Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
623/16.6T8CSC-A.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PROCESSO INCIDENTAL DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O processo de incumprimento do exercício de responsabilidades parentais constitui uma instância incidental, relativamente ao processo principal (de regulação dessas responsabilidades), destinada à verificação de uma situação de incumprimento culposo/censurável de obrigações decorrentes de regime parental (provisório ou definitivo) estabelecido.

II. Sendo este um incidente em processo de jurisdição voluntária, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, adoptando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, nomeadamente dispensando a conferência de pais.

III. A não convocação de conferência de pais, não constitui formalidade essencial, cuja dispensa inquine de nulidade a decisão proferida nos autos.

IV. Não pode o requerido, pretender apenas em sede de recurso, alegar o pagamento da prestação de alimentos, por si não arguida na pendência deste incidente, apesar de notificado para alegar o que tiver por conveniente, sob pena de se considerar assente o seu incumprimento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


AZ, mãe da menor MG, veio requerer em 08/09/17, ao abrigo do disposto nos artigos 41.º e 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, que seja decretado o incumprimento do exercício das responsabilidades parentais contra DG, com residência na Rua X, Portela de Sintra, 2710-428, em Sintra, condenando-se o Requerido no pagamento da quantia de € 1.397,50 (mil trezentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos), referente a prestações de alimentos vencidas, no que toca às despesas escolares e medicamentosas, referente aos meses de Novembro e Dezembro de 2016, bem como os valores referentes aos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2017, à qual acresce os respectivos juros. 
Mais requereu que se oficiasse à Entidade Patronal do Requerido, para proceder directamente ao desconto no seu vencimento da quantia de 100,00 EUR (cem euros) por mês para pagamento da quantia já vencida de 1.397,50 (mil trezentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos), a transferir directamente para a conta da Requerente e que, nos termos do art.º 41.º n.º 1 do RGPTC, o Requerido seja condenado em multa até 20 UCs.

Após, com data de 18/09/17, pela Mmª Juíza foi proferido o seguinte despacho:
Atenta a simplicidade do presente incidente (em que está apenas em causa o eventual dívida a título de pensão de alimentos, relativamente a despesas escolares e medicamentosas), dispenso, por ora, a realização de conferência de pais (n.º 3 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e n.º 1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil).
Notifique o Requerido, com as formalidades da citação, para, em cinco dias, alegar o que tiver por conveniente quanto ao teor do requerimento inicial, e comprovar o pagamento da dívida de alimentos alegada pela requerente, advertindo-o de que, nada alegando nesse prazo, ou não comprovando tal pagamento, se consideram confessados os factos alegados nesse requerimento (n.º 3 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
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Averigue na base de dados disponíveis se o requerido exerce atividade profissional e, na afirmativa, quanto aufere e qual a respetiva entidade patronal.
Oficie ao IEFP, ao Centro Nacional de Pensões e às Finanças, solicitando que informem se o requerido aufere algum abono, subsídio ou remuneração e, em caso afirmativo, qual o seu montante e entidade pagadora.”
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Notificado o requerido deste despacho e para “alegar o que tiver por conveniente quanto ao teor do requerimento inicial, e comprovar o pagamento da dívida de alimentos alegada pela requerente”, nos termos do artigo 43º, nº3 do RGPTC, cfr. Ref. 108604621, 108724118, 10809949, 109134765 e nada tendo dito, foram os autos com vista ao Digno Magistrado do M.P., tendo este promovido que fosse declarado o incumprimento do requerido.

Após, foi proferida decisão, com data de 25/10/17, no seguinte sentido:
“Face ao que resulta dos autos, não subsistem dúvidas de que efectivamente o Requerido não cumpriu o que foi decidido, pelo que desde já se declara tal incumprimento, nos termos do art. 41º do RGPTC.
Decorre da lei, cfr. art. 48º que verificado tal incumprimento, deverão ser accionados os mecanismos previstos para o cumprimento coercivo, concretamente descontos no vencimento do requerido.
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Decisão
Face ao exposto, decide-se:
- Declarar o incumprimento pelo requerido da prestação de alimentos a que está obrigado no montante já vencido de 1.397,50.
Custas a cargo do requerido, que se fixam no mínimo legal.
Registe e notifique.
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Determina-se o desconto mensal no vencimento do requerido no valor de €125,00 correspondente ao valor da pensão de alimentos devida ao menor, acrescido do valor mensal de 50,00€ por conta do valor ainda em divida até integral pagamento.
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Custas a cargo do requerido, no mínimo legal.
Registe e notifique.
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Oficie à entidade patronal para que inicie de imediato os descontos, devendo proceder à transferência bancária dos valores para a conta bancária da requerente e informar o Tribunal do início dos descontos, sob pena de não o fazendo incorrer em multa nos termos do art. 417º do CPC.
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Notifique a requerente para, em 5 dias, indicar qual o seu IBAN, com vista a ser informada a entidade patronal do requerido.”
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Notificado da decisão proferida e não se conformando com a mesma, veio o requerido interpor recurso, formulando no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
“III– Conclusões
a)- o processo de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais não é um incidente da regulação do exercício daquelas responsabilidades.
b)- é um processo com autonomia que exige o regular estabelecimento da relação processual tripartida, Requerente/Tribunal/Requerido.
c)- ao não agendar data para conferência de pais a Mmª Juiz violou o disposto no art.º 41.º, n.º 3 do RGPTC
d)- O Recorrente sempre pagou as pensões de alimentos.
Nestes termos e nos mais que os Excelentíssimos Senhores Desembargadores venham a suprir deve o presente recurso, admitido que seja, obter provimento e ser a decisão recorrida revogada.”
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Pela requerente não foram apresentadas contra-alegações, tendo a Srª Juiz recorrida pugnado pela inexistência de nulidades da decisão.
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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Assim sendo, não constando impugnada a matéria de facto adquirida pelo tribunal de recurso, com observância do disposto no artº 640 do C.P.C., as questões a decidir subsumem-se ao seguinte:
a)- Da admissibilidade da junção de documentos em fase de recurso;
b)- Se a decisão proferida é nula por não ter sido agendada previamente, conferência de pais, nos termos do artº 41 nº3 do RGPTC;
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QUESTÃO PRÉVIA
 
a)- Da admissibilidade de junção de documentos com as alegações de recurso;

Com as alegações de recurso, veio o recorrente juntar um documento, alegado extracto de conta, sem que nada dissesse quanto aos motivos da sua junção.

Ora, dispõe o artº 651 nº1 do C.P.C. que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.”

Por sua vez, o artº 425 do C.P.C., consigna que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”, norma esta excepcional, semelhante à prevista no nº3 do artº 423, no que se reporta à fase junção de documentos em sede de aferição da prova em julgamento.


Sendo esta uma fase excepcional, a junção de documentos em sede de recurso, depende de alegação por parte do apresentante de uma de duas situações:
- a impossibilidade de apresentação deste documento em momento anterior ao recurso. A superveniência em causa, pode ser objectiva ou subjectiva: é objectiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjectiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento;[3]
- o ter o julgamento efectuado na primeira instância, introduzido na acção, um elemento adicional, não expectável, que tornou necessário esta junção, até aí inútil. Pressupõe esta situação, todavia, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere António Santos Abrantes Geraldes, “podem (…) ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 184)

Prossegue ainda este autor, em anotação ao artº 651 nº1, referindo que “a jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 185)[4].

Como referia ainda Antunes Varela (RLJ, Ano 115,º, pág. 95 e segs.), a propósito do regime anterior à Lei 41/2013 “A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos da impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido em 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.

Todos sabem, com efeito, que nem o Juiz nem o Colectivo se podem utilizar de factos não alegados pelas partes (salvo o disposto nos artºs 514º e 665º do CPC). Mas que podem, em contrapartida, realizar todas as diligências probatórias que considerem necessárias à averiguação da verdade sobre os factos alegados (artºs 264º nº 3, 535º, 612º etc.) e que nem o juiz nem o tribunal se têm de cingir, na decisão da causa, às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação ou aplicação das regras de direito (artº 664º - 1ª parte).

A decisão de 1ª instância pode por isso criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto na parte final do nº 1 do artº 706º do CPC.”[5]

Neste caso concreto, o recorrente omite de todo a justificação para a apresentação do documento apenas em fase de alegações, o que sempre imporia a sua rejeição.

De todo o modo, considerando que do mesmo, supostamente, se poderia retirar o pagamento pelo recorrente das prestações de alimentos cujo incumprimento lhe é imputado, trata-se de questão que serviu de fundamento ao incidente interposto pela recorrida, dele foi o recorrente notificado, com a expressa cominação de que, nada dizendo, se consideraria os factos alegados pela requerente, ora recorrida, confessados.

Ora, o recorrente nada disse então, nem veio apresentar o documento (suposto extracto de conta) para prova dos, só agora, alegados pagamentos.

Não se trata assim, nem de documento superveniente, nem de questão nova, nem pode o recorrente pretender deduzir, apenas em fase de recurso, uma defesa que omitiu no processo.

Não é assim admissível, o documento, junto pelo recorrente nas alegações de recurso, indeferindo-se a sua junção, com multa a cargo do recorrente que se fixa em 2 Ucs.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A matéria de facto a considerar é a descrita no relatório acima elaborado, não existindo mais factos a acrescentar, tendo ainda em conta a rejeição do documento junto com as alegações.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Insurge-se o recorrente contra a decisão proferida pelo tribunal recorrido, alegando a sua nulidade por:
- a decisão recorrida ter sido tomada, sem audição dos interessados;
- ter pago as prestações de alimentos que lhe incumbiam.
Em sede de alegações, mais defendeu o recorrente que não devia as prestações solicitadas, porque quanto ao “Colégio, e salvo melhor opinião, a cláusula estipulada no Acordo das Responsabilidades Parentais refere “despesas escolares” e não “despesas com a Escola”.

Apesar de alegado, não foi levada esta questão ao corpo das conclusões, sendo que são estas que delimitam o objecto de recurso.

Passemos pois a apreciar o fundamento da apelação, mormente decidindo se a decisão recorrida é nula por não sido agendada préviamente, conferência de pais nos termos do artº 41 nº3 do RGPTC.

Ora, a respeito das nulidades, dispõe o artº 195º nº1 do Código de Processo Civil, que a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidades quando a lei o declare ou quanto a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 484 (anterior artigo 201 do C.P.C. revogado), afirmava que «O que (neles) há de característico e frisante é a distinção entre infrações relevantes e infrações irrelevantes. Praticando-se um ato que a lei não admite, omitindo-se um ato ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infração, mas nem sempre esta infração é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos:
a)- quando a lei expressamente a decreta;
b)- quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».
No segundo caso — continua o mesmo Autor — «é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa».
A omissão do ato ou da formalidade prescrita influem no exame ou na decisão da causa quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento – cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 3ª Ed., 2014, p. 381.
Posto isto, é regra assente que dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.

Conforme explicava Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 507, «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.»

Também Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 372, afirma que «(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão.»

Já Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8º edição, pag. 52, considera que “a nulidade da sentença exige que a violação da lei processual por parte do juiz, ao proferir alguma decisão, preencha um dos casos agora contemplados no nº1 do artº 615”, nomeadamente por “excesso de pronúncia, dado que sem cumprir essa formalidade, o tribunal não podia conhecer desta questão”(Teixeira de Sousa,Estudos sobre o Novo Processo Civil).   
Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, p. 26, entende que: «sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615 nº1 d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão.” (vidé ainda ac. do T.R. Évora de 10/04/14, disponível para consulta in www.dgsi.pt).

Posto isto, proferido despacho que dispensou a conferência de pais, tal despacho apenas é impugnável por via do competente recurso da decisão final.

Recurso que o recorrente aliás não interpôs, mão fazendo qualquer menção a este despacho, proferido previamente.

Mas ainda que assim não fosse, admitindo que tal recurso se poderia considerar interposto, por via da alegação de nulidade por preterição de formalidade consistente na omissão desta conferência, ainda assim a não convocação de conferência de pais, não constitui formalidade essencial, cuja dispensa inquine de nulidade a decisão proferida nos autos.

Com efeito, os processos tutelares cíveis são processos de jurisdição voluntária, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, adoptando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, seja para coligir oficiosamente provas que repute essenciais às finalidades concretas do processo, seja para prescindir de actos ou de provas que repute inúteis (como o considerou a juiz recorrida ao indeferir a inquirição de testemunhas) ou de difícil obtenção e, neste sentido, incompatíveis com o superior interesse da criança a uma decisão em tempo razoável (ac. do T.R.P. de 14/06/2019, proferido no Proc. nº 148/09.6TBPFR.P1).

Estipulada a regulação do poder paternal de menores, por acordo ou decisão final, é esta vinculativa para ambos os progenitores, impondo o seu cumprimento escrupuloso por ambos, mormente no que respeita a alimentos a estes devidos.

Com a alteração legislativa verificada com a introdução da Lei 141/2015, este incidente regulado anteriormente no artº 181 da OTM e agora nos artºs 41 e segs. do RGPTC, prevê a imediata tomada de medidas destinadas a obter o pagamento forçado das prestações em dívida, que abrangerá as prestações vincendas, através da dedução das quantias necessárias nos rendimentos regulares que o devedor tiver a receber de terceiro, de acordo com o disposto no art.º 48.º do RGPTC, o qual estabelece diversos meios de cobrança expedita e coerciva dos alimentos devidos.

Nestes termos, do disposto no artº 41 nº1 do RGPTC, decorre que “Se, (…) um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.”, designando conferência de pais, ou excepcionalmente, notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.(nº3).

Ora o requerido foi notificado, com as formalidades próprias da citação, para “em cinco dias, alegar o que tiver por conveniente quanto ao teor do requerimento inicial, e comprovar o pagamento da dívida de alimentos alegada pela requerente, advertindo-o de que, nada alegando nesse prazo, ou não comprovando tal pagamento, se consideram confessados os factos alegados nesse requerimento (n.º 3 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).”

Tendo sido regularmente notificado/citado, o requerido nada disse, nem veio impugnar por qualquer meio o despacho então proferido (quer no que se reporta à dispensa da conferência de pais, quer no que reporta à notificação e cominação nela estabelecida).

Nada tendo dito, tem-se por assente o incumprimento, pelo que, não se justificando outras diligências, há que aplicar o disposto no artº 48 do RGPTC, o qual dispõe que

“1 Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a)- Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b)- Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c)- Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
2 As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.”

Conclui-se assim que o processo de incumprimento do exercício de responsabilidades parentais constitui uma instância incidental, relativamente ao processo principal (de regulação dessas responsabilidades), destinada à verificação de uma situação de incumprimento culposo/censurável de obrigações decorrentes de regime parental (provisório ou definitivo) estabelecido.

Sendo este um incidente em processo de jurisdição voluntária, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, adoptando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, nomeadamente dispensando a conferência de pais.

Não pode o requerido, pretender apenas em sede de recurso, alegar o pagamento da obrigação de alimentos, por si não arguida na pendência deste incidente, apesar de notificado para alegar o que tiver por conveniente, sob pena de se considerar assente o seu incumprimento. 
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DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em:
A) rejeitar o documento junto com as alegações por extemporâneo, determinando-se o desentranhamento e a sua devolução ao apelante, condenando-se aquele na pena processual de multa de 2 UC;
B) julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.



Lisboa 22/02/18

   
                               
(Cristina Neves)                                  
(Manuel Rodrigues)                                  
(Ana Paula A.A. Carvalho)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007,Simas Santos,07P2433,de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3]Ac. Tribunal Relação de Coimbra de 20/01/2015, relator Henrique Antunes, proc. nº 2996/12.0TBFIG.C1
[4]Ac. Tribunal Relação de Coimbra de 18/11/14, relator Teles Pereira, proc. nº 628/13.9TBGRD.C1
[5]Ac. do S.T.J. de 26/09/12, relator Gonçalves Rocha, Proc. nº 174/08.2TTVFX.L1.S1