Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15407/18.9T8SNT.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROCESSO
VIABILIDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O processo de insolvência desencadeado por um credor, só tem viabilidade se este vier justificar o seu crédito mediante factos que revelem a origem, a natureza e o respetivo montante (artigos 20.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1, do CIRE).
2. Não tendo a requerente da insolvência logrado provar que é titular de créditos laborais vencidos sobre a requerida, ou outros, não se encontra legitimada em termos substantivos para requerer a insolvência da sua pretensa devedora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
IM… intentou, em 06/09/2018, ação declarativa com processo especial, requerendo a declaração de insolvência de L… - SERVIÇOS GERAIS DE MANUTENÇÃO E ADMINISTRAÇÃO, LDA.
Alegou, em suma, que é credora da requerida no valor de €4.947,36, vencidos desde maio de 2018, emergente de créditos laborais e indemnização pela cessação do contrato de trabalho.
A requerida está incontactável desde então e encerrou as suas instalações, encontrando-se em situação de insolvência.
Citada a requerida, veio contestar por exceção (ineptidão da p.i., ilegitimidade ativa e passiva; incompetência material, exceções que foram apreciadas e julgadas improcedentes por despacho de 09/01/2019) e por impugnação, contestando a existência dos créditos e/ou o seu vencimento e que esteja numa situação de insolvência.
Pediu a condenação da requerente como litigante de má-fé.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, em 29/01/2019, foi proferida sentença que absolveu a requerida do pedido e a requerente do pedido de litigância de má-fé.
Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação apresentando as conclusões de recurso juntas a fls. 55v-57.
Não foi apresentada resposta ao recurso.
O recurso foi admitido por despacho de 20/03/2019.

CONCLUSÕES DO RECURSO
«A - Surgem as presentes alegações no âmbito do recurso de apelação de prazo reduzido, interposto da sentença com a referência 117460116 datada de 29.01.2019, que julgou a acção em que a recorrente deduzia o pedido de insolvência improcedente e dele absolveu a requerida do pedido e com tal decisão a recorrente não se podendo conformar.
B - Serve o presente recurso para submeter o presente processo à reanálise e reapreciação de V. Exas. para decisão, seguindo-se os demais termos, designadamente quanto à não consideração da cominação do artigo 35º, número 2, do CIRE.
C - A presente acção de insolvência foi deduzida pela recorrente, em cuja petição inicial a recorrente alegou factos concretos sobre a sua legitimidade, o correspondente crédito que lhe conferia a referida legitimidade e os pressupostos e os factos atinentes à situação de insolvência da recorrida.
D - Conforme se encontra provado nos pontos 5 a 7 da sentença, a recorrente que já se encontrava transferida para empresa Li… - Higiene e Limpeza, Lda desde 28/01/2011, foi transferida para recorrida a partir de 1 de Fevereiro de 2018, e, apesar de não ter existido qualquer informação prévia, com salvaguarda de todos os seus direitos em termos de vencimento, posto de trabalho e antiguidade, de acordo com prova do pagamento de remunerações pela recorrida.
E - Para prova cabal de que a recorrida assumiu o vencimento, posto de trabalho e antiguidade é que, na comunicação que fez à sociedade SF… de 04/06/2018, atribuía à recorrente todos os seus direitos adquiridos desde 01/02/2011, data da transferência para a primitiva Li… - Higiene e Limpeza, Lda, em cumprimento da cláusula 15º da Contrato Colectivo de Trabalho da FETESE.
F - Conforme também se encontra provado no ponto 11 da sentença recorrida, a recorrente prestava o seu trabalho em benefício da recorrida no cliente Caixa de Crédito Agrícola, SA - Caixa Central, com morada na Rua Castilho, 233 e 233 A, em Lisboa, a partir de 1 de Fevereiro de 2018, estando igualmente provado nos pontos 10 e 12 da matéria plasmada na sentença recorrida, logo a partir de 01/06/2018, a sociedade SP…, Lda. passou a prestar serviços de limpeza para Caixa de Crédito Agrícola, SA - Caixa Central.
G - Tal significa que se encontra provado nesta acção que a recorrida prestou unicamente serviços de limpeza para a Caixa de Crédito Agrícola, SA - Caixa Central desde 1 de Fevereiro de 2018 e até 31 de Maio de 2018, de onde resulta que, segundo o número 4 da já citada cláusula 15ª do CCT/ FETESE, o empregador que tiver obtido a nova empreitada de limpeza não está vinculado a aceitar trabalhadores que prestem serviço no local de trabalho há 120 ou menos dias, sendo certo é que, nos termos do artigo 279° do Código Civil, 120 dias não são 4 meses, mas correspondem unicamente ao período a partir do primeiro dia de contagem de prazo até serem perfeitos os mesmos 120 dias.
H - Sucedendo que, em 2018, o mês de Fevereiro teve 28 dias, o de Março 31, o de Abril 30 e o de Maio 31, de onde resulta que, de 1 de Fevereiro de 2018 a 31 de Maio de 2018, decorreram unicamente 120 dias desde o início da prestação de serviços pela recorrida na Caixa de Crédito Agrícola, SA - Caixa Central, razão pela qual não estava a nova empregadora S… obrigada a aceitar a recorrente como trabalhadora, como aliás não aceitou, de acordo com o ponto 15 da matéria provada, mantendo-se a recorrente como trabalhadora da recorrida, em relação á qual subsistiu a obrigação de proceder ao pagamento de todo o pedido deduzido pela recorrente no artigo 18° da sua petição inicial.
I - Apesar da sentença recorrida julgar a acção improcedente, desde logo por entender não ser a recorrente credora da recorrida, mesmo segundo a referida sentença, quer no momento da propositura da acção, quer no momento da citação da recorrida, a qual, como consta dos autos, teve lugar a 04/10/2018, era pelo menos devido o vencimento de Maio de 2018.
J - Com a citação ficam fixados e estáveis os elementos da instância quanto às pessoas e à causa de pedir, pelo que o vencimento de Maio de 2018, vencido em 31/05/2018, só foi pago à recorrente a 17/10/2018 - ponto 14 da matéria provada - sem juros de mora, já na pendência da presente acção, com a legitimidade já fixada e sem o subsídio de alimentação e o prémio de produtividade devidos e que constituem créditos devidos e acrescidos para efeitos de legitimidade.
K - Mesmo na tese da sentença e de acordo com o CCT/FETESE, era a recorrida que, a partir de 1 de Fevereiro de 2018, estava obrigada a pagar à recorrente todos os seus vencimentos com a manutenção do posto de trabalho e antiguidade, situação tanto mais clara e flagrante quanto se encontra também provado que a recorrida e anterior Li… pertencem ao mesmo grupo de empresas.
L - A sentença recorrida transcreve integralmente os créditos peticionados, onde se inclui férias e subsídio de férias de 2017, no valor de € 580,02, e que seriam sempre da responsabilidade da recorrida e efectivamente não se encontram pagos, o que confere à recorrente legitimidade acrescida, pelo que nunca poderia o pagamento do vencimento de Maio de 2018, feito em 17/10/2018, e o não pagamento do subsídio de alimentação, do prémio de produtividade, das férias e do subsídio de férias de 2017 permitir à sentença recorrida dizer que não houve uma demonstração de crédito laboral da recorrente sobre a recorrida e que estivesse vencido.
M - Verifica-se que, quer na petição inicial da presente acção, quer na impugnação de documentos apresentados pela recorrida, a recorrente deduziu factos cristalinamente demonstrativos da situação de insolvência, designadamente e em razão de não ter sido aceite pela nova prestadora de serviços na Caixa de Crédito Agrícola, a recorrente não conseguiu apurar a existência de qualquer novo cliente onde a recorrida prestasse serviços e onde a recorrente pudesse desempenhar as suas funções, nem tão pouco no mercado havia conhecimento que a recorrida continuasse a ter qualquer cliente onde exercesse a sua actividade de prestação de serviços de limpeza.
N - Deixando a recorrida de ser contactável e tendo encerrado as suas instalações em manifestação de cessação da actividade, mais foi alegado em termos fácticos que a recorrida deixou de cumprir as suas obrigações em relação à recorrente, desde Maio de 2018 até ao presente, bem como que esse incumprimento era relativo a outros trabalhadores, quer pelo encerramento das suas instalações, já não tendo qualquer actividade que garanta o pagamento das dívidas à recorrente a terceiros.
O - A recorrente alegou ainda que a recorrida não tem meios financeiros próprios, nem fontes de financiamento, não tendo acesso ao crédito bancário, nem tão pouco tem bens móveis ou imóveis que garantam o pagamento das suas dívidas, nem são conhecidos quaisquer créditos da recorrida sobre terceiros, nem quaisquer negócios que os possam gerar, sendo a recorrida, no meio mercantil, considerada uma empresa de risco elevado de tesouraria, pelo que, quer o incumprimento do pagamento aos seus trabalhadores e por período significativo, quer a falta de actividade do exercício do seu objecto social que garanta o pagamento aos credores, quer a inexistência de locais onde os seus trabalhadores possam prestar serviço, determinam uma clara situação de insolvência.
P - Conforme consta da acta de audiência de julgamento de 18 de Janeiro de 2019, não compareceram o devedor, nem o seu representante, apesar de regularmente notificados, o que, nos termos do artigo 35º, número 2, do CIRE, determina que se têm por confessados os factos alegados na petição inicial, estando nestas circunstâncias todos os factos alegados nos artigos 21º a 31º da petição.
Q - Contudo, de todos os factos descritos, a sentença limitou-se a considerar provado que a recorrente não conseguia contactar a recorrida e que esta encerrara as instalações, o que conduziu a que, na sentença, a mesma viesse decidir que não resultara provado a existência de outros créditos vencidos sobre a recorrida, laborais ou outros, quando esta matéria foi expressamente alegada na petição inicial por factos que a lei considera como confessados
R - Apesar de na sentença recorrida resultar provado que o início da prestação de serviços da recorrida na Caixa Central de Crédito Agrícola teve lugar a 01/02/2018, sendo a recorrida substituída no local a 01/06/2018, na parte decisória, a mesma sentença determina que a recorrente estava afecta a esse local de trabalho desde 2008, o que constitui patente contradição entre a matéria provada e a matéria decisória, pelo que na sentença, onde se lê "a requerente estava afecta a esse local desde 2008" deve ler-se "a requerente estava afecta a esse local desse Fevereiro de 2018", tal como aliás consta dos artigos 9º a 16º da impugnação dos documentos feita pela recorrente.
S - A presente acção foi interposta e a recorrida para ela citada em 04/10/2018, sendo certo que, a partir dessa data e nos termos do artigo 260º do CPC, ficaram estabilizados os elementos da instância, designadamente quanto à legitimidade, sendo certo que no momento da propositura da acção se encontravam pendentes todos os créditos reclamados na petição e transcritos na sentença recorrida.
T - Não obstante, a recorrente constar do mapa de transferências que a recorrida transmitiu à empresa S… que iniciara a empreitada de serviços de limpeza no local a 01/06/2018, nessa data a recorrente não tinha completado ainda mais de 120 dias nesse local de trabalho para ser transferida, nem tão pouco lhe fora comunicada qualquer cessão da posição contratual de transferência de trabalhador por conta de outrem, nos termos do artigo 424º do Código Civil, pelo que, operando a transferência nos termos da cláusula 15º do CCT/FETESE, manteve-se integralmente o contrato de trabalho com a recorrida, sendo devidos todos os montantes peticionados.
U - Sobre o fundamento da insolvência, foram alegados nos artigos 21º a 32º da petição inicial factos claros e concludentes sobre a situação de insolvência da recorrida, designadamente da existência de outros créditos laborais vencidos sobre a recorrida, sendo certo que, dada a ausência de comparência na audiência de julgamento por parte da recorrida, tais factos se têm por confessados nos termos do artigo 35º, número 2, do CIRE, sendo matéria mais que suficiente para subsumir a situação desta acção aos artigos 3º, número 1, e 20º, número 1, alíneas a), b) e g) iii) do CIRE, não sendo, por isso, lícito a sentença dar como não provada a inexistência de outros créditos e não declarar a insolvência.
V - Violou a sentença recorrida, para além do erro material cometido e cuja correcção se requer, ao abrigo do artigo 614º do CPC, de que não se prescinde:
a) Sobre a questão da legitimidade da recorrente, o artigo 26º do CPC e o princípio da estabilidade da instância, nele regulado;
b) Sobre a questão da existência de crédito da recorrente, as cláusulas 14º e 15º do CCT/FETESE transcritas, aliás, na sentença, bem como o artigo 279º do CC quanto ao cômputo do prazo condicionante da admissão da recorrente pela nova empresa, e ainda a manutenção do direito à retribuição com juros de mora, segundo o artigo 804º do CC;
c) Sobre a situação do contrato de trabalho e sobre a vinculação da recorrida aos pagamentos devidos à recorrente, os artigos 338º a 341º e 389º, todos do Código do Trabalho, designadamente face à situação social dramática vivida pela recorrente;
d) Sobre a insolvência, o artigo 35º, número 4, quanto à confissão dos factos provados por ausência de presença em audiência de julgamento e, em consequência, os artigos 3º, número 1, e 20º, número1, alíneas a), b) e g), iii), todos do CIRE.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e provado e, por via dele:
a) Ser corrigido o erro material constante da sentença, conforme consta da conclusão R das presentes alegações;
b) Ser, em qualquer caso, sempre revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue procedente e provada a acção de insolvência, quer por total legitimidade da recorrente, quer por estarem preenchidos os requisitos da situação de insolvência;
c) Com custas pela recorrida.»
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a questão essencial a decidir consiste em saber se estão preenchidos os requisitos da peticionada declaração de insolvência da demandada, que pressupõe que se analise o seguinte:
- Existência de créditos laborais invocados pela apelante;
- Caso se verifique a existência dos referidos créditos laborais, se a apelada se encontra em situação de insolvência na aceção dos artigos 3.º e 20.º do CIRE.

B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. Em 1 de Dezembro de 2008, a requerente foi admitida ao serviço da firma TB… - SERVIÇOS DE LIMPEZA, LDA, adiante designada Empregadora, conforme Contrato de Trabalho a Termo Certo em Regime de Tempo Parcial.
2. A partir de 01/12/2008, a requerente passou a exercer a sua actividade profissional remunerada, por conta e sob a autoridade, fiscalização e direcção desta sociedade.
3. As funções da requerente foram desempenhadas nas instalações dos clientes da TB… - SERVIÇOS DE LIMPEZA, LDA com a categoria de funcionária de limpeza.
4. Tendo-lhe sido fixado o horário semanal de 15,5 horas, com o vencimento bruto de € 158,94, acrescido de 30% sobre cada hora nocturna e subsídio de alimentação de € 0,25 por cada hora de trabalho.
5. Por carta de 28 de Janeiro de 2011, a TB… - SERVIÇOS DE LIMPEZA, LDA informou a requerente que o seu contrato de trabalho tinha sido transferido para a empresa LI… - HIGIENE E LIMPEZA, LDA, com salvaguarda de todos os seus direitos em termos de vencimentos, posto de trabalho e antiguidade.
6. Passando a requerente a desempenhar as mesmas funções ao serviço desta sociedade, até 31 de Janeiro de 2018.
7. A partir desta data e sem qualquer informação prévia, ao requerente foi transferida para a L… - SERVIÇOS GERAIS DE MANUTENÇÃO E ADMINISTRAÇÃO, LDA., com o NIPC … e sede na Praceta …, … B, … - … ALGÉS, concelho de Oeiras, aqui requerida, a qual passou a processar o seu vencimento.
8. Esta empresa pertence ao GRUPO L…, em que se integra igualmente a firma LI… - HIGIENE E LIMPEZA, LDA.
9. O vencimento bruto da requerente era de € 290,01 por mês.
10. A partir de 01/06/2018, a prestadora de serviços de limpeza/empregadora da requerente foi substituída nas instalações do cliente em que a requerente desempenhava as suas funções.
11. A requerente prestava as suas funções no cliente Crédito Agrícola S.A. - Caixa Central, com morada na Rua Castilho, 233 - 233/A, Lisboa.
12.  A prestação de serviços e limpezas deste cliente foi adjudicado à empresa SP….
13. A requerida procedeu à comunicação do Mapa de Pessoal afectos aos locais de trabalho adjudicados, nele constando o identificação da requente relativamente ao cliente Crédito Agrícola S.A. - Caixa Central, com morada na Rua Castilho, 233 - 233/A, Lisboa.
14. A requerida procedeu ao pagamento do salário da requerente relativo ao mês de Maio de 2018, em 17.10.1028.
15.  A sociedade SP… informou a requerente que não havia horário disponível para ela, dispensando-a.
16. A requerente não conseguiu contactar a requerida.
17. A requerida encerrou as suas instalações.

C- De Direito
Como supra enunciado o objeto do recurso consiste em saber se estão preenchidos os requisitos da peticionada declaração de insolvência da demandada, importando apreciar, em primeiro lugar, se dos factos provados sai evidenciado que a apelante é credora da apelada em relação aos créditos laborais mencionados na petição inicial.
Por a apelante referenciar nas conclusões de recurso que a sentença violou o artigo 26.º do CPC e o princípio da estabilidade da instância, impõe-se que se clarifique o seguinte:
O processo de insolvência desencadeado por um credor, só tem viabilidade se este vier justificar o seu crédito mediante factos que revelem a origem, a natureza e o respetivo montante (artigos 20.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1, do CIRE).
Esta justificação constitui fator de legitimação substantiva que habilita o requerente da insolvência a prosseguir no interesse da comunidade de credores, assumindo, assim, a iniciativa de suscitar o procedimento insolvencial.
Trata-se, pois, de uma legitimação substantiva que é diversa da legitimidade ativa, ad causam, de natureza processual que se rege subsidiariamente pelas regras do artigo 30.º do CPC 2013 (cremos ser esta a norma que a apelante pretendia invocar ao mencionar o correspondente, mas revogado, artigo 26.º do CPC 1961), e que, no caso do autos, já se encontra decidida pelo despacho proferido em 09/01/2019 que apreciou, pela positiva, a legitimidade ad causam da requerente, não tendo tal despacho sido especificamente impugnado, pelo que transitou em julgado.
Assim, independentemente da decisão proferida incorrer ou não em erro de julgamento, não está em causa a aferição da legitimidade processual da apelante ou a estabilidade da instância porque tais questões não se encontram controvertida nesta fase do processo.
Importa também referenciar que a questão suscitada sobre a correta aplicação do artigo 35.º, n.º 2, do CIRE – confissão dos factos alegados na petição inicial por a requerida não ter comparecido à audiência de discussão e julgamento – tem implicações ao nível da aferição da decisão de facto, pelo que se impunha que tal questão fosse apreciada em primeiro lugar.
Sucede, porém, que a matéria que a apelante refere não ter sido considerada confessada incide apenas sobre a situação económica da requerida e, como infra melhor se dirá, a questão é despicienda e não carece de ser apreciada.
Neste pressuposto, passamos, então, a apreciar se os factos provados revelam que a ora apelante é credora da apelada nos termos alegados na petição inicial.
A sentença recorrida deu resposta negativa a esta questão por ter concluído que a posição contratual da apelante, à data de 01/06/2018, se tinha transmitido para a SP…, entidade jurídica diferente da requerida, sendo a mesma responsável pelos créditos laborais alegados na petição inicial, pago que foi o vencimento de maio de 2018 pela requerida, já durante a pendência destes autos.
A apelante, ao invés, defende que não obstante ter sido adjudicado, a partir de 01/06/2018, à referida S…, o local de trabalho onde a apelante prestava serviço, mantém-se o contrato de trabalho entre apelante e apelada, porquanto na referida data, a nova empregadora não estava obrigada a aceitar a recorrente como trabalhadora por esta apenas trabalhar naquele posto de trabalho ao serviço da apelada há 120 dias.
A questão colocada prende-se com o regime jurídico aplicável à relação laboral estabelecida entre as partes.
Estipula o artigo 496.º, n.º 1, do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, e alterações subsequentes), o princípio da dupla filiação, mediante o qual a convenção coletiva obriga o empregador que a subscreve ou filiado em associação de empregadores celebrantes, bem como os trabalhadores ao seu serviço, que sejam membros de associação sindical celebrante.
Porém, o âmbito da convenção coletiva pode alargar-se, total ou parcialmente, por força de portarias de extensão, a entidades empregadoras do mesmo sector económico e a trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga, desde que exerçam a sua atividade no âmbito do sector de atividade profissional definido na convenção coletiva, como prescreve o artigo 514.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
O contrato coletivo de trabalho (CCT) celebrado entre a Associação Portuguesa de FACILITY SERVICES e a FETESE – Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores de Serviços e outros, publicado no BTE n.º 8, de 28/02/2010, veio regular as relações entre, por um lado, as empresas representadas por aquela que se dediquem, entre o mais, à atividade de higiene e limpeza de edifícios, e, por outro, aos trabalhadores ao seu serviço representados pelos sindicatos outorgantes, cujas funções sejam as previstas em tal contrato coletivo[1].
Conforme se estabelece no n.º 1 da cláusula 54.ª, o referido CCT veio revogar e substituir o CCT celebrado entre a Associação Portuguesa de Facility Services e sindicatos outorgantes, publicado no BTE, n.º 15, de 22/04/2008, sendo que nos termos do n.º 3 da referida cláusula, da aplicação do contrato não poderão resultar quaisquer prejuízos para os trabalhadores, designadamente a supressão de regalias de carácter regular ou permanente já existentes.
Por força da Portaria n.º 1519/2008, publicada no DR I Série, de 24/12, foram estendidas as condições de trabalho constantes do aludido CCT de 2008 às relações de trabalho entre empregadores não filiados na associação de empregadores outorgante que exerçam a atividade económica abrangida pela convenção e trabalhadores ao seu serviço das profissões e categorias nele previstas, bem como às relações de trabalho entre empregadores filiados na associação de empregadores outorgante que exerçam a atividade económica abrangida pela convenção e trabalhadores ao seu serviço das mesmas profissões e categorias profissionais não representados pelas associações sindicais outorgantes.
Assim, ainda que na situação em discussão nos autos se desconheça se a ora apelante se encontra sindicalizada, tal questão é irrelevante para efeitos do instrumento de regulamentação coletiva acima referenciado por ser o mesmo aplicável por via da referida Portaria de Extensão n.º 1519/2008.
Sendo certo que, não obstante a revogação e substituição do CCT pelo publicado no BTE, n.º 8, de 28/02/2010, que não foi objeto de portaria de extensão, o certo é que não podendo a mera sucessão de convenções coletivas diminuir o nível de proteção legal dos trabalhadores, os direitos que decorrem de uma convenção só podem ser reduzidos por nova convenção de cujo texto conste, em termos expressos, o seu carácter globalmente mais favorável (artigo 503.º, n.ºs 2 e 3, do Código do Trabalho), o que se conclui é que não tendo o contrato coletivo de trabalho de 2010 sido objeto de portaria de extensão, as disposições do mesmo constantes apenas se aplicam aos sujeitos filiados nas associações sindicais e de empregadores signatárias, continuando aplicar-se a quem não é filiado nessas associações o CCT de 2008 por virtude da Portaria n.º 1519/2008, conclusão esta também alcançada na sentença recorrida.[2]
Releva em especial para a questão decidenda a cláusula 15.º do CCT (igual no CCT de 2008 e de 2010), que tem a seguinte redação:
«1 - A perda de um local de trabalho por parte do empregador não integra o conceito de caducidade nem de justa causa de despedimento.
2 - Em caso de perda de um local de trabalho, o empregador que tiver obtido a nova empreitada obriga-se a ficar com todos os trabalhadores que ali normalmente prestavam serviço.
3 - No caso previsto no número anterior, o trabalhador mantém ao serviço da nova empresa todos os seus direitos, regalias e antiguidade, transmitindo-se para a nova empresa as obrigações que impendiam sobre a anterior, directamente decorrentes da prestação de trabalho como se não tivesse havido qualquer mudança de empregador, salvo créditos que nos termos deste CCT e das leis em geral, já deveriam ter sido pagos.
4 – Para os efeitos do disposto no n.º 2 da presente cláusula, não se consideram trabalhadores a prestar normalmente serviço no local de trabalho:
a) – Todos aqueles que prestam serviço no local de trabalho há 120 ou menos dias;
b) – Todos aqueles cuja remuneração e ou categoria profissional foram alteradas dentro de 120 ou menos dias, desde que tal não tenha resultado directamente da aplicação do instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
Os 120 dias mencionados neste número são os imediatamente anteriores à data do início da nova empreitada (…)».

Decorre desta cláusula que havendo mudança na titularidade da empreitada no tocante a certo «local de trabalho», os trabalhadores que aí exerciam a sua atividade laboral, de serviço de limpeza, passam a ficar vinculados, sem perda de quaisquer garantias, à nova entidade encarregada de realizar tal serviço.
O escopo da cláusula é o de assegurar a estabilidade do emprego aos trabalhadores, num concreto e determinado espaço físico, e, concomitantemente, contribuir para a viabilidade económica das empresas.[3]
E, como decorre da referida cláusula 15.ª para que ocorra uma mudança de titularidade da empreitada relativamente a um certo local de trabalho, é necessário que se verifiquem três requisitos:
(i) a perda do local de trabalho, por parte da empresa a que o trabalhador se encontrava vinculado;
(ii) a afetação do trabalhador a esse local de trabalho;
(iii) a transmissão desse mesmo local de trabalho para uma outra empresa prestadora de serviços.
Em relação ao primeiro dos requisitos – perda do local de trabalho por parte da empresa – o que releva é o facto, objetivo, de a empresa deixar de ter o local de trabalho, independentemente do motivo, pois o que visa o referido regime, como dito, é garantir ao trabalhador a estabilidade do emprego a um determinado espaço físico, mal se compreenderia que o trabalhador deixasse de ter garantida a manutenção nesse local de trabalho quando em nada contribuiu para que a entidade empregadora tivesse perdido esse local de trabalho para o exercício da sua atividade.
No caso em apreço, o que se verifica é que a apelante passou a desempenhar as suas funções na cliente Crédito Agrícola, S.A., na Rua Castilho, 233-233-A, em Lisboa, a partir de 01/02/2011, primeiro por conta e sob a direção da LI… – HIGIENE E LIMPEZA, LDA, até 31/01/2018, e depois de 01/02/2018 até 31/05/2018, por conta e sob a direção da L… – SERVIÇOS GERAIS DE MANUTENÇAO E ADMINISTRAÇÃO, LDA, ora apelada, e depois de 01/06/2018, data em que a nova empregadora SP… passou a prestar serviços para a referida cliente Caixa Agrícola, S.A, por conta e sob a direção da S…, tendo sido por esta dispensada de exercer funções precisamente nesta última data.
Esta conclusão é linear em face do que que ficou provado nos pontos 5 a 15 dos factos provados, donde decorre que o local de trabalho da apelante desde 01/02/2011 até 01/06/2018 correspondia à morada da referida cliente, o que se encontra em conformidade com a relação de pessoal enviada pela apelada à S… onde consta a data de 01/02/2011 como correspondendo ao momento a que reportam os direitos adquiridos da apelante (cfr. fls.24v-259).
Acresce que na Ficha de Funcionário junta a fls. 26v consta como local de trabalho a Rua Castilho. Embora ali também se mencione na parte referente ao historial a transferência do Condomínio Mira, Lisboa, não é percetível a data dessa transferência, sendo certo que a ora apelante nada alegou quanto a essa matéria na petição inicial.
Por conseguinte, em face dos factos provados, que não se encontram impugnados, o que temos como provado é que a apelante tinha como local de trabalho, no período assinalado, a Rua Castilho, em Lisboa.
É, pois, patente a confusão que a apelante faz no que concerne à interpretação da referida cláusula 15.ª, pois o que revela para a sua aplicação no que concerne aos 120 dias ou menos, ali referidos, que excluí a sua aplicação, ou seja, a transmissão do contrato de trabalho, não é a alteração da entidade empregadora, mas a manutenção do exercício de funções do trabalhador no mesmo local de trabalho.
Sendo inquestionável, atenta a decisão de facto, que a apelante se manteve a exercer funções no mesmo local de trabalho muito mais de 120 dias, ou seja, desde 01/02/2011 a 01/06/2018.
Existe, na verdade, um lapso na fundamentação da sentença quando refere que a apelante se manteve naquele local de trabalho desde 2008, reportando-se essa data, presumivelmente, ao momento da celebração do contrato de trabalho com a TB… – SERVIÇOS DE LIMPEZA. LDA (cfr. facto provado n.º 1). Porém, analisado o referido contrato de trabalho (documento n.º 2 junto com a petição inicial), verificou-se que naquele contrato era referido que a apelante tinha dois locais de trabalho e nenhum deles era no cliente Caixa Agrícola, na Rua Castilho, em Lisboa.
Trata-se, contudo, de lapso irrelevante (que, aliás, nunca seria passível de correção ao abrigo do artigo 614.º do CPC, como defende a apelante, já que se reporta à fundamentação da sentença, podendo, eventualmente, justificar a revogação da mesma, se tivesse tal relevância jurídica), pois o período de tempo em que a apelante exerceu funções no local de trabalho relevante para a aplicação da cláusula 15.ª do CCT excede largamente os 120 dias, como já dito.
Alega a apelante que a apelada não lhe deu conhecimento prévio da sua transferência para a apelada, o que resulta do facto provado sob o n.º 7.
Porém, os efeitos jurídicos da transferência do contrato ocorre desde que preenchidos os pressupostos da cláusula 15.ª e comunicada a relação a que se refere o n.º 7 da mesma cláusula, o que se verificou no caso, não dependendo a transferência do contrato da comunicação prévia ao trabalhador. O que este pode fazer é comunicar à anterior entidade empregadora que existe motivo justificado para não se operar a transferência do contrato de trabalho e ingressar nos quadros do novo empregador, o que obriga o anterior empregador a assegurar-lhe novo posto de trabalho (n.º 5 da cláusula 15.º).
Ora, no caso a transferência do contrato de trabalho da apelante da LI… para a L… ocorreu em 01/02/2018, nada tendo invocado a apelante, que continuou a prestar trabalho no mesmo local, pelo que a invocação da falta de comunicação da referida transferência do contrato de trabalho nesta ação, é manifestamente intempestiva e inconsequente. Bem como em relação à falta de comunicação da transferência do contrato de trabalho para a ora apelada, porquanto não alega a apelante que se fez valer do direito que lhe assiste por aplicação do n.º 5 da cláusula 15.ª do CCT, optando, ao invés, pro questionar a transferência do contrato à revelia do regime legal aplicável por força da referida cláusula do instrumento de regulamentação coletiva.
Acresce que o único crédito laboral dos alegados pela apelante que é da responsabilidade da apelada reporta-se ao vencimento de maio de 2018 (nada tendo sido alegado quanto a subsídio de alimentação e prémio de produtividade em relação a esse mês), já que a partir desse mês, ou seja, mês de Junho e seguintes e demais prestações associadas à prestação de trabalho, mesmo que se reportem a trabalho prestado antes, como corre com o pagamento de férias e subsídios de férias de 2017 e 2018, passam a constituir responsabilidade da nova empregadora, a referida S…, uma vez que por força da cláusula 15.ª, n.º 3, transmite-se para a nova empregadora as obrigações que impendiam sobre o anterior empregador, salvo aqueles que nos termos do CCT e das leis em geral, já deveriam ter sido pagos, alegação que a apelante não produz no processo de forma concretizada.
Assim, tendo o vencimento do mês de maio de 2018 sido pago já durante a pendência deste processo (17/10/2018), os restantes créditos laborais invocados não são da responsabilidade da apelada.
Concluindo-se, assim, em consonância com a sentença recorrida, que a apelada não é devedora da apelante por não ter logrado demonstrar a titularidade de créditos laborais vencidos sobre a requerida, ou outros, pelo que a mesma não se encontra legitimada em termos substantivos para requerer a insolvência da apelada (artigos 20.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, do CIRE).
Esta conclusão, por sua vez, determina que se encontre prejudicada a aferição da situação de solvabilidade ou não da apelada. Donde decorre, como acima enunciado, que a questão da alegada incorreção da aplicação do regime do artigo 35.º, n.º 2, do CIRE, se encontra prejudicado, uma vez que tal aferição apenas relevaria se, demonstrado o primeiro pressuposto do pedido de declaração de insolvência deduzido contra a apelada, ou seja, que a requerente era credora da requerida por créditos laborais vencidos e não pagos nos termos em que alegou, mas não logrou provar, como decorre do que ficou dito antes.
Em face de todo o exposto, improcede a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 11 de Julho de 2019

Maria Adelaide Domingos - Relatora
Ana Isabel Mascarenhas Pessoa – 1.ª Adjunta
Eurico José Marques dos Reis - 2.º Adjunto

[1] Leva-se em conta este Instrumento de Regulamentação Coletiva por a apelante se reportar em concreto ao mesmo, excluindo-se, pois, a aplicação de outra convenção coletiva que também vigora no sector de atividade das limpezas, o CCT celebrado entre a Associação das Empresas de Prestação de Serviços de Limpeza e Actividades Similares e o STAD — Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Profissões Similares e Actividades Diversas e outros, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego (BTE), 1.ª Série, n.º 8, de 28 de Setembro de 1993, com alterações subsequentes, designadamente no BTE n.º 12, de 29 de Março de 2004 (alterações e texto consolidado), com retificação publicada no BTE, 1.ª Série, n.º 32, de 29 de Agosto de 2004, objeto de portarias/regulamentos de extensão, designadamente pela portaria n.º 478/2005, DR, I Série, de 13 de Maio.
[2] Cfr. Ac. RE, de 16/05/2013, proc. n.º 179/12.9TTPTM.E1 (João Luís Nunes), em www.dgsi.pt, que temos seguido de perto quanto a esta matéria.
[3] Neste sentido, cfr. Ac. TC, n.º 249/90 de 12 /07/1990, confirmado em plenário pelo Ac. TC n.º 431/91, DR II Série, de 24/04/1992, e Ac. STJ de 07/04/2005, proc. n.º 408/04 - 4.ª Secção, disponíveis no sítio www.dgsi.pt.