Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
248/19.4T8FNC.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO
EXPECTATIVA DE PROCEDÊNCIA DA AÇÃO
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.Cabe ao juiz, por imposição do artº 3º, do CPC, respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.

2.Por decisão - surpresa deve entender-se aquela que envereda por solução dada a questão relevante para a decisão da causa e que, embora naturalmente previsível, não foi em todo o caso configurada pela parte, e sem que a mesma tivesse obrigação de a prever, maxime porque não deduziu a parte contrária qualquer oposição.

3.Tendo o julgador considerado admitidos por acordo todos os factos alegados na petição inicial, em razão de ausência de contestação, é compreensível que tenha o demandante criado fundada expectativa de que a pretensão que deduziu viesse a ser atendida.

4.Em razão do referido em 5.3., mais sentido faz [maxime porque em causa está uma questão que não foi discutida pelas partes e que ademais esteve na base da decisão de improcedência da acção] em perviamente ouvir o demandante sobre questão susceptível de, ainda assim, e segundo solução plausível da questão de direito, conduzir à improcedência da Açcão.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de LISBOA


*


1.Relatório


A [João…...] intentou ação de processo comum contra B [Hermita …...], peticionando que, uma vez julgada a acção como procedente, por provada, seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração de partilha omitida pela Ré e, em consequência:
a)-Declare transferido, por partilha, para o Autor, o direito de propriedade sobre os bens identificados no artigo 4.º da petição, nas verbas n.º 1, 3 e 8;
b)-Seja a Ré condenada a abster-se de praticar qualquer acto que atente contra o direito de propriedade do Autor;
c)-Aquando da transmissão do direito de propriedade sobre o bem identificado na verba n.º 1, declare transferido, por partilha, para o Autor a responsabilidade pelo pagamento do empréstimo melhor identificado no artigo 5º da petição, na verba n.º 12, e que onera aquele bem;
d)-Declare transferido para o Autor, por partilha, a meação do bem melhor identificado no artigo 4.º supra, na verba n.º 7;
e)-Declare transferido para o Autor, por partilha, o direito ao crédito melhor identificado no artigo 4.º da petição, na verba n.º 11, no valor de € 25.000,00.

1.1.Para tanto alegou o autor, em síntese, que :
- Foi casado com a Ré, sendo que, após divórcio de ambos por mutuo consentimento, acordaram em proceder à partilha dos bens do casal, subscrevendo ambos um contrato promessa de partilha em 4/11/2015;
- Do referido contrato promessa de partilha ficou a constar que o contrato definitivo da partilha seria celebrado no prazo de 30 dias, cabendo ao autor proceder à marcação de escritura pública e devendo interpelar a Ré por carta registada com aviso de recepção, para a casa de morada de família;
- Sucede que, tendo convocado a ré para o referido efeito, por carta, datada de 8 de Novembro de 2016, expedida no dia 9 de Novembro de 2016, e comunicando-lhe que a escritura de partilha se encontrava agendada para o dia 18 de Novembro de 2016 , não se dignou a mesma receber a carta, recusando-a , razão porque foi ela devolvida;
- Tendo  o autor, posteriormente, tentado contactar a Ré em vista à resolução definitiva da questão,  e comunicando-lhe para que comparecesse-se no escritório do seu mandatário para que a questão fosse tratada, sempre a Ré ignorou o conteúdo das cartas enviadas, sem fornecer qualquer explicação para o efeito;
- Destarte, manifesto é que ocorre o incumprimento do contrato promessa de partilha por banda da Ré e, tendo as partes submetido a promessa ao regime de execução específica, a que acresce a tal não se opõe a natureza da obrigação assumida pela Ré, assiste assim ao Autor [em conformidade com o disposto no artigo 830.º do Código Civil] o direito de obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial daquela para a formalização do contrato prometido.

1.2.–Regularmente Citada para, em prazo, querendo, deduzir contestação/oposição, não veio a Ré B  fazê-lo, razão porque ao abrigo do art. 567º nº 1, do C.P.C, foram consideram-se confessados os factos articulados pelo autor no requerimento inicial, e ordenado o cumprimento do disposto no art. 567º, nº 2 do mesmo diploma legal.

1.3.–Apresentadas – apenas pelo autor – alegações sintéticas, nas mesmas pugnando pela procedência da acção, foi de seguida proferido despacho saneador/SENTENÇA, sendo o respectivo excerto decisório do seguinte teor :
“ (…)
VI. Decisão
Pelo exposto julgo improcedente a presente ação e, em consequência, absolvo a ré do pedido.
Custas do processo a cargo do autor – art.º 527º, nº 2 do C.P.C.
Registe e notifique.
Funchal, 28-02-2023”

1.4.–Não se conformando com a decisão/sentença do tribunal a quo, da mesma apelou então o Autor A, alegando e deduzindo as seguintes conclusões:
1.–O Tribunal a quo, na sentença da qual se recorre considerou que não se pode declarar transferido para o Autor a responsabilidade do empréstimo bancário contraído pelo ex-casal, junto da Caixa Geral de Depósitos, responsabilizando a Ré pela dívida junto daquele credor, sem a sua anuência, e que os pedidos formulados pelo autor restringem a execução específica apenas à transmissão das verbas atribuídas ao autor, pelo que não era possível assegurar a paridade entre os cônjuges e o tribunal não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2.–Estas questões não foram suscitadas pelas partes nem pelo tribunal em momento anterior ao da prolação da sentença – repare-se que a Ré não apresentou contestação nem estas questões foram suscitadas em anterior despacho
3.–Com efeito, o Autor, na petição inicial, suscitou o incumprimento do Contrato Promessa de Partilha por banda da Ré e a sujeição, de harmonia com o n.º 1 do artigo 830.º do Código Civil, do contrato à execução específica, solicitando ao tribunal a obtenção de sentença que produza os efeitos de declaração negocial da Ré.
4.–Nada levava o Autor a crer a que algo pudesse se opor à obtenção de sentença com esse teor.
5.–A decisão proferida pelo tribunal configura uma decisão-surpresa e viola o artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
6.– A decisão, da forma como foi proferida, contra a expetativa criada na parte e sem o seu conhecimento prévio, viola o princípio do contraditório.
7.–Caso o Autor tivesse sido notificado para exercer o contraditório podia, designadamente, ter suscitado a intervenção provocada da Caixa Geral de Depósitos e lançar mão da possibilidade de ampliação ou redução do pedido.
8.–A não observância do contraditório, porque influiu na decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do CPC, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
9.–O tribunal a quo na sentença recorrida suscita a falta de anuência da Caixa Geral de Depósitos, o que poderia ser sanado por via da sua intervenção ou por via da junção de algum documento, e a circunstância de os pedidos formulados pelo autor restringirem a execução específica apenas à transmissão das verbas atribuídas ao autor o que também seria sanado com a ampliação do pedido..
10.–Todavia, não foi dada ao Autor a possibilidade de suprir as irregularidades dos articulados nem foi proferido despacho pré-saneador destinado a permitir a apreciação do mérito da causa.
11.–Pelo que foram violados o n.º 3 do artigo 590.º do CPC e a alínea c) do n.º 2 do artigo 590.º do CPC.
12.–Sendo essas omissões suscetíveis de influir na decisão da causa, como sucedeu, a decisão é nula, nos termos do artigo 195.º do CPC, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
13.–O Autor discorda do facto de o Tribunal a quo não ter dado às partes a possibilidade de se pronunciarem antes da decisão final proferida, originando a alegada decisão-surpresa, o que determinou a improcedência de todos os pedidos que na ação formulou.
14.–Esta discordância consubstancia, materialmente, a arguição não de um vício formal, de preterição ou violação de uma qualquer norma processual, mas sim de violação de lei substantiva, por erro de julgamento.
15.–O recorrente não ignora que das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se, mas neste tipo de situação, em que se deteta uma nulidade que está colada à prolação da sentença o meio de reagir próprio é o recurso.
Por tudo o que ficou dito e pelo muito que será suprido deverá ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida, com as legais consequências, Como é de JUSTIÇA!

1.5.A recorrida B não veio  apresentar contra-alegações.
*

Thema decidendum
1.6.–Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso] das alegações dos recorrentes (cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, a questão a apreciar e a decidir é apenas a seguinte :
i)-Aferir se a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa sendo nula por violação do princípio do contraditório.
*** 
     
2.– Motivação de Facto
Em sede de saneador/sentença, fixou o tribunal a quo, a seguinte FACTUALIDADE :

A)–PROVADA
2.1-O Autor e a Ré contraíram matrimónio no dia 10 de Janeiro de 1981.
2.2-Posteriormente, o Autor intentou ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge contra a Ré, o que deu origem ao Processo n.º ../14.7TBSCV, que correu termos na Comarca da Madeira – Funchal – Inst. Central – Sec. Família e Menores – J3.
2.3.-No âmbito desse processo, no dia 4 de Novembro de 2015, as partes, tendo logrado acordo, requereram a convolação dos autos em divórcio por mútuo consentimento e, para tanto, informaram o tribunal de que se encontravam de acordo quanto a alimentos, destino de casa de morada de família e relação de bens.

2.4.-Fizeram constar da relação de bens, no ativo, as seguintes verbas:
a)-Verba n.º 1-Prédio urbano, destinado à habitação, situado ao S..... - L..... - Freguesia da Ponta Delgada, Concelho de São Vicente, inscrito na Matriz sob o art.º …, que constituía a casa de morada de família;
b)-Verba n.º 2-Prédio urbano, destinado à habitação, localizado na Travessa …, n.º ..., Freguesia de Santa Maria Maior, Concelho do Funchal, inscrito na Matriz sob o art.º…;
c)-Verba n.º 3-Prédio rústico, localizado ao S..... - L....., da Freguesia da Ponta Delgada, Concelho de São Vicente, inscrito na matriz sob o art.º …;
d)-Verba n.º 4-1/6 de um prédio misto composto de 3 casas, sendo duas sobradas e uma térrea coberta de telha, localizada ao S..... - C..... - G____ e R____ A_____, Freguesa de Câmara de Lobos, inscritas na matriz a parte rústica sob o art.º… e a parte urbana sob os art. …, …, …;
e)-Verba n.º 5-1/16 de prédio rústico ao S..... - C..... - G____ e R____ A____, inscrito na matriz sob os art.º … e …;
f)-Verba n.º 6-1/16 de um prédio rústico localizado ao S...... C..... - G____ e R____- A____, inscrito na matriz sob o artigo …;
g)-Verba n.º 7-Quota no valor nominal de € 59.855,75, detida na sociedade denominada Sociedade …., Lda, com o NIPC … e com o mesmo n.º de registo comercial;
h)-Verba n.º 8-Veículo automóvel comercial, marca Rover, modelo 200, cor vermelha, do ano de 1998;
i)-Verba n.º 9-Veículo automóvel marca Volkswagen Golf, cor branca, de 5 lugares;
j)-Verba n.º 10-Veículo automóvel, marca Renault, modelo Clio, cor branca, de 5 lugares;
k)-Verba n.º 11-Crédito detido no Governo Regional da Madeira, no âmbito de um processo de expropriação da Verba n.º 3, que à data se encontrava pendente, no montante de cerca de trinta mil euros;

Fizeram constar da relação de bens o seguinte passivo:
a)-Verba n.º 12- Empréstimo destinado a habitação, contraído no Banco Caixa Geral de Depósitos, com o valor, à data, de €37.584,99, que onera a Verba n.º 1 da relação de bens.
2.5.-Mais acordaram na celebração de contrato promessa de partilha, junto aos autos a fls. 10v e 11, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
2.6.-Do contrato promessa de partilha referido no ponto antecedente ficou a constar que as verbas n.º 1, 3, 8 e 12 seriam adjudicadas ao Autor.
2.7.-Por seu turno, as verbas n.º 2, 4, 5, 6, 9 e 10 seriam adjudicadas à Ré.
2.8.-A verba n.º 7 permaneceria na esfera de patrimonial de ambos.
2.9.-No que respeita à verba n.º 11, € 5.000,00 seriam adjudicados à Ré e os remanescentes € 25.000,00 seriam adjudicados ao Autor.
2.10.-A Ré habitaria o prédio identificado supra, no artigo 4.º, na verba n.º 1, até à conclusão e celebração do contrato definitivo de partilha ou até à conclusão das obras no prédio que integra a verba n.º 2 da relação de bens, a realizar a expensas do Autor, a fim de dotá-la de condições de habitabilidade condignas, caso estas ocorressem em data posterior à da celebração da escritura de partilha.
2.11.-O prédio que integra a verba n.º 2 da relação de bens encontra-se dotado de condições de habitabilidade, uma vez que o Autor nele efetuou obras, conforme acordado.
2.12.-Todos os bens provenientes da herança aberta por óbito de Virgínia……, João…... e Virgínia….. seriam adjudicados à Ré, prescindindo as partes de tornas decorrentes da partilha.
2.13.-Ficou convencionado que o contrato definitivo de partilha seria celebrado no prazo de 30 dias, o qual, sendo necessário, poderia ser prorrogado, por mútuo acordo, por mais 30 dias.
2.14.-A interpelação ficaria a cargo do Autor e seria efetuada, por carta registada com aviso de receção, para a casa de morada de família, ou seja, para a morada do prédio identificado supra, no artigo 4.º, na verba n.º 1.
2.15.-Por fim, as partes acordaram submeter o contrato promessa de partilha ao regime de execução específica, previsto no artigo 830.º do Código Civil.
2.16.-O divórcio por mútuo consentimento e o contrato promessa de partilha referidos nos artigos antecedentes foram homologados por sentença transitada em julgado no dia 4 de Dezembro de 2015.
2.17.-Em conformidade com o acordado entre as partes, por carta, datada de 8 de Novembro de 2016, expedida no dia 9 de Novembro de 2016, dirigida à Ré e enviada para a morada que constituía a casa de morada de família, o Autor comunicou à Ré que a escritura de partilha se encontrava agendada para o dia18 de Novembro de 2016, a qual teria lugar no Cartório Notarial privado do Dr. João….., situado no Edifício ......, ....º andar, freguesia e concelho de S. Vicente, pelas 14h30.
2.18.-A carta referida no ponto antecedente foi devolvida ao Autor, com a indicação de que havia sido recusada.
2.19.-E, consequentemente, a celebração da escritura de partilha não se realizou.
2.20.-Por carta datada de 30 de janeiro de 2018, expedida no dia seguinte e dirigida à Ré, a Ré foi convidada a comparecer no escritório do mandatário do Autor no dia 8 de fevereiro, pelas 18 horas
2.21.-A carta foi recebida pelo filho das partes, que reside com a Ré.
2.22.-Todavia, atingida a data prevista, a Ré não compareceu, não deu qualquer justificação para a sua ausência, não comunicou uma data alternativa nem agendou uma escritura.
2.23.-Por carta datada de 6 de abril de 2018 e enviada no dia 9 do mesmo mês, a Ré foi novamente convidada a comparecer no escritório do mandatário do Autor, no dia 17 desse mês.
2.24.-A Ré recebeu a carta.
2.25.-A Ré voltou a não comparecer, não comunicou o motivo da sua não comparência, não comunicou uma data alternativa, nem agendou uma qualquer escritura.

***

3.– Motivação de direito
3.1.–Se a decisão recorrida, da forma como foi proferida - contra a expetativa criada na parte e sem o seu conhecimento prévio - , viola o princípio do contraditório, configurando em rigor uma decisão-surpresa e violando o artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
A amparar a decisão recorrida, mostra-se no essencial e pelo Primeiro Grau aduzida a seguinte fundamentação :
“(…)
É inequívoco que face à matéria de facto provada nos autos a ré encontra-se em incumprimento da referida “promessa de partilha”.
No entanto, tal como foi formulado o pedido pelo autor, o mesmo não poderá proceder.
Assim, desde logo, o tribunal não pode declarar transferido para o autor, a responsabilidade de empréstimo bancário contraído pelo ex-casal, junto da Caixa Geral de Depósitos, desresponsabilizando a ré pela dívida junto daquele credor, sem que aquela instituição tenha dado a sua anuência, pelo que, nesta parte, o pedido mostra-se impossível.
Ora, não sendo possível a transmissão do referido passivo para o autor, torna-se inviável a execução específica no que respeita à restante promessa de partilha, pois estaria a violar-se a paridade entre os cônjuges na divisão dos bens comuns, nos termos do art. 1730.º, n.º 1, do CC.
Na verdade, “os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão ,sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso” – art.º 1730º, nº 1 do CC.
Por outro lado, os pedidos formulados pelo autor, restringem a execução específica apenas à transmissão das verbas que foram atribuídas ao autor, na promessa de partilha, deixando de fora as verbas que foram prometidas à ré, o que coloca em causa o necessário equilíbrio na partilha do património comum do casal, o qual constitui um massa patrimonial única.
Efetivamente, a proceder o pedido do autor, apenas em parte seria cumprido o contrato promessa de partilha em causa, quebrando-se a unidade contratual subjacente a um contrato de partilha do património conjugal, não se assegurando a paridade entre os cônjuges na divisão dos bens comuns.
Acresce que, o tribunal não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que foi pedido, nos termos do art.º 609º, nº 1, do C.P.C., não podendo declarar a transmissão das verbas prometidas à ré, a favor desta, quando tal não foi peticionado.”

Dissentindo o apelante da sentenciada improcedência da acção, para tanto considera o recorrente que apenas na sentença proferida foi suscitada – e apreciada - a questão da impossibilidade de transferência da responsabilidade do crédito sem intervenção da Caixa Geral de Depósitos e, também pela primeira vez foi suscitada a impossibilidade de se assegurar a paridade entre os cônjuges na divisão dos bens comuns, uma vez que os pedidos formulados pelo autor restringem a execução específica apenas à transmissão das verbas atribuídas ao autor.
É que, diz o apelante, não tendo as referidas questões sido suscitadas pelas partes nem pelo tribunal em momento anterior ao da prolação da sentença – desde logo porque a Ré não apresentou contestação - , forçoso é - para o recorrente - que a decisão proferida pelo tribunal deva ser qualificada como uma decisão-surpresa, violando o artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Na verdade, insiste ainda o apelante, a decisão em crise, da forma como foi proferida, contra a expectativa criada na parte e sem o seu conhecimento prévio, constitui uma verdadeira decisão surpresa com violação do princípio do contraditório.
E, porque influiu na decisão da causa, conclui o apelante que em causa está o cometimento pelo Primeiro Grau de uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do CPC, o que em sede de impugnação recursória vem - o apelante  - invocar para todos os efeitos legais.

Ora Bem.

É consabido que, sob a epigrafe de Necessidade do pedido e da contradição, diz-nos o artº 3º, do CPC, nos respectivos nºs 1 e 3, respectivamente, que “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”, e que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O dispositivo referido, recorda-se, e ainda que com ligeiras alterações  relativamente ao actual artº 3º, apenas foi introduzido na nossa Lei adjectiva [no artº 3º, do CPC, à data em vigor] com o  DL n.º 329-A/95, de 12.12 , explicando então o legislador que :
“Significativo realce foi dado à tutela efectiva do direito de defesa, prevendo-se que nenhuma pretensão possa ser apreciada sem que ao legítimo contraditor, regularmente chamado a juízo, seja facultada oportunidade de deduzir oposição.
O incremento da tutela do direito de defesa implicará, por outro lado, a atenuação da excessiva rigidez de certos efeitos cominatórios ou preclusivos, sem prejuízo de se manter vigente o princípio da auto-responsabilidade das partes e sem que as soluções introduzidas venham contribuir, de modo significativo, para a quebra da celeridade processual.
Afirmam-se como princípios fundamentais, estruturantes de todo o processo civil, os princípios do contraditório, da igualdade das partes e da cooperação e procuram deles extrair-se consequências concretas, ao nível da regulamentação dos diferentes regimes adjectivos.
Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, e aplicando-se tal regra não apenas na 1.ª instância mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos.”.

Estando em rigor em causa um instituto [o da proibição de decisões-surpresa] ainda sem grande tradição no nosso Direito, cedo a doutrina [v.g. José LEBRE DE FREITAS  (1)] veio esclarecer e clarificar que o nosso legislador veio agora adoptar uma concepção do princípio do contraditório mais lata, devendo doravante o respeito pela contraditoriedade passar por uma “garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.

Ou seja, ainda segundo LEBRE DE FREITAS (2), “O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.

Porém, a mesma doutrina, cedo passou também a considerar que , e utilizando uma expressão muito popular na nossa língua, importava não passar do 8 para o 80, que o mesmo é dizer, não cair em excessos e ou exageros [prática e/ou vício de resto bem “português”, mormente em sede de interpretações da lei após alterações introduzidas pelo legislador em direito adjectivo].

É assim que, v.g. para Othmar Jauernig (3), o tribunal “não é obrigado sem mais a apresentar à discussão das partes, antes da decisão, o seu parecer jurídico, ou seja, e como assim já o considerou com total cabimento o nosso mais Alto Tribunal (4), “ a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja, sendo que, se é certo que o 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil, exige do juiz uma diligência aturada de observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, o mesmo dispositivo é assertivo em ressalvar os casos em que a obrigatoriedade de ouvir as partes é manifestamente  desnecessária.

E, aqui chegados, o que importa doravante aferir/apurar é se, maxime no caso dos autos em que a parte contrária não contestou [não tendo assim o autor sido confrontado com quaisquer razões de facto e/ou de direito que se opusessem à pretensão deduzida], se exigia que tivesse o Juiz titular do processo e em sede de concretização do princípio do contraditório ouvido o autor da viabilidade de a acção dever improceder com fundamento em vícios adjectivos e substantivos não discutidos nos autos.

Adiantando desde já o nosso veredicto, estamos em crer que a resposta só pode e deve ser afirmativa, sendo para nós manifesto que em razão precisamente da ausência de contestação [o que desde logo cria no demandante uma expectativa acrescida de a sua pretensão vir a ser atendida, porque todos os factos por si alegados – salvo aqueles relativamente aos quais não é admissível a confissão ou se apenas puderem ser provados por documento escrito – consideram-se admitidos por acordo], prima facie qualquer solução jurídica que obste ainda assim à procedência da acção deve à partida ser encarada como uma solução que a parte interessada não contava e não podia prever, ou que não tinha obrigação de prever, incorrendo portanto o julgador na prolação de uma decisão surpresa quando a profere sem da mesma advertir/ouvir a parte.
É que, cabendo ao Juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo em suma proibidas decisões-surpresa, recorda-se que como bem salienta ABRANTES GERALDES (5), a alteração do artigo 3.º e, principalmente, o aditamento do nº. 3 , teve em vista permitir que a contraditoriedade não seja uma mera referência programática e constitua, efectivamente, uma via tendente a melhor satisfazer os interesses que gravitam na órbita dos tribunais: a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos.

Ora, vindo o julgador a desatender a pretensão da parte em razão de questãoe fundamentosque pela mesma parte não foram configurados e relativamente aos quais não se pronunciou, não tendo sequer a obrigação de os prever – desde logo porque em momento algum foi nos autos aflorada - , inevitável é considerar-se que se deparou o recorrente com uma efectiva  “decisão surpresa”, tendo a mesma posto em causa o princípio do contraditório, rectius o dever do juiz de ouvir as partes.

Ademais, apontando desde logo os respectivos vocábulos do instituto no sentido de uma decisão surpresa pressupor que a parte vem a ser confrontada com uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não era para a mesma parte previsível, e relativamente à respectiva fundamentação e razões em que se baseou não teve qualquer oportunidade de se pronunciar, não há dúvida que foi violado o princípio do contraditório, tal como o mesmo foi supra delineado, nos seus contornos legais, doutrinários e jurisprudenciais.

Deveria, pois, o Tribunal, antes de decidir, ter dado a oportunidade ao Autor de se pronunciar sobre as questões que na sentença recorrida apreciou e resolveu, e  com base nas quais veio a decidir a causa, audição prévia que mais se justifica de resto quando, segundo diversas soluções plausíveis da questão de direito, não é de afastar qualquer possibilidade [caso em que seria de cogitar estar-se na presença de um caso de manifesta desnecessidade]  de a parte poder providenciar pela respectiva sanação.

Não o tendo feito, como se exigia, pacífico é que a sentença impugnada padece do vício de NULIDADE secundária, vício este regulado nos artºs 195º, 197º e 199º, todos do CPC, ou seja, carece o mesmo de ser pela parte interessada arguido/reclamado e, ainda assim, só deve ser atendido se puder influir no exame ou na decisão da causa – cfr. artº 195º, nº1, do CPC. (6)

Por outra banda, e como é outrossim consensual na jurisprudência, estando a nulidade reportada a decisão-surpresacoberta” por decisão judicial, nada obsta a que seja a mesma invocada e conhecida em sede de recurso desta última interposto (7), ou seja, sendo a parte “ confrontada com uma decisão sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, é a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação . (8)

Dir-se-á que (9), em última na análise em causa está uma nulidade que se corporiza “na sentença e só com a notificação desta se manifesta, sendo, por isso, a impugnação daquela, incindível desta”, logo a “  sua arguição nas alegações do recurso interposto da sentença tem de ser considerada tempestiva”.

Aqui chegados, porque prima facie pacífico nos parece que a omissão de audição do recorrente configura irregularidade susceptível de influir no exame  e/ou decisão da causa, verificando-se portanto a previsão da II parte do nº 1, do artº 195º, do CPC, ou seja, trata-se efectivamente de um vício relevante [obrigando portanto à anulação de processado e à prática do acto omitido], inevitável se mostra a procedência da apelação.
*

5-Sumariando  (cfr. artº 663º, nº7,  do CPC).
5.1.- Cabe ao juiz, por imposição do artº 3º, do CPC, respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
5.2.-Por decisão - surpresa deve entender-se aquela que envereda por solução dada a questão relevante para a decisão da causa e que, embora naturalmente previsível, não foi em todo o caso configurada pela parte, e sem que a mesma tivesse obrigação de a prever, maxime porque não deduziu a parte contrária qualquer oposição.
5.3.- Tendo o julgador considerado admitidos por acordo todos os factos alegados na petição inicial, em razão de ausência de contestação, é compreensível que tenha o demandante criado fundada expectativa de que a pretensão que deduziu viesse a ser atendida.
5.4.- Em razão do referido em 5.3., mais sentido faz [maxime porque em causa está uma questão que não foi discutida pelas partes e que ademais esteve na base da decisão de improcedência da acção] em perviamente ouvir o demandante sobre questão susceptível de, ainda assim, e segundo solução plausível da questão de direito, conduzir à improcedência da Açcão.
***

6.–Decisão

Em face de tudo o supra exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em, concedendo provimento ao recurso de apelação apresentado pelo B;
6.1.- Anular a sentença recorrida e determinar que o Autor seja notificado para em prazo se pronunciar, querendo, sobre as questões que na sentença foram abordadas e que conduziram à decretada improcedência da acção.
***
As custas da apelação serão suportadas pela parte vencida a final.
*****



LISBOA, 6/7/2023


António Manuel Fernandes dos Santos(O Relator)
(#)Gabriela de Fátima Marques- (1º Adjunto)
(#)Nuno Lopes Ribeiro- (2º Adjunto)


(#)----VOTEI  DECISÃO, NÃO SUBSCREVENDO IN TOTUM A SUBJACENTE FUNDAMENTAÇÃO.

*****

(1)Em Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, páginas 95/96.
(2)Ibidem.
(3)In Direito Processual Civil, Almedina,2002, página 169.
(4)Vide Acórdão do STJ de 4/6/2009, in Proc. nº 09B0523, sendo Relator JOÃO BERNARDO e disponível in www.dgsi.pt.
(5)Em “Temas da Reforma do Processo Civil”, I , ALMEDINA, 2.ª edição, página 79.
(6)Já  MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [ em 20/05/2020,Jurisprudência 2019 (242) Decisão-surpresa; nulidade da decisão, em blog do IPPC  ], considera não se justificar qualificar o vicio em causa como uma nulidade processual, e isto por duas razões: a primeira, porque o vício decorrente da falta da audição prévia das partes é -- como é indiscutível e indiscutido - o proferimento de uma decisão-surpresa; há, assim, uma decisão-surpresa, mas não uma "nulidade-surpresa"; basta este aspecto linguístico para justificar que o vício não é a nulidade processual, mas antes a decisão-surpresa; esta expressão indicia um desvalor da decisão, pelo que não é compreensível desconhecer este desvalor e recorrer ao da nulidade processual (e menos ainda pretender duplicar o desvalor da decisão-surpresa com o da nulidade processual); acresce que o CPC trata diferentemente as nulidades processuais (arts. 186.º ss.) e as nulidades da decisão (arts. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º), pelo que fica por justificar como é que, contra a sistemática do CPC, um decisão viciada é uma nulidade processual; a segunda porque o objecto do recurso é (sempre) uma decisão (não pode ser outra coisa); há uma decisão recorrida, mas não uma "nulidade recorrida"; logo, o objecto do recurso é a decisão-surpresa, o que significa que o recorrente tem de fundamentar a interposição do recurso num vício dessa decisão; em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer (arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC ;
(7)Cfr. vg o Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa, de 4/6/2009, proferido no Processo nº 67/00.1DSTB-B.L1-2 e in www.dgsi.pt.
(8)Cfr. Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-07-2019, proferido no Processo nº 4794/18.9T8OER.L1-7 e in www.dgsi.pt.
(9)Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa e de 9/10/2014, proferido no processo  número 2164/12.1TVLSB.L1,e disponível em www.dgsi.pt.