Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1515/05.0TBMTJ.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO CONTRA TODOS OS RISCOS
PRIVAÇÃO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
MORA
PRÉMIO DE SEGURO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I- No âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.
II- A obrigação da seguradora, em caso de destruição total do veículo ou de opção pelo pagamento do respectivo valor, resolve-se numa obrigação pecuniária, “de soma ou quantidade”.
III- Nessa hipótese, e não se tratando assim de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, a indemnização pela mora no cumprimento da obrigação da seguradora corresponde apenas aos juros a contar do dia da constituição em mora.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação
I- C...., intentou acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra a Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da Ré:
a) A pagar ao A. a título de indemnização por danos patrimoniais a quantia de € 22.500,00, à qual deverão acrescer os juros vincendos, contados desde a data da citação até integral pagamento.
b) A pagar ao A. um montante indemnizatório “que se venha a provar em sede de audiência de julgamento” e decorrentes dos dias de privação do uso da viatura .... por parte do A.
Alegando, para tanto e em suma, que celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil e danos próprios, ramo automóvel, em 14 de Março de 2003, para a viatura ...., mediante o pagamento de um prémio anual de € 582,18.
Cobrindo tal contrato o risco de furto ou roubo da dita viatura, sendo o valor seguro de € 22.500,00.
Ora a mesma viatura foi furtada durante a noite de 27 para 28 de Dezembro de 2003 por desconhecidos.
Contudo a Ré apesar das diversas insistências nunca processou a indemnização de € 22.500,00 a que o A. tem direito, propondo uma indemnização substancialmente inferior.
Embora regendo-se, para cobrar prémios, pelo capital contratado.
Devido ao comportamento da Ré o A. viu-se privado da sua viatura e sem dinheiro para a substituição da mesma.
O que lhe acarreta tensão nervosa, aborrecimentos, ansiedade e perturbação mental.
Computando o dano patrimonial decorrente da privação do uso da viatura em € 25,00/dia.

Contestou a Ré, sustentando apenas estar obrigada a indemnizar o A. pelo valor venal do veículo, três meses decorridos sobre a data do “alegado furto”, ou seja, € 8.885,00.
Alegando ainda que aquele pretendeu “segurar o seu veículo por um valor muito superior ao seu valor real, o que a ré de boa-fé aceitou…”.
O que apenas autorizaria a redução do prémio, proporcionalmente.
Que não o ilegítimo enriquecimento, assim pretendido pelo A.
Rematando com a procedência apenas parcial da acção, “sendo o valor devido ao autor pela ré, o do valor real do veículo”.

Replicou o A., alegando o pleno conhecimento, pela Ré, aquando da celebração do contrato de seguro, da “viatura e suas características”, nunca tendo estado aquela disposta a alterar o capital seguro, que foi estabelecido de comum acordo, sem qualquer limitação.
Propondo-se a Ré inclusive, para a anuidade seguinte à do sinistro, cobrar o correspondente prémio, com referência ao valor de € 22.500,00.
Sendo que está aqui em causa o incumprimento, pela Ré, por violação do Decreto-Lei n.º 214/97, e não a aplicação das regras do Código Comercial, como aquela pretende fazer crer.
Concluindo como na p.i.

O processo seguiu seus termos, com saneamento e condensação, vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que julgou “parcialmente procedente a acção, e em consequência condena a ré a pagar ao autor a quantia de € 15.000,00, acrescida dos juros de mora à taxa supletiva legal contados desde a citação e até integral pagamento.”.

Inconformado recorreu o A., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
1 - Da matéria Assente e dos Factos provados, resultou que Apelada incumpriu a realização do contrato seguro, quando propôs ao apelado valor diferente do que contratualmente tinha efectuado, tendo para tal cobrado um prémio de seguro correspondente ao capital contratado (€ 22.500,00)
2 - Por todo o exposto deve ser considerado como valor da indemnização o montante seguro (€ 22.500,00)
3 - A indemnização resultante da Perda Total da viatura do Apelante deverá ser calculada com apelo ao DL 214/97 de 16 de Agosto, diploma legal que regulamenta as indemnizações em caso de sinistros, que sejam afectadas as coberturas facultativas.
4 -- Está demonstrada a violação por parte da Apelada ao DL 214/97 de 16 de Agosto.
5 - Está demonstrado que os prejuízos do Apelante resultante não utilização de viatura, aborrecimentos e tensão nervosa são o resultado do incumprimento contratual por parte da Apelada.
6 – A Douta Decisão assentou na interpretação errada das obrigações da Apelada, não lançando mão do DL 214/97 de 16 de Agosto, a que estava obrigada, violando desta forma este dispositivo legal.
5 – A Douta Decisão é profundamente injusta e violadora do ordenamento jurídico, já com base nos factos provados e não provados, não atribuiu a indemnização do capital seguro (€ 22.500,00) a que estava obrigada, tudo isto apesar dos esforços efectuados pelo Apelante,
8 – Nem atribui a indemnização a título de paralisação ao Apelante e que este tem direito por força da não utilização de viatura, aborrecimentos e tensão nervosa.”.

Requer a revogação da sentença recorrida “sendo a apelada condenada a liquidar o valor do capital seguro de danos próprios (€22.500,00), e ainda a indemnização de € 25,00/dia pela não utilização de viatura, aborrecimentos e tensão nervosa…”.

Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- qual o valor da indemnização resultante da Perda Total da viatura do Apelante, a pagar pela Ré, nos quadros do contrato de seguro automóvel entre ambos celebrado.
- se há lugar à indemnização do A. pelo prejuízo atinente à privação do uso da viatura.
*
Considerou-se assente, na 1ª instância – sob a epígrafe “1: os factos provados” – sem impugnação a propósito, a matéria de facto seguinte:
1. Autor e ré celebraram em 14 de Março de 2003 contrato de seguro de responsabilidade civil e danos próprios do ramo automóvel decorrentes da utilização da viatura automóvel de marca SAAB, modelo 9000 CS 2.3 ST16, com a matrícula ....., titulado pela apólice n.º ....., mediante o pagamento do prémio anual de € 582,18.
2. No âmbito do contrato de seguro referido em 1 foi estipulada pelas partes a cobertura de furto ou roubo, com o valor seguro de € 22.500,00.
3. Na noite de 27 para 28 de Dezembro de 2003, o veículo automóvel identificado em 1, que se encontrava estacionado junto às bombas de combustível de Moreira do Castelo, em Celorico da Beira, foi subtraído daquele local por desconhecidos, e foi entregue ao autor completamente calcinado, sem qualquer valor.
4. A viatura foi encontrada incendiada em Figas de Ermedo, em Celorico de Basto.
5. Na sequência da queixa apresentada pelo autor, por furto da viatura identificada em 1, foi instaurado o processo de inquérito n° ....., que correu termos nos serviços do MP junto do Tribunal da Comarca de Celorico da Beira, que veio a ser arquivado.
6. O autor participou o sinistro à ré.
7. A ré não pagou qualquer quantia.
8. Em Março de 2004 a ré enviou ao autor o aviso de pagamento do prémio de seguro relativo à anuidade, de 2004/2005, no valor de € 619,83.
9. O autor ficou privado da sua viatura tendo perdido a utilidade de um meio de transporte necessário às suas comodidades tanto pessoais como familiares.
10. O que lhe causou tensão nervosa e aborrecimentos.
11. O veículo identificado em 1 é do ano de 1997.
12. Três meses após a data referida em 3 o veículo tinha um valor venal aproximado de €15.000,00.
Mais se tendo considerado assente, conquanto em sede formal de enquadramento jurídico da factualidade apurada, mas tratando-se ainda de matéria de facto, assim a considerar – e aliás consonante com o teor do n.º 8 do antecedente elenco – que:
“O autor (sempre) pagou o prémio calculado sobre o valor peticionado de € 22.500,00, a ré (sempre) aceitou esse valor”.
Tratando-se esse de facto decorrente do teor das “Condições Particulares e Especiais” da apólice respectiva, a folhas 8 – das quais consta que o prémio é anual, com vencimento, o primeiro, em 14-03-2003, estando “o início da cobertura do seguro sujeito ao pagamento do prémio” – e afinal confessado pela Ré quando, na sua contestação, alegou que: “12. A única consequência de o tomador de seguro imputar ao veículo um valor venal superior ao valor real é o de ele pagar prémios de seguro de valor superior ao que ele devia pagar. E ele poderá por isso, e com base em critérios de equidade, e reconhecendo que sobreavaliou o bem segurado, reclamar a devolução do valor do prémio que tiver pago a mais. Mas nada mais do que isso.”.

Facto este que – expurgado do “sempre”, que induziria a ideia de pagamento de mais do que um prémio, o que não é o caso, e designadamente à data do sinistro – assim se adita ao sobredito elenco, com o n.º 13.
*
Vejamos então.
II-1- Do valor da indemnização devida pela “perda total” da viatura do Apelante.
1. Não sofre crise que nos termos do contrato de seguro do ramo automóvel, celebrado entre o A., como segurado e tomador do seguro, e a Ré, como seguradora, e titulado pela apólice n.º ....., foi por aquela assumida a cobertura do risco de furto ou roubo da viatura automóvel de marca SAAB, modelo 9000 CS 2.3 ST16, com a matrícula ......
Sendo, o valor seguro – tal como, aliás, o valor do veículo – consignados na referida apólice, de € 22.500,00.
Tal cobertura reporta-se assim aos chamados danos próprios do segurado, no âmbito de seguro facultativo.
Tendo-se considerado, na sentença recorrida, que «…no caso em concreto o autor sempre pagou o prémio calculado sobre o valor peticionado de € 22.500,00, a ré sempre aceitou esse valor, e só quando se colocou a questão de cumprir a sua obrigação contratual é que "se apercebeu" que o valor do objecto segurado é afinal muito inferior àquele que o segurado indicou.
Mas embora esta questão não seja inócua entre as partes, para o presente litígio ela não se mostra relevante, pois a questão que este Tribunal tem para decidir está limitada pelo pedido formulado pelo autor, e pela causa de pedir apresentada para o sustentar. Somos pois reconduzidos à questão de saber qual o montante que a ré tem de entregar ao autor, em cumprimento da sua obrigação contratual.
E essa é, afinal, de fácil resolução.
Vamos dar a palavra a Guerra da Mota (O contrato de seguro terrestre, vol. 1°, págs. 622 e seguintes): "o sobresseguro, ao contrário do subseguro, constitui um estado de coisas que é sempre relevante seja qual for o momento em que se verifica. Traduz-se num excesso do valor seguro, sobre o valor assegurável, donde resulta uma grave ameaça ao princípio indemnizatório, próprio dos seguros (…) A nossa lei, ao contrário de outros sistemas jurídicos, não distingue a hipótese em que o segurado, dolosamente, exagera o valor seguro daquela outra em que tal acontece sem dolo. (...) O sobrevalor pode resultar da diminuição do valor da coisa segura. Suponhamos por exemplo, que A segura o seu automóvel por 1000 contos, que é o seu valor real. Com o uso o automóvel todos os anos diminui de valor. O prémio, em parte, fica assim carecido de causa, fazendo surgir no segurado direito a uma proporcional redução do prémio, sem que a seguradora possa rescindir o contrato",
Por isso, podemos concluir que se impõe, ao abrigo do disposto no citado artigo 435º Ccom, a redução do seguro ao valor real do objecto. E tal redução assenta no facto incontroverso de só em relação àquele valor existir interesse legítimo do segurado (cfr. art. 428º,1 Ccom), sem o qual o contrato mais não seria do que um jogo ou aposta.
No fundo, estamos perante a mesma solução que decorre do princípio geral em matéria de obrigação de indemnização, constante do art. 562° CC: "quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação".
O veículo do autor, se não tivesse sido furtado e destruído em Dezembro de 2003, valeria cerca de €15.000,00.
Como a reconstituição natural não é possível, deve a ré, para cumprir cabalmente a sua obrigação contratual, pagar ao autor essa quantia, de forma a, na medida do possível, reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido evento lesivo.».

2. Ora, e desde logo, cumprirá anotar que a obra de Francisco Guerra da Mota, citada na sentença recorrida, foi editada pela Athena Editora, Porto, há mais de duas décadas.
Pronunciando-se assim num quadro em que “Uma das questões mais frequentemente causadoras de litígios entre os tomadores e as empresas de seguros”, nas palavras de José Vasques,[1] a saber, a da discrepância entre o valor seguro e o “valor real” do veículo por ocasião do sinistro, não tinha previsão específica.
 Tal matéria viria porém a ser objecto de tratamento legal através do Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de Agosto.[2]
Diploma estabelecendo um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, assim derrogador, no seu âmbito próprio, da aplicabilidade do invocado art.º 435º do Código Comercial.
Com efeito:
Como ler-se pode no preâmbulo daquele Decreto-Lei, “Uma das cláusulas contratuais gerais, comum à generalidade das seguradoras operando no território nacional, que maior reparo tem merecido é a que se refere às situações de sobresseguro, em que a aplicação menos clara de certas regras de carácter técnico, desacompanhadas da necessária informação e explicação, conduz a situações inesperadas e, por vezes, verdadeiramente injustas para os segurados no momento da liquidação das indemnizações em caso de sinistro automóvel.
É o caso da manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, por falta de iniciativa do segurado no sentido da respectiva actualização, quando é certo que a indemnização a suportar pela seguradora em caso de sinistro tem em conta a desvalorização comercial entretanto sofrida pelo veículo.
Nesta conformidade, e de forma a garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo, entendeu-se ser necessário regular a matéria de forma a assegurar uma maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa e instituir a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total, que seja calculada com base nesse valor.
O sistema introduzido garante, assim, a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total.
As consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual.”.  
 Assim sendo que no art.º 1º do referido diploma se dispõe:
“O presente diploma institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros.”
E, no art.º 2º:
“O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4º, sendo o respectivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro.”.
Também, de acordo com o art.º 3º, “A cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.”.
Tratando-se, no referenciado art.º 5º da ressalva de as partes contratantes estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável.
E (art.º 7º)
“A empresa de seguros, antes da celebração dos contratos a que se refere o artigo 1.º e sem prejuízo do disposto na legislação aplicável em matéria de cláusulas contratuais gerais e das demais regras sobre informação pré-contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, deve fornecer ao tomador do seguro, por escrito e em língua portuguesa, de forma clara, as seguintes informações:
a) Os critérios de actualização anual do valor do veículo seguro e respectiva tabela de desvalorização;
b) O valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total;
c) A existência da obrigação de a empresa de seguros de anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os valores previstos nas alíneas anteriores para o próximo período contratual.
Ainda, no artigo 8.º, estabelece-se em sede de deveres de informação contratual:
“1 — Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1.º devem constar os seguintes elementos:
a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, bem como os critérios da sua actualização anual e a respectiva tabela de desvalorização;
b) O prémio devido.
2 — A empresa de seguros deve anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os seguintes elementos relativos ao próximo período contratual:
a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total;
b) O prémio devido;
c) Os agravamentos e bonificações a que o prémio foi sujeito.
Tendo o diploma em causa entrado em vigor “em 1 de Março de 1998, aplicando-se a todos os contratos celebrados a partir desse momento, bem como aos contratos anteriormente celebrados a partir da data dos respectivos vencimentos.”, vd. art.º 12º.
2. Ora, como dos autos resulta, tendo o contrato de seguro respectivo sido celebrado em 14 de Março de 2003, com duração de um ano e renovação anual –cfr. citadas “Condições Particulares e Especiais” da apólice respectiva, a folhas 8 – ocorreu o sinistro na noite de 27 para 28 de Dezembro de 2003.
Quando, portanto, estava em curso o prazo inicial do contrato, e, face às transcritas disposições legais, não era ainda caso de qualquer “actualização automática” do valor do veículo seguro para efeitos de indemnização, à qual de resto a Ré não pretende ter procedido nem, logo, comunicado a mesma ao A.
E nem se invoque a “boa-fé” da Ré no tocante à aceitação do valor supostamente “excessivo” indicado pelo A.
Aquela era sabedora da marca e modelo da viatura, bem como da matrícula respectiva – para além de ser normal que solicitasse a exibição dos documentos respectivos – o que tudo, dando também acesso ao conhecimento da idade da viatura, que se sabe ser do ano de 1997, logo lhe permitia balizar o valor da mesma dentro de limites razoáveis.
E, se ainda assim tivesse dúvidas, caber-lhe-ia, de acordo com as regras de normal diligência, através dos (seus) proverbialmente zelosos serviços de peritagem, proceder à avaliação da viatura.
O que, concede-se, não fez, preferindo guardar-se para a eventualidade de lhe vir a ser exigida alguma responsabilidade contratual.
Deste modo, e sem necessidade de maiores considerações, temos resultar do regime estabelecido pelo sobredito Decreto-Lei – designadamente na conjugação dos seus art.ºs 3º, 4º e 8º, n.º 2 – que também enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.
Ou seja, in casu, com base no valor seguro consignado na apólice, cujo início de vigência ficou expressamente “sujeito ao pagamento do prémio…inicial”, vencido na mesma data da celebração do contrato, a saber, 14/Março/2003, cfr. ainda e sempre as “condições particulares e especiais” da apólice de folhas 8.
Com efeito, onde literalmente se prevê no citado art.º 3º, a emergência de tal obrigação, nesses definidos termos, na hipótese de cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da oportuna actualização, nos termos legais, do valor do veículo seguro, também se contempla, por igualdade, se não maioria, de razões, tal obrigação relativamente a situação de cobrança de prémios em montante correspondente ao “valor seguro” consignado na apólice, ainda não objecto de qualquer actualização “automática”, nem, ademais, susceptível da mesma, por estar em curso, aquando do sinistro, o prazo inicial, anual, de validade do contrato.
Afigurando-se-nos ser este entendimento igualmente acolhido no Acórdão desta Relação, de 16-04-2009,[3] em cuja fundamentação ler-se pode: “…o legislador optou por transformar em letra de lei o equilíbrio entre as prestações que contratualmente competem ao tomador do seguro e à seguradora. Isto é, se o tomador do seguro responde por um prémio consentâneo com o valor do veículo em dado momento também é justo que, ocorrendo o dano da perda total, receba apenas a indemnização atinente ao valor por cujo prémio estava responsável.”.
*
Estando pois a Ré seguradora obrigada a realizar a prestação convencionada, que se resolve numa prestação indemnizatória, de capital, no montante correspondente ao do valor seguro, ou seja, € 22.500,00.
Acrescido, tal montante, dos peticionados juros de mora desde a citação, em 17 de Maio de 2005 – vd. folhas 16 – até integral pagamento, à taxa supletiva legal de 4% ao ano, vd. art.ºs 804º, 805º, n.º 1, 806º, n.ºs 1 e 2 e559º, n.º 1, do Código Civil, e Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril.   
Com procedência, nesta parte, das conclusões do Recorrente.
II-2- Da indemnização pela privação do uso da viatura do apelante.
1. Face ao teor do contrato de seguro celebrado entre o Autor e a Ré, o ressarcimento dos danos decorrentes, e designadamente, da perda total por furto, está limitado ao “valor seguro” do veículo.
Como aliás acontece, por via de regra, no tocante aos seguros de coisas, os quais, e na expressão de Francisco Guerra da Mota, “têm por objecto singulares elementos patrimoniais em cuja conservação o segurado tenha interesse”,[4] neles ficando excluídos da garantia os chamados “danos indirectos” derivados da privação do gozo ou uso do bem.[5]
Referindo o mesmo Autor,[6] que “…não se podem considerar compreendidos no seguro, salvo convenção em contrário, os danos que não são senão directos e imediatos. Tal problema, porém, não é disjunto da vontade contratual, soberana para delimitar o risco com a individuação do interesse garantido pelo seguro. E uma tal individuação pode ser feita quer positiva e directamente com a indicação do bem, ou do interesse e relativo valor, quer negativa e indirectamente com a expressa exclusão dos danos ulteriores daqueles que consistem na destruição e avaria de bem, em si e de per si considerado”.
E, nas palavras de José Vasques, “os danos verificados terão de corresponder aos tipificados no contrato de seguro para que possam ser objecto de indemnização”.[7]
A determinação do quantum indemnizatório relativo aos danos próprios, não coincide, dest’arte, com os termos da operada no âmbito do seguro de responsabilidade civil, como é caracterizado o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, já que os terceiros lesados não se encontram vinculados às regras estabelecidas nas apólices e demandam a seguradora com base em responsabilidade extracontratual. Aqui o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo directamente causado, como os benefícios que o terceiro lesado deixou de obter em consequência da lesão (n.º1 do art. 564º do Código Civil).
No caso em apreço, porém, nem o pedido do A. de condenação da Ré no pagamento de indemnização pela privação do uso da viatura objecto do seguro apela ao entendimento daquele como dano incluído no âmbito do contrato de seguro, que, na definição de José Vasques,[8] “vem a consistir na definição das garantias, riscos cobertos e riscos excluídos.”.
Antes fundamentando o A. tal pedido no incumprimento contratual de parte da Ré, traduzido na recusa daquela em pagar-lhe o quantitativo de € 22.500,00, a título de indemnização pela perda total da viatura, vd. art.º 17º, da p.i.
Tratando-se pois de pedido indemnizatório por danos alegadamente causados pelo invocado incumprimento contratual da Ré.
Tendo-se discorrido a propósito, na sentença recorrida:
Não há dúvida que o autor ficou privado da sua viatura, tendo perdido a utilidade de um meio de transporte necessário às suas comodidades tanto pessoais como familiares, o que lhe causou tensão nervosa e aborrecimentos.
Mas isso deveu-se ao furto e destruição do seu veículo, e não ao "incumprimento contratual por parte da ré", incumprimento que em bom rigor não existiu, pois o autor reclamava quantia superior àquela a que tinha direito e bem andou a ré em não a pagar.
Assim, um elemento fundamental para aferir do direito do autor, e que era o número de dias que devido ao incumprimento contratual da ré ele ficou privado do seu veículo, não se provou. Pelo exposto, nesta parte não tem o autor o direito que se arroga.”.
2. Desde logo, resulta, salvo o devido respeito, menos consentâneo afirmar-se a inexistência – ainda que “em bom rigor” – de incumprimento contratual da Ré…para depois se condenar aquela, como se fez na sentença recorrida, em juros de mora…ainda que sobre o montante inferior ao peticionado, mas superior ao concedido na contestação (€ 8.885), de € 15.000,00.
Depois, ponto é que, como se considerou já supra, em II-1, efectivamente se verificou incumprimento contratual de banda da Ré, e por reporte ao pagamento de € 22.500,00.
Questão sendo já a de saber se tal incumprimento se poderá considerar causal de haver o autor ficado “privado da sua viatura tendo perdido a utilidade de um meio de transporte necessário às suas comodidades tanto pessoais como familiares”, “O que lhe causou tensão nervosa e aborrecimentos.”.
Temos por certo que, tal como, se entendeu na sentença recorrida, a causa da privação do uso do veículo foi a destruição total do mesmo, na sequência do furto.
E isto, assim, à luz da teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa.[9]
Mas ainda quando fosse sustentável – o que apenas a benefício de exposição se concede – que a mora da Ré relativamente ao cumprimento da obrigação de indemnização contratualmente estabelecida, era causa adequada da apurada privação do uso da viatura…que furtada fora, não lograria o A. ganho de causa, nesta parte.
E isto, assim, abstraindo da circunstância de se não ter levado à base instrutória, nem, logo, provado, que, como vinha alegado pelo A., devido à mora da Ré aquele se haja visto “sem dinheiro para a substituição” da viatura sinistrada (vd. art.º 18º da p.i.).
3. Como refere José Alves de Brito,[10] em anotação ao art.º 102º, n.º 3, da Lei do contrato de seguro aprovada pelo já citado Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril – mas com absoluta pertinência, no que ora nos ocupa, para casos, como o presente, não sujeitos à disciplina daquela Lei – e depois de assinalar que se trata “patentemente, de uma disposição com plena aplicação ao seguro de danos”, “a prestação devida pelo segurador pode ser pecuniária ou não pecuniária. Parece, assim, valer o disposto nos artigos 562º e 566º do CC, podendo a prestação consistir na reconstituição natural ou numa indemnização em dinheiro…”.
Afastada a reconstituição natural quando for impossível, insuficiente ou excessivamente oneroso, ou por ajuste das partes nesse sentido, a indemnização será fixada em dinheiro, como assim as partes estão de acordo ser o caso, tratando-se pois de uma prestação pecuniária, “de soma ou de quantidade”.[11]
Assim se arredando o potencial duvidoso, referido por P. Lima e Varela,[12] “especialmente no contrato de seguro de coisas”, da questão de saber, se a obrigação assumida pelo devedor é uma obrigação pecuniária (…) ou é antes uma obrigação de outra natureza (…).”.
E que se tratará, “as mais das vezes (…) de um problema de interpretação do contrato celebrado entre as partes.”.
Interpretação que, no caso em apreço, nem suscitaria maiores indagações, e posto que das referidas “Condições Particulares e Especiais” expressamente consta a referência às coberturas em “Capitais (Em EUR)/franquias”, com indicação do “Valor Veículo” e do “Valor Seguro”.
Certo que como julgou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 24-01-75, a obrigação assumida pela seguradora, “não sendo necessariamente uma obrigação pecuniária (o segurador poderia optar pela restauração ou reparação do veículo segurado), se resolve numa obrigação pecuniária «em caso de destruição total do veículo ou de opção pelo pagamento do respectivo valor»;”.[13]
Ora nas obrigações pecuniárias “a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora”, cfr. n.º 1 do citado art.º 806º, n.º 1.
Sendo os juros devidos “os juros legais”, vd. n.º 2.
Com a ressalva única de poder “o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros…e exigir a indemnização suplementar correspondente, quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.”, cfr. n.º 3, sendo nosso o realce a negrito.
O que nada é assim o caso.
Neste sentido tendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido, no seu já citado Acórdão de 24-01-75,[14] que “I - O pedido formulado a seguradora de um veículo por efeito de um acidente de viação representa o cumprimento de uma obrigação pecuniária, pelo que os lucros cessantes só podem ser compensados pelos juros moratórios, nos termos do artigo 806º do Código Civil.”.
Também assim no Acórdão da Relação de Coimbra, de 23-05-2006,[15] em cuja fundamentação ler-se pode: “Tratando-se de uma obrigação pecuniária, e porque se trata de responsabilidade contratual, a indemnização pela mora corresponde aos juros legais, salvo convenção em contrário (…). Diversamente da opinião do Autor, em caso de mora da Ré na realização da prestação indemnizatória, não há lugar a qualquer obrigação de indemnizar o dano autónomo da privação do uso do veículo.”.
Sendo pois de confirmar a sentença recorrida, nesta parte, embora por razões não coincidentes com as consideradas naquela.
 Com improcedência, aqui, das conclusões do Recorrente.
III- Nestes termos, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente,---------------------------------------------------------------------------------------------
e, revogando correspondentemente a sentença recorrida,----------------------------
condenam a Ré a pagar ao A. a quantia de vinte e dois mil e quinhentos euros (€ 22.500,00), acrescida de juros de mora desde a citação, em 17 de Maio de 2005, até integral pagamento, à taxa supletiva legal, de 4%,
absolvendo-a do mais pedido.
            Custas na primeira instância, na proporção de 1/10 para o A. e 9/10 para a Ré e, nesta Relação, de 2/10 para o A. e de 8/10 para a Ré.
Lisboa, 2009-06-25
(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Neto Neves)

[1] In “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, 1999, pág. 216.
[2] Tendo aliás o superveniente Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril – que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro – deixado intocado o sobredito regime especial.
[3] Proc. 5611/03.0TVLSB.L1-8, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf.  
[4] In “Contrato de Seguro Terrestre”, Primeiro Volume, Athena Editora, pág. 600.
[5] Cfr., a este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-09-1999, in CJ, Ano VII, tomo III, págs. 37-40; e Moitinho de Almeida, in “O Contrato de Seguro”, pág. 159.
[6] In op. cit., págs. 603-604.
[7] In “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, 1999, pág. 257.
[8] In op. cit., pág. 97.
[9] Cfr. a propósito, Antunes Varela, in “Das obrigações em geral”, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, págs. 890, 891, e 898-901.
[10] In “Lei do Contrato de Seguro, Anotada”, Almedina, 2009, pág. 322.
[11] Cfr. P. Lima e A. Varela in “Código Civil, Anotado”, Vol. I., Coimbra Editora, 3ª Ed., 1982, pág. 528. 
[12] In “Código Civil, Anotado”, Vol. II, Coimbra Editora, 4ª Ed., 1997, pág. 69.
[13] Anotado por Vaz Serra, in R.L.J., Ano 109º, n.º 3567, págs. 86-92.
14Também acessível (só o sumário) in www.dgsi.pt/jstj.nsf. Proc. 065511.
15 Proc. 1323/06, in www.dgsi.pt/jtrc.nsf.