Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5/12.9TVLSB.L1-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
EXTINÇÃO
QUESTÃO PREJUDICIAL
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Tendo-se provado que o contrato de arrendamento para habitação celebrado em 16/2/1981, cuja manutenção em vigor ou cessação por caducidade se discute, na presente acção, teve por outorgantes, de um lado, o extinto Fundo de Fomento da Habitação e, do outro, o falecido pai da ora Ré MA .
II. Sabido que o Fundo de Fomento da Habitação era, inequivocamente, uma entidade pública (instituído, no então Ministério das Obras Públicas pelo Decreto-Lei nº 49 033, de 28 de Maio de 1969, “com o fim de contribuir para a resolução do problema habitacional, especialmente dos indivíduos não beneficiados pela actividade desenvolvida, no domínio da habitação, pelas caixas de previdência ou outras instituições semelhantes” [cfr. o nº 1 do artigo 1º daquele diploma]).
III. Ponderando que o contrato de arrendamento para habitação em causa achava-se submetido, “ab initio”, a um regime substantivo de direito público, pois, embora o art. 20º do cit. DL. nº 49 033, estatuísse que o arrendamento das casas do Fundo ficava sujeito, em tudo o que não estivesse em oposição com o disposto no presente diploma, “às respectivas normas da lei geral”, a verdade é que, nos termos do seu art. 21º, a actualização das rendas desses arrendamentos só era permitida nas condições nele previstas, e, sobretudo, mercê do disposto no seu art. 23º, o Fundo podia, independentemente de procedimento judicial, resolver os contratos dos arrendatários que, para obtenção das respectivas casas, tivessem incorrido em qualquer das irregularidades previstas no regulamento do mesmo diploma (publicado na mesma data – 28/5/1969 – e consubstanciado no Decreto nº 49 034).
IV. Acrescendo que, nos termos expressamente convencionados entre as partes (cfr. a respectiva cláusula IX), o arrendamento em questão também podia ser resolvido antes do termo nele previsto, para além dos casos já contemplados nas disposições legais aplicáveis, se o arrendatário não cumprisse as obrigações impostas pela cláusula VII do contrato (v.g., a de promover a instalação e ligação de contadores de água, gás e electricidade; a de conservar no estado em que se encontrasse a instalação da luz eléctrica e ainda todas as canalizações e seus acessórios, pagando à sua conta todas as reparações que se tornassem necessárias por efeito de incúria ou indevida utilização; a de não conservar na habitação animais que incomodassem os vizinhos ou causassem quaisquer danos; a de não fazer ruídos que incomodassem os vizinhos; e a de não depositar lixo senão nos locais para isso destinados).
V. Não é de sofrer contestação que o contrato de arrendamento para habitação em questão se desviava, em vários pontos do seu regime substantivo, do regime geral da locação civil, assumindo, manifestamente, alguns contornos de direito público.
VI. Assim sendo, estamos perante um dos tais contratos abrangidos pela cit. alínea f) do nº 1 do cit. art. 4º do actual ETAF, cuja interpretação, validade e execução está actualmente deferida à jurisdição administrativa.
VII. A esta luz, sabendo-se que o julgamento do mérito da presente acção está dependente da apreciação duma questão prejudicial que é da competência dos tribunais administrativos, é caso de se fazer funcionar a norma contida no art. 97º, nº 1, do CPC de 1961 (a que corresponde o art. 92º, nº 1, do actual CPC de 2013) e decretar a suspensão da instância até que o tribunal administrativo se pronuncie sobre a questão de saber se o contrato de arrendamento para habitação celebrado, em 16 de Fevereiro de 1981, entre o extinto FUNDO DE FOMENTO DA HABITAÇÃO e o falecido pai da ora Ré/Apelante MR (de seu nome AR) caducou ou não, “ope legis”, com a morte do referido primitivo arrendatário, ocorrida em 29 de Janeiro de 2009.
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Cível da Relação de Lisboa:

IHRU-Instituto da Habilitação e da Reabilitação Urbana intentou, nas Varas Cíveis de L..., com distribuição à ..ª Vara –.. Secção, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, contra MR e JM, melhor identificadas nos autos, pedindo que fosse reconhecido o direito de propriedade do autor sobre o imóvel que os réus ocupam, e, em consequência, que fosse restituído o mesmo ao Autor livre e devoluto de pessoas e bens, bem como que fossem os réus condenados pagar ao autor uma indemnização no valor de e 7.008,95, com juros de mora à taxa legal contados a partir da citação.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- O autor é o único proprietário da fracção designada pela letra “I” do prédio urbano sito na Rua ..., Lote..., bl. 1 ..., ..., ... L..., inscrito na respectiva matriz predial sob o nº ...;
- Este prédio urbano veio em 1987 para a propriedade do autor por força da transferência para si de todo o património mobiliário e imobiliário, bem como de todos os direitos de que era titular o extinto Fundo Fomento de Habitação e respetiva Comissão Liquidatária;
- O fogo descrito foi atribuído pelo então Fundo Fomento de Habitação em regime de arrendamento par habitação a AR, tendo caducado por morte de arrendatário, em ... de Janeiro de 2009;
- A ré MR é filha do arrendatário AR;
- Na sequência do falecimento do arrendatário veio o autor a apurar que a ré passou a residir no locado identificado apenas após o falecimento do seu pai;
- O arrendatário há vários anos e até ao falecimento vivia sozinho;
- Por carta de 10.07.2009, o autor solicitou à ré a entrega do fogo;
- A ré não procedeu á entrega do locado;
- O 2º réu ocupa o locado por ser companheiro da 1ª ré;
- Cabe ao autor, no âmbito das suas competências, dar de arrendamento imóveis da sua propriedade a pessoas carenciadas, bem como alienar habitações e /ou outros edifícios destinados à habitação social ou instalações de interesse público;
- Com a conduta ilícita dos réus, o autor está impedido de cumprir a missão de interesse público que lhe foi atribuída, bem como de receber as rendas a que tem direito por força da celebração de um novo contrato de arrendamento;
- Os prejuízos assim sofridos pelo autor poderão ser calculados em € 7.008,95, correspondentes a 41 meses decorridos desde Julho de 2009, multiplicados pelo valor locativo mensal de € 170,95 que corresponde à renda técnica calculada de acordo com a Portaria nº 288/83, de 17 de março.

Os RR. contestaram separadamente.
A Ré MR alegou, em síntese, que:
- A ré sempre viveu no identificado locado com o seu pai e aí o acompanhou desde o início do arrendamento até à velhice e falecimento do mesmo;
- Desde 1981 que a ré fez do locado o centro da sua vida, ali residindo, tomando refeições, ali dormindo e recebendo amigos e familiares;
- Vivendo sempre em economia comum com o seu pai, tendo até ali nascido a sua filha menor;
- A ré tem pago pontualmente toas as rendas, mesmo depois do falecimento do seu pai;
- O autor sempre teve conhecimento que não era o pai da ré, mas sim a ré, que fazia mensalmente, na qualidade de sucessora do arrendamento, ao longo destes anos, o pagamento das rendas da casa;
- A ré comunicou ao autor o falecimento do seu pai e solicitou ao autor a transmissão do arrendamento para o seu nome, não tendo o autor respondido à ré;
- A ré o seu companheiro encontram-se desempregados e não dispõe de qualquer habitação alternativa;
- O disposto no artº 57º, nº 1, al. e) do NRAU é inconstitucional por violação do disposto no artº 1º, 13º, 18º e 65º da CRP, dado não contemplar, a título de excepção para a caducidade do arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário, a situação do filho maior de idade que com ele convivesse há mais de um ano, independentemente de ser portador de qualquer deficiência, mas não dispondo de qualquer habitação alternativa e encontrando-se em situação da mais absoluta carência de meios.
No mais, impugnou os factos articulados pelo autor.

O R. J  Alegou, resumidamente, que:
- Os réus vivem em união de facto há cerca de seis anos e têm uma filha menor, actualmente com três anos de idade;
- Foi no identificado imóvel que a filha de ambos foi concebida, nasceu e vem crescendo.

O Autor replicou, pugnando pela improcedência das excepções invocadas pela Ré M e reiterando a sua posição já defendida na petição inicial.

Findos os articulados, o processo foi saneado, seleccionaram-se os factos assentes (por acordo das partes e por documentos dotados de força probatória plena) e os que - por se mostrarem ainda controvertidos - foram incluídos na base instrutória e teve lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença (datada de 7/03/2013) com o seguinte teor decisório:
«a) julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:
- reconhece-se e declara-se ser o autor o proprietários da fração designada pela letra “I” do prédio urbano sito na Rua ..., Lote ..., bl. 1 ..., ..., C... L..., inscrito na respetiva matriz predial sob o nº ...;
- condenam-se os réus a reconhecer aquele direito de propriedade e a restituir ao autor, livre e devoluto, o rés-do-chão do prédio supra identificado;
- absolvem-se os réus do demais peticionado.
Custas pelo autor e pelos réus, na proporção de 2/10 e 8/10, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário».
 
Inconformada com o assim decidido, a Ré MA apelou da referida sentença, tendo rematado as concernentes alegações com as seguintes conclusões:
(...)

O Autor/Apelado não apresentou contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


O  OBJECTO  DO  RECURSO

Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) [3] [4]. Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º, 1ª parte, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 713º, nº 2, do mesmo diploma) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 660º, nº 2, do C.P.C., ex vi do cit. art. 713º, nº 2).
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pela Ré ora Apelante que o objecto da presente Apelação está circunscrito a 2 (duas) questões:
a) Se os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer duma acção como a presente, visto caber aos tribunais administrativos apreciar a questão em apreço;
b) Se o artigo 57º do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano) – ao não contemplar como excepção à regra da caducidade do arrendamento para habitação, por morte do primitivo arrendatário, a situação do filho maior de idade, que com ele vivesse há mais de um ano (independentemente de ser ou não portador de qualquer deficiência), mas não dispondo de qualquer habitação alternativa, encontrando-se em situação de carência absoluta de meios para custear habitação aos preços correntes de mercado - é inaplicável ao contrato de arrendamento celebrado em 16/02/1981 entre o extinto “Fundo Fomento da Habitação”, como primeiro outorgante, e o falecido pai da ora Ré (AEMR, porquanto ao arrendamento em causa se aplica legislação especial (trata-se de um contrato de arrendamento para fins habitacionais, de prédios pertencentes, ao tempo, ao Fundo de Fomento da Habitação, que se incluem no âmbito da habitação social, com sujeição a um regime único de atribuição, independentemente da entidade proprietária ou administradora, de todos os seus fogos, sendo que a atribuição destes fogos aos particulares, para além de resultar da prossecução de um interesse público, constitucionalmente consagrado, está sujeita a critérios de estrita legalidade, não se compadecendo com escolhas a eles alheias, como se passa no domínio do direito privado de arrendamento).


MATÉRIA DE FACTO
Factos  Considerados  Provados na 1ª Instância:

Não tendo sido impugnada a decisão sobre matéria de facto, nem havendo fundamento para a alterar oficiosamente, consideram-se definitivamente assentes os seguintes factos (que a sentença recorrida elenca como provados):

(...)


Factos  Considerados  Não Provados na 1ª Instância.

Dentre os factos controvertidos incluídos na base instrutória, o tribunal  a quo considerou não provados os seguintes:
(...)

O  MÉRITO  DA  APELAÇÃO

1) Se os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer duma acção como a presente, visto caber aos tribunais administrativos apreciar a questão em apreço
 
A Ré/Apelante sustenta que os tribunais judiciais seriam incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, porquanto caberia aos tribunais administrativos o respectivo conhecimento.
Invoca, em abono desta tese, a doutrina perfilhada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.09.2012 (proferido no Proc. nº. 654/12.5TBGMR.G1) e assim sumariado: “É da competência dos tribunais administrativos o julgamento da causa em que o Instituto de Gestão e Reabilitação Urbana , I.P. ( IHRU) pede a resolução do contrato de arrendamento de habitação social e condenação na restituição do prédio arrendado e pagamento de rendas vencidas e vincendas”.
Quid juris ?
A competência de um tribunal - pressuposto processual - é a medida da sua jurisdição, a parte da jurisdição que a lei lhe assinala, tratando-se de determinar, quanto à competência em razão da matéria, em que tribunal é que a acção deve ser proposta, se num tribunal comum, se num tribunal de jurisdição especial.
Conforme dispõe o art.º 209.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), existem diversas ordens ou categorias de tribunais (Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in “Constituição da República Anotada”, 3.ª ed., p. 805), uma das quais a dos tribunais judiciais, que são, nos termos do artigo 211.º da lei fundamental, os «comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».
A competência residual dos tribunais judiciais resulta também do art.º 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (a Lei n.º 3/99, de 13.01) e do art.º 66.º do CPC, com a redacção dada pelo DL nº 329-A/95, de 12.12, ao estabelecer que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Assim, a atribuição de competência a um tribunal de jurisdição especial depende da verificação de um duplo pressuposto: - o objecto da acção e a existência de uma norma específica atributiva de competência à jurisdição especial.
Daí que a competência dos tribunais comuns seja genérica ou residual, cabendo-lhes conhecer de todas as causas que não estejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial.
Enquanto a competência dos tribunais comuns é genérica ou residual, ao invés, os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas, atribuição que, segundo o artigo 212°, n.° 3, da Constituição da República, se cinge ao julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais [5].
Em concretização da referida norma constitucional, o actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, pela Lei n.º 107-D/2003,de 31 de Dezembro, pela Lei n.º 1/2008, de 14 de Janeiro, pela Lei n.º 26/2008, de 27 de Junho, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de Julho) estabelece, no n.° 1 do artigo 1°, que :
«Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Segundo uma orientação consensual, tanto na doutrina como na jurisprudência, a competência material afere-se pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal, nos precisos termos unilateralmente afirmados pelo Autor da pretensão [6] [7] [8] [9].
«Para decidir a matéria da excepção [de incompetência em razão da matéria] há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, o que foi alegado como "causa petendi" e, também o pedido formulado pelo demandante.
Assim é, tanto mais que, na primeira aproximação à lide, o juiz tem de ater-se na relação jurídica litigiosa nos termos afirmados unilateralmente pelo Autor na petição inicial»[10].
«É a petição inicial que nos dá a pedra de toque que permite decifrar a competência; tal o modo como o pedido nos aparece concretamente delineado, assim se fixa qual o tribunal competente para o conhecer.
No fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância – no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante – que determina a resolução desses pressupostos»[11].
No caso sub judice, resulta da leitura da petição inicial da presente acção estarmos perante uma típica acção de reivindicação.
Na verdade, o Autor não se limitou a pedir o reconheci_mento, pelo Tribunal, do seu direito de propriedade sobre o imóvel em questão, porventura tornado duvidoso por qualquer circunstância, designadamente, pela eventual afirmação por parte dos réus de que seriam titulares dum direito real sobre tal prédio, conflituante e/ou incompatível com o direito de propriedade do Autor - caso em que não estaríamos frente a uma acção de reivindi_cação, mas perante uma acção declarativa de simples apreciação positiva [12] (cfr. art. 4º, nº 2, al. a), do Cód. Proc. Civil).
Por outro lado, o Autor fundamentou o pedido de conde_nação dos RR. a restituir-lhe imediatamente o imóvel por eles ocupado (a fracção designada pela letra “I” do prédio urbano sito na Rua ..., Lote ..., Bloco 1 ..., r/c E, ... ..., Lisboa, inscrito na respectiva matriz predial sob o artº 1447) na afirmação peremptória de que é titular do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, e não na alegação de que teria sido privado da posse do local em questão por actos de esbulho praticados pelos RR. - caso em que estaríamos frente a uma acção de restituição de posse (art. 1278º do Cód. Civil) -, tão pouco fazendo assentar o pedido de condenação dos RR. (na entrega da aludida fracção autónoma do mesmo prédio) na alegação de que teria celebrado com estes um qualquer negócio jurídico do qual emergisse, como seu efeito, a obrigação para eles (RR.) de abrir mão do imóvel - hipótese em que a discussão a travar na acção não teria por tema o domínio do prédio em causa, tudo se cifrando, afinal, em apurar se os RR. teriam ou não cumprido essa obrigação a que estariam contratualmente ads_tritos[13].
Que o Cód. Civil português de 1966 acolhe a concepção segundo a qual, na acção de reivindicação, a restituição da posse depende do reconhecimento da propriedade do autor, visando, portanto, a acção este reconhecimento, do qual, depois (como de resto em todas as acções de condenação), decorre a ordem de restituir a coisa, é algo que ressalta transparentemente da redacção utilizada no art. 1311º, nº 1, do mesmo diploma:  «O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence».
No caso dos autos, elegendo o Autor, como causa peten_di " do pedido de condenação dos RR. a abrir mão da mencionada fracção autónoma do prédio em questão e a entregar-lha (a ele Autor), a circunstância de - segun_do alegou - ser proprietário do mesmo imóvel, isto é, titular do direito de propriedade sobre a referida fracção autónoma do prédio em questão, está-se, inequivo_camente, perante uma acção de reivindicação.
A circunstância de o Autor formular, a par do referido pedido de condenação dos RR. a restituir-lhe a parte do prédio urbano em questão que eles ocupam, o pedido de que se condene os mesmos RR. a pagar-lhe também uma indemnização pelos danos (rectius, pelos lucros cessantes) causados com a ocupação do imóvel em causa e consequente privação do seu uso e possibilidade de o arrendar e/ou alienar, tão pouco afecta a caracterização da acção como de reivindicação.
Na verdade - como bem observa ANTUNES VARELA[14] -, «nada surpreende que, na acção de reivindicação, ao lado das duas finalidades típicas que a caracterizam, o autor inclua ainda a indemnização dos danos causados pelo possuidor», indemnização essa que pode visar o ressarcimento de danos de vária ordem: «a coisa que deve ser restituída pode ter sofrido danos causados pelo possuidor; este pode ter tirado dela vantagens, que tenha de repor, ou ter realizado despesas ou benfeitorias, de que pretenda ser indemni_zado»[15] [16] [17].
Assente, pois, estarmos perante uma típica e comum acção de reivindicação, cumulada com uma acção de indemnização pelos lucros cessantes advindos ao reivindicante da ocupação indevida (isto é, sem para tanto dispor de título bastante) do imóvel reivindicado (por parte do demandado), não sofre dúvidas que a competência para a sua apreciação está reservada aos tribunais judiciais, visto não estar em causa nenhuma relação jurídica de índole administrativa[18].
Dito isto, é inegável que o julgamento da presente acção de reivindicação está dependente da apreciação duma questão prejudicial que, essa sim, é da competência dos tribunais administrativos.
É que, na acção de reivindicação, o demandado pode, mesmo sem impugnar a titularidade do direito de propriedade que o autor se arroga sobre a coisa, contestar o seu dever de a restituir a este. Para lograr evitar a sua condenação na entrega da coisa reivindicada ao autor, terá o demandado de alegar nos seus articulados (em ordem a poder prová-lo em audiência de julgamento):
a) ou que tem sobre a coisa outro qualquer direito real que justifique a sua posse (v.g., usufruto, penhor ou direito de retenção);
b) ou que detém a coisa por virtude de um direito obrigacional que lhe confira a detenção da mesma (v.g. arrendamento)[19].
Na verdade, como resulta do art. 1311º, nº 2, do Cód. Civ., a restituição da coisa será, em princípio, consequência directa do reconhecimento do direito de propriedade do autor, «salvo se o poder de gozo do proprietário está suspenso ou modificado pela constituição de um direito real ou obrigacional de outrem, caso em que se deve respeitar tal situação jurídica, só devendo ordenar-se a restituição se, e enquanto, não colidir com ela» (Acórdão da Relação do Porto de 3/3/1971, sumariado in BMJ nº 205, p. 263)[20] [21] [22].
A existência desses direitos reais ou obrigacionais, com relevância impeditiva da restituição da coisa ao proprietário, funciona, assim, como obstáculo ao exercício pleno da propriedade, isto é, como facto impeditivo do direito do proprietário de exigir a restituição da coisa.
A invocação dos respectivos factos consubstancia, por isso, uma excepção peremptória[23] [24](art. 493º, nº 3, do C.P.C.), recaindo o ónus da sua alegação e prova sobre o réu da acção de reivindicação (art. 342º, nº 2, do Cód. Civil) [25] [26].
Ora, no caso sub judice, os RR. (rectius, a Ré MA, embora não impugnando o direito de propriedade que o Autor se arroga sobre a fracção autónoma ora reivindicada, invocaram precisamente a titularidade dum direito que lhes conferiria o gozo da mesma fracção, ao excepcionarem a subsistência do contrato de arrendamento para habitação celebrado em 16/2/1981 entre o extinto Fundo de Fomento da Habitação (o então proprietário do imóvel em causa) e o falecido pai da Ré MA (AEMR), cuja posição contratual de arrendatário se teria, alegadamente, transmitido para aquela Ré, na sequência da morte do referido primitivo arrendatário.
Efectivamente, um dos tais casos previstos na lei em que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição pode ser recusada é a existência de contrato de arrendamento que legitime o gozo da coisa reivindicada (Ac. do STJ de 9/4/1995 [Proc. nº 086535; Relator – SANTOS MONTEIRO], cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt) [27].
Por outro lado, «reconhecido judicialmente o chamado "direito de preferência" ou direito a novo arrendamento, em termos de o senhorio se não poder eximir à obrigação de celebrar novo arrendamento com o ocupante, não há lugar à restituição» - Ac. do STJ de 9/7/1991 (proferido no Proc. nº 080646; Relator – CURA MARIANO), cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt.
De sorte que, no caso dos autos, o desfecho da presente acção de reivindicação está estritamente dependente da apreciação da questão de saber se o aludido contrato de arrendamento para habitação celebrado em 16/2/1981 entre o extinto Fundo de Fomento da Habitação (o então proprietário do imóvel em causa) e o falecido pai da Ré MA (AEMR) caducou ou não com a morte desse primitivo arrendatário, ocorrida em 29/1/2009.
Ora essa questão – a da continuação ou não em vigor do mencionado contrato de arrendamento para habitação celebrado em 16/2/1981 entre o extinto Fundo de Fomento da Habitação e o pai da ora Ré MA – está reservada ao conhecimento dos tribunais administrativos e fiscais.
Isto porque o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção emergente da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, definindo genericamente a competência dos tribunais administrativos, acolhe e reproduz, no seu artº 1º, nº 1, a norma da Constituição da República Portuguesa (artº 212º, nº 3), declarando-os “os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.
Depois, o artº 4º, nº 1, do mesmo Estatuto elenca, a título exemplificativo, vários tipos de litígios cujo objecto os insere na esfera de competência da justiça administrativa, do mesmo passo que, nos seus nºs 2 e 3, exclui outros, tudo agora sem qualquer referência ao critério de definição de competências, adoptado pelo anterior ETAF (Decreto-Lei nº 129/84) - artºs 3º, 4º e 51º -, a assentar em actos de gestão pública ou de gestão privada, ou em acções que tivessem por objecto questões de direito privado.
Dispõe a alínea f) do nº 1 do cit. art. 4º do actual ETAF que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objecto «Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
Como é afirmado no Ac. do STJ de 21/9/2010 (Proc. nº 2303/08.7TVLSB-A.L1.S1; relator – ALVES VELHO, acessível in www.dgsi.pt.), constata-se, assim, que o critério em causa, de conteúdo material, entronca agora em conceitos como a relação jurídica administrativa e a função administrativa, havendo que deparar-se com uma relação jurídica em que um dos sujeitos, pelo menos, seja ente público (Administração, intervindo com poderes de autoridade, com vista à realização do interesse público), regulada por normas de direito administrativo.
Segundo DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, (in “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, 2ª Edição, págs. 101/102), são neste âmbito três as situações a distinguir:
1ª: A dos contratos de “objecto passível de acto administrativo” - que os mesmos autores referem serem aqueles “que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral” -, apresentando adiante como excluídos desse campo os casos em que esteja “apenas em causa a previsão da possibilidade do exercício de direitos meramente potestativos, passíveis de serem estipulados no âmbito de relações de natureza puramente privada. Com efeito, a mera estipulação, por exemplo, de um direito de rescisão sem outra referência que especifique que esse direito pode ser exercido por acto administrativo, não faz com que a entidade pública fique titular de um poder público, mas apenas de um direito potestativo, a exercer nos mesmos moldes em que o seria por um privado. Tem, pois, de ser expressamente assumida, de forma inequívoca, a atribuição ao contraente público do poder de praticar actos administrativos no âmbito da relação”.
A este propósito, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA (in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos” - Volume I – “Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, pág. 21) referem estarem aqui previstos como administrativos, por terem objecto “passível de acto administrativo”, os contratos “que (celebrados ao abrigo da autonomia pública contratual) versam sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei previra serem atingidos mediante a prática de um acto administrativo, incluindo naturalmente aqui aqueles acordos pelos quais a Administração e o interessado põem fim a um procedimento administrativo já iniciado (ou que a Administração ameaça iniciar) substituindo o acto administrativo - a cuja prática aquele tendia - pelo concerto negociado do conteúdo da relação jurídica em causa”, acrescentado estes Autores (a fls. 48 e segs.) que “a opção tomada nesta alínea f), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes - de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares - e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.)”.
A segunda situação contemplada na cit. al. f) do nº 1 do art. 4º do actual ETAF respeita a “contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo”, ou seja, os contratos administrativos típicos.
A terceira situação ali prevista é relativa a “contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
Ou seja, comum a todas as situações previstas no artº 4º, nº 1, al. f), do ETAF, é a indispensabilidade de intervenção nos contratos de uma entidade pública.
«Podemos assim concluir que os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea f), são quaisquer contratos ­ administrativos ou não - com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do artº 4º nº 3 do ETAF - que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo» - Acórdão da Relação do Porto de 31/3/2011 (Proc. nº 147/09.8TBVPA.P1; relator – AMARAL FERREIRA), acessível (o texto integral) in www.dgsi.pt.
«O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo» - ibidem.
Por outro lado, também é suficiente para que o litígio contratual seja da competência dos tribunais administrativos i) que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública (ou um concessionário que actue no âmbito da concessão) e ii) que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Ora, no caso dos autos, ambos estes requisitos se encontram preenchidos.
Assim é que, por um lado, o contrato de arrendamento para habitação celebrado em 16/2/1981, cuja manutenção em vigor ou cessação por caducidade se discute, na presente acção, teve por outorgantes, de um lado, o extinto Fundo de Fomento da Habitação e, do outro, o falecido pai da ora Ré MA. Ora, o Fundo de Fomento da Habitação (um dos sujeitos do aludido contrato de arrendamento) era, inequivocamente, uma entidade pública (foi instituído, no então Ministério das Obras Públicas pelo Decreto-Lei nº 49 033, de 28 de Maio de 1969, “com o fim de contribuir para a resolução do problema habitacional, especialmente dos indivíduos não beneficiados pela actividade desenvolvida, no domínio da habitação, pelas caixas de previdência ou outras instituições semelhantes” [cfr. o nº 1 do artigo 1º daquele diploma]).
Por outro lado, o contrato de arrendamento para habitação em causa achava-se submetido, “ab initio”, a um regime substantivo de direito público.
Efectivamente, embora o art. 20º do cit. DL. nº 49 033, estatuísse que o arrendamento das casas do Fundo ficava sujeito, em tudo o que não estivesse em oposição com o disposto no presente diploma, “às respectivas normas da lei geral”, a verdade é que, nos termos do seu art. 21º, a actualização das rendas desses arrendamentos só era permitida nas condições nele previstas, e, sobretudo, mercê do disposto no seu art. 23º, o Fundo podia, independentemente de procedimento judicial, resolver os contratos dos arrendatários que, para obtenção das respectivas casas, tivessem incorrido em qualquer das irregularidades previstas no regulamento do mesmo diploma (publicado na mesma data – 28/5/1969 – e consubstanciado no Decreto nº 49 034).
Acresce que, nos termos expressamente convencionados entre as partes (cfr. a respectiva cláusula IX), o arrendamento em questão também podia ser resolvido antes do termo nele previsto, para além dos casos já contemplados nas disposições legais aplicáveis, se o arrendatário não cumprisse as obrigações impostas pela cláusula VII do contrato (v.g., a de promover a instalação e ligação de contadores de água, gás e electricidade; a de conservar no estado em que se encontrasse a instalação da luz eléctrica e ainda todas as canalizações e seus acessórios, pagando à sua conta todas as reparações que se tornassem necessárias por efeito de incúria ou indevida utilização; a de não conservar na habitação animais que incomodassem os vizinhos ou causassem quaisquer danos; a de não fazer ruídos que incomodassem os vizinhos; e a de não depositar lixo senão nos locais para isso destinados).
Não sofre, portanto, contestação que o contrato de arrendamento para habitação em questão se desviava, em vários pontos do seu regime substantivo, do regime geral da locação civil, assumindo, manifestamente, alguns contornos de direito público.
Assim sendo, estamos perante um dos tais contratos abrangidos pela cit. alínea f) do nº 1 do cit. art. 4º do actual ETAF, cuja interpretação, validade e execução está actualmente deferida à jurisdição administrativa.
A esta luz, sabendo-se que o julgamento do mérito da presente acção está dependente da apreciação duma questão prejudicial que é da competência dos tribunais administrativos, é caso de se fazer funcionar a norma contida no art. 97º, nº 1, do CPC de 1961 (a que corresponde o art. 92º, nº 1, do actual CPC de 2013) e decretar a suspensão da instância até que o tribunal administrativo se pronuncie sobre a questão de saber se o contrato de arrendamento para habitação celebrado, em 16 de Fevereiro de 1981, entre o extinto FUNDO DE FOMENTO DA HABITAÇÃO e o falecido pai da ora Ré/Apelante MR (de seu nome AR) caducou ou não, “ope legis”, com a morte do referido primitivo arrendatário, ocorrida em 29 de Janeiro de 2009.
Consequentemente, embora por fundamento diverso dos invocados pela ora Apelante, a presente apelação não deixa de proceder, quanto à 1ª questão suscitada nas conclusões da respectiva alegação de recurso, ficando, consequentemente, prejudicada a apreciação daqueloutra questão por ela levantada em 2º lugar.

DECISÃO
Acordam os juízes desta Relação em conceder provimento à Apelação da Ré MR, revogando a sentença recorrida e declarando suspensa a instância, nos presentes autos, ao abrigo da faculdade discricionária concedida ao julgador pelo artigo 97º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1961, até que o tribunal administrativo se pronuncie sobre a questão de saber se o contrato de arrendamento para habitação celebrado, em 16 de Fevereiro de 1981, entre o extinto FUNDO DE FOMENTO DA HABITAÇÃO e o falecido pai da ora Ré/Apelante MR (de seu nome AR) caducou ou não, “ope legis”, com a morte do referido primitivo arrendatário, ocorrida em 29 de Janeiro de 2009.
Não são devidas custas pela presente apelação, dada a não oposição do Autor/Apelado.

Lisboa, 28/1/2014

Rui Torres Vouga (relator)
Maria do Rosário Barbosa (1º Adjunto)
Maria do Rosário Gonçalves (2º Adjunto)
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5] Apesar de a competência dos tribunais administrativos ser limitada, por confronto com a competência genérica dos tribunais judiciais, pode-se e deve-se actualmente afirmar que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição: cfr., neste preciso sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 508/94 e 347/97, (publicados nos DR de 94.12.13 e de 97.07.25), bem como os acórdãos do STA de 96.10.03 e de 03.02.27, (proferidos nos Recursos n.°s 41.403 e 285/03.)
[6] Segundo MANUEL DE ANDRADE (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, p. 91) «a competência do tribunal não depende... da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos desta pretensão». Por outras palavras: a competência «afere-se pelo “quid disputatum” (“quid decidendum”, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor». (cf. ainda, no mesmo sentido, ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, 1º Vol., p. 110).
[7] Segundo o Ac. do STJ de 27/1/2004 (proferido no Proc. nº 03A4065 e relatado pelo Conselheiro FERNANDES DE MAGALHÃES, cujo texto integral pode ser acedido, via Internet, no sítio www.dgsi.pt), «a competência material tem de ser aferida pelos termos em que o Autor propõe a acção, seja quanto aos elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde deriva esse direito) seja quanto aos elementos subjectivos (identidade das partes). «Afere-se, portanto, a competência material do tribunal pela substância do pedido formulado e pelos factos concretizadores da causa de pedir» (ibidem).
[8] Cfr., também no sentido de que «a determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo Autor deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se baseia, sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão), o Ac. do Tribunal de Conflitos de 23/9/2004 (Proc. nº 05/04; Relator SANTOS BOTELHO), cujo texto integral pode ser acedido, via Internet, no sítio www.dgsi.pt. «A competência terá, por isso, de se aferir pelos termos da relação jurídico-processual tal como foi apresentada em juízo» (ibidem).
[9] Cfr., igualmente no sentido de que «a competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida, atendendo aos termos em que é formulada a pretensão do Autor (ou Requerente) incluindo os seus fundamentos», o Ac. do Tribunal de Conflitos de 27/11/2008 (Proc. nº 016/08; Relatora: ANGELINA DOMINGUES), acessível, via Internet, no sítio www.dgsi.pt.
Consequentemente, «saber se a configuração jurídica que os interessados dão à sua pretensão é ou não correcta, ou se procedem as razões dos Requeridos, é questão que já contende com o mérito do processo e não deve interferir na decisão sobre a competência do tribunal» (ibidem).
[10] Ac. do STJ de 14/11/2006 (Proc. nº 06A3637; Relator SEBASTIÃO COUTINHO PÓVOAS), cujo texto integral pode ser acedido, via Internet, no sítio www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do STJ de 13 de Maio de 2004, proferido no Proc. nº 04B875.
[12] Efectivamente, «nem todas as acções reais, isto é, destinadas a fazer valer um direito real, são acções de reivindicação. A acção de reivindicação caracteriza-se pelos pedidos de reconhecimento do direito invocado (pronuntiatio), de natureza formal, e de entrega do bem reivindicado (condemnatio). Quando limitada a pretensão submetida a juízo à declaração do direito invocado estar-se-à perante acção de simples apreciação positiva, e não perante acção de reivindicação, que é uma acção de condenação» - Ac. do STJ de 22/1/2004 (Proc. nº 03B3959; Relator – OLIVEIRA BARROS), cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt.
[13] Cfr., neste sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (in "Código Civil Anotado", vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pág. 113) e MANUEL RO_DRIGUES JÚNIOR ("A Reivindicação no direito civil português", in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 57º, págs. 114, 115 e 129).
[14] In Rev. de Leg. e de Jurispª, ano 116º, pág. 16, nota 2.
[15] Ibidem.
[16] Cfr., igualmente no sentido de que «a detenção indevida que na pura reivindicatória não tem o significado de facto ilícito, fonte de obrigações em sentido técnico, pode, todavia, assim dever considerar-se desde que se verifique o prejuízo e demais elementos da responsabilidade civil», MANUEL SALVADOR in “Suplemento aos Elementos da Reivindicação”, 1962, p. 35. «Então, ao lado do pedido de entrega haverá mais o do pagamento de indemnizações» (ibidem). Quando tal suceda, MANUEL SALVADOR entende (in ob. cit. p. 37), na esteira de PAULO CUNHA, que «a cumulação dos pedidos é real e não aparente, embora um principal (note-se que o pedido principal é o reconhecimento do direito e não o de largar mão dos prédios) e o acessório do pagamento de indemnizações».
[17]  Cfr. também, no sentido de que nada impede que se acrescentem aos dois pedidos que integram e caracterizam a acção de reivindicação (o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o da entrega do prédio) outros pedidos acessórios, tais como o pedido de indemnização por danos causados pelo demandado ou o pedido de demolição de obra indevidamente feita na coisa reivindicada, o Ac. da Rel. de Coimbra de 10/5/1988 (in Col. Jur. 1988, tomo 3, p. 63), o Ac. da Rel. do Porto de 16/3/1989 (sumariado in BMJ nº 385, p. 603), o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/1991 (in BMJ nº 411, p. 559) e os Acs. da Rel. de Coimbra de 7/1/1992 (sumariado in BMJ nº 413, p. 619) e de 12/7/1995 (sumariado in BMJ nº 449, p. 446).
[18] Cfr., também no sentido de que, «Sendo a presente acção uma acção de reivindicação e fundando-se na ausência de qualquer fundamento legal para a não entrega de dois imóveis propriedade do autor, está em questão uma relação estritamente privada, da competência dos tribunais judiciais», sendo que «A circunstância de ter sido anulado o contrato de arrendamento celebrado entre a Câmara Municipal em substituição do autor, e a ré, constitui um mero facto instrumental desta acção, só relevando na medida em que invalidou o contrato de arrendamento», o Acórdão do STJ de 12/2/2009 (relator – PAULO SÁ; Proc. nº 08A4090), acessível (o texto integral) in www.dgsi.pt..
[19]  Com efeito - como bem observa MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in “A Acção de Despejo”, Lx., 1991, p. 20) -, «a distinção entre o objecto da acção de reivindicação e da acção de despejo não obsta a que a subsistência de um contrato de arrendamento entre as partes possa ser excepcionada e discutida numa acção de reivindicação». «Conforme resulta do art. 1311º, nº 2, CC, se na acção de reivindicação houver o reconhecimento do direito de propriedade, a restituição da coisa só pode ser recusada se o demandado possuir um título legítimo de posse da coisa: esse título pode ser um contrato de arrendamento do prédio reivindicado, pelo que o réu da acção de reivindicação pode impedir a condenação na restituição da coisa se excepcionar aquele título de posse» (ibidem): cfr., neste sentido, o Ac. da Rel. de Évora de 24/7/1974 (in BMJ nº 240, p. 279), o Ac. da Rel. de Lx. de 8/3/1978 (in BMJ nº 277, p. 307), os Acs. do STJ de 4/7/1980 (in BMJ nº 299, p. 320), de 18/12/1984 (in BMJ nº 342, p. 387) e de 26/1/1988 (in BMJ nº 373, p. 479) e o Ac. da Rel. de Lx. de 17/11/1983 (in Col. Jur. 1983, tomo 5, p. 113).
[20] Cfr., no mesmo sentido, os Acórdãos da mesma Relação de  27/3/1974 (in BMJ nº 235, p.356) e de 26/10/1977 (in Col. Jur. 1977, tomo 5, p. 1199) e os Acórdãos do S.T.J. de 21/12/1978 (in BMJ nº 282, p.187), de 8/5/1979 (in BMJ nº 287, p.305), de 4/7/1980 (in BMJ nº 299, p. 320) e de 2/12/1986 (in BMJ nº 362, p. 537).
[21] «Demonstrado o direito de propriedade, só é possível evitar a restituição desde que se demonstre a existência sobre ela de qualquer outro direito real que justifique a posse de outrém ou que a detém por virtude de direito pessoal bastante» (Ac. do STJ de 9/7/1991, proferido no Proc. nº 080646; Relator – CURA MARIANO, cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt).
[22] «Esses casos impeditivos da restituição ocorrem quando o Réu na acção tem uma ligação à coisa reivindicada, uma relação jurídica que permite não qualificar a ocupação como abusiva, "verbi gratia" se a fruição se abriga num contrato de arrendamento, ou comodato» - Ac. da Rel. do Porto de 8/5/2000 (Proc. nº 0050543; Relator – FONSECA RAMOS), cujo sumário está acessível, via Internet, no sítio www.dgsi.pt.
[23]  Cfr., no sentido de que se defende por excepção o réu em acção de reivindicação que alega ser locatário do prédio reivindicado, o Ac. da Rel. de Coimbra de 12/5/1987 (in BMJ nº 367, p. 576).
[24] Cfr., igualmente no sentido de que «a invocação do arrendamento para paralisar o efeito do n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil tem a natureza de excepção peremptória», o Ac. do STJ de 8/2/2011 (Proc. nº 12/09 9T2STC.E1.S1; Relator – SEBASTIÃO PÓVOAS), cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt.
[25] «Numa acção de reivindicação o ónus da prova dos reivindicantes consiste na demonstração de que são os proprietários do imóvel reivindicado e de que este se encontra sob o uso material dos RR, a quem cabe alegar e provar que têm título legítimo para a ocupação». «Assim, os RR, neste tipo de acção, têm de alegar e provar a excepção peremptória, sem necessidade de reconvenção, sob pena de, não o fazendo, sucumbirem na acção» (Ac. da Rel. do Porto de 22/5/2001, proferido no Proc. nº 877-2001 e relatado pelo Desembargador EDUARDO ANTUNES, cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt).
[26] Efectivamente, «na acção de reivindicação, não impende sobre o reivindicante ónus de evidenciar a inexistência de um título eventualmente legitimador da ocupação pelo réu; mas impende sobre o réu ónus de demonstração de existência desse título» (Ac. do STJ de 7/2/1995 [Proc. nº 086254; relator -  CARDONA FERREIRA], cujo texto integral está acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt).
[27] Cfr., também no sentido de que «serve de causa impeditiva da obrigação de entregar uma fracção autónoma de um imóvel, em acção de reivindicação, a junção do contrato de arrendamento da aludida fracção, não se negando o direito de propriedade do autor, limitando-se a impugnar, por essa via, o dever de restituir a coisa», o Ac. da Rel. de Évora de 21/5/1998 (sumariado in BMJ nº 477, p. 584).
Decisão Texto Integral: