais que foi o único bem que indicou à penhora.
Assim sendo, e estando já registada a favor de terceiro a propriedade sobre a fracção hipotecada [3], deveria o exequente ter intentado a execução contra aquele (a referida Maria), sem prejuízo de também a poder intentar contra os devedores.
Não o tendo feito, e pretendendo fazer valer a garantia sobre a fracção a seu favor constituída (e, repita-se, estando a mesma já registada a favor daquela Maria), sempre se teriam de considerar os devedores (executados) parte ilegítima na execução, porque desacompanhados daquela e atento o disposto no art. 56º, nº 2.
Como escreve Lebre de Freitas, na obra referida na nota 2, pág. 125, “pode acontecer que a garantia real dum crédito incida sobre bens de terceiro, ou porque já assim tenha sido constituída, ou porque, constituída embora sobre bens do devedor, este os tenha posteriormente alienado, em data anterior à propositura da acção executiva. Dado não ser possível a penhora de bens pertencentes a pessoa que não tenha a posição de executado, a acção executiva tem, na medida em que se quiser actuar a garantia prestada, de ser proposta contra o proprietário do bem. A renúncia do credor à garantia real só pode ter lugar pelas formas indicadas na lei civil, entre as quais não se conta a mera propositura duma acção em que a garantia não seja invocada, embora, em alguns casos, seja admissível a renúncia no requerimento inicial, desde que expressa. Mas, fora do caso de exercício desta faculdade, o exequente não pode, sob pena de ilegitimidade, deixar de propor a acção executiva contra o proprietário dos bens quando pretenda fazer valer, na execução, o direito real de garantia, pois no caso contrário pode mover a acção executiva apenas contra o devedor e nela penhorar os seus bens, sem que ele lhe possa opor a necessidade de previamente se reconhecer, nos termos do art. 835-1, a insuficiência dos bens dados em garantia para o fim da execução” (sublinhado nosso).
Com o incidente de intervenção principal deduzido pretende, no fundo, o exequente suprir a referida ilegitimidade dos executados, fazendo intervir na acção executiva a terceira que devia, desde logo, ter demandado.
Como refere Lopes do Rego, na ob. cit., pág. 94, “não tem sido pacífica a questão de admissibilidade da utilização dos incidentes de intervenção de terceiros no âmbito do processo executivo”, nomeadamente no que respeita ao incidente de intervenção principal [4].
E fazendo uma distinção entre as hipóteses de intervenção no âmbito do próprio processo executivo e no âmbito dos enxertos declaratórios que se inserem na execução, aceita, claramente, no processo executivo propriamente dito, o incidente de “intervenção principal provocada (pelo exequente) de terceiro que, não sendo originariamente executado, seja titular de bens que respondem pela dívida exequenda, nos termos do nº 2 do art. 821º, conjugado com o art. 818º do CC”, podendo, “neste entendimento, o exequente provocar a intervenção principal: …; no caso de transmissão de bens sobre que incide a garantia real do crédito exequendo, afigurando-se que, neste caso, o meio procedimental adequado para o exequente trazer ao processo o transmissário do bem onerado com o direito real de garantia não será o incidente de habilitação de “cessionário”, mas a respectiva intervenção principal provocada passiva, prevista nas disposições gerais dos arts. 325º e ss., adaptados à especificidade do processo executivo …”
A lei é expressa em admitir a intervenção principal provocada em casos de litisconsórcio voluntário, nomeadamente: quando o exequente demande apenas o proprietário dos bens onerados, pode, posteriormente, se aqueles bens se revelarem insuficientes para o cumprimento da obrigação, demandar o devedor (art. 56º, nº 3); se instaurar execução apenas contra o devedor subsidiário, e este invocar o benefício de excussão prévia, pode o exequente demandar o devedor principal (art. 828º, nº 2); se instaurar execução apenas contra o devedor principal e, posteriormente, os bens se revelarem insuficientes, pode demandar o devedor subsidiário (art. 828º, nº 5); e instaurada execução contra o devedor obrigado no título e citado o cônjuge (a requerimento do exequente ou do executado), para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida, constitui-se como executado, se nada disser ou se aceitar (arts. 825º, nºs 2, 3 e 6).
Lebre de Freitas, na ob. cit., pág. 138, começa por referir que há, desde logo, uma situação em que se impõe admitir o incidente de intervenção principal no processo executivo: “quando o exequente careça de chamar a intervir determinada pessoa para assegurar a legitimidade duma parte, nos termos do art. 269. Convidado o exequente, nos termos do art. 812-E-3, a requerer a intervenção, proferido despacho de indeferimento liminar nos termos do art. 812-E-4, rejeitada oficiosamente a execução nos termos do art. 820, ou julgada procedente a oposição à execução, o exequente pode requerer o chamamento da pessoa em falta, tal como o pode requerer espontaneamente”.
De seguida, analisando as referidas situações em que a lei é expressa em admitir o incidente de intervenção principal provocada, conclui que a sua análise “permite defender que o incidente de intervenção principal é, em geral, admissível na modalidade de intervenção passiva provocada pelo exequente, em nome da economia processual” (ob. cit., pág. 139).
No caso sub judice, o exequente deveria ter intentado, desde logo, a acção contra a proprietária da fracção hipotecada, sendo-lhe possível tomar conhecimento da transmissão da propriedade da fracção previamente à instauração da execução, o que não cuidou de fazer, embora lhe fosse exigível que o fizesse.
E com o presente incidente pretende, notoriamente, obviar a ter de intentar nova execução, desta feita, contra a referida proprietária, posto que pretende fazer valer a garantia real de que é titular.
Na esteira do propugnado pelos autores supra referidos, entendemos que não existem obstáculos a que o incidente de intervenção principal deduzido seja admitido, desde que sejam salvaguardadas as garantias de defesa da interveniente.
Pretendendo o exequente fazer valer, nesta execução, o direito de garantia real sobre a fracção de que beneficia, impõe-se a intervenção da proprietária para assegurar a legitimidade dos executados, sanando-se, assim, a sua ilegitimidade já constatável nos autos, beneficiando-se de uma economia de meios e de custos.
Neste sentido se pronunciou o Ac. da RP de 15.04.2013, publicado na CJ, Tomo II, pág., em cujo sumário se escreveu: «I - O exequente pode demandar em simultâneo o devedor e o garante ou demandar singularmente cada um deles. II - Tendo demandado inicialmente apenas o devedor e pretendendo executar a garantia, o exequente pode fazer intervir nesse processo o garante, titular dos bens objecto daquela garantia, através do recurso ao incidente de intervenção principal provocada».
Mas tal só é admissível se for assegurada à interveniente a possibilidade de defesa que teria se tivesse sido demandada desde o início, ou seja, a possibilidade de deduzir embargos, nos termos do art. 812º-F, nº 2 (actualmente, art. 726º, nº 6 do CPC2013) [5].
Assim sendo, procede o recurso, devendo alterar-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita o incidente deduzido, ordenando a citação da requerida, nomeadamente para os termos da execução.
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procede a apelação, revogando-se o despacho recorrido que se substitui por outro, admitindo o incidente de intervenção principal provocada de Maria, ordenando-se a sua citação, nos termos do art. 319º do CPC2013, e para, querendo, deduzir embargos.
Custas pelos apelados.
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Lisboa, 2013.10.29
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(Cristina Coelho)
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(Roque Nogueira)
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(Pimentel Marcos)
[1] De 1961, e de que serão todos os artigos referidos sem menção a outro diploma legal.
[2] Ou, como refere Lebre de Freitas in A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª ed., pág. 121,  a regra geral, quanto à legitimidade passiva, consente “um desvio (no caso de execução provida de garantia real) e excepções (por alargamento a terceiros abrangidos pela eficácia do caso julgado”.
[3] A execução foi instaurada em 6.01.2012 e o registo da aquisição a favor de Maria foi feito em 11.02.2011.
[4] Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, 4ª ed. act. e ampliada, pág.112, rejeita, liminarmente, a admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada na acção executiva, como se referiu na sentença recorrida.
[5] Assim se obviando aos “perigos” salientados no Ac. da RL de 8.7.99, publicado na CJ, Tomo IV, pág. 107 e ss., e na esteira do sufragado no Ac. da RP de 21.3.2002, publicado na CJ, Tomo II, pág. 203 e ss., embora neste último a situação de facto seja diferente e, em ambos, estivesse em causa incidente de habilitação.
Decisão Texto Integral: