Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
260/20.0PLLRS.L1-9
Relator: GUILHERME CASTANHEIRA
Descritores: ESTADO DE EMERGÊNCIA - COVID 19
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I-Com a incriminação contida nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, (de acordo com a Lei n° 27/2006, de 3 de julho, Lei de Bases da Protecção Civil, a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de calamidade são sancionadas nas respectivas penas com a agravação em um terço, nos seus limites mínimo e máximopelo o que foi determinado no Decreto n° 2-B/2020, mais não é do que um reforço semântico do que se encontra determinado no art. 7°, da Lei n° 44/86, de 30 de setembro, Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência e do n° 4, do art. 6° da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, Leis essas aprovadas em Assembleia da República) pretendeu-se tutelar um interesse público, a segurança dos portugueses, consubstanciado em medidas extraordinárias e de carácter urgente, que envolvem necessariamente a restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas através de um conjunto adicional de medidas de modo a minorar o risco de contágio e de propagação da doença COVID-19.
II-Entendendo que a prioridade é a de prevenir a doença induzida pelo virus SARS COV -2, a Covid 19, e sendo de conhecimento que os contactos entre pessoas, constituem forte veículo de contágio e de propagação do vírus, bem como as suas deslocações, as mesmas devem, em estado de emergência, manter-se ao nível mínimo indispensável, tanto mais que se observa uma pandemia a nivel mundial. Trata-se também de uma medida preventiva para que a segurança da generalidade de todos os cidadãos residentes em território português seja assegurada.
III- Se o arguido é interceptado na via pública ( ali estando e em violação da lei)por agentes da autoridade no dia 31/03/2020, e devidamente advertido através de notificação que se encontra junta aos autos, das consequências de voltar a repetir a sua acção praticando assim um crime de desobediência, e mesmo assim em 4/04/2020 é novamente interceptado na via pública por agentes da autoridade e sempre fora das condições permitidas por lei, praticou indubitávelmente um crime de desobediência agravado, previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b) do Código Penal, com referência aos artigos 5.°, 43.°, n.° 1, alíneas c) e d) e n.° 6 do Decreto n.° 2-B/2020, de 2/4, 7.° da Lei n.° 44/86, de 30/9 e 6.°, n.° 1 e 4 da Lei n.° 27/2006, de 03/07, sendo certo que estas normas não são campanhas de sensibilização para o cidadão, sendo seu desiderato punir em “ratio” os cidadãos que as não cumpram.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO:
Nos autos com o nuipc 260/20.0PLLRS.L1, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Loures, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - J1, sob acusação do Ministério Público, foi, em processo abreviado, submetido a julgamento, perante tribunal singular, o arguido AA,
(nascido em Cabo Verde, a …………., solteiro, sem profissão, residente em ……………).
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença pela qual se decidiu absolver “o arguido ……………………….. da prática do crime de desobediência agravado, previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b) do Código Penal, com referência aos artigos 5.°, 43.°, n.° 1, alíneas c) e d) e n.° 6 do Decreto n.° 2-B/2020, de 2/4, 7.° da Lei n.° 44/86, de 30/9 e 6.°, n.° 1 e 4 da Lei n.° 27/2006, de 03/07, que lhe vinha imputado”.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
1-O Ministério Público recorre da douta sentença proferida nos autos supra identificados, que absolveu o arguido da prática de um crime dedesobediência agravada, previsto e punido pelo art.348°, n° 1, alínea b), do Código Penal, com referência aos artigos 5°, 43°, n° 1, alíneas c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020, de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86, de 30 de setembro e art. 6, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006, de 3 de Julho e art° 5° da Resolução da Assembleia da República n° 22¬A/2000, de 2 de abril de 2020.
2 - Mal andou o Tribunal quando deu como não provados os factos: “O arguido, ao permanecer na via pública, na companhia de outro individuo e nas condições acima descritas, sabia que não poderia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que fazia, bem como sabia que havia sido devidamente advertido que a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1 do Código Penal.” e “Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal”.
3 - A matéria de facto dada como provada e não provada encontra-se em contradição em si mesma e com a respectiva motivação da douta sentença proferida.
4 - A absolvição do arguido, foi única e exclusivamente baseada em suposições da Mma. Juíza a quo, em virtude do arguido ter isso julgado na sua ausência e não ter apresentado qualquer contestação.
5 - A única prova produzida em discussão de audiência de julgamento foi a inquirição dos agentes da PSP, tanto dos que abordaram o arguido no dia dos factos, como do agente que anteriormente havia notificado o aqui arguido de que o mesmo se encontrava em obrigação de cumprir o recolher obrigatório.
6 - A Mma. Juíza tomou a cargo, a defesa do arguido quando decidiu aferir dos depoimentos das testemunhas de acusação que não se deu como provado que o arguido tenha desobedecido ou que quisesse desobedecer a tal ordem.
7 - O aqui arguido foi devidamente esclarecido de quais as circunstâncias em que podia permanecer na via pública, por agentes de autoridade, devidamente identificados, e sabia que tinha que obedecer a tais ordens.
8 - A absolvição do arguido tem na génese a posição assumida pelo julgador de que o arguido não estava obrigado a cumprir as ordens que lhe haviam sido dadas porque as mesmas se baseavam em Decreto do Governo e não em Lei emanada da Assembleia da República.
9 - Deverá passar a figurar nos factos provados que:
A) O arguido, ao permanecer na via pública, na companhia de outro individuo e nas condições acima descritas, sabia que não poderia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que fazia, bem como sabia que havia sido devidamente advertido que a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n° 1 do Código Penal.
B) Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal e consequentemente o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência qualificada de eu vem acusado.
10 . Com a incriminação contida nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2­B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, pretende-se tutelar um interesse público, a segurança dos portugueses.
11- Em estado de emergência as medidas extraordinárias e de carácter urgente, que envolvem necessariamente a restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas através de um conjunto adicional de medidas de modo a minorar o risco de contágio e de propagação da doença COVID-19.
12 - Trata-se também de uma medida preventiva para que a segurança da generalidade de todos os cidadãos residentes em território português.
13 - A Assembleia da República, através da Resolução da Assembleia n° 22-A/2020, de 2 de abril de 2020, autorizaram a renovação do estado de emergência decretado, nos termos do disposto nos art. 161°, alínea l) e art. 166°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, do art. 15°, n° 1 e art. 23°, n° 1 da Lei n° 44/86, de 30 de setembro, alterada pela Lei Orgânica n° 1/2012, de 11 de maio.
14 - O Decreto do Presidente da República n° 17-A/2020 de 2 de abril, no qual procedeu à renovação da declaração de estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
15 - A Presidência do Conselho de Ministros elaborou o Decreto n° 2­B/2020 de 2 de abril, tendo no seu art. 46°, n° 6, determinado que “A desobediência e a resistência às ordens legitimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n' 4 do artigo 6' da Lei n' 27/2006, de 3 de julho.”
16 - De acordo com a Lei n° 27/2006, de 3 de julho, Lei de Bases da Protecção Civil, a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de calamidade são sancionadas nas respectivas penas com a agravação em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.
17 - O regime de excecionalidade constitucional, como o que foi decretado com o Estado de Emergência permite que o Governo por Decreto determine quais os comportamentos que devem ser sancionados através de tutela penal.
18 - A Mma. Juíza do tribunal a quo entendeu, em síntese que, “cumpria esgotar todos os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem/recomendação/aconselhamento ( no caso, o recolhimento domiciliário), residindo aí a condição de legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da intervenção mínima do direito penal.”
19 - O alegado excesso de zelo que o julgador plasmou na sua douta sentença, relativamente à Polícia de Segurança Pública mais não foi do que o reflexo de uma actuação própria e de acordo com a lei que se encontrava em vigor, que tinha e teve como único objectivo dissuadir os cidadãos de terem comportamentos disformes à lei, nomeadamente ao dever de recolhimento domiciliário de forma a evitar a propagação de um quadro epidemiológico nefasto para a sociedade.
20 - Da própria acusação resultava de forma clara e inequívoca que o que era peticionado para a condenação do arguido era a aplicação do disposto nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-C/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho.
21 - Em momento algum, o Governo, na execução especifica do estado de emergência, entendeu criminalizar ou agravar criminalizações, sem para tal se encontrar legitimado.
22 - Mal andou o tribunal a quo quando não velou pela aplicação de normas constitucionais e previstas em Lei que regulam o estado de emergência.
23 - O arguido praticou um crime de desobediência agravado, previsto e punido nos art° 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, 292°, n° 1 do Código Penal, o qual é punível com pena de prisão até um ano e 4 meses ou com pena de multa até 160 dias, tendo que ser condenado pelo mesmo.
24 - A conduta praticada pelo arguido, integradora da prática do crime de desobediência agravada nestes circunstancialismos, quer do ponto de vista das necessidades de prevenção geral, quer do ponto de vista das necessidades de prevenção especial que se impunham salvaguardar, deveriam levar o Tribunal a quo a concluir pela sua condenação.
25 - O arguido já havia sido advertido por parte dos agentes de autoridade de que não devia permanecer na via pública com excepção das condições previstas em decreto próprio.
26- A lei é geral e abstrata devendo aplicar-se aos casos em concreto e o desconhecimento da mesma, não pode, nem deve ser valorado a favor do arguido.
27 - A indicação “só podem”, do art. 5°, n° 1 do Decreto 2-B/2020 tem natureza imperativa, sendo dever e obrigação dos cidadãos cumprirem a mesma.
28 - Entendeu o Tribunal a quo, como já foi anteriormente exposto que o comportamento por parte do arguido só seria criminalmente censurável no caso do mesmo persistir.
29 - O dever do arguido perante a notificação da Polícia de Segurança Pública era o de se Abster, Abandonar e quiçá Retroceder nas suas actuações, agindo em conformidade com o direito.
30 - Ao ter absolvido o arguido pelo crime de desobediência agravado nos termos do disposto nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, entendemos que o Tribunal a quo violou os preceitos legais supra expostos, e por decorrência, o principio da universalidade e da igualdade previstos nos art. 12° e 13° da Constituição da República Portuguesa”.
Termina por dever “o presente recurso proceder, por devidamente fundamentado e justificado, devendo ser a decisão a quo, na parte que se refere à imputação criminal, ser substituída por outra, que importe a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência agravado, nos termos sustentados na motivação apresentadas”.
Neste Tribunal, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitiu “parecer no sentido de que o recurso interposto pelo Ministério Público  deve ser julgado procedente”, para tanto discorrendo:
A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância interpôs recurso da sentença proferida em 16 de Novembro de 2020, reproduzida a fls. 75 a 84, recurso este restrito à matéria de direito, defendendo, conforme fls. 91 a 111, que a mesma sentença, em face da matéria de facto dada como não provada, que foi impugnada, por estar está enfermada dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, em conformidade com o disposto no artigo 410.°, n° 2, do Código de Processo Penal; preconizando que, e sendo sanado tal vício do texto decisório, a conduta do arguido AA integra a prática de um crime de desobediência agravada, previsto e punido pelo art.348°, n° 1, alínea b), do Código Penal, com referência aos artigos 5°, 43°, n° 1, alíneas c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020, de 2 de Abril, art. 7° da Lei n° 44/86, de 30 de Setembro e art. 6, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006, de 3 de Julho e art° 5° da Resolução da Assembleia da República n° 22-A/2000, de 2 de Abril de 2020.
Examinados os fundamentos do recurso, nada nos resta acrescentar à muito bem fundamentada argumentação da Exmª Magistrada do Ministério  Público junto da 1ª Instância, que, pela sua correcção jurídica e clareza,  merece a nossa inteira adesão, o que nos dispensa de considerações adicionais quanto ao identificado vício de contradição insanável de padece a sentença impugnada, em conformidade com o disposto no artigo 410.°, n° 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
Em complemento, e num contexto similar da verificação da factualidade reportada nos presentes autos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Proc.° n° 166/20.3PCLRS.L1-9, datado de 11-03-2021, disponível in www.dgsi.pt, explicitou que:
“Cometeu um crime de desobediência simples, previsto e punido no artigo 348.°, n.° 1
al. b) do Código Penal, por referência à violação do artigo 5.° do Decreto n.° 2-A/2020, de 20 de março (que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República a 18 de março de 2020) a conjugar com o artigo 7.° da Lei n.° 44/86 (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), o cidadão que tendo sido interceptado pela autoridade policial a 27 março de 2020 em violação do dever geral do recolhimento domiciliário, sendo-lhe nessa ocasião ordenado que se deslocasse para o seu domicílio o mais rápido possível (o que acatou) e mais notificado, nesse momento, para nele permanecer, com a cominação de que não o respeitando incorreria no crime de desobediência, é encontrado dois dias depois, durante nova acção de fiscalização da PSP, na via pública, a mais de dois quilómetros da sua residência, a conviver com um grupo de indivíduos, ouvindo música, a fumar e a beber, bem sabendo que a sua saída da residência nessas circunstâncias
não estava enquadrada em nenhuma das exceções legalmente estabelecidas.”
No mesmo sentido, refere-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Proc.º n° 266/20.0PGLRS.L1-9, datado de 15-04-2021, disponível in www.dgsi.pt, que:
Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2B/2020 e 2­C/2020, seu art.° 5°, competindo às forças de segurança zelar e fiscalizar o cumprimento de tal dever, nos termos do art.° 46° do Decreto 2-C/2020;
O facto de os arguidos estarem na via pública à conversa com outros indivíduos, em situação de convívio social, não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado os arguidos a tal conduta - art.º 5°, n.° 1, al. u), pelo que deverão ser condenados pela pratica de um crime de desobediência, tendo sido advertidos previamente em data pretérita pelas forças de segurança, quando se encontravam em idêntica situação na via pública;
A resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-C/2020, é sancionada nos termos da lei penal - art.° 46°, n.° 7;
Ora, sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, e tendo as forças de segurança cominado/advertido a prática de um crime de desobediência para os cidadãos, estes, quando sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podem e devem as forças de segurança, nesse caso, proceder desde logo à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário;
De facto, as autoridades têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime, e a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário. Neste contexto, perante o teor dos Decretos do Presidente da República e das Resoluções da Assembleia da República de 2/4 e 17/4, não é defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tem qualquer consequência penal, e que não comporta a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”, pois que estas têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime;
De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre suporte legal nos art.° 7°, da Lei 44/86, art.° 5° do Decreto do Presidente da República n.° 20-A/2020, de 17/4, art.° 5° da Resolução da Assembleia da República n.° 23-A/2020, de 17/4, art.° 46°, n.° 7, do Decreto 2 C/20202, de 17/4, ainda que se exija a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.° 348°, n.° 1, b), do Código Penal, (como atrás de referiu já) a qual, no presente caso, efectivamente até existiu”.
*Dado cumprimento ao artigo 417.°, n.° 2, do Código de Processo Peenal, foi proferido despacho preliminar e colhidos os necessários vistos, tendo, de seguida, lugar a conferência, cumprindo decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO:
1 - Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Mediante o presente recurso, o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior a questão de ser caso de “condenação do arguido pela prática do crime de desobediência agravado”.
2. Passemos, pois, ao conhecimento da questão alegada. Para tanto, vejamos o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
a) O Tribunal declarou, “com relevância para a decisão de mérito”, provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 31/03/2020, cerca das 20:55 horas, o arguido foi intercetado na via pública por agentes da Polícia de Segurança Pública, tendo sido notificado pelo agente BB, por escrito, conforme notificação de fls. 6, da qual consta:
“Nos termos do decreto do Presidente da República n.° 14-A/ 2 0 2 0, de 18 de março, que Declara o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, da Resolução da Assembleia da República n.° 15-A/2020, que autoriza a declaração do estado de emergência e do Decreto n.° 2-A/2020, de 20 de março, que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República acima referido fica notificado ( ...) que se encontra em falta a obediência devida a ordem legitima emanada por autoridade competente no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, pelo que nos termos legais suprarreferidos tem que deslocar-se para o seu domicilio o mais rapidamente possível, onde deve permanecer. Caso não obedeça à ordem legal e legitima que lhe esta a ser emanada, incorre no crime de desobediência, previsto no artigo 348.° do Código Penal, punido com pena de prisão, motivo pelo qual será promovida a sua detenção, bem como a apreensão dos instrumentos, produtos e/ou vantagens relacionados com a prática deste ilícito, para além de outros suscetíveis de servirem como prova”.
2. Nesta data foi ainda o arguido elucidado pelo agente da PSP que, caso viesse a persistir em manter condutas similares e que não obedecesse à ordem que agora lhe estava a ser dada por autoridade policial, incorreria na prática do crime de desobediência.
3. O arguido ficou ciente dessa realidade e do conteúdo da advertência que lhe foi pessoalmente dada pelo agente da PSP, das suas implicações e que nesse contexto não poderia manter-se na via pública, no contexto e pela razão porque o fazia, nem nessa data, nem em momento posterior.
4. No dia 04/04/2020, pelas 15:00 horas, o arguido voltou a ser intercetado na via pública, na Rua ………………, em Camarate, concelho de Loures, a conviver com outro individuo.
5. O arguido tinha consciência plena da advertência e cominação que lhe foi feita no dia 31/03/2020, sabia que a ordem dada era legal e emanada por quem tinha legitimidade para a dar.
6. O arguido sabia o arguido que o país se encontrava em situação de Estado de Emergência e que nesse contexto estava obrigado a acatar o recolhimento domiciliário que lhe havia sido determinado.
Mais se apurou que:
7. Os últimos rendimentos declarados pelo arguido à Segurança Social reportam ao mês de dezembro de 2014 e ao montante de 505 € (quinhentos e cinco euros).
8. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
- No âmbito do processo n.' 18/10.5S6LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 7, por acórdão transitado em julgado em 30/09/2014, foi condenado pela prática, em 10/01/2010, de um crime de roubo, na forma tentada e de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período, com regime de prova;
- No âmbito do processo n.' 661/13.0PTLRSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 8, por sentença transitada em julgado em 03/02/2017, foi condenado pela prática, em 10/06/2013, de um crime de roubo na forma tentada, na pena de 9 meses de prisão, suspensa por 1 ano, com sujeição a regime de prova;
- No âmbito do processo n.' 251/20.1 PLLRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local de Pequena Criminalidade, Juiz 2, por sentença transitada em julgado em 17/09/2020, foi condenado pela prática, em 30/03/2020, de três crimes de injuria agravada, na pena única de 240 dias de multa, à taxa diária de 5 euros;
- No âmbito do processo n.' 276/20.7PLLRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local de Pequena Criminalidade, Juiz 1, por sentença transitada em julgado em 02/07/2020, foi condenado pela prática, em 07/04/2020, de um crime de desobediência, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5 euros”.
b) O Tribunal declarou, por “não demonstrado, com relevo para a decisão da causa”, não provados os seguintes factos:
a) No dia 04/04/2020, o arguido foi elucidado pelo agente da PSP que, caso viesse a persistir em manter condutas similares e que não obedecesse à ordem que agora lhe estava a ser dada por autoridade policial, incorreria na prática do crime de desobediência.
b) O arguido, ao permanecer na via pública, na companhia de outro individuo e nas condições acima descritas, sabia que não poderia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que fazia, bem como sabia que havia sido devidamente advertido que a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1 do Código Penal
c) O arguido confraternizava com o amigo CC há um longo período de tempo.
d) No dia 04/04/2020, o arguido pretendeu não acatar a ordem dada, desobedecendo à mesma como o fez.
e) No dia 4/4/2020, o arguido não acatou o recolhimento domiciliário mesmo após a advertência e cominação que lhe foi pessoalmente feia pela autoridade policial.
f) Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal”.
c) Em sede de motivação da decisão de facto, consignou-se na sentença recorrida:
“Em obediência ao disposto no artigo 389.º-A, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 391.º-F, ambos do Código do Processo Penal, cumpre expor de forma concisa os motivos de facto que fundamentam a antecedente decisão fática.
Esteou-se, pois, o Tribunal, na análise crítica dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD (o agente da Polícia de Segurança Pública que elaborou os autos de noticia juntos a fls. 1 e 2, reportados ao dia 04/04/2020), EE (o agente da Polícia de Segurança Pública que elaborou o auto de noticia de fls. 33 a 35, reportado ao dia 31/03/2020), BB (o agente da Polícia de Segurança Pública que elaborou a notificação de fls. 6, reportada a 31/3/2020) e dos meios de prova documental juntos aos autos e examinados em audiência de discussão e julgamento (autos de notícia de fls. 1-2, a notificação de fls. 6, o auto de noticia de fls. 33, o Certificado de Registo Criminal de fls. 65 a 68, os resultados de pesquisas nas bases de dados 69 e 70).
Assim e no que concerne aos factos reportados ao dia 4/4/2020, o Tribunal baseou-se nas declarações prestadas pelo agente policial DD, o qual confirmou o relatado nos autos de noticia de fls. 1 a 2, designadamente as circunstâncias de tempo e lugar aí mencionadas e que, quando se encontrava em patrulhamento, avistou dois indivíduos a falar numas escadas, os quais abordou passados dois ou três minutos e, tendo verificado que o arguido já tinha sido anteriormente notificado que não poderia estar na via publica, exceto nos casos previstos em legislação própria, foi o mesmo detido e notificado para comparecer em Tribunal, sendo que, nessa altura, o arguido afirmou que encontrava-se naquele local a fumar e a conversar e obedeceu a tudo o que lhe foi determinado.
Por seu turno, o agente EE atestou os factos relatados no auto de noticia de fls. 33 a 35, designadamente que no dia 31/03/2020 receberam uma chamada com a informação de que junto a um estabelecimento de supermercado se encontrava um individuo na via pública a consumir bebidas alcoólicas e tendo-se deslocado a esse local verificou que ali se encontrava arguido, o qual foi notificado e elucidado acerca do estado de emergência, que não podia estar na via publica a consumir bebidas alcoólicas, apenas podia deslocar-se para fazer compras, o que também transmitiu aos seus familiares, sendo que o arguido retorquiu que eles não mandavam nele e começou a injuriar os agentes.
Por sua vez, o agente BB nas suas declarações, atestou os factos a que se reporta a notificação de fls. 6, referindo que o arguido foi notificado nos termos constantes de notificação que foi por ele assinada, tendo sido o agente EE que lhe explicou os termos da mesma, tendo o arguido ficado com o respetivo original.
Ponderados e examinados criticamente os elementos de prova testemunhal e documental, produzidos e examinados em audiência de discussão e julgamento, importa referir que, atenta a forma clara, firme e coesa como os depoimentos das testemunhas foram prestados foi possível dos mesmos extrair, com segurança, a materialidade que se considerou positivamente, tanto mais que a mesma se encontra expressa nos meios de prova documental (autos de noticia e notificação) que se encontram junto aos autos. Note-se que, quer o agente DD, quer o agente EE, afirmaram que a identidade do arguido foi atestada através de documento de identificação com fotografia (passaporte), não tendo dúvidas quanto à mesma.
No que respeita ao conteúdo da notificação que foi realizada ao arguido no dia 31/03/2020, o Tribunal louvou-se no teor do documento que consta de fls. 6, que se encontra devidamente assinado e cujo teor foi atestado pelo agente BB que a elaborou e entregou ao arguido, o qual foi regularmente identificado.
Por seu turno, importa salientar que, conforme igualmente resultou com clareza do depoimento prestado por DD, o arguido, no dia 04/04/2020, foi imediatamente detido, sem ser feita qualquer recomendação prévia ou cominação legal, não tendo o arguido posto em causa qualquer ordem que lhe tenha sido dada, acatando, aliás, pacificamente a sua detenção. Os factos relativos às condições de vida do arguido basearam-se no resultado das pesquisas as bases de dados disponíveis, não tendo sido obtidos outros esclarecimentos, atenta a ausência do arguido em audiência de discussão e julgamento.
Os antecedentes criminais do arguido encontram-se comprovados pelo teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 65-68, devidamente atualizado. No que concerne à materialidade negativamente ajuizada, importa referir, primeiramente, com respeito ao dia 04/04/2020, que tendo resultado demonstrado que o arguido foi imediatamente detido, conforme referiu expressamente o agente DD (que mencionou que o abordou passados dois ou três minutos), em concordância, não poderá dar-se como provado que o arguido se encontrava no local há um longo período de tempo (o que, para além de conclusivo, não foi atestado pelo agente), nem que desobedeceu à ordem que lhe foi dada nesse dia, uma vez que, nessa data, não lhe foi dada qualquer ordem de regresso ao domicilio.
Acresce que, examinado o teor da notificação feita ao arguido em 31/03/2020 e cuja cópia consta de fls. 6, decorre que nessa data lhe foi determinado que devia deslocar-se ao seu domicilio, onde deveria permanecer, com a cominação de que se não obedecesse à ordem legal e legitima “que lhe está a ser emanada incorre no crime de desobediência”. Assim, do teor da referida notificação resulta expressamente que o arguido deveria obedecer à ordem que lhe foi dada no dia 31/03/2020, ordem à qual foi dado cumprimento nessa data.
Ora, não se fazendo referência, naquela notificação, ao período temporal para o qual aquela ordem era válida, sob cominação do crime de desobediência, dificilmente se poderá concluir que o arguido, perante o teor da mesma, estava verdadeiramente ciente de que, se voltasse a permanecer na via pública noutro dia, local e contexto seria imediatamente detido pelo crime de desobediência.
Contribuiu ainda para o Tribunal formar convicção nesse sentido, para além do teor da notificação efetuada no dia 31/03/2020, o facto das circunstâncias em que o arguido foi encontrado em 4/4/2020 na via publica serem inteiramente distintas daquelas a que se reporta o dia 31/03/2020, sendo que o agente EE referiu que, nessa data, o arguido se encontrava na via publica a ingerir bebidas alcoólicas, tendo sido advertido de que não poderia adotar aquela conduta e no dia 4/4/2020, de acordo com o agente DD, o arguido estaria junto a umas escadas, a falar com outro individuo.
Por estes motivos, ainda que o agente EE tivesse referido que no dia 31/03/2020 alertou o arguido de que não poderia estar na via publica a consumir bebidas alcoólicas, entende-se que à luz do teor da notificação por escrito que lhe foi entregue e das regras da experimentação ordinária e do conhecimento que é expetável cada cidadão ter adquirido quanto às regras que foram impostas no período do estado de emergência, designadamente considerando o que resulta expressamente do teor do Decreto n.º 2-A/2020 aprovado pela Presidência do Conselho de Ministros (e à luz do qual foi realizada tal notificação) e do Decreto 2.-B/2020, no qual se estabelecia que os agentes policiais tinham o dever de sensibilizar a comunidade e recomendar aos cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário e, bem assim, que os cidadãos poderiam ausentar-se dos domicílios por diversos motivos (designadamente para deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, retorno ao domicilio pessoal ou outras atividades de natureza análoga, etc), que ao arguido era legitimo ter a expetativa de que em dia posterior ao dia 31/03/2020, noutro local e em situação diversa (em mero convívio com outro individuo) lhe seria feita pelos agentes policiais ou uma nova recomendação ou uma ordem de regresso ao domicilio, mas que ele não incorria, de imediato, na prática de um facto ilícito.
Por tais motivos, se considera que o arguido, para além de não ter desobedecido a qualquer ordem que lhe tenha sido dada em 04/04/2020, outrossim, não estaria ciente que, ao permanecer na via pública nesse dia, sem ter desobedecido a qualquer ordem que lhe tivesse sido dada, incorria num crime de desobediência”.
*3. Apreciação dos fundamentos do recurso:
3.1. Como se observa, o recorrente invoca, em ordem à pretensão
jurisdicional formulada, no sentido de “a decisão a quo, na parte que se refere à imputação criminal, dever ser substituída por outra, que importe a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência agravado”, que ao “ter absolvido o arguido pelo crime de desobediência agravado nos termos do disposto nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, entendemos que o Tribunal a quo violou os preceitos legais supra expostos, e por decorrência, o principio da universalidade e da igualdade previstos nos art. 12° e 13° da Constituição da República Portuguesa”, nessa medida motivando:
Realizado o julgamento, foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos:
“O arguido ficou ciente dessa realidade e do conteúdo da advertência que lhe foi
pessoalmente dada pelo agente da PSP, das suas implicações e que nesse contexto não poderia manter-se na via pública, no contexto e pela razão porque o fazia, nem nessa data, nem em momento posterior.
O arguido tinha consciência plena da advertência e cominação que lhe foi feita no dia 31/03/2020, sabia que a ordem dada era legal e emanada por quem tinha legitimidade para a dar.
O arguido sabia o arguido que o país se encontrava em situação de Estado de Emergência e que nesse contexto estava obrigado a acatar o recolhimento domiciliário que lhe havia sido determinado”.
Pelo Tribunal a quo foram dados como não provados, os seguintes factos:
“O arguido, ao permanecer na via pública, na companhia de outro individuo e nas
condições acima descritas, sabia que não poderia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que fazia, bem como sabia que havia sido devidamente advertido que a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1 do Código Penal”
Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal”
Os factos supra descritos e que o Tribunal a quo deu como provados e não provados, determinaram a absolvição do arguido, sendo que tal absolvição foi única e exclusivamente baseada em suposições da Mma. Juíza a quo, porque como resulta dos autos, o arguido pese embora se encontrar regularmente notificado, não apresentou contestação, não arrolou testemunhas, nem tão pouco compareceu em audiência de discussão e julgamento para apresentar a sua versão dos factos.
A única prova produzida em discussão de audiência de julgamento foi a inquirição dos agentes da PSP, tanto dos que abordaram o arguido no dia dos factos, como do agente que anteriormente havia notificado o aqui arguido de que o mesmo se encontrava em obrigação de cumprir o recolher obrigatório.
O recorrente não coloca em causa a prova produzida em sede de discussão e audiência de julgamento, uma vez que os depoimentos das testemunhas foram claros, simples e explicativos do circunstancialismo dos autos.
Porém, e pasme-se, tomou a Mma. Juíza a cargo a defesa do arguido quando decidiu aferir dos depoimentos das testemunhas de acusação que não se deu como provado que o arguido tenha desobedecido ou que quisesse desobedecer a tal ordem.
Se, efectivamente, tivesse sido essa a posição assumida pelo arguido e caso a mesma estivesse em contradição com a prova produzida em discussão de audiência de julgamento, cabia ao julgador sopesar os prós e contras das versões apresentadas, podendo ser levado a acreditar na versão apresentada pelo arguido.
Contudo, e volta-se a reiterar, o arguido nunca compareceu em audiência de julgamento e mesmo assim o Tribunal entendeu dar como não provado que o arguido quis desobedecer, fundamentando tal decisão na simples circunstância de que, atendendo ao depoimento das testemunhas, o arguido ao avistar no dia dos factos os agentes, ao contrario de terceiros que o rodeavam, decidiu não abandonar o local.
Ora, salvo o devido respeito que é muito, não pode o Tribunal basear-se na decisão que o arguido nesse dia tomou, para considerar que o mesmo não havia percebido a ordem que lhe havia sido comunicada dias antes.
Atentando aos relatos dos agentes e nos quais a douta sentença se fundamentou, o único ensaio possível de obter pelo comportamento do arguido cinge-se única e exclusivamente ao desrespeito que o arguido demonstrou ter pelos agentes policiais e pela sua presença no local, desrespeito esse que infelizmente foi asseverado por decisões do douto Tribunal a quo que na altura dos factos ressoaram na sociedade, nomeadamente na comunidade da área de comarca do Tribunal, no sentido de que os agentes da Polícia de Segurança Pública estavam a actuar em desconformidade com a lei, em virtude dos dispositivos legais se encontrarem feridos de legitimidade orgânica.
O aqui arguido foi devidamente esclarecido de quais as circunstâncias em que podia permanecer na via pública, por agentes de autoridade, devidamente identificados, e sabia que tinha que obedecer a tais ordens.
A absolvição do arguido para além de se basear em factos contraditórios, tem na génese a posição assumida pelo julgador de que o arguido não estava obrigado a cumprir as ordens que lhe haviam sido dadas porque as mesmas se baseavam em Decreto do Governo e não em Lei emanada da Assembleia da República, conforme ressalta da fundamentação da douta decisão.
Assim, e atendendo ao supra exposto, entende o recorrente de que deverá passar a figurar nos factos provados que:
A) O arguido, ao permanecer na via pública, na companhia de outro  individuo e nas condições acima descritas, sabia que não poderia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que fazia, bem como sabia que havia sido devidamente advertido que a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência,  previsto e punido pelo artigo 348°, n° 1 do Código Penal.
B) Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal e consequentemente o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência qualificada de eu vem acusado.
O BEM JURÍDICO TUTELADO
Com a incriminação contida nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2­B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/
segurança dos portugueses, consubstanciado em medidas extraordinárias e de carácter urgente, que envolvem necessariamente a restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas através de um conjunto adicional de medidas de modo a minorar o risco de contágio e de propagação da doença COVID-19.
Entendendo que a prioridade é a de prevenir a doença e sendo de conhecimento que os contactos entre pessoas, constituem forte veículo de contágio e de propagação do vírus, bem como as suas deslocações, as mesmas devem, em estado de emergência, manter-se ao nível mínimo indispensável.
Trata-se também de uma medida preventiva para que a segurança da generalidade de todos os cidadãos residentes em território português.
Reconhecendo-se que as deslocações deveriam respeitar ao mínimo indispensável, os deputados eleitos pelos cidadãos portugueses para a Assembleia da República, através da Resolução da Assembleia n° 22-A/2020, de 2 de abril de 2020, autorizaram a renovação do estado de emergência decretado, nos termos do disposto nos art. 161°, alínea l) e art. 166°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, do art. 15°, n° 1 e art. 23°, n° 1 da Lei n° 44/86, de 30 de setembro, alterada pela Lei Orgânica n° 1/2012, de 11 de maio. Em acto contínuo foi emanado do Senhor Presidente da República Portuguesa o Decreto do Presidente da República n° 17-A/2020 de 2 de abril, no qual procedeu à renovação da declaração de estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
A Presidência do Conselho de Ministros elaborou o Decreto n° 2-B/2020 de 4 de abril, tendo no seu art. 43º, nº 6, determinado que “A desobediência e a resistência às ordens legitimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do
disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do nº 4 do
artigo 6º da Lei nº 27/2006, de 3 de julho.”
De acordo com a Lei n° 27/2006, de 3 de julho, Lei de Bases da Protecção Civil, a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de calamidade são sancionadas nas respectivas penas com a agravação em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.
Ora, aqui chegados cumpre afirmar que o que fora determinado no Decreto n° 2-B/2020, mais não é do que um reforço semântico do que se encontra determinado no art. 7°, da Lei n° 44/86, de 30 de setembro, Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência e do n° 4, do art. 6° da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, Leis essas aprovadas em Assembleia da República.
Como defende o professor André Lamas Leite no seu artigo “Desobediência em tempos de cólera”: a configuração deste crime em estado de emergência e em situação de calamidade”, in Revista do Ministério Público Número Especial COVID-19:2020 “...o legislador pretendeu conferir tutela penal directa a um conjunto de
factualidades tipicamente cunhadas: a) incumprimento do previsto na declaração dos estados de sítio ou de emergência; b) incumprimento da Lei que estabelece o RESEE, de que o regime de execução é somente um exemplo...” .
O regime de excecionalidade constitucional, como o que foi decretado com o Estado de Emergência permite que o Governo por Decreto determine quais os comportamentos que devem ser sancionados através de tutela penal.
A OPÇÃO PELA ABSOLVIÇÃO POR DISCORDÂNCIA COM O DISPOSITIVO LEGAL DO ESTADO DE EMERGÊNCIA
A Mma. Juíza do tribunal a quo entendeu, em síntese que, “cumpria esgotar
todos os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem/recomendação/aconselhamento (no caso, o recolhimento domiciliário), residindo aí a condição de legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da intervenção mínima do direito penal.”
O entendimento do julgador foi no sentido de que sempre que um cidadão não estivesse legitimado para se encontrar na via pública os agentes da Polícia de Segurança Pública deveriam aconselhar o mesmo a regressar à sua habitação, cabendo a tais órgãos fiscalizadores sensibilizar os infractores, aconselhar os mesmos a não permanecerem na via pública.
Foi entendido na douta sentença da qual se discorda que o art. 5º do Decreto 2-B/2020 de 2 de abril não previa de forma expressa a prática pelo arguido do crime de desobediência, considerando que a norma incriminadora se encontrava em aberto, violando dessa forma o princípio da legalidade. O Tribunal a quo fez constar da douta sentença ora recorrida que se lhe suscitam dúvidas relativamente ao Decreto 2-B/2020, chegando mesmo a colocar em causa os procedimentos adoptados pelos agentes de autoridade, ao tecer considerações sobre o facto de somente na comarca de Loures serem apresentados os arguidos e respectivo expediente para julgamento em forma de processo especial abreviado.
Com o devido respeito que é muito, não pode nem deve o julgador do caso em concreto tentar subsumir as suas responsabilidades ao circunstancialismo que rodeia a comarca onde o mesmo exerce funções.
O alegado excesso de zelo que o julgador plasmou na sua douta sentença, mais não foi do que o reflexo de uma actuação própria e de acordo com a lei que se encontrava em vigor, que tinha e teve como único objectivo dissuadir os cidadãos de terem comportamentos disformes à lei, nomeadamente ao dever de recolhimento domiciliário de forma a evitar a propagação de um quadro epidemiológico nefasto para a sociedade.
Sendo certo que conforme entendeu o julgador a actuação dos agentes da Polícia de Segurança Pública deveria iniciar-se através de recomendações e aconselhamento, os agentes de autoridade de forma a esclarecer de forma cabal e sem qualquer margem de dúvida sobre a actuação e comportamento dos mesmos, numa fase inicial e sempre que encontravam um cidadão na via pública fora das condições definidas por decreto, notificavam o individuo, servindo tal notificação, que se encontra junto aos autos, para documentar que o arguido em causa, já havia recebido as devidas recomendações e aconselhamentos e que mesmo assim o mesmo perpetuando o seu comportamento voltou a decidir ir para a via pública conviver com terceiros, em pleno Estado de Emergência e em violação do que fora decretado pelo Conselho de Ministros.
O Ministério Público não compreende, nem pode aceitar que se afirme que sempre que os indivíduos infractores fossem encontrados os mesmos teriam que receber por parte das autoridades recomendações e que somente perante um comportamento persistente da parte do mesmo é que este incorreria em crime de desobediência.
Ficou em aberto na douta sentença ora recorrida, o que entende o julgador por “persistir”, quantas vezes e em que circunstâncias é que o cidadão em causa, neste caso os arguidos deveriam receber recomendações: Todos os dias? Uma vez por semana? Uma vez por mês? A cada renovação do estado de emergência? No mesmo dia no período da manhã e da tarde? E quiçá também nesse mesmo dia, mas já no período da noite?
Ora, salvo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com tal posição, até porque da própria acusação resultava de forma clara e inequívoca que o que era peticionado para a condenação dos arguidos era a aplicação do disposto nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2-B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho.
Em momento algum, o Governo, na execução especifica do estado de emergência, entendeu criminalizar ou agravar criminalizações, sem para tal se encontrar legitimado.
Pelo contrário, mal andou o tribunal a quo quando não velou pela aplicação de normas constitucionais e previstas em Lei que regulam o estado de emergência.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Na verdade, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas a aplicar em sede de condenação têm como finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac. STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194.
No caso dos autos, o arguido praticou um crime de desobediência agravado, previsto e punido nos art° 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 43°, n° 1, alínea c) e d) e n° 6 do Decreto n° 2­B/2020 de 2 de abril, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, o qual é punível com pena de prisão até um ano e 4 meses ou com pena de multa até 160 dias, tendo que ser condenado pelo mesmo.
Dentro destes limites da moldura abstractamente aplicável, deve a medida concreta da pena, nos termos do disposto nos art°s 71° e 40° do Código Penal, ser determinada dentro dos limites de uma sub - moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujo limite mínimo é dado pela defesa do ordenamento jurídico (ponto abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem que seja posta em causa a função tutelar dos bens jurídicos violados no caso concreto), e o limite máximo pela culpa do agente, de forma a adequar a pena às exigências de preservação da dignidade da pessoa humana. Dentro de tal sub-moldura de prevenção, a concreta medida da pena será determinada em função das concretas e particulares exigências de prevenção especial (cfr. Figueiredo Dias, “Consequências Jurídicas do Crime”, páginas 114 e seguintes).
Em tal operação, atender-se-ão a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas das concretas exigências de culpa e prevenção, exemplificativamente enumeradas no art 71º, nº 2 do Código Penal.
No presente caso, as finalidades da punição ficam, a nosso ver, inegavelmente ainda satisfeitas com a aplicação de uma pena de multa ao arguido.
E dizemos “ainda”, porquanto não podemos descurar que o arguido praticou os factos em pleno estado de emergência, numa ocasião em que muitos portugueses lutavam pela sua própria vida e em que a pandemia somente podia ser travada na sua ceifa de vidas humanas, através da inibição de comportamentos, o que o arguido não acatou, sendo nosso entendimento que este factor não deve ser desconsiderado para determinar, quer a pena, quer a medida daquela.
A conduta praticada pelo arguido, integradora da prática do crime de desobediência agravada nestes circunstancialismos, quer do ponto de vista das necessidades de prevenção geral, quer do ponto de vista das necessidades de prevenção especial que se impunham salvaguardar, deveriam levar o Tribunal a quo a concluir pela sua condenação.
O arguido já havia sido advertido por parte dos agentes de autoridade de que não devia permanecer na via pública com excepção das condições previstas em decreto próprio, e pasme-se não compreendemos, nem podemos atender à explicação de que aquando da recomendação, acto do qual existe prova documental, que os agentes de autoridade não elencaram de forma pormenorizada todas as alíneas que permitiam aos cidadãos andar na via pública.
A lei é geral e abstrata devendo aplicar-se aos casos em concreto e o desconhecimento da mesma, não pode, nem deve ser valorado a favor do arguido.
O art. 5°, n° 1 do Decreto 2-B/2020 dispõe que “Os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos 3° e 4° só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para alguns dos seguintes prepósitos...”.
A indicação “só podem”, tem natureza imperativa, sendo dever e obrigação dos cidadãos cumprirem a mesma.
Na douta sentença ora recorrida foi entendido e mal em nosso ver, que o modelo de intervenção mínima está dissonante da legitimidade da ordem, considerando que a mesma não poderia valer para todas as situações e que a Polícia de Segurança Pública devia esgotar todos os meios, residindo de entre a sua actuação o principio da proporcionalidade e intervenção.
Cumpre afirmar nesta sede, que efectivamente concordamos com a posição assumida pelo julgador de que o art. 348°, n° 1, alínea b), do Código Penal é uma norma penal autoridade, entenderam e em nosso ver, bem, passar a escrito, (pois o que não está no processo não está no mundo), um documento, no caso dos autos uma notificação em que faziam, como fizeram constar, o dia, a hora e o local onde o arguido já havia sido aconselhado e recomendado a não permanecer na via pública fora das condições definidas por Decreto.
Entendeu o Tribunal a quo, como já foi anteriormente exposto que o comportamento por parte do arguido só seria criminalmente censurável no caso do mesmo persistir.
Salvo o devido respeito, que é muito, pela douta sentença recorrida a Mma. Juíza a quo não podia afirmar a sua convicção e posterior absolvição do arguido nesse cotejo, uma vez que o comportamento que o arguido devia ter perante a notificação da Polícia de Segurança Pública era o de se Abster, Abandonar e quiçá Retroceder nas suas actuações agindo em conformidade com o direito”.
3.2. Cumpre, desde já, sublinhar que a não possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação da decisão revidenda sobre a matéria em análise, como se demonstra pelo supra aludido no recurso in judice, constitui elemento relevante para o exercício de verificação da existência dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, v.g. do, aqui manifesto, erro na apreciação da prova.
O tribunal a quo, ao dispor de prova, produzida contraditoriamente em audiência, não estabeleceu, em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas, e para lá da apontada contradição e dissonância nos termos, relação de confirmação sequencial das indicações adquiridas através da ponderação do global dessa mesma prova.
O que se impunha concluir era, até por raciocínio lógico, que a prova produzida justificava decisão contrária quanto a esses factos tidos por não provados, os quais, até pela construção jurídica ali adoptada, e para lá do mais apontado, estão desconforme à prova produzida e, nessa medida, à própria fundamentação da matéria de facto e de direito, sem que, no entanto, seja caso de reenvio do processo para novo julgamento, pois que o erro pode aqui ser suprido, decidindo-se da causa - cf. artigo 426.°, n.° 1, do Código de Processo Penal -, observando-se, aliás, que a audiência foi documentada, mediante gravação áudio da prova que em audiência foi oralmente produzida.
É que a prova produzida, e a própria fundamentação, conduzem a decisão diversa daquela que foi tomada quanto àqueles factos, os quais, sem natureza conclusiva e/ou redundante, devem ser tidos como provados, o que infra se consignará.
Tal é a resultante, em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas, dos meios de prova produzidos, contraditoriamente, em audiência, impondo-se estabelecer relação de confirmação sequencial das indicações adquiridas através da ponderação do global dessa prova.
Corrige-se, assim, o decidido, com a correcta inserção desses pontos, a ter lugar na factualidade provada, sem o que, e usando um processo racional e lógico, se retiraria da operada fundamentação uma conclusão contraditória, atentos ainda a que - cf. Maia Gonçalves. in Código de Processo Penal Anotado, 10.ª edição, p. 322 - a “a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.
Aliás, e como ressalta do artigo 348.º, do Código Penal, em sede do crime de desobediência são estruturados duas, distintas, valências incriminadoras: uma, relativa aos casos em que a desobediência é expressamente cominada numa disposição legal, e outra, para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente, exigindo-se então, mas apenas aí, que para haver punição o funcionário ou a autoridade cominem no caso a punição da desobediência à ordem por eles ditada.
Desse modo, a desobediência tem duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado.
O preenchimento dos elementos, objectivos e subjectivos, do tipo legal em referência no caso in judice resulta da apurada conduta, nos termos supra expressos pelo recorrente, em deriva da protecção da autonomia intencional do Estado contida na legislação invocada, pois que não cumprir o que, em termos úteis, resulta da complexidade da previsão é desobedecer.
Observando-se ocorrida quanto ao arguido aquela primeira ordem legal, substancial e formalmente transmitida de forma regular, por autoridade com competência para tanto, e da qual o arguido ficou ciente, a posterior violação da mesma consuma, nos termos provados, o tipo legal em causa.
De facto, a cominação prévia a que, neste particular, o legislador confere relevância criminal reporta-se ao ocorrido na primeira daquelas situações, com a dignidade penal da conduta de violação do dever de obediência a ter essa dupla fonte: por um lado, a provada cominação funcional e, por outro, a, também assente, conduta expressa na articulação das invocadas disposições legais (normas gerais e abstractas anteriores à prática do facto, mesmo que tido por preceitos de direito penal extravagante, mas que não podem ser entendidos como norma penal em branco, no estrito respeito e cumprimento do principio da legalidade, constitucional e legalmente consagrado) que comina no caso punição, sem que - cf. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra, 2001, p. 351 a 353 - a segunda das ocorrências de facto tenha de ficar dependente, para a sua relevância penal, de mais uma cominação funcional.
Tem-se, pois, como provado que o arguido, ao permanecer na via pública, na companhia de outro individuo e nas condições acima descritas, sabia que o não podia fazer, até por ter sido devidamente advertido que a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência e que, ao agir como descrito, o arguido o fez, consciente e voluntariamente, com o propósito de desobedecer a tal ordem, sabendo proibida essa conduta.
O teor dos prestados depoimentos implica conclusão decisiva quanto à culpabilidade do arguido, apontando, dada a inexistência de outro enquadramento, explicação, valoração e/ou diferentes considerações de valor técnico-legal, em sentido diverso do que resultou da sentença absolutória, sem que, de resto, naquele adjectivo contexto, o arguido tivesse apresentado qualquer outra versão.
Emana da decisão revidenda, independentemente da razão de ordem legal, atinente à, nesse particular, nulidade, a impossibilidade da necessária/suficiente fundamentação para a decisão tomada, antes que a condenação do arguido se impunha pelo cometimento do crime de desobediência in judice, e dado que resulta da sedimentada materialidade o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo em causa, consubstanciados na violação, consciente e voluntária, do apontado dever, após o arguido, como provado, ter sido, anteriormente, advertido naqueles termos, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, nessa medida sabendo que tal conduta era proibida por lei.
Procede, deste modo, a pretensão jurisdicional formulada no sentido de dever “a decisão a quo, na parte que se refere à imputação criminal, ser substituída por outra, que importe a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência agravado”.
Assim, e atendendo ao conjunto da materialidade provada, conclui-se, igualmente, ser a aplicação ao arguido de uma pena de multa medida adequada e suficiente, nos termos do disposto pelo artigo 40.°, n.° 1, do Código Penal, pois que, pela mesma, se tem, ainda, em vista (na previsão, na aplicação e na execução), em termos da filosofia da lei penal portuguesa expressamente afirmada, a protecção dos bens jurídicos em causa e a reintegração do mesmo arguido nos afectados valores sociais.
A imposição de medida de 45 (quarente e cinco) dias de multa, situada na metade inferior e próxima do limite mínimo da moldura penal abstracta em causa, afigura-se como adequada e justa, notando-se que a finalidade da pena (de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização) conjuga-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constituiu o provado crime, e a fundamentação da responsabilidade penal em que o arguido incorreu assenta na realidade descrita integrável na conduta a ele referida, pelo que, em vista do disposto no artigo 71.º, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados por lei, é feita em função da culpa do recorrido, tendo em conta as exigências de prevenção e de todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depõem, na medida do provado, a favor ou contra o arguido.
Tal pena visa satisfazer as necessárias exigências de justiça que o sentimento jurídico da comunidade requer, exprimindo o castigo e reprovação públicas, relembrando que “a pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável”, pois que “em direito penal, a pena, qualquer que seja a óptica por que seja encarada, ainda que com fins meramente preventivos, justamente porque o é, implica sacrifício” - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2004.06.03, in www.dgsi.pt.
Nesta perspectiva, e em face do circunstancialismo de facto provado, do grau de ilicitude, referida às consequências possíveis, das condições pessoais e situação de cada um dos arguidos, na ponderação das finalidades das penas, e respeitando a medida da culpa, mas concedendo uma projecção saliente às finalidades de prevenção especial de socialização, de prevenção da reincidência e do reencaminhamento possível para os valores e para a sociedade, julga-se adequada à realização concordante das indicadas finalidades, impor ao arguido a pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros), pena de multa esta que, no apurado contexto, exprime já juízo de censura pela apurada conduta, cumprindo as finalidades da punição e contribuindo para a reintegração do mesmo na comunidade onde se insere, em vista a dissuadi-lo, de forma positiva, da prática de novos factos criminosos.
Não se observa ainda necessidade de condenação em pena de prisão, o que apenas sucederá caso a presente multa não seja paga, voluntária ou coercivamente, tendo, então, o arguido que cumprir 30 (trinta) dias de prisão subsidiária - cf. Código Penal, artigos, conjugados, 47.°, n.° 2, e 49.°, n.° 1.
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III. DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em, nesta medida, conceder provimento ao recurso, condenando-se o arguido, AA, pela “prática do crime de desobediência agravado, previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b) do Código Penal, com referência aos artigos 5.°, 43.°, n.° 1, alíneas c) e d) e n.° 6 do Decreto n.° 2-B/2020, de 2/4, 7.° da Lei n.° 44/86, de 30/9 e 6.°, n.° 1 e 4 da Lei n.° 27/2006, de 03/07, que lhe vinha imputado”, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros), sendo que se a multa não for paga, voluntária ou coercivamente, terá que cumprir 30 (trinta) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.°, n.° 1, do Código Penal, bem como, em consequência, se condena o mesmo arguido nas custas e demais encargos do processo, fixando-se a menor taxa de justiça.
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Após trânsito, deverá, na primeira instância, ser remetido boletim à D.S.I.C., nos termos do disposto nos artigos 5.° e 6.°, alínea a), da Lei n.° 37/2015, de 5 de Maio, e 12.° do DL n.° 171/2015, de 25 de Agosto (não se
decidindo ordenar, para efeitos laborais, a não transcrição da presente condenação nos certificados de registo criminal do arguido - cf. Lei n.° 37/2015, artigo 13.° -, atentos a que esta não é primeira condenação daquele AA em pena não privativa da liberdade, inclusive por crime da mesma natureza - cf. facto tido por provado, reportado ao nuipc “276/20.7PLLRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local de Pequena Criminalidade, Juiz 1”, em que o arguido, “por sentença transitada em julgado em 02/07/2020, foi condenado pela prática, em 07/04/2020, de um crime de desobediência, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5 euros” -, nesta medida não sendo possível fazer
um juízo de prognose favorável no sentido do não cometimento futuro de similares factos).
*D.N. - notificando-se, ainda, o arguido AA de que, transitada em julgado a presente decisão, pode requerer junto do tribunal de primeira instância - Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - J1- que a pena de multa em que agora vai condenado (fixada em € 225,00) seja, total ou parcialmente, substituída por dias de trabalho a favor da comunidade, a ser realizado em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda em instituição particular de solidariedade social, podendo ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, embora neste caso sem que os períodos de trabalho possam prejudicar as actividades escolares (tempos lectivos/aulas) e/ou a sua jornada normal de trabalho, se for o caso, tudo nos termos dos artigos 49.°, n.°s 1 e 2, e 58.°, n.° 4, ambos do Código Penal.
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Lisboa, 2021.07.01.
(Acórdão processado e integralmente revisto pelo relator e pelo Ex.º Juiz Desembargador Adjunto).
Guilherme Castanheira
Calheiros da Gama