Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4398/21.9T8LSB.L1-8
Relator: RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONFLITO PLURILOCALIZADO
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
DE 27 DE NOVEMBRO (BRUXELAS-IIBIS)
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O Regulamento (CE) 2201/2003, de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis) -substituído pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, com efeitos  a partir de 01.08.2022 - aplica-se directamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, pelo que a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para preparar e julgar acções de divórcio deve ser feita à luz dos critérios (alternativos) consagrados no respectivo art.º 3.º, n.º 1, als. a) e b), que prevalecem sobre os critérios internos previstos nos art.ºs 62.º e 63.º do CPC;
II – O referido Regulamento (CE) 2201/2003, tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a União Europeia;
III – Assim, por aplicação do critério da nacionalidade previsto art.º 3.º, n.º 1 al. b) do referido Regulamento (CE) 2201/2003, os tribunais portugueses são competentes para decretar o divórcio de dois cônjuges de nacionalidade portuguesa, ainda que ambos sejam residentes na Suíça (Estado não membro) e que tenham ocorrido neste local os factos que constituem a causa de pedir do divórcio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. A………., de nacionalidade portuguesa e residente em ……… Suíça, intentou acção especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra B………, de nacionalidade portuguesa e residente em …..Genebra, pedindo que seja declarado dissolvido o casamento entre ambos, por divórcio.
No que concerne à competência internacional do tribunal português, alega que, não obstante as partes residirem na Suíça, ambas têm nacionalidade portuguesa e casaram em Portugal, pelo que se está perante um conflito plurilocalizado com elementos de conexão com Portugal e com a Suíça, sendo que, de acordo com o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27.11, a que Portugal está vinculado, o tribunal português é competente para decidir das questões relativas ao divórcio, por ser o tribunal do Estado-Membro da nacionalidade de A. e R. (artigo 3.º n.º 1, alínea b)), e uma vez que o referido Regulamento é aplicável, apesar de a Suíça não ser um Estado-Membro da União Europeia.
1.2. A R. contestou, arguindo a excepção dilatória da incompetência internacional do tribunal, por considerar serem competentes os tribunais suíços, onde o A. e a R. residem e onde ocorreram os factos integradores da causa de pedir do divórcio, sendo certo que o A. não invocou qualquer necessidade de instaurar a acção em território português, baseando-se somente no critério da nacionalidade.
De relevante, a R. deduziu, também, a excepção dilatória do caso julgado, alegando ter corrido termos no … Juízo do Tribunal de Primeira Instância, da República e Cantão de Genebra, Suíça, uma acção de separação com pedido de medidas de protecção da união conjugal, na qual foi proferida sentença em 01.06.2021, decretando a separação do A. e da R. e ratificado o acordo celebrado entre as partes quanto à regulação das responsabilidades parentais do filho menor, à atribuição da casa de morada de família ao A. e ao pagamento de uma pensão de alimentos pelo A. à R., sendo que tal acção é idêntica à presente quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
1.3. O A. respondeu por escrito, pronunciando-se pela improcedência da excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, dando por reproduzido o alegado na petição inicial.
No que concerne à excepção do caso julgado, defendeu que, de acordo com o Direito suíço, o decretamento de uma sentença relativa a uma separação com pedido de medidas de proteção da união conjugal, nada tem que ver com uma acção de divórcio.
1.4. Foi, então, proferido despacho saneador, que julgou verificada a excepção da incompetência internacional e, consequentemente, absolveu a R. da instância.
1.5. Inconformado, apelou o A., pedindo que a decisão recorrida seja revogada e que se declare o tribunal a quo internacionalmente competente para conhecer do divórcio entre A e R., formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1. Os presentes autos têm vários elementos de conexão que se relacionam com o ordenamento jurídico português e com o ordenamento jurídico suíço.
2. Existe um litígio plurilocalizado do ponto de vista jurídico.
3. Aos presentes autos, cumpre aplicar, não as normas processuais portuguesas, mas sim o Regulamento 2201/2003, de 27 de novembro relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.
4. De acordo com o artigo 3.º n.º 1 do Regulamento 2201/2003, existem três critérios fundamentais que definem a competência internacional do tribunal de um Estado-membro para conhecer de uma ação de divórcio: a residência habitual, a nacionalidade de ambos os cônjuges e o do domicílio comum.
5. Estes critérios são alternativos conforme resulta da redação do mencionado artigo 3.º.
6. Quer o Recorrente, quer a Recorrida têm nacionalidade portuguesa, pelo que se verifica o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges, previsto no mencionado artigo 3.º n.º 1 do Regulamento 2201/2003.
7. O Tribunal a quo é internacionalmente competente para conhecer dos autos de divórcio, tomando em conta que o Recorrente utilizou o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges previsto no mencionado artigo 3.º n.º 1 do Regulamento 2201/2003.
8. Não se alcança o raciocínio do Tribunal a quo quando faz a aplicação de normas do direito processual português aos autos, para se declarar internacionalmente incompetente, tomando em conta que as regras comunitárias integram-se no ordenamento jurídico português, pelo que sempre que o Tribunal português seja chamado a conhecer de uma ação que tenha um elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa deverá deixar cair as regras de competência internacional da lex fori e deve aplicar as regras comunitárias relevantes.
9. O Tribunal a quo é internacionalmente competente para conhecer dos autos de divórcio entre Recorrente e Recorrida, sendo a competência internacional estabelecida em vista da previsão do artigo 3.º do Regulamento 2201/2003, de 27 de novembro, tendo o Recorrente lançado mão do critério da nacionalidade de ambos os cônjuges».
1.6. A R. contra-alegou, defendendo que deve ser mantida a decisão recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«I. Não se verificam os fatores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses previstos nos artigos 62.º e 63.º do CPC;
II. O Recorrente indicou como local de residência habitual a Suíça e não invocou qualquer necessidade de instaurar a ação em território português, baseando-se somente no critério da nacionalidade;
III. Desde logo, é forçoso concluir que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente causa;
IV. Resulta dos autos que não pode ocorrer a aplicação automática do Regulamento CE 2201/2003, de 27 de novembro, porquanto não se verifica o primeiro pressuposto constante da alínea a), do n.º 3.º, daquele regulamento, a Recorrida contestou a competência do estado português e a Suíça não é Estado Membro da União Europeia;
V. Não sendo, por todas as razões expostas, os tribunais portugueses internacionalmente competentes para a presente causa;
VI. A Recorrida intentou, em 6 de novembro de 2020, no Tribunal de Primeira Instância, da República e Cantão de Genebra na Suíça, uma ação de separação com pedido de medidas de proteção da união conjugal, tendo sido proferida Sentença em 1 de junho de 2021, com o decretamento da separação da Recorrida e do Recorrente com efeitos a 30 de setembro de 2020;
VII. No âmbito dos pressupostos desta ação de separação, após o decurso de dois anos do decretamento da separação judicial, não existindo reconciliação, é decretado o divórcio;
VIII. A Recorrida foi citada para os presentes autos apenas no dia 23 de junho de 2021;
IX. Nos termos do artigo 5.º do Regulamento CE 2201/2003, de 27 de novembro, o Tribunal do Estado-Membro que tiver proferido uma decisão de separação é igualmente competente para converter a separação em divórcio;
X. Assim, a separação do Recorrente e da Recorrida foi decretada em ação intentada em Tribunal Suíço e de acordo com a Lei Suíça, sendo, portanto e em qualquer dos casos, a Lei Suíça aplicável, nos termos do disposto no artigo 5.º do Regulamento acima mencionado;
XI. Qualquer decisão proferida nestes autos será objeto de revisão na Suíça, sendo, portanto, revista nos seus termos e de acordo quer com a Lei Suíça quer com o já estipulado na Sentença Suíça proferida, o que pode implicar a existência de duas decisões, sobre os mesmos pedidos, eventualmente contraditórias e ambas exequíveis;
XII. Pelo que, em consequência, verifica-se a exceção de incompetência internacional do Tribunal Português para decretar o divórcio».
1.7. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos art.ºs 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, a questão essencial a decidir consiste em saber os tribunais portugueses são ou não, internacionalmente, competentes para preparar e julgar uma acção de divórcio de dois cônjuges de nacionalidade portuguesa e que celebraram o casamento em Portugal, mas que residem na Suíça, lugar onde ocorreram os factos que constituem a causa de pedir do divórcio.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 1 do CPC, dão-se como provados os seguintes factos, com base nos documentos infra referidos (que têm força probatória plena e/ou não foram impugnados) e no acordo das partes:
1. A…….., natural de Lisboa, e B………., natural de Évora, celebraram entre si casamento católico em …., na freguesia de ….., concelho de Évora, conforme certidão de fls. 14 e 15 do processo físico, que se dá por reproduzida;
2. A………. e B………. residem na Suíça,
3. Correu termos pelo …… do Tribunal de Primeira Instância, da República e Cantão de Genebra, Suíça, uns autos registados sob o n.º …….., em que são partes os ora A. e B
., no âmbito dos quais foi proferida sentença, em 01.06.2021, que reconheceu que as partes se separaram em 30.09.2020 e que ratificou o acordo celebrado entre as mesmas quanto ao usufruto do domicílio conjugal, à regulação das responsabilidades parentais do filho menor de ambos e à fixação de uma pensão de alimentos à ora R., conforme documento de fls. 128 a 136, que e dá por reproduzido;
4. A presente acção especial de divórcio foi proposta no dia 19.02.2021.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Vejamos, então, se os tribunais portugueses são, internacionalmente, competentes para preparar e julgar a presente acção de divórcio.
O tribunal a quo considerou que não, assentando tal entendimento, basicamente, em três ordens de argumentos:
1.º  não estarem verificados os elementos de conexão previstos no art.ºs 62.º e 63.º do CPC:
«O artigo 72.º, estabelece que é competente para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é o tribunal do domicílio ou da residência do autor, estando assim afastado o primeiro elemento de conexão, pois o Autor assumidamente vive na Suíça.
A factualidade que é causa de pedir na presente ação é a violação dos deveres de respeito e separação de facto, que ocorre na Suíça, onde viviam e vivem ambos os membros do casal, pelo que também está afastada o elemento de conexão da alínea b).
Por fim inexiste, pela evidente possibilidade dos Tribunais Suíços apreciarem a ação, o elemento de conexão residual previsto na alínea c) decorrente do principio da necessidade.
Pela matéria em causa, direitos pessoais, não estão preenchidos nenhum dos elementos de conexão do artigo 63º previstos para matérias de diversa natureza, do âmbito dos direitos reais ou societários».
2.º não se aplicar ao caso o Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11:
«(…) certo é que se nos afigura que não sendo a Suíça Estado Membro da EU, não será automática a aplicação do Regulamento, quando tal aplicação é manifestamente contestado pela Ré residente»;
«em face do exposto e não sendo a Suíça, Estado Membro da União Europeia cremos que dificilmente, de modo automático, poderá ser aplicado a cidadãos portugueses naquele país residentes, o artigo 3 do referido Regulamento»;
 «faltando o primeiro dos pressupostos, a integração do Estado da ordem jurídica competente para apreciar a questão, o Estado Suíço, na U.E, não se aplica à situação em apreço o referido Regulamento, reconduzindo-nos às normas que a lei processual civil prevê sobre tal matéria e das quais conforme se concluiu está afastada a competência dos Tribunais portugueses»;
3.º ter corrido termos e ter sido proferida sentença no processo referido no n.º 3 dos factos provados:
«A Ré veio invocar não só a incompetência internacional, como veio afirmar e juntar prova de que a relação jurídica colocada à apreciação deste Tribunal é já objeto  apreciação nos Tribunais Suíços, que sobre a mesma definiu já a cessação de deveres inerentes à conjugalidade e parentalidade, decretando a separação. (…) É certo que não foram aqueles tribunais chamados a dissolver o vínculo matrimonial, que é o pedido destes autos de divórcio. Mas, aceitando-se a competência dos tribunais portugueses, como compatibilizar a mesma, em caso de convolação por divórcio por mútuo consentimento, com as questões já colocadas à apreciação dos tribunais suíços, onde se decidiu casa de morada de família, e guarda do filho menor?».
Não acolhemos este entendimento, como passaremos a demonstrar.
4.2. Como é consabido, a competência internacional respeita ao exercício do poder jurisdicional de um Estado em relação a um conflito que tenha um ou mais elementos de conexão com o estrangeiro, isto é, com uma ou várias ordens jurídicas distintas.
A crescente mobilidade transnacional das pessoas aumentou o número de conflitos transfronteiriços ou plurilocalizados, com a consequente necessidade de determinar qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir esses conflitos, preparando e julgando o mérito de uma acção que tenha subjacente uma relação jurídica plurilocalizada.
Assim, «a competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras» (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra editora, 2.ª ed., 1985, p. 198).
A infracção das regras de competência internacional determinam a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96.º al. a) do CPC), o que constitui uma excepção dilatória (art.º 577.º al. a) do CPC) de conhecimento oficioso (arts. 97.º e 578.º do CPC), que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (art.ºs 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1 al. a), 576.º, n.º 2, e 590.º, n.º 1, do CPC).
No caso dos autos, estamos, inequivocamente, em face de um conflito plurilocalizado, na medida em que existem elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa (a nacionalidade e o lugar da celebração do casamento) e com o ordenamento suíço (a residência de ambas as partes e os factos que constituem a causa de pedir do divórcio).
Coloca-se, por conseguinte, a questão de saber se o tribunal português, onde foi intentada a acção, é competente para a preparar e julgar, o que, como se viu, implica verificar se o poder jurisdicional se mostra atribuído aos tribunais portugueses.
4.3. Nos termos do disposto no art.º 37.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.08), é a lei de processo que fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, sendo certo que esta fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. art.º 38.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
A este respeito dispõe, então, o art.º 59.º do CPC que «sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º».
De acordo com os factores de atribuição da competência internacional previstos no CPC (art.º 62.º do CPC), os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
b) Quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).
Sucede que, na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, importa ainda salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente o Estado e que prevalecem sobre os restantes critérios (o que resulta do citado art.º 59.º do CPC e do art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).
4.4. Chegamos, assim, ao Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis), relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.
O referido Regulamento foi, como se sabe, revogado pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, com efeitos  a partir de 01.08.2022 (cfr. respectivo art.º 104.º, n.º 1), mas este último só é aplicável às acções judiciais intentadas, aos actos autênticos formalmente exarados e aos acordos registados em 01.08.2022 ou numa data posterior (cfr. respectivo art.º 100.º, n.º 1).
Em face da data da propositura da presente acção de divórcio (19.02.2021), releva, pois, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, em cujo n.º 3 se dispõe que:
«1. São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu 'domicílio';
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do 'domicílio' comum.
2. Para efeitos do presente regulamento, o termo 'domicílio' é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda».
Os critérios de competência enumerados no referido art.º 3.º são, inequivocamente, alternativos, não sendo estabelecida qualquer ordem de precedência entre uns e outros.
Indiscutível é, também, que o Regulamento (CE) 2201/2003 aplica-se directamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, nos termos do art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Aliás, o próprio Regulamento, no seu art.º 72.º, prevê que «O presente regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia».
E, se assim é, então a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar, nomeadamente, acções de divórcio deve ser feita à luz dos critérios (alternativos) consagrados no art.º 3º, nº 1, als. a) e b), do Regulamento 2201/2003.
Com efeito, os critérios de atribuição de competência previstos do Regulamento (CE) 2201/2003 aplicam-se de forma plena e obrigatória, no que se refere, nomeadamente, a matéria de divórcio, prevalecendo e substituindo, portanto, os critérios previstos nos art.ºs 62.º e 63.º do CPC.
Por conseguinte, ainda que não se esteja perante um conflito de jurisdições ou ainda que mais nenhuma das jurisdições em jogo, para além de Portugal, seja a de um Estado-Membro da União Europeia, o referido Regulamento tem aplicação, sendo de acordo com o mesmo que deve ser aferida a competência dos tribunais portugueses.
É que, como se viu, tal regulamento não visa regular conflitos de jurisdições (entre Estados-Membros), mas atribuir competência internacional aos tribunais dos diversos Estados-Membros para decidir das matérias nele previstas.
Com efeito, o Regulamento nº 2201/2203 tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a UE.
Sobre o referido carácter universal do âmbito de aplicação espacial do Regulamento n.º 2201/2003, veja-se o que escreveu Patricia Orejudo Prieto de los Mozos, in Diez años de aplicación e interpretación del Reglamento Bruselas II bis sobre crisis matrimoniales y responsabilidad parental (análisis de los aspectos de competencia judicial internacional), publicado en La Ley. Unión Europea, núm. 21, 2014, pp. 5-22: «El Reglamento Bruselas II bis tiene un ámbito de aplicación espacial universal. Esto significa que no se limita a regular situaciones conectadas sólo (o al menos de algún modo) con EEMM. Este instrumento regula cualquier situación, tenga o no vínculos relevantes con la UE. Así, en lo referente a las crisis matrimoniales, las autoridades ante las que se ejercita una acción de separación judicial, divorcio o nulidad de un matrimonio en el momento en el que el Reglamento se encuentra en vigor (vid. supra § 8), deben determinar obligatoriamente su competencia judicial internacional de conformidad con los arts. 3, 4 ó 5 (vid. infra, §§ 14-18). Y conviene hacer especial hincapié en el hecho de que resulta totalmente irrelevante que el matrimonio al que se refiere la correspondiente situación se haya celebrado fuera o dentro de la UE, y entre ciudadanos de EEMM o no, o entre personas domiciliadas en EEMM o no, porque los órganos jurisdiccionales españoles no siempre han comprendido y aplicado correctamente este instrumento».
Também Nuno Ascensão Silva, in Regulamento Bruxelas II bis [Regulamento (CE) 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, disponibilizado in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf),considera, considera que «O Bruxelas IIbis regula exclusivamente a competência internacional e supõe, por isso, a existência de uma situação plurilocalizada. Mas a internacionalidade da relação não terá de se traduzir necessariamente na ligação a um Estado-Membro: ou seja, as regras do Regulamento são o direito comum da competência internacional dos Estados-Membros dentro do âmbito de matérias por ele abrangidas» (no mesmo sentido, quanto parece, veja-se Maria Helena Brito, in O Regulamento(CE) n.º 2201/2003 do Conselho, Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, I, Almedina, p. 319 e segs.).
Temos, pois, que, apesar de a Suíça não ser Estado-Membro da União Europeia, à luz da definição de Estado-Membro contida no art. 2.º, n.º 3, do Regulamento nº 2201/2003, o caso vertente não pode deixar de estar coberto pelo âmbito espacial deste Regulamento, na medida em que, sendo Portugal um Estado-Membro da UE, a competência internacional dos tribunais nacionais para preparar e julgar a presente acção tem de ser aferida de acordo com as regras de competência internacional consagradas no referido respectivo art.º 3.º, n.º 1, als. a) e b), e nunca à luz da legislação processual civil interna (nomeadamente, os art.ºs 62.º e 63.º do CPC).
Ora, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 3.º do Regulamento n.º 2201/2003, a nacionalidade comum de ambos os cônjuges é, por si só, suficiente para conferir competência internacional aos tribunais do Estado-Membro de que ambos os cônjuges sejam nacionais.
Donde se conclui, inequivocamente, pela competência internacional do tribunal recorrido para preparar e julgar a presente acção, sendo totalmente irrelevante o lugar do domicílio das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio.
Este foi, também, o entendimento acolhido pelo acórdão da RG de 07.05.2020, in www.dgsi.pt, referido pelo A. e pela decisão recorrida: «Como tem sido clarificado pela jurisprudência: “Estabelecendo o artº 3º, nº1, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma ação de Divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual, o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges e, finalmente, o terceiro, o do domicílio comum, verificando-se um deles (o da Nacionalidade de ambos os cônjuges) e apontando ele para Portugal, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a ação foi interposta como o competente (internacionalmente) para a julgar.” (cf acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo nº 3355/13.3TBVIS-A.C1 de 07/01/2014 e do Tribunal da Relação de Évora, no processo 1330/16.5T8FAR.E1 em 12/15/2016)».
Aderimos na íntegra às considerações expendidas no referido acórdão, que, dada a sua clareza, nos limitamos a transcrever:
«(…) já foi salientado que o Regulamento (CE) 2201/2003, exigindo, para a sua aplicação, conexões internacionais, não exige que todas elas ocorram entre Estados membros. (…) Há que ter em atenção que nos termos do nº 4 do artigo 8º Da Constituição da República Portuguesa, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e que em caso de conflito entre as normas internas e comunitárias deve dar-se primazia às normas comunitárias.
Dos mesmos preceitos sobressai ainda outro princípio formador, o da aplicabilidade direta, por força do qual o direito comunitário se aplica na ordem interna sem que se torne necessário assegurar o seu reconhecimento pelo direito nacional.
E atenta a integração que o direito comunitário assume no nosso direito, tem sido assumido que o real alcance dos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil (em sede de competência internacional, no domínio dos conflitos de jurisdições) “se apresenta drasticamente reduzido por força, designadamente, além do terceiro e do quinto regulamentos acima indicados, dos Regulamentos n.º 2201/2003 e n.º 1215/2012.” (Ramos, Rui Manuel Moura, “Introdução ao Direito Internacional Privado da União Europeia”, Imprensa da Universidade de Coimbra, p.10, que continua, na p.23, com o entendimento que se reconheceu que “não é viável estabelecer um regime automático de reconhecimento (com dispensa pois do mecanismo do exequatur) sem a prévia uniformização dos critérios de competência que permitiria a cada Estado acolher o ato resultante do exercício da ação judicial levado a cabo nos demais».
E mais à frente:
«Como se viu a preocupação de uniformização dos critérios de competência dentro dos Estados-Membros, nomeadamente pela dispensa do exequátur e a integração que o direito comunitário assume na nossa ordem jurídica levam a que se conclua que os critérios fixados neste Regulamento que atribuem competência internacional à nossa ordem jurídica sejam aqui aplicáveis, mesmo perante conflitos em que existam elementos de conexão com outras ordens jurídicas que não pertençam a Estados membros da União Europeia. “Caracterizado por Moura Ramos como um direito «inclusivo», o direito comunitário constitui um sistema de normas disciplinadoras da vida jurídica da sociedade «comunitária», cuja aplicação se torna directamente vinculativa na ordem interna dos Estados-Membros (Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, II, Coimbra Editora, 2007, p. 146). Assim, o Regulamento (CE) nº 2201/2003, directamente aplicável na nossa ordem jurídica, contém, entre o mais, regras directas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas”, como se explana no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo 6987/13.6TBALM.L1.S1 de 01/28/2016.
A este propósito, em situação similar, vem de longe a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, visto que já sobre o âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões, que precedeu o presente regulamento, se pronunciou o TJ no Processo C-281/02 Andrew Owusu contra N. B. Jackson, agindo sob o nome comercial «Villa Holidays Bal-Inn Villas», em pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) Civil Division, nos seguintes termos: “O artigo 2.º da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com as alterações introduzidas pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica e pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa, é aplicável num litígio que opõe nos órgãos jurisdicionais de um Estado contratante partes domiciliadas nesse Estado e tem elementos de conexão com um Estado terceiro e não com outro Estado contratante e aplica-se a uma situação que abranja as relações entre os órgãos jurisdicionais de um único Estado contratante e as de um Estado não contratante e não as relações entre os órgãos jurisdicionais de diversos Estados contratantes. Com efeito, embora na verdade a própria a aplicação das regras de competência da Convenção exija a existência de um elemento de estraneidade, o carácter internacional da relação jurídica em causa não tem de necessariamente decorrer, para efeitos da aplicação da referida disposição, da implicação de diversos Estados contratantes, devido ao mérito da questão ou ao domicílio respetivo das partes no litígio. A implicação de um Estado contratante e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado e da localização dos factos controvertidos no segundo, também é suscetível de conferir natureza internacional à relação jurídica em causa».
4.5. A decisão recorrida considera, como se viu, não ser de aplicar ao caso o Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11, por a Suíça não ser um Estado-Membro da União Europeia, mas não justifica porquê, não adiantando qualquer argumento que abale os supra explanados.
Sendo assim, tendo ambos os cônjuges nacionalidade portuguesa e estando, apenas, em causa o seu divórcio, é indiscutível, em face do critério da nacionalidade de ambos os cônjuges, a competência internacional dos tribunais portugueses, não havendo que verificar se estão preenchidos os critérios de conexão dos art.ºs 62.º e 63.º do CPC.
De resto, a circunstância de ter corrido termos e ter sido proferida sentença no processo referido no n.º 3 dos factos provados não invalida, nem abala tal conclusão.
Desde logo, tal processo não constitui uma acção de divórcio, antes tendo objecto diverso, como a própria decisão recorrida reconhece; depois, a pendência de uma causa anterior com objecto supostamente idêntico, convocará questões de litispendência ou caso julgado, mas não interfere com a determinação da competência para a causa posterior; finalmente, não se descortinam quais sejam as dificuldades, alvitradas pelo tribunal a quo, relativas à compatibilização das questões já colocadas à apreciação dos tribunais suíços (onde se decidiu a atribuição da casa de morada de família, a guarda do filho menor e os alimentos à cônjuge), que, a existirem, não podem servir para afastar as regras de competência do art.º 3.º do Regulamento (CE) 2201/2003.
4.6. Uma última palavra para rebater um argumento adiantado pela recorrida na suas contra-alegações.
Defende a mesma que a competência dos tribunais suíços decorre ainda do art.º 5.º do Regulamento CE 2201/2003, de 27.11, de acordo com o qual o tribunal do Estado-Membro que tiver proferido uma decisão de separação é igualmente competente para converter a separação em divórcio.
Sem razão, contudo.
É que o referido art.º 5.º, para além de ressalvar o disposto no art.º 3.º, pressupõe que a decisão de separação tenha sido proferida por um Estado-Membro (o que não ocorre no caso dos autos), só nesse caso lhe atribuindo competência, também, para o divorcio.
É que, como se viu, o Regulamento em causa visa regular a atribuição de competência aos tribunais dos Estados-Membros, não podendo, obviamente, disciplinar e impor competências a Estados não membros.
4.7. Conclui-se, pois, pela total procedência do recurso, suportando a recorrida as custas do mesmo, por ter ficado vencida (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo A. e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se o tribunal recorrido internacionalmente competente para preparar e julgar a presente acção e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pela recorrida.
Notifique.

Lisboa, 23.02.2023
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Teresa Pais
Rui Torres Vouga