Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1320/12.7TBMTA.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
DEFERIMENTO TÁCITO
PRAZO
ACTO ADMINISTRATIVO ANULATÓRIO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Tendo o Instituto de Segurança Social proferido decisão expressa no sentido do indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo de formação do acto tácito (deferimento tácito), o acto expresso posterior ao ato tácito constitui um ato administrativo anulatório.
II- A anulação administrativa do acto tácito pode ocorrer no prazo de seis meses a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade.
III- A questão respeitante à possibilidade ou não de o Instituto de Segurança Social emitir acto expresso de indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo previsto no artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29/7, tem que ser arguida pela via de impugnação judicial.
IV- Não tendo ocorrido tal impugnação judicial, o acto tácito de deferimento deixou de ser invocável, por ter desaparecido da ordem jurídica, subsistindo apenas o acto expresso de indeferimento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório
1-  M…. apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por Sentença de 6/8/2012, com “custas a cargo da massa insolvente”.
2-  Por decisão de 8/7/2013 foi declarado encerrado o processo “por insuficiência da massa insolvente”, com “custas pela insolvente, com diferimento de pagamento para final, nos termos do artº 248º do CIRE”.
3-  Em 21/11/2018 foi proferido despacho a conceder à insolvente a exoneração do passivo restante.
4-  Em 19/2/2019 foi elaborada a conta de custas, concluindo-se que se encontram em dívida, pela insolvente, 1.717,96 €.
5-  Em  14/3/2019 foi a insolvente notificada para proceder ao pagamento das custas em dívida ou requerer o seu pagamento em prestações.
6-  Com data de 15/3/2019 deu entrada nos autos um requerimento da insolvente, onde este refere :
“Vem informar V. Ex.ª que requereu em 10/07/2012 apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de taxas de justiça e demais encargos do processo, conforme requerimento junto aos autos com a petição inicial”.
“Ora, sobre tal requerimento, desconhece a insolvente se incidiu qualquer despacho, porquanto do mesmo não foi notificado e dos autos nada consta, motivo pelo qual, nos termos do disposto pelo artº 25º nº 2 da L. 34/2004, de 29 de Julho, se deve ter o benefício de apoio judiciário requerido como deferido tacitamente e, consequentemente, reconhecer-se que as custas ora reclamadas não são exigíveis”.
7-  Em 29/3/2019, foi a insolvente notificada do teor da informação da Segurança Social de 12/3/2014 (ver fls. 224 e 225), onde consta a decisão, datada de 26/8/2013, que indeferiu “o requerimento de protecção jurídica apresentado em 10/07/2012 por M…”.
8-  Com data de 3/4/2019, e na sequência da notificação que lhe foi feita, apresentou a insolvente o seguinte requerimento :
“1. Conforme decorre dos autos, a insolvente requereu o benefício de apoio judiciário a 10 de Julho de 2012, pedido que se considera, nos termos do Código de Procedimento Administrativo e da L.A.D., tacitamente deferido ao fim de 30 dias, isto é, a 7 de agosto de 2012 (apenas dias úteis)”.
“2. Segundo a informação da Segurança Social junta, a insolvente teria sido notificada a 5 de agosto de 2013, para apresentar documentos complementares ao seu pedido – o que reitera não recebeu!”
“3. E, em consequência, a 26 de agosto de 2013, refere a Segurança Social ter expressamente indeferido o pedido de apoio apresentado”.
“4. Ora, sendo certo que a formação do deferimento do acto tácito está expressamente prevista na lei (artº 130º nº 1 CPA e 25º nºs 1 e 2 da L. 34/2004, de 29/7), este pode ser expressamente revogado (artº 165º nº 2 do CPA) desde que o seja no prazo de seis meses, i.e, 180 dias úteis (artºs 167º e 168º do C.P.A.)”.
“5. In casu, o acto teria de ter sido expressamente revogado até 24 de Abril de 2013 – o que não ocorreu”.
“6. Logo, e veja-se neste sentido o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 5/7/2017, proferido no proc. Nº 10240/13.7 BCLSB-A, o acto administrativo de deferimento tácito do apoio judiciário há muito se formou e não podia já ser revogado – o que alega a Entidade Administrativa só ocorreu a 26/8/2013, mês e meio para lá da data em que o poderia fazer”.
“Termos em que, se pugna pelo reconhecimento do acto tácito de deferimento, por o indeferimento ser extemporâneo e, consequentemente, traduzir um acto ilegal”.
9-  Em 9/4/2019, e na sequência de Promoção do M.P., foi proferido o seguinte despacho :
“O pedido de apoio judiciário formulado pela insolvente foi expressamente indeferido em 26.08.2013 (conforme informação junta aos autos em 12.03.2014), não tendo a insolvente impugnado tal decisão”.
“Assim, a invocação neste momento do deferimento tácito é absolutamente intempestiva, pelo que se indefere a mesma”.
“Notifique, sendo ainda a insolvente para proceder ao pagamento das custas ou requerer o seu pagamento em prestações”.
10-  Inconformada com tal decisão, dela recorreu a insolvente, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“I – O apoio judiciário foi requerido a 10/07/2012, o qual se considera tacitamente deferido a 07/08/2012;
II – A Segurança Social, a 12/03/2014, informa os autos que a 05/08/2013, notificou a Apelante para apresentar documentos, notificação que a mesma não recebeu;
III – Não se provam factos negativos, cabendo a quem alega o facto prová-lo – art.ºs 342º e 343º do C.C.;
IV – A 26/08/2013 a Segurança Social expressamente indeferiu o pedido de apoio;
V – A lei prevê a formação do acto tácito (artº 130º nº 1 CPA e 25º nºs 1 e 2 da L. 34/2004, de 29/7), e que este pode ser expressamente revogado (artº 165º nº 2 do CPA), no prazo de seis meses (artºs 167º e 168º do C.P.A.);
VI – In casu, essa revogação apenas poderia ter ocorrido até 24/04/2013, mas tal só veio a acontecer a 26/08/2013;
VII – Neste sentido, já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo do Sul, a 5/7/2017, proc. n.º 10240/13.7 BCLSB-A;
VIII – Precludido o prazo para a revogação expressa, está o acto em causa ferido de nulidade, por ser extemporâneo, não se subsumindo ao disposto artº 130º nº 3 do C.P.A.;
IX – Deverá o acto ser declarado nulo, por não só atingir o conteúdo essencial do Direito de Acesso aos Tribunais (artº 20º da C.R.P.), como ofender o caso julgado (deferimento tácito) e ainda porque se verificar preterição do procedimento legalmente exigido – artºs 161º nºs 1 e 2 als. d), i) e l) do C.P.A..
Termos em que, deve o presente recurso ser admitido e, a final, julgado procedente por provado, declarando-se nulo o acto de revogação expressa do deferimento tácito, mantendo-se à apelante o apoio judiciário requerido, fazendo-se assim a costumada Justiça”.
11-  O M.P. contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.

II – Fundamentação
a)  A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório supra, para o qual se remete.
b)  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente, a única questão em recurso consiste em determinar se deve considerar-se que lhe foi concedido o benefício do apoio judiciário.
c)  Vejamos :
O apoio judiciário compreende diversas modalidades, entre elas, a dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e o pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo (artº 16º nº 1, als. a) e d) da Lei nº 34/2004, de 29/7 – Lei do acesso ao Direito e aos Tribunais, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 2/2020, de 31/3).
No caso em apreço, a apelante requereu a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, para propor acção judicial
Tal pedido foi formulado em 10/7/2012.
Por ofícios enviados em 11/7/2013 e em 5/8/2013, foi a recorrente notificada pelo I.S.S. (Instituto da Segurança Social) para, ao abrigo do disposto no artº 8º-B nºs. 3 e 4 da Lei nº 34/2004, de 29/7, apresentar, no prazo de 10 dias, os documentos necessários à prova da sua insuficiência económica, sob pena de indeferimento.
Porém, a apelante não entregou ao I.S.S. tais elementos, alegando agora que não recebeu tal notificação.
Em 26/8/2013, o I.S.S. indeferiu o requerimento de protecção jurídica apresentado pela recorrente.
A decisão do I.S.S. não foi impugnada judicialmente, sendo, pois, definitiva.
Uma vez que a decisão do I.S.S. não foi proferida no prazo de 30 dias contados da apresentação do requerimento de apoio judiciário, a recorrente defende que se formou um acto tácito no sentido do deferimento de tal apoio.
Ora, decorre do artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004 de 29/7, que o prazo para conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo e não se suspende durante as férias judiciais.
Por sua vez o nº 2 de tal normativo diz-nos que, decorrido aquele prazo sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica.
A norma em causa estabelece um acto ficcionado (deferimento tácito), através do qual se concede ao particular, nos termos da mesma, o correspondente à sua pretensão na sequência do decurso de um lapso de tempo sem que a Segurança Social se tenha pronunciado sobre a mesma (cf. artº 130º nº 1 do Código do Procedimento Administrativo).
No caso, existiu uma manifestação expressa da vontade (decisão no sentido do indeferimento) após a formação do ato tácito.
Houve, assim, um afastamento implícito do acto tácito de deferimento, por incompatibilidade de conteúdo desse acto com a decisão administrativa (expressa) posterior, destruindo os efeitos do primeiro acto.
Refere o Prof. Marcello Caetano (in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, pg. 477) que “o acto tácito de aprovação, se não for constitutivo de direitos, pode ser confirmado ou substituído por um acto expresso contrário mas se o acto expresso tiver sentido contrário à ilação legal tirada do silêncio, só à luz da teoria da revogação do acto administrativo, poderá discutir-se a sua validade”.
No Código do Procedimento Administrativo vigente (aprovado pelo Decreto-Lei nº 4/2015, de 17/1) a figura da revogação abrange unicamente a prática de actos com vista à cessação do acto “por razões de mérito ou oportunidade”, tendo sido criada uma nova figura, a anulação administrativa, que consiste no “acto administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro com fundamento da invalidade” (cf. Acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul de 5/7/2017 e de 15/1/2015, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt, e Luiz Cabral de Moncada, in “Código do Procedimento Administrativo Anotado”, 3ª ed. rev. e actualizada, pg. 546).
Ora, “uma vez que, no momento da formação do acto tácito, a ora recorrente não estava em condições de beneficiar de apoio judiciário na modalidade requerida, desde logo porque ainda não tinha sido feita prova da sua insuficiência económica (v. artº 7º nº 1 e art. 8º da Lei 34/2004 de 29/7 e artº 14º da Portaria 1085-A/2004, de 31/8) a decisão expressa do I.S.S. configura uma anulação administrativa” (cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 14/11/2019, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Assim, o acto expresso posterior ao ato tácito constitui um ato administrativo anulatório (cf. artº 165º nº 2 do Código do Procedimento Administrativo).
Uma vez que o acto tácito em causa é constitutivo de direitos (artº 167º nº 3 do Código do Procedimento Administrativo), a sua anulação administrativa podia ocorrer no prazo de seis meses a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade (artº 168º nº 1 do Código do Procedimento Administrativo).  Porém, o acto de indeferimento foi proferido para além de seis meses após o acto tácito, uma vez que, a revogação apenas poderia ter ocorrido até 24/04/2013 (e só ocorreu, como já vimos, em 26/8/2013).
E bastará este circunstancialismo para que o deferimento do pedido de apoio judiciário permaneça válido ?
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 14/11/2019 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt) :
“Contudo (…), a questão respeitante à possibilidade ou não de o I.S.S. emitir acto expresso de indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo previsto no artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004 tinha que ser arguida pela via da impugnação judicial (v. artº 26º nº 2, 27º e 28º da Lei nº 34/2004)”.
“Deste modo, não tendo sido correctamente impugnada a decisão da Segurança Social que revogou o acto tácito de deferimento da pretensão do Requerente no sentido de lhe ser concedida protecção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento taxa de justiça e demais encargos com o processo, o acto tácito de deferimento deixou de ser invocável, por ter desaparecido da ordem jurídica, subsistindo apenas o acto expresso de indeferimento.  Este prevalece sobre o acto tácito que se possa ter formado por inércia da administração, porque o revogou tacitamente sem que os interessados o tenham impugnado (v. neste sentido Ac. Tribunal da Relação do Porto de 9/4/13 in www.dgsi.pt)”.
Este entendimento não viola qualquer princípio constitucional, designadamente o da igualdade, previsto no artº 20º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, o benefício de apoio judiciário apenas deve ser concedido a quem, efectivamente, esteja numa situação de carência económica, a fim de proporcionar, também a estes o acesso ao direito e aos Tribunais.
O facto de o legislador estabelecer regras objectivamente fundadas para regular tal acesso em nada contende com tal princípio.
Em síntese, diremos que o acto expresso de indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo previsto no artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29/7, terá que ser arguida pela via da impugnação judicial, não sendo este recurso a sede própria para o impugnar, pelo que, neste momento, subsiste apenas o acto expresso de indeferimento.
d)  Em face do exposto, é manifesto que o recurso terá de proceder.
e)  Sumário : acima transcrito

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Custas :  Pela recorrente (artigo 527º do Código do Processo Civil).
Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 27 de Outubro de 2020
Pedro Brighton
Teresa Sousa Henriques
Isabel Fonseca