Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2069/13.9TCLRS.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: TRANSPORTE COLECTIVO
TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Em caso de concurso da responsabilidade contratual e extracontratual, tendemos a aderir à teoria da exclusão do cúmulo, pelo que se, de um vínculo negocial, resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual.

II. O princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes fixar a disciplina que deve reger as suas relações, impera no âmbito do direito das obrigações; assim sendo, de um prisma dogmático, o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual – nisto de traduz o princípio da consunção.

III. O lesado que sofre danos em virtude e enquanto se fazia transportar em veículo de transporte colectivo de passageiros e que os pretende transferir para a esfera jurídica do operador de transportes, apenas o pode fazer pelo prisma da responsabilidade contratual e tal transferência justifica-se desde que verificados os restantes requisitos, enquanto violação de um crédito, de uma obrigação complexa que obriga o operador a cooperar com esse lesado no cumprimento das obrigações principais do contrato celebrado.

IV. O condutor de um veículo de transporte colectivo de passageiros, que possui lugares sentados e de pé, não se encontra obrigado a condicionar o início da marcha desse mesmo veículo à circunstância de todos os passageiros se encontrarem sentados, não sendo visível ou não lhe sendo comunicada qualquer especial necessidade de um passageiro em concreto.

V. Apurando-se que o condutor iniciou a marcha sem aguardar que a autora se sentasse bem como que a autora caiu e sofreu danos, na sequência de travagem súbita, necessária em virtude de acto de condutor de veículo terceiro, não se vislumbra qualquer incumprimento contratual do condutor do veículo de transporte colectivo de passageiros, que justifique a transferência pelo ressarcimento dos danos sofridos para o operador de transportes.

VI. Ainda que se admitisse a responsabilidade extracontratual desse operador, nem por isso os danos verificados poderiam ser assacados a este, na medida em que o risco, em que hipoteticamente assentaria a sua responsabilidade, não abrange causas terceiras imprevisíveis, nos quadros da causalidade adequada e imputáveis, quer ao lesado quer a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, tudo nos termos do disposto no artigo 505º do Código Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.

      
I.Relatório:


A [ Maria …..]  demandou [ … - Companhia de Seguros, S.A., ], em acção declarativa, com forma de processo sumário, peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de € 22.466,49, acrescida de juros a contar desde a citação até integral e efectivo pagamento bem como da quantia que vier a ser fixada posteriormente, a título de agravamento significativo dos danos.
Alega a autora, em síntese, que, no dia 24/3/2010, sofreu uma queda dentro de um autocarro da empresa de transportes colectivos Rodoviária de Lisboa, S.A., segurado da ré, queda essa provocada pela travagem brusca efectuada pelo condutor do mesmo autocarro que, aliás, teria iniciado a marcha sem aguardar que a autora se sentasse.
Por causa dessa queda, terá sofrido danos físicos e morais, cujo ressarcimento ora peticiona.
Citada, a ré contestou, propugnando pela improcedência da demanda e impugnando motivadamente a factualidade vertida na petição inicial, alegando que a responsabilidade do acidente não pode ser assacada ao condutor do veículo onde seguia a autora mas sim à condução perigosa, desatenta e imprudente imprimida a um veículo terceiro, que, de forma inesperada, invadiu a via de trânsito em que seguia o veículo seguro, sem qualquer sinalização, o que obrigou o condutor deste a efectuar a travagem, para evitar o embate.
Após convite ao aperfeiçoamento, para concretização ou suprimento de insuficiência da matéria de facto alegada, a autora juntou nova petição inicial, que mereceu similar resposta da ré.
Notificadas que foram as partes, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 5º, nº4 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, os autos seguiram os seus termos, culminando com a prolacção de sentença, em 28/3/2019, que decidiu condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 7.652,51, acrescida de juros de mora, contados desde a data da citação e até integral pagamento.
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Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1.Vem o presente recurso interposto da sentença de 1.- instância, na parte em que considerou a ação declarativa parcialmente procedente, condenando a ora Recorrente no seu pagamento;
2.Com interesse para a apreciação das questões objeto deste recurso, vejam-se os pontos 1 a 3, 6 a 11, 21 a 25 e 32 da matéria de facto dada como provada;
3.A sentença recorrida, ao assentar a obrigação de indemnizar da Recorrente na responsabilidade contratual, faz uma errada interpretação e aplicação do Direito; 
4.Entende a Recorrente que o Tribunal laborou em erro, porquanto, há que distinguir a responsabilidade contratual e extracontratual em função do dever violado;
5.Aplicando esta distinção ao caso concreto, parece per se evidente que a Recorrente não tinha para com os passageiros qualquer dever de prestar; esse dever de prestar existe apenas com a transportadora, por força do contrato de transporte;
6.Para com os passageiros, a Recorrente obriga-se a um dever geral de prevenção de perigo que, quando violado, dá lugar à sua responsabilidade extracontratual.
7.Em face do exposto, forçoso será concluir que a douta sentença recorrida incorreu em erro na interpretação e aplicação do Direito ao assentar a obrigação de indemnizar da Recorrente na responsabilidade contratual, erro esse que urge retificar, revogando a douta sentença recorrida;
8.Se a responsabilidade que é imputada à transportadora se funda em incumprimento contratual e não extracontratual, dado que se provou que o motorista da carreira não aguardou que a A. se sentasse, excluída fica qualquer condenação da ora Recorrente por não se encontrar abrangida no âmbito do seguro a responsabilidade da tomadora a um outro título, que não extracontratual;
9.Nestes termos, deve ser revogada a sentença sub judice e substituída por outra que, quanto à natureza jurídica da responsabilidade da Recorrente, declare que a mesma é extracontratual e, em consequência, absolva a Recorrente dos pedidos contra si formulados;
Subsidiariamente, sem prescindir e por mera cautela de patrocínio,
10.No caso em apreço demonstrou-se que o condutor do veículo segurado pela Recorrente travou para evitar o embate com um veículo não identificado que invadiu a sua via de trânsito, sem sinalizar a mudança de via; 
11.O que vale por dizer que o acidente não ocorreu devido aos riscos de circulação do veículo segurado pela Recorrente, mas antes à condução perigosa, desatenta e imprudente de um veículo não identificado;
12.Para se verificar a exclusão de responsabilidade prevista no artigo 505.° do Código Civil não é necessário que o evento seja imputável, a título de culpa, ao terceiro, bastando que objetivamente o evento tenha ocorrido por sua causa;
13.Não pode, por conseguinte, concluir-se que o acidente em causa ocorreu devido aos riscos próprios de circulação do veículo segurado pela Recorrente, mas sim por causa imputável - in casu, com culpa - a terceiro, verificando-se aqui a causa de exclusão da responsabilidade prevista no artigo 505.° do Código Civil;
14.Termos em que deve ser julgada improcedente a ação em relação a todos os pedidos formulados pela Autora, deles absolvendo a ora Recorrente; Subsidiariamente, sem prescindir e por mera cautela de patrocínio,
15.Relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, em virtude das lesões físicas por si sofridas, entende a Recorrente, excessiva a quantia de € 7.500,00 arbitrada, se forem tidas em consideração as circunstâncias do caso concreto e as decisões jurisprudenciais em casos semelhantes.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II.Objecto e delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- Determinação do título de responsabilidade que cobre o dano da autora.
- Análise do comportamento do condutor do veículo onde se fazia transportar a recorrida.
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III.Os factos
Da 1ª instância recebeu-se a seguinte factualidade como provada:
1)No dia 24 de Março de 2010, cerca da(s) 22h:30m, a A. utilizou a carreira n.º 320, da Rodoviária de Lisboa, S.A., tendo entrado no autocarro com matrícula ..-..- RI, na paragem do aeroporto da portela.
2)O motorista da carreira mencionada no artigo anterior, não aguardou que a A. se sentasse, depois de esta ter entrado no respectivo autocarro.
3)Depois da A. ter entrado o motorista arrancou com o autocarro.
4)E passou a circular na rotunda existente na Avenida de Berlim.
5)A referida rotunda é composta por 3 vias.
6)O autocarro circulava na vida da direita e quando se encontrava a descrever a rotunda, surgiu um veículo não identificado, proveniente da via central da mesma.
7)O veículo invadiu a via de trânsito do autocarro, sem sinalizar a mudança de  via.
8)Atravessando-se à frente do autocarro.
9)Para evitar o embate entre o autocarro e o veículo não identificado, o motorista do autocarro travou.
10)O que originou a queda da A. que se encontrava de pé no interior do autocarro.
11)Logo após o acidente, o motorista do referido autocarro mencionou que a travagem se deveu a outro veículo que se encontrava à frente daquele.
12)O motorista depois de se aperceber do sucedido, estacionou e chamou o “INEM”.
13)Tendo sido a A. transportada para o Hospital Curry Cabral e dada entrada às 23h:06m no serviço de urgência.
14)Da queda resultou para a A. traumatismo do crânio, sem perda de consciência, da face latero-posterior direita do tronco e do membro superior direito.
15)Resultaram ainda dores.
16)A A. teve alta hospitalar no dia 25.10, com medicação analgésica e recomendação de repouso.
17)A A. ficou em repouso ao longo de 12 dias, de 24/03/2010 a 04/04/2010, na primeira baixa, período durante o qual esteve impedida de trabalhar.
18)No fim desse período, as A. continuava com dores no ombro direito.
19)Fez 20 sessões de fisioterapia.
20)À data do exame pericial, a A. apresentava as seguintes sequelas: - Ráquis: palpação dolorosa região cervical com contracturas musculares; efectua todos os movimentos da coluna cervical com queixas álgicas nas amplitudes máximas; - Membro superior direito: movimentos conjugados do ombro e do cotovelo sem limitações, com queixas álgicas; abdução e flexão do ombro limitada a 150º por dores. Movimentos passivos sem dores.
21)A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 25.05.2010.
22)A A. teve um período de défice funcional temporário total de 62 dias.
23)A A. sofreu um quantum doloris de 2/7.
24)O défice funcional permanente da integridade física-psíquica é de 2 pontos, sendo admissível dano futuro.
25)A A. pode exercer a sua actividade habitual, mas as sequelas implicam esforços complementares.
26)A A. precisa de tratamentos médicos regulares, nomeadamente tratamentos de MFR duas séries, duas vezes por ano.
27)Na data da queda, a A. tinha cerca de 59 anos.
28)Na data da queda a era empregada de limpeza na Sociedade das Filhas do Coração de Maria, Província Portuguesa.
29)Para além da entidade patronal acima indicada, a A. prestava serviços de limpeza, na empresa “Climex”, onde auferia cerca de 130€ mensais e na empresa “Euromex”, onde auferia cerca de 180€ mensais.
30)A A suportou despesas com o acompanhamento médico constante e medicamentosas, no valor de 152,51€.
31)O veículo com a matrícula ..-..-RI era propriedade da “Rodoviária de Lisboa S.A.”.
32)Por contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n.º 004510491363, válida e eficaz à data do acidente, aquela “Rodoviária de Lisboa S.A.” transferiu para a Ré a responsabilidade civil decorrente da circulação daquele veículo.
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Na sequência de convite às partes para pronúncia relativamente a facto instrumental, que flui da instrução da causa, resulta igualmente provado por acordo o seguinte:
33)O autocarro com matrícula ...-...-RI possuía lotação para passageiros em pé e sentados.
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IV.O Direito
Determinação do título de responsabilidade que cobre o dano da autora.
A primeira questão será a determinação do título de responsabilidade que funda a transferência do ressarcimento do dano invocado pela autora para a transportadora e, em virtude da celebração do contrato de seguro, para com a recorrente.
Entendeu o Exmo. Juiz a quo que tal transferência se justificava por força da responsabilidade contratual, sendo de salientar o seguinte passo da sentença recorrida:
O dever de protecção pela segurança do passageiro, implica a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento pontual da prestação, nomeadamente impedindo que as pessoas sejam transportadas de pé ou que caso o façam, tenham segurança adequada.
A transportadora ao permitir que a A. estivesse de pé violou os deveres que sobre si recaiam.
A conduta do veículo terceiro que originou a travagem não pode afastar o dever da transportadora em assegurar a segurança dos seus passageiros.
Segurança até contra comportamentos violadores das regras do Código da Estrada por outros condutores e com repercussões na condução do autocarro.
Temos, assim, que a culpa da transportadora está demonstrada.
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Assim sendo, a questão que se nos é colocada remete-nos para a temática do concurso da responsabilidade contratual e extra-contratual.
A esse respeito, diz-nos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pg. 521 que Apesar de nítida distinção conceitual existente entre as duas variantes da responsabilidade civil (uma assente na violação de deveres gerais de abstenção, omissão ou não ingerência, correspondentes aos direitos absolutos; a outra, resultante do não cumprimento, lato sensu, dos deveres relativos próprios das obrigações, incluindo os deveres acessórios de conduta, ainda que impostos por lei, no seio da complexa relação obrigacional), a verdade é que elas não constituem, sobretudo na prática da vida, compartimentos estanques. Pode mesmo dizer-se que, sob vários aspectos, responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual funcionam como verdadeiros vasos comunicantes.
Almeida e Costa, Direito das Obrigações, pg. 501, delimita dois grupos distintos, no que se refere à forma de resolver o problema da equação do concurso de ambas as espécies do ilícito civil: os sistemas do cúmulo e do não cúmulo. Dentro do primeiro cabem três perspectivas: a de o lesado se socorrer, numa única acção, das normas da responsabilidade contratual e da extracontratual, amparando-se nas que entenda mais favoráveis; a de conceder-se-lhe opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidade; e a de admitir, em acções autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual. Pelo contrário, o sistema que exclui o cúmulo consiste na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em virtude de um princípio de consunção.
Na falta de opção legislativa expressa, cabe recorrer à argumentação desenvolvida pela doutrina e jurisprudência.
Segundo Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso ..., pg. 285, Ainda hoje pode afirmar-se que o princípio da liberdade de concurso entre as duas pretensões constitui a opinião maioritária, não só da doutrina, como também da jurisprudência em vários espaços jurídicos, entre os quais se pode indicar Portugal, Espanha, Itália, Alemanha e Suiça.
Ainda segundo este Autor, ob. cit., pg. 288, Os danos extra rem são os que respeitam a prejuízos causados na pessoa e no restante património do credor. Nestes danos patrimoniais incluem-se as indemnizações que o accipiens teve de satisfazer em relação a terceiros, mas não o prejuízo causado no objecto da prestação. A responsabilidade contratual não abrange danos extra rem, na medida em que eles estão para além do interesse no cumprimento. Quando a prestação defeituosa causa, em simultâneo, danos circa rem e extra rem, o credor tem direito a uma pretensão indemnizatória, mas há um concurso de normas.
No mesmo sentido, veja-se Antunes Varela: é bem possível que o mesmo acto envolva para o agente (ou o omitente), simultaneamente, responsabilidade contratual (por violar uma obrigação) e responsabilidade extracontratual (por infringir ao mesmo tempo um dever geral de abstenção ou o direito absoluto correspondente), tal como é possível que a mesma ocorrência acarrete para o autor, quer responsabilidade civil, quer responsabilidade criminal, consoante o prisma sob o qual a sua conduta seja observada. (ob. cit., pg. 522).
Ainda em sentido equivalente, veja-se o Ac. do STJ de 22/10/1987, BMJ 370, 529, no sentido de que Podem concorrer relativamente a um mesmo facto danoso, responsabilidade contratual e extracontratual.
Veja-se ainda, do STJ, o Ac. de 23/5/1995, CJSTJ, II, pgs. 103, em concordância total com Romano Martinez, no sentido de que É possível a coexistência da responsabilidade contratual com a responsabilidade extracontratual, sem que tal implique a duplicação de indemnizações que não ocorrerá se os factos ilícitos e suas consequências forem diferentes se modo a verificar-se um concurso de pretensões e não um concurso de normas relativamente à mesma pretensão.
Essa dupla pretensão será de admitir quando o senhorio viola o contrato de arrendamento com a destruição do prédio que, se causadora de danos lhe acarreta responsabilidade contratual, que se não confunde com a responsabilidade extracontratual decorrente da danificação de objectos móveis pertencentes ao arrendatário, embora levada a efeito na mesma ocasião.
Contudo, o sistema da acção híbrida, adoptado também por Vaz Serra no seu anteprojecto – Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual, BMJ 85, 230 -, bem como por Rui de Alarcão, - Direito das Obrigações, 209 -, resulta substancialmente injusto, pois o lesado beneficia das normas que considere mais favoráveis da responsabilidade contratual e extracontratual, afastando as que nos respectivos sistemas repute desvantajosas, como seja o ónus de prova e a solidariedade passiva, como refere Almeida e Costa, ob. cit., pg. 502, a que acresce o problema da determinação do foro competente e da prescrição.
O mesmo facto ilícito, causador de diversos danos na esfera patrimonial da mesma pessoa, mereceria tratamento jurídico distinto, com eventuais consequências contraditórias.
O sistema da cumulação de pretensões em acções autónomas, viola a unidade do facto ilícito e subsequente dano.
Havendo um só dano, resultante de um único facto, nada justifica a duplicação de acções ou concorrência de pretensões,como refere Almeida e Costa, ob. e loc. cit..
A teoria da opção – Pinto Monteiro, Cláusulas limitativas..., pg. 425 - equivale a deixar-se ao lesado a escolha de uma acção baseada no ilícito contratual ou no ilícito extracontratual. É que, além do resto, a questão se analisa no que pode considerar-se um concurso legal ou aparente, em que os dois regimes têm campos de aplicação próprios, sempre citando Almeida e Costa, ob. cit., pg. 503.
Tendemos assim a aderir à teoria da exclusão do cúmulo: se, de um vínculo negocial, resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual. A mesma directriz se impõe quando o facto que produz a violação do negócio jurídico – ou melhor, da relação que dele deriva – simultaneamente preenche os requisitos da responsabilidade aquiliana, na definição de Almeida e Costa, ob. cit., pg. 503.
Podemos defender tal tese com base em três pressupostos: A existência de um contrato estabelece entre as partes mútuos deveres de protecção, mais intensos do que em relação a terceiros – Carneiro da Frada, Contratos e Deveres de protecção, pg. 155 -; o princípio da autonomia privada leva a concluir que, como as partes celebraram um negócio jurídico, pretenderam afastar as regras da responsabilidade delitual, bem como que, como a responsabilidade contratual impõe um regime mais gravoso para o lesante (devedor), o credor tem interesse em não recorrer às regras da responsabilidade aquiliana – Almeida e Costa, ob. cit., pgs. 504 e 505.
Sublinhando que as hipóteses de concurso, como a dos caso dos autos, reconduzem-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas, pois trata-se de uma única conduta ilícita, a merecer uma só indemnização, verdadeiro conflito positivo de regimes, que decorre da circunstância de uma mesma factualidade ser simultaneamente subsumível à responsabilidade contratual  ou à extracontratual.  
A responsabilidade aquiliana intervém se o dano resulta da infracção de um dever geral de conduta, ao passo que a responsabilidade contratual apenas actua quando se verifica a violação de um crédito. Cada uma possui esfera particular ou autónoma de actuação, pelo que não se pode afirmar que se encontram numa relação de especialidade, citando sempre Almeida e Costa, ob. cit., pg. 504.
Como se sabe, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes fixar a disciplina que deve reger as suas relações, impera no âmbito do direito das obrigações; assim sendo, de um prisma dogmático, o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual – nisto de traduz o princípio da consunção – seguindo os passos daquele Ilustre Autor.
No mesmo sentido, veja-se Álvaro Rodrigues, Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos, Direito e Justiça, vol. XIV, 3, pg. 162 e Ângela Cerdeira, Da responsabilidade civil dos cônjuges entre si, pg. 113.
Seguindo esta posição, veja-se o recente Ac. desta Relação, de 24/9/2019 (José Capacete), disponível em www.dgsi.pt.
Será sempre de ressalvar a situação de concurso real, em que o mesmo facto produz dois danos, em pessoas distintas, uma ligada ao lesante por vínculos contratuais e outra, terceiro a tais vínculos, como refere Almeida e Costa, ob. cit., pg. 500, nota (1).
Chegados a este ponto, será rápida e sucinta a conclusão no que respeita ao apuramento do direito aplicável ao caso concreto: o facto ilícito invocado pela autora deverá ser analisado sob o prisma da responsabilidade contratual, pois a transferência do dano para a esfera jurídica da transportadora justifica-se, desde que verificados os restantes requisitos, enquanto violação de um crédito, de uma obrigação complexa que a obriga a cooperar com a autora no cumprimento das obrigações principais do contrato – no caso, um contrato de transporte rodoviário de passageiros, regulamentado pelo Dec.-Lei nº 9/2015, de 15/1/2015, pela Lei nº 52/2015, de 9/6/2015. E pelo Regulamento (CE) nº 1071/2009, de 21 de Outubro de 2009, que estabelece regras comuns no que se refere aos requisitos para o exercício da actividade de transportador rodoviário.
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Análise do comportamento do condutor do veículo onde se fazia transportar a recorrida.
Ora, chegados a este ponto, analisemos, pois, o comportamento do condutor do veículo onde se fazia transportar a autora/recorrida.
E tal comportamento decompõe-se em dois momentos: i) o condutor iniciou a marcha do veículo, sem que aguardasse que a autora se sentasse, permanecendo esta de pé; ii) o condutor travou, o que originou a queda da autora.
Não vemos que, em qualquer destes momentos, o condutor tenha violado qualquer obrigação, principal ou secundária emergente do contrato de transporte; senão, vejamos:
As obrigações principais emergentes ao contrato de transporte rodoviário regular de passageiros encontram-se plasmadas nos arts. 5º e 6º do citado Dec.-Lei nº 9/2015:
Artigo 5.º
Obrigações do operador
1 O operador obriga-se a transportar os passageiros munidos de títulos de transporte ou de outro meio de prova que prove a sua aquisição, nos termos do presente decreto-lei.
2 São obrigações do operador, designadamente:
a)- Publicitar os preços e horários, de forma clara e acessível, nos locais de venda ao público dos títulos de transporte e nos respetivos sítios na Internet;
b)- Emitir o título de transporte ao passageiro, num dos suportes admitidos pelo presente decreto-lei;
c)- Publicitar os direitos e obrigações estabelecidos pelo presente decreto-lei e nas condições gerais de transporte, quando aplicável;
d)- Informar os passageiros, através dos meios adequados, dos serviços alternativos ao seu dispor em caso de supressão temporária de serviços;
e)- Divulgar os vários canais de vendas dos títulos de transporte, bem como os locais de venda dos mesmos;
f)- Prestar o serviço objeto do contrato de transporte com segurança e qualidade, nos termos da legislação aplicável;
g)- Assinalar, devidamente, em todos os autocarros de passageiros os lugares reservados, por ordem prioritária, destinados a pessoas com mobilidade condicionada, grávidas e pessoas com crianças de colo;
h)- Disponibilizar o livro de reclamações, nos termos da lei e do Regulamento.
3 São deveres do pessoal que presta serviço nos serviços de transportes:
a)- Estar devidamente identificado com um cartão emitido pela empresa;
b)- Proceder com urbanidade para com os passageiros e os agentes da fiscalização, prestando os esclarecimentos que lhe sejam pedidos;
c)- Prestar aos passageiros todo o auxílio de que careçam, tendo especial atenção com as crianças, as pessoas com mobilidade condicionada e os idosos;
d)- Velar pela segurança e comodidade dos passageiros;
e)- Verificar, antes de abandonar o veículo em que presta serviço, se no mesmo se encontram quaisquer objetos que nele tenham sido esquecidos pelos passageiros.
4 O condutor deve parar o veículo nas paragens de tomada e largada de passageiros, sempre que lhe seja feito sinal para esse fim, para que a entrada e saída dos passageiros se faça sem perigo para estes e sem prejuízo para a circulação.
5 A obrigação de paragem para tomada de passageiros cessa quando o veículo tiver a sua lotação completa, devidamente sinalizada.
Artigo 6.º
Transporte de pessoas com mobilidade condicionada
O operador obriga-se a estabelecer regras de acesso não discriminatórias aplicáveis ao transporte de pessoas com mobilidade condicionada, nos termos do disposto no Regulamento.
Inexiste qualquer obrigação contratual em fornecer apenas lugares sentados nos veículos de transporte colectivo rodoviário.
Aliás, os lugares do mesmo são contabilizados como X lugares sentados e Y de pé.
Veja-se, para tanto, o art. 10º do citado Dec.-Lei nº 9/2015:
Artigo 10.º
Lugares e sua marcação
1-O título de transporte confere ao passageiro o direito a um lugar sentado, salvo em serviços de transporte que utilizem veículos com lotação para passageiros em pé.
2-As crianças de idade até quatro anos viajam gratuitamente, desde que não ocupem lugar.
3-Nos veículos com lotação para passageiros em pé, consideram-se cativos para pessoas com mobilidade condicionada, doentes, idosos ou que transportem crianças de colo, bem como mulheres grávidas, os quatro lugares correspondentes aos primeiros bancos, a partir da entrada dos veículos, devendo ser devidamente assinalados por meio de dístico.
4-Qualquer passageiro pode ocupar os lugares referidos no número anterior, quando estes estejam vagos, ficando, no entanto, obrigado a cedê-los logo que se apresentem passageiros nas condições referidas no mesmo número.
Violação existiria se o número de passageiros transportados de pé ultrapassasse a lotação do autocarro para esse tipo de transporte – tal não foi sequer alegado.
Violação existiria também caso a autora tivesse advertido o condutor do veículo para que não iniciasse a marcha sem que se sentasse, por ter dificuldades de locomoção ou equilíbrio, por exemplo – tal também não foi sequer alegado.
Violação admitiríamos também caso a autora revelasse especial fragilidade física, evidente ao observador médio ou que se revelasse como «pessoa com mobilidade condicionada» - definida esta, pelo art. 3º, g) do citado Dec.-Lei nº 9/2015 como qualquer pessoa com deficiência ou que se encontre limitada na sua mobilidade devido a uma deficiência ou incapacidade, incluindo a idade, e necessitando de uma atenção especial e da adaptação do serviço de transporte disponível às suas necessidades específicas- , que justificasse de imediato especial cuidado em aguardar que se sentasse, antes de colocar o veículo em marcha – também não foi alegado.
Em rigor, nem sequer foi apurado que a autora se tencionava sentar, intento que não logrou cumprir porque o veículo se pôs em marcha.
Da circunstância apurada de que o condutor iniciou a marcha sem aguardar que a autora se sentasse não se pode retirar, por si só, a violação de qualquer obrigação.
Nem sequer de violação de um dever geral de cuidado e segurança, emergente do art. 5º, nº3, d) do citado Dec.-Lei nº 9/2015 e repetido no art. 20º, nº2 do Código da Estrada (2 - Os condutores de veículos de transporte coletivo de passageiros não podem, no entanto, retomar a marcha sem assinalarem a sua intenção imediatamente antes de a retomarem e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.).
Não se vê como concretizar tal dever genérico na obrigação concreta de, antes de iniciar a marcha, o condutor certificar-se que todos os passageiros se encontram devidamente seguros  (não se demonstrando que, nesse momento a autora não o estivesse, mas apenas e só que se encontrava de pé) e, muito menos, sentados.
Passemos ao segundo comportamento sob análise: o condutor travou, o que originou a queda da autora.
Relativamente ao acto de travagem, diz-nos o art. 24º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada que:
1- O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
2- Salvo em caso de perigo iminente, o condutor não deve diminuir subitamente a velocidade do veículo sem previamente se certificar de que daí não resulta perigo para os outros utentes da via, nomeadamente para os condutores dos veículos que o sigam.
Claro está que os passageiros transportados num veículo de transporte colectivo estarão abrangidos por tal cláusula, sendo imediata a regra que o condutor não deve diminuir subitamente a velocidade sem previamente se certificar que daí não resulta perigo também para estes.
Na medida do exigível, claro está, dentro dos limites que a sua visibilidade para o interior do veículo lhe permite.
Salvo em caso de perigo iminente e a factualidade provada demonstra tal perigo iminente, na medida em que o condutor travou para evitar o embate com veículo terceiro, que se atravessou à frente do autocarro.
Ora, o condutor não assumiu perante a autora e os restantes passageiros transportados a obrigação de não travar o veículo.
Principalmente, não assumiu a obrigação de não travar o veículo perante um perigo iminente, como era o caso.
Pelo contrário, o condutor tem o dever genérico de cuidado no exercício da condução de um veículo pesado, cumprindo-lhe manter o espaço livre e desimpedido à sua frente, de modo a poder efectuar qualquer travagem necessária para evitar um embate.
E foi o que aconteceu: a travagem foi efectuada para evitar o embate com veículo terceiro, que invadiu a via de trânsito do autocarro, sem sinalizar a mudança de direcção, atravessando-se à frente do mesmo.
Do que se conclui pela necessária improcedência da demanda da autora, na medida em que nenhum incumprimento contratual pode ser assacado ao condutor, funcionário do operador de transportes com quem celebrou o contrato de transporte.
Dessa forma, inexiste fundamento para transferir o ressarcimento dos danos sofridos pela autora, para o operador de transportes e, por maioria de razão, para a recorrente/seguradora.
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Sem prejuízo, vamos mais além, para que dúvidas não restem, analisando a posição da autora ao abrigo da responsabilidade extra-contratual ou aquiliana.
A chamada responsabilidade civil extracontratual emergente de factos ilícitos, regulada nos arºs 483º a 498º do Código Civil, que assenta num conjunto de pressupostos (a que se reporta o citado artº 483º ) que a doutrina dominante define do seguinte modo: o facto ou acto humano voluntário, por acção ou omissão; a ilicitude ou antijuridicidade do mesmo; a imputação do facto ao lesante ou agente ,ou seja a sua culpa ; a ocorrência de um dano ou lesão; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Vejam-se, entre outros autores, o Prof. Fernando Pessoa Jorge, in “ Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil “, pg. 52 e segs.; e o Prof. Antunes Varela, in “ Das Obrigações em Geral “, vol. I, parte em que desenvolve esta questão.
No caso em apreço, importa discutir se há ou não algum nexo de causalidade entre a conduta do condutor do autocarro e o acidente verificado de que foi vítima a Autora e danos daí resultantes e, se ocorrendo tal nexo deve ou não ser considerada como culposa a conduta daquele condutor pelo acidente em apreço.
Relativamente ao conceito de culpa, dispõe o n.º 2 do art. 487.º do Código Civil que "a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso".
Comentando esta norma, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA escrevem que "a culpa deve ser apreciada in abstracto, ou seja, em atenção à diligência de um bom pai de família e não à diligência normal do causador do dano". E acrescentam que, "dentro desta concepção da culpa em abstracto, a lei parece inclinar-se ainda para a consideração da negligência como um erro de conduta (envolvendo a própria imperícia ou incapacidade técnica do devedor) e não como uma simples deficiência da vontade" (em Código Civil Anotado, vol. I, ed. 1967, p. 333).
Assim, a referência da lei ao conceito de «bom pai de família» na apreciação da culpa visa acentuar o aspecto ético ou deontológico do «bom cidadão» (o «bonus civis»). Pelo que se incluem no conceito de culpa as práticas de desleixo, de desmazelo ou de incúria causadoras de danos, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento (cfr. o ac. RP de 26-01-2000, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 9921420).
Igualmente escreve ANTUNES VARELA (em "Das Obrigações em Geral", vol. II, 5.ª edição, Almedina, p. 95), "agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo".
No conceito de culpa reportada aos acidentes de viação, tem a jurisprudência entendido maioritariamente que a prova da inobservância das leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensado a concreta inobservância da falta de diligência; e que a posição do lesado é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova (por todos, Acs. do STJ, de 20/11/2003, CJ/STJ, ano XI, t. III, p. 150 e de 17/02/2007, Proc. 96A588, disponível em www.dgsi.pt).
Mas, igualmente, também age com culpa o condutor de um veículo que, apesar de, objectivamente, não ter infringido nenhuma norma legal de condução rodoviária, não observa, no exercício da condução, os deveres gerais de diligência exigíveis ao "condutor médio" e faz uma condução imprudente, desleixada ou tecnicamente errada, e, por algum desses motivos, causa danos a terceiros (citado ac. RP de 26-01-2000 e Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27-03-2008, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 08B761).
Ora, no caso dos autos, face à materialidade fáctica apurada, não se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artºs 483º do Código Civil, nomeadamente, a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano e a imputação do acto ao agente, em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um «bom pai de família». É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (artº 487º, nº2 do Código Civil).
Assim, estando afastada a responsabilidade do condutor do veículo pela eclosão do acidente, importa agora, equacionar a eventual responsabilidade da 1ª Ré, com base na responsabilidade objectiva, ou seja, no risco, nos termos do disposto no nº1 do artº 503º do Código Civil.
A responsabilidade pelo risco, dentro desta matéria, só abrange os danos provenientes dos riscos próprios do veículo. Dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco. Para traduzir esta ideia, a lei refere-se aos «danos provenientes dos riscos próprios do veículo». O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco. O dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta com o facto em que se materializa o risco (cfr. Manual de Acidentes de Viação, Dario Martins de Almeida, 2ª ed. Pág. 317 e ss).
A indemonstração do nexo causal inviabiliza a pretensão do lesado à indemnização com base no risco, pois a responsabilidade objectiva pressupõe todos os requisitos da responsabilidade subjectiva, menos a culpa e a ilicitude do facto (STJ, 21.11.1978, BMJ, 281º-307).
A causa juridicamente relevante de um dano é – de acordo com a doutrina da causalidade adequada adoptada pelo artº 563º do Código Civil – aquela que em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do lesante (cfr. Ac. STJ, 10.03.1998: BMJ, 475º-635).
Ora, preceitua o artigo 505.º do Código Civil, “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”
Verificado qualquer dos pressupostos enunciados no artº 505º entende-se haver uma ruptura do nexo de causalidade – o dano passa a não ser efeito adequado do risco.
É esta a situação verificada no caso sub judice.
Os danos verificados não podem ser assacados à operadora de transportes, na medida em que o risco, em que hipoteticamente assentaria a sua responsabilidade, não abrange causas terceiras imprevisíveis, nos quadros da causalidade adequada, e imputáveis, quer ao lesado quer a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, tudo nos termos do disposto no citado artigo 505º.
Na interpretação deste preceito, veja-se, por todos, o Ac. do STJ, de 4/10/2007 (Santos Bernardino), disponível em www.dgsi.pt:
O Prof. CALVÃO DA SILVA vem, no seu ensino universitário, entendendo que o texto do art. 505º, devidamente interpretado, expressa a doutrina seguinte Cfr. a sua anotação ao Ac. STJ de 01.03.2001, na RLJ ano 134º, págs. 112 e ss, e designadamente, quanto a este ponto, págs. 115/118.:
Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
No entendimento deste ilustre Mestre conimbricense, a lei admite, assim, o concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, sempre que ambos concorram na produção do dano, decorrendo essa admissibilidade (se bem captámos o seu pensamento), do teor da parte inicial do preceito em apreço.
Na verdade – diz CALVÃO DA SILVA, decompondo a norma em análise – a ressalva feita no início do art. 505º (“Sem prejuízo do disposto no artigo 570º”) é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º; e esta é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570º) e o risco da utilização do veículo (art. 503º) resulta do disposto no art. 505º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
E, efectivamente, parece-nos que só assim interpretado o art. 505º, logra significado e efeito útil a sua parte inicial. Assentando a responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º no risco da utilização do veículo, e não na culpa, e estando o concurso da conduta culposa do condutor ou detentor do veículo com facto culposo do lesado previsto directamente no art. 570º, não seria razoável interpretar a parte inicial, acima transcrita, do art. 505º, como aplicável havendo culpas de ambas as partes. Numa tal interpretação, aquela parte inicial seria absolutamente desnecessária: mesmo que o art. 505º dela fosse amputado, sempre o caso de concorrência entre facto ilícito e culposo do condutor e facto culposo do lesado seria regulado pelo disposto no art. 570º.
CALVÃO DA SILVA chama ainda, em favor da sua tese, vária legislação avulsa – em matéria de responsabilidade civil por acidentes com intervenção de aeronave (Dec-lei 321/89, de 25 Set., art. 13º; Dec-lei 71/90, de 2 Mar., art. 14º), ou de embarcação de recreio (Dec-lei 329/95, de 9 Dez., art. 43º), ou no domínio da produção e distribuição de energia eléctrica (Dec-lei 184/95, de 27 Jul., art. 44º), e sobretudo, a respeitante à responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos (Dec-lei 389/89, art. 7º/1, já acima referido) – onde expressamente se refere ou da qual decorre a necessidade de conduta culposa exclusiva do lesado para afastar a responsabilidade pelo risco, ganhando particular relevância este último diploma, que consagra “modelarmente” a tese da concorrência entre o risco da actividade do fabricante e a culpa da vítima.
Assim, uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta (art. 9º/1) a unidade do sistema jurídico – isto é, que considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o referido acervo de normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, essa regra do concurso – e as condições do tempo em que tal norma é aplicada – em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça – impõe, segundo este autor, que se tenha por acolhida, naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, nem sequer se lhe podendo opor o obstáculo representado pelo n.º 2 do mesmo art. 9º, já que tal interpretação tem um mínimo de correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Também BRANDÃO PROENÇA se tem mostrado profundamente crítico em relação ao entendimento tradicional nesta matéria, como logo deixa perceber a passagem, acima transcrita, de sua autoria.
Passagem que reflecte e reafirma um pensamento consolidado, já exaustivamente explanado num estudo de grande valia, que constituiu a sua dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas “A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, Liv. Almedina, Coimbra – 1997., onde este autor proclama Ob. cit., págs. 275/276. que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.
“Numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”.
Daí a opção deste reputado jurista por uma interpretação mais harmónica, que não exclua à partida o concurso entre o risco dos veículos e certas condutas dos lesados.
E é assim que, na ausência de uma norma específica, idêntica à do art. 7º/1 do Dec-lei 389/89, já acima citado, propende para subsumir tal concurso ao critério do n.º 1 do art. 570º, “atendendo ao paralelismo das duas situações de concorrência, sintonizadas com a necessidade de uma adequada repartição do dano” “A conduta do lesado ...”, pág. 819..
A este entendimento doutrinal mais moderno, de afirmação da concorrência do risco com a culpa da vítima – para cujo desenvolvimento é de justiça salientar também o papel dos estudos desenvolvidos por JORGE SINDE MONTEIRO desde há quase 30 anos Cfr. “Responsabilidade civil”, in RDEc., ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, pág. 313 e ss., e “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes, in RDEc., ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, pág. 317 e ss. e ano VI/VII, 1980/1981, pág. 123 e ss. – têm aderido outros prestigiados juristas, como ANA PRATA Cfr. o estudo intitulado “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Fac. de Direito da Univ. do Porto, 2001, pág. 345 e ss., merecendo referência o actual posicionamento do Prof. ALMEIDA COSTA, que, tendo seguido, durante muito tempo, a posição tradicional, na esteira de A. VARELA, se mostra agora sensível à argumentação de BRANDÃO PROENÇA e dos demais arautos da tese da concorrência “Se um facto do próprio lesado, (...) concorrer com a culpa do condutor, a responsabilidade poderá ser reduzida ou mesmo excluída, mediante aplicação do artigo 570º. E, de igual modo, existindo concorrência de facto de terceiro, quanto à repartição da responsabilidade. Ora, valerá esta doutrina para o caso de haver concurso de facto da vítima ou de terceiro, já não com a culpa do condutor, mas com o risco do veículo? Respondem afirmativamente VAZ SERRA, (...), PEREIRA COELHO, (...), SÁ CARNEIRO, (...), e por último BRANDÃO PROENÇA, (...). Afiguram-se-nos ponderosas as considerações aduzidas, designadamente na perspectiva da tutela do lesado” (Direito das Obrigações, 10ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, pág. 639, nota 1..
Entre os práticos do direito tem sido o Juiz Desembargador AMÉRICO MARCELINO, com argumentação consistente, um estrénuo defensor deste entendimento Cfr. “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª ed. revista e ampliada, pág. 309 e ss..

Adoptando o mesmo entendimento, veja-se o Ac. do STJ de 19/3/2019 (Fátima Gomes), disponível na mesma base de dados.
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Ora, no caso concreto, apurou-se que a responsabilidade pelo acidente decorre exclusivamente de culpa de terceiro, do condutor do outro veículo que invadiu a via de trânsito do autocarro, sem sinalizar a mudança de via e atravessando-se à frente do mesmo autocarro.

Sendo o acto de travagem do veículo, imprimido pelo condutor do mesmo, plenamente justificado, como forma de evitar o embate.

E, recordemos, nenhuma crítica havendo a fazer ao prévio comportamento do mesmo condutor, por ter iniciando a marcha do autocarro, sem aguardar que a autora se sentasse.

Do que se conclui que, mesmo ao abrigo da responsabilidade extracontratual, nenhum fundamento se vê que justifique a transferência do ressarcimento dos danos sofridos pela autora, para o operador de transportes em causa e, em consequência, para a seguradora/recorrente.

Daí a procedência da presente apelação, resultando prejudicadas as restantes questões suscitadas pela recorrente.    
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V.Decisão
                                 
Pelo exposto, decide-se, na procedência da apelação, julgar totalmente improcedentes os pedidos formulados pela autora, ora recorrida e, em consequência, determinar a absolvição da ré, ora recorrente, de todos esses pedidos.
Custas em ambas as instâncias pela autora/apelada, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.
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Lisboa, 24 de Outubro de 2019



Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas