Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
109/19.7T8VPT-A.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
RECUSA
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL
LESÃO GRAVE
GARANTIA BANCÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Uma vez aprovado pelos credores, o plano de recuperação é sujeito a um controlo judicial, que irá conduzir ou não à sua homologação, tal como resulta do nº 5 do artigo 17º-F do CIRE, competindo ao tribunal sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano;
II- Nesse controlo, e por força daquele normativo, são aplicáveis à homologação, ou recusa de homologação, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas nos artigos 215.º e 216.º do CIRE, com as necessárias adaptações;
III- O juiz está assim vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de recuperação, aprovado pelos credores, devendo recusar, mesmo oficiosamente, a sua homologação, quando, nos termos do ali plasmado, ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.
IV- Embora não definido pela lei, tem vindo a entender-se como razoável considerar-se vício não negligenciável aquele que importe uma lesão grave de valores ou de interesses juridicamente tutelados, como o é a previsão e afirmação no plano de recuperação da substituição de garantias bancárias, impostas por decreto regulamentar regional em sede de política de incentivos, por uma hipoteca voluntária sobre um imóvel.
V- Homologar tal plano importaria assim na violação de norma imperativa, acarretando a produção de um resultado não autorizado por lei, não fazendo sentido defender que inexiste razão para recusa de homologação por, à data de apresentação do plano, tal possibilidade de facto já não existir em face do accionamento das sobreditas garantias bancárias, pois que, a ser assim, nenhuma justificação existiria para que tal substituição de garantias ali ficasse consignada, o que, no mínimo, tornaria o plano ambíguo e pouco claro quanto às alterações que dele decorrem para a posição daquele credor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório:
C… Lda., sociedade comercial por quotas com sede (…) veio, ao abrigo do disposto no artigo 17º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, intentar o presente processo especial de revitalização.
Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 17º-C nº 3 al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O Sr. Administrador juntou lista provisória de créditos, a qual não foi impugnada.
Por despacho datado de 06/01/2020 fixou-se aos credores Garval, Lisgarante e Norgarante, o direito de voto em 90% do seu crédito e ao credor UNICRE o direito de voto em 50% do seu crédito.
Concluídas as negociações, foi junto plano de recuperação.
Nessa sequência, os credores Região Autónoma dos Açores e UNICRE - Instituição Financeira de Crédito, S.A. apresentaram alegações à luz do artigo 17º F nº 2 do CIRE.
O primeiro, Região Autónoma dos Açores, alegando, em suma, que o plano prevê, relativamente ao seu crédito, “substituição das garantias existentes por uma hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, localizado (…)”, o que não é permitido pelo regime jurídico do incentivo SIDER (Sistema de Incentivos para o Desenvolvimento Regional dos Açores), uma vez que o n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional nº 19/2007/A, de 23 de Julho, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 10/2010/A, de 16 de Março, determina, no caso de incentivo reembolsável disponibilizado pelo Governo Regional, que os promotores se obriguem a apresentar uma garantia bancária de valor idêntico ao montante de cada tranche liquidada em cada momento, ou seja, a garantia prevista na lei é apenas a garantia bancária.
O segundo, credor UNICRE, alegando que a proposta apresentada não pode ser viabilizada porque limitou o risco, retirando à devedora a possibilidade de utilizar o sistema TPA para efeitos de transacções não presenciais, permitindo única e exclusivamente o seu funcionamento para transacções presenciais e que, a ser homologado o plano, pode entender-se que tenha que activar esta funcionalidade novamente, o que não se compagina com a situação da Devedora.
Não foi apresentada qualquer alteração do plano.
O Sr. AJP juntou o documento a que alude o artigo 17.º-F n.º 6 do CIRE com o resultado da votação, explicitando o nome do credor (e respectivos créditos) e o seu sentido de voto, ali resultando que se encontra constituído o quórum de votação previsto no artigo 17.º-F n.º 5 al. b) e que o plano foi votado favoravelmente por mais de 2/3 do total de créditos relacionados (89,91%) com direito de voto, sendo que mais de 50% destes correspondem a créditos não subordinados, sem considerar as abstenções.
Determinou-se a notificação da devedora e do Sr. AJP para se pronunciarem sobre os requerimentos apresentados pelos credores Região Autónoma dos Açores (em 28/02/2020) e UNICRE - Instituição Financeira de Crédito, S.A. (em 06/03/2020), a que a devedora deu resposta, no que foi acompanhada pelo Sr. AJP. Disse em suma que não aceitou os fundamentos, expostos pelos credores nos seus requerimentos, por não serem viáveis ao cumprimento do plano tal como foi proposto.
No que concerne ao credor Região Autónoma dos Açores, refere que já no plano anexo à PI se previam as condições necessárias para a manutenção desse crédito, nomeadamente a substituição das garantias bancárias existentes por uma hipoteca unilateral a favor do Governo, para libertar liquidez à devedora, o que não foi aceite pelo credor, razão pela qual, e para não inviabilizar o seu plano de revitalização, decidiu manter o plano depositado nos autos.
 Quanto ao credor UNICRE refere que sempre foi um crédito sob condição e que a possibilidade de verificação da condição é escassa, uma vez que não se vislumbra provável a existência de reclamações/repúdio por parte dos titulares de cartão de crédito utilizados nas diferentes transacções efectuadas no último período de 18 meses, mas que tais condições propostas nunca foram aceites pelo Credor.
Conclusos os autos, foi então proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 17º-F, nº 7, e 215º do CIRE, o Tribunal recusa a homologação do plano de recuperação. Custas a cargo da Devedora - art.17.º-F, n.º 11 do CIRE.  Registe e Notifique.».
Inconformada veio a devedora, C…, Lda., nos termos do disposto nos artigos 14.º do CIRE, 629.º, 637.º, 638.º, 644.º n.º 1 alínea a) e 647.º do Código de Processo Civil, interpor o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões que se reproduzem:
«Vem o presente recurso interposto da douta sentença que decidiu recusar a homologação do plano de revitalização da Devedora aprovado por maioria de 89,91% dos votos.
No entender da Recorrente, o Tribunal a quo incorreu, na douta sentença recorrida, em erro de julgamento sobre a matéria de facto e de direito, devendo, por conseguinte, a mesma ser revogada e substituída por V. Exas., uma vez que:
a) o PER constitui uma reorientação do CIRE que, desviando-se do processo de insolvência como instrumento na prossecução dos interesses dos credores através da liquidação do património do devedor, dá prevalência à recuperação deste, privilegiando a sua manutenção no giro comercial;
b) o PER é um processo voluntário e tendencialmente extrajudicial, visto que as negociações do devedor com os credores se desenvolvem sob a orientação e com a fiscalização apenas do administrador judicial provisório, sendo ainda genuinamente “autocompositivo” já que a primazia é a vontade das partes – dos credores, mas também, em certa medida do devedor;
 c) o douto Tribunal a quo não podia ter recusado a homologação do Plano com base numa alegada violação ao artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional n.º 19/2007/A, de 23 de Julho, unicamente por ter a Recorrente feito menção no Plano, na parte referente ao Governo Regional dos Açores, da seguinte expressão: “Substituição das garantias existentes por uma hipoteca voluntária sobre o prédio urbano (…)”;
d) a Recorrente fez prova de ter apresentado a sua candidatura ao SIDER e ter cumprido integralmente as condições e procedimentos necessários para a sua concessão, incluindo a prestação das garantias bancárias exigidas, prestadas pelas mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante, credoras nos autos;
e) no entender da Recorrente, a condição de apresentação das garantias bancárias enquadrava-se apenas na fase da apresentação e formalização das candidaturas;
f) o Decreto Legislativo Regional n.º 19/2007/A, de 23 de Julho, nada refere quanto à impossibilidade de substituição e/ou alteração das garantias ou de outras condições necessárias à celebração e/ou execução do contrato de concessão de incentivos, em situações excecionais, anormais e supervenientes;
g) o artigo 13.º do Decreto Legislativo Regional n.º 19/2007/A, de 23 de Julho refere expressamente que: “O contrato de concessão de incentivos pode ser objecto de renegociação se as condições em que foi celebrado tiverem sofrido uma alteração anormal, superveniente.”;
 h) em sede de fase de negociações, a Recorrente solicitou expressamente ao Governo Regional dos Açores, com base na referida disposição legal, a renegociação do contrato com vista à alteração das garantias e condições contratuais existentes;
i) a renegociação afigurava-se importante para a revitalização da Recorrente e para a economia e turismo da ilha de Santa Maria, na medida em que a Recorrente emprega diretamente e indiretamente muitos trabalhadores, contribui para o sustento e dinamização de muitos fornecedores e para as receitas fiscais daquela pequena ilha do arquipélago dos Açores;
j) o Governo Regional dos Açores nunca colocou em causa a suficiência do valor do imóvel para garantir o reembolso do incentivo reembolsável mas apenas entendeu que não podia substituir a garantia bancária, não obstante reconhecer a existência do artigo 13.º do dito diploma;
k) se provou que para a concessão do incentivo do Governo Regional dos Açores, a Recorrente apresentou 3 garantias bancárias autónomas, à primeira solicitação (on first demand), uma da Garval, outra da Norgarante e outra da Lisgarante, que por sua vez obtiveram como garantia do seu pagamento a hipoteca voluntária sobre o imóvel que constitui o Hotel Charming Blue;
l) foi expressamente consagrado no Plano de Revitalização colocado à votação e, em particular, nas condições apresentadas às Mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante, titulares e emitentes das garantias a favor do Governo Regional dos Açores, o seguinte:
“a) Pagamento da dívida existente em 132 prestações mensais e sucessivas;
b) A primeira prestação vencer-se-á no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação;
c) Manutenção das garantias já prestadas e existentes;
d) Taxa da operação fixa (spread + taxa de juro) – 3,5%;
e) O valor do crédito reconhecido como crédito sob condição será pago nos exactos termos do crédito comum, no caso da verificação da condição.”
m) ficou consagrado no Plano que as garantias à primeira solicitação prestadas pelas mutualistas ao Governo Regional dos Açores e a hipoteca existente, constituída pela Recorrente a favor das mutualistas, deveriam manter-se;
n) ficou contemplado no Plano que o crédito sob condição (crédito devido pela Recorrente ao Governo Regional dos Açores garantido pelas mutualistas) seria pago às mutualistas nos exactos termos do crédito comum, no caso da verificação da condição (em caso de acionamento das garantias por parte do Governo Regional);
o) não está previsto no Plano a possibilidade de cancelamento das garantias bancárias existentes prestadas pela Garval, Norgarante e Lisgarante a favor do Governo Regional dos Açores;
p) não está consagrado no Plano o cancelamento da hipoteca existente sobre o Hotel (…) que se encontra constituída a favor das credoras mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante, que seria sempre necessário para a constituição de eventual hipoteca a favor do Governo Regional dos Açores, tendo em conta o seu valor;
q) ficou provado que o Governo Regional dos Açores procedeu ao acionamento integral das garantias bancárias à primeira solicitação, junto das referidas mutualistas, em 12 de Dezembro de 2019, em pleno período de negociações, já após o PER ter sido admitido, e antes do Plano ser depositado e colocado à votação;
r) ficou demonstrado que, com o acionamento integral das garantias, à primeira solicitação, as mutualistas assumiram a dívida do Governo Regional dos Açores na totalidade, tendo inclusivamente já dado início aos pagamentos devidos;
s) se comprovou que, até Março de 2020, as mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante já tinham pago ao Governo Regional dos Açores o montante de € 272.801,48 por conta do crédito reclamado;
t) ficou demonstrado que, perante o acionamento integral das garantias à primeira solicitação, em plena fase das negociações, e perante a assunção do pagamento das garantias por parte das credoras mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante, o crédito do Governo Regional já estava integralmente assegurado e garantido antes do Plano ser depositado e colocado à votação, independentemente dos termos e condições propostas e mencionadas no Plano;
u) todos estes factos eram do total conhecimento do Sr. Administrador Judicial Provisório, do próprio Governo Regional dos Açores e das próprias credoras mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante, que estiveram sempre em negociações e em contacto permanente com a Devedora e a par de todos os acontecimentos, e com esta alcançaram o acordo que se encontra espelhado no Plano, fundamental para o integral ressarcimento dos seus créditos;
v) precisamente por estes motivos, o Plano mereceu o voto favorável das três mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante, que assumiram o pagamento total da dívida perante o Governo Regional dos Açores perante o acionamento integral das garantias à primeira solicitação;
w) precisamente por estes motivos, o Governo Regional dos Açores não votou contra o Plano e absteve-se da votação;
x) o Governo Regional dos Açores já tinha assegurado e garantido, antes do depósito do Plano para votação, o ressarcimento total e integral do seu crédito diretamente por via das mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante;
y) o Plano foi aprovado por larga maioria de 89,91% dos votos, com um único voto contra do Banco Santander Totta;
z) o Sr. Administrador Judicial Provisório e as credoras mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante não tiveram necessidade de se pronunciar sobre o plano apresentado e sobre as condições propostas ao Governo Regional dos Açores, uma vez que estavam a par de toda a situação;
aa) face ao acionamento integral das garantias, logo em 12 de Dezembro de 2019, o Sr. Administrador Judicial Provisório, a Devedora e as mutualistas Garval, Norgarante e Lisgarante apostaram fortemente nas negociações, tendo daí resultado a exigência expressa por parte das mutualistas de colocação no Plano, nas suas condições de pagamento, para a sua viabilização, o seguinte:
“c) Manutenção das garantias já prestadas e existentes;
e) O valor do crédito reconhecido como crédito sob condição será pago nos exactos termos do crédito comum, no caso da verificação da condição.”
bb) ficou demonstrado que, não obstante a Recorrente ter mencionado no Plano depositado e colocado à votação, como proposta ao Governo Regional dos Açores, a substituição das garantias bancárias pela hipoteca voluntária, o certo é que naquele momento as garantias já não podiam ser substituídas, porquanto já haviam sido integralmente acionadas pelo Governo Regional dos Açores, em 12 de Dezembro de 2019;
cc)  à data em que o Plano foi depositado e colocado à votação, a Recorrente já não podia constituir qualquer hipoteca a favor do Governo Regional dos Açores, face à necessidade de manutenção da hipoteca existente e registada a favor das 3 mutualistas, no valor de € 1.147.015,56;
dd) não existiu, no entender da Recorrente, no caso concreto, qualquer violação não negligenciável das normas do conteúdo do plano, nos termos artigos 17.º F n.º 7 e 215.º do CIRE;
ee) a existir alguma violação ou vício não negligenciável por parte da Recorrente, tal violação ou vício não teve qualquer influência ou, pelo menos, influência determinante no resultado alcançado;
ff) o poder/dever do Tribunal recusar a homologação do plano com base na violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano não pode ser exercido de qualquer forma e a qualquer custo;
gg) as violações consideradas menores que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afectados não constituem causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano;
hh) não estão em causa normas respeitantes à parte dispositiva do plano nem aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer;
ii) o plano não encerra qualquer violação de norma aplicável ao plano que comporte uma violação de norma imperativa;
jj)  o plano não encerra qualquer violação grave que acarrete a produção de  um resultado que a lei não autoriza ou que impeça a homologação do plano de revitalização, aprovado por 89,91% dos votos;
kk) o plano não coloca em causa o interesse público, o funcionamento da economia, muito menos coloca em causa a satisfação dos interesses coletivos dos credores;
ll) o plano evita o encerramento da empresa, a liquidação de património e propicia o êxito da revitalização da Devedora e o ressarcimento integral dos seus credores;
mm) o Tribunal a quo fez uma apreciação e valoração inapropriada e incorrecta dos factos e do direito aqui aplicáveis, valoração essa que, no entender da Recorrente, deveria ter conduzido a uma decisão diversa da encontrada, designadamente, à homologação do plano de revitalização.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento de V. Exas., deve a douta sentença recorrida ser revogada, com todas as legais consequências, designadamente, homologando-se o plano especial de revitalização, nos termos e com os fundamentos acima invocados, assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!!!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir, colhidos que foram os vistos legais.
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II. Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em apreciar se estão reunidos os pressupostos legais que permitiriam a homologação do plano especial de revitalização tal como apresentado e depositado nos autos.
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III. Da factualidade com relevância para o conhecimento do recurso:
1 – Entre o Governo Regional dos Açores e a recorrente foi celebrado, em 14/07/2011, um Contrato de Concessão de Incentivo Financeiros, no âmbito do Sistema de Incentivos para o Desenvolvimento Regional dos Açores (SIDER) n.º 65/2011, sendo o projecto de investimento apresentado pela recorrente enquadrado na alínea d) do n.º 1 do artigo 29º do Decreto Legislativo Regional n.º 19/2007/A de 23 de Julho.
2 - Na clausula 1ª daquele contrato, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, foi consignado que parte do incentivo financeiro seria constituído por um subsídio reembolsável sem juros, no valor de € 1.147.015,56,  a conceder pelo Banco Espírito Santo dos Açores, SA, nos termos e condições constantes do protocolo celebrado para o efeito entre a Secretaria Regional da Economia e a referida instituição de crédito.
3 - Na clausula 13ª foi consignada a possibilidade de renegociação do contrato, ou aditamento por iniciativa do Promotor ou da Região nos termos ali estabelecidos, dependendo a mesma da verificação da alteração anormal, superveniente e não imputável ao promotor, das condições em que o contrato foi celebrado.
4 - Mais tarde, em aditamento ao contrato, foram alteradas as cláusulas 1ª e 7ª do mesmo, onde foi então consignado que o subsídio reembolsável sem juros, no valor de € 1.147.015,56, seria disponibilizado pelo Governo Regional, obrigando-se o promotor a prestar uma garantia bancária nos termos e condições estabelecidas na Norma de Pagamentos, constante do Anexo V ao contrato, que se considera, para todos os efeitos, parte integrante do mesmo.
5- O incentivo teve por enquadramento um investimento do promotor, no valor total de € 5.053.360,77, dos quais elegíveis € 4.688.672,21, sendo que, em face do aditamento ao contrato, o promotor apresentou três garantias autónomas, subscritas por Garval – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., Lisgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., e Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., também credoras nos autos.
6 - O Governo Regional dos Açores procedeu ao accionamento das garantias bancárias à primeira solicitação, junto das referidas mutualistas, em 12/12/2019, antes do plano ser depositado e colocado à votação;
7- Em face disso, as mutualistas assumiram a dívida do Governo Regional dos Açores, efectuando os pagamentos devidos em conformidade, sendo que até Março de 2020 já tinham pago ao Governo Regional dos Açores o montante de € 272.801,48 por conta do crédito reclamado;
8-  Em 19/02/2020 a devedora juntou aos autos a versão final do plano, onde foi reconhecido ao Governo Regional dos Açores um crédito comum, no montante de € 1.023.005,27, ficando ali previsto que «O montante do crédito do Governo Regional dos Açores é de (€ 1.023.005,27) e será liquidado nas seguintes condições: a) Liquidação do valor em dívida, em 132 prestações mensais e sucessivas; b) A primeira prestação vencer-se-á no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação; c) Substituição das garantias existentes por uma hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, localizado na (…)
9 - No que concerne às mutualistas, Garval, Lisgarante e Norgarante preve o plano, para cada um delas, que «a) Pagamento da dívida existente em 132 prestações mensais e sucessivas; b) A primeira prestação vencer-se-á no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação; c) Manutenção das garantias já prestadas e existentes; d) Taxa da operação fixa (spread + taxa de juro) — 3,5%; e) O valor do crédito reconhecido como crédito sob condição será pago nos exactos termos do crédito comum, no caso da verificação da condição».
10- O plano foi votado favoravelmente por mais de 2/3 do total de créditos relacionados (89,91%) com direito de voto, sendo por sentença, agora objecto do presente recurso, oficiosamente recusada a homologação do plano.
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IV — Do mérito do recurso:
O processo especial de revitalização, tal como decorre do artigo 17°-A, nºs. 1 e 2, do CIRE, destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização, e pode ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação.
Trata-se, pois, de um processo de natureza negocial e extrajudicial, entre devedor e credores, sob direcção do administrador judicial provisório, com vista à definição de um plano que promova a reestruturação da empresa, permitindo a sua revitalização, e que depois será submetido a votação dos credores, podendo, ou não, vir a ser homologado pelo Tribunal.
Com efeito, operada a votação e aprovação do Plano de Revitalização, por parte dos credores, ao Juiz compete, no prazo de dez dias a contar da recepção do mesmo - artigos 17º-F, nºs. 5 e 6 do CIRE - dirimir, homologar ou recusar a homologação do aprovado plano de recuperação, vinculando os credores, observando-se, para o efeito, com as necessárias adaptações, os preceitos vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência, nos artigos 215º e 216º do CIRE.
Ora, por força do consignado no artigo 215.º do CIRE o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores, no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
A este respeito, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª edição, da ‘Quid Juris’, em anotação ao aludido artigo 215.º, a páginas 780 e sgs. dizem que “5. A lei não define, com efeito, o que deva considerar-se vício negligenciável nem fornece objectivamente pistas que iluminem a descoberta da resposta”;
(…) Dir-se-á, com efeito, que são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são consideradas as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido. (…)
(…) Então, verdadeiramente do que se trata, para decidir se ela justifica ou não a recusa de homologação de um plano aprovado pelos credores – que é, afinal de contas, aquilo que aqui está em causa -, é de avaliar a relevância, ou não, da violação constatada».
Por seu lado, Catarina Serra, em Lições de Direito da Insolvência, pág. 474, diz que «Tentando colmatar a indeterminação do conceito, é razoavel entender que violação não negligenciável é aquela e apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao principio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação».
Revertendo ao caso em análise, cumpre apreciar agora a bondade das alegações da recorrente, sabendo nós que o tribunal recorrido não homologou por sentença o plano por entender que o mesmo violou uma norma imperativa  - no caso, o n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional nº 19/2007/A, de 23 de Julho, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 10/2010/A, de 16 de Marco – considerando que tal violação constitui vício não negligenciável determinante da recusa de homologação por acarretar a produção de um resultado que a lei não autoriza.
Vejamos então.
Da factualidade relevante para a decisão que agora se impõe, temos que, resulta dos autos, o credor Governo Regional dos Açores tem reconhecido sobre a recorrente um crédito comum, no montante de € 1.023.005,27, resultante da celebração com a mesma de um Contrato de Concessão de Incentivo Financeiros no âmbito do Sistema de Incentivos para o Desenvolvimento Regional dos Açores (SIDER) n.º 65/2011.
Por força desse contrato, outorgado em 14/07/2011, o projecto de investimento apresentado pela recorrente foi enquadrado na alínea d) do n.º 1 do artigo 29º do Decreto Legislativo Regional n.º 19/2007/A de 23 de Julho («d) Contributo do projecto para a diversificação e inovação da oferta»), e demais legislação com este relacionada.
Na sua clausula 1ª daquele contrato – outorgado, como ali se diz, na sequência do projecto candidatado referenciado com o nº 635 ao Sistema de Incentivos para o Desenvolvimento Regional dos Açores (SIDER), Subsistema de Apoio Desenvolvimento Estratégico criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 19/2007/A, de 23 de Julho e regulamentado pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 23/2007/A, de 29/10 - está regulado o seu objecto, ali se consignando que parte do incentivo financeiro seria constituído por um subsídio reembolsável sem juros, no valor de € 1.147.015,56,  a conceder pelo Banco Espírito Santo dos Açores, SA, e que, mais tarde, por aditamento ao contrato, foi acordado que tal subsídio seria disponibilizado pelo Governo Regional, obrigando-se o promotor, aqui recorrente, a prestar uma garantia bancária nos termos e condições estabelecidas na Norma de Pagamentos, constante do Anexo V ao contrato, que se considera, para todos os efeitos, parte integrante do mesmo.
Em face de tal aditamento, e em cumprimento do contrato, o promotor apresentou então três garantias autónomas, subscritas por Garval – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., Lisgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., e Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., também credoras nos autos.
Na cláusula 13ª foi consignada a possibilidade de renegociação do contrato, ou aditamento por iniciativa do Promotor ou da Região nos termos ali estabelecidos, dependendo a mesma da verificação da alteração anormal, superveniente e não imputável ao promotor, das condições em que o contrato foi celebrado.
Analisando agora o plano junto aos autos, do mesmo decorre, no que concerne ao Credor Região Autónoma dos Açores, que «O montante do crédito do Governo Regional dos Açores é de (€ 1.023.005,27) e será liquidado nas seguintes condições: a) Liquidação do valor em dívida, em 132 prestações mensais e sucessivas; b) A primeira prestação vencer-se-á no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação; c) Substituição das garantias existentes por uma hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, localizado (…)».
Foi em face dessa consignada substituição – al. c) - que o plano não foi homologado, considerando a decisão recorrida que tal não seria legalmente admissível à luz do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional n° 19/2007/A, de 23/07, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.° 10/2010/A, de 16/03, consubstanciando a sobredita substituição de garantias uma violação daquela norma imperativa, que importa um vício susceptível de conduzir à recusa oficiosa de homologação daquele plano.
Vejamos então.
O Decreto Legislativo Regional nº 19/2007/A, de 23 de Julho criou o Sistema de Incentivos para o Desenvolvimento Regional dos Açores (SIDER), dinamizando o investimento privado, com a finalidade de conferir à economia regional os adequados índices de competitividade, indutores de um crescimento económico sustentável, consignando no seu artigo 2º os subsistemas em que aquele SIDER é constituido.
O artigo 3.º daquele diploma estabelece as condições gerais de acesso dos promotores à data de apresentação da candidatura, e o artigo 7.º regula os incentivos a conceder, na forma não reembolsável e reembolsável sem juros.
O artigo 12.º nºs 1, 2 e 4, por sua vez, regula a renegociação do contrato de concessão de incentivos, estipulando que o mesmo pode ser objecto de renegociação se as condições em que foi celebrado tiverem sofrido uma alteração anormal, superveniente, não imputável ao promotor, e desde que devidamente fundamentada, competindo ao membro do Governo Regional com competência em matéria de economia autorizar a renegociação do contrato de concessão de incentivos.
Em alteração a tal Decreto Regulamentar, o Decreto Regulamentar Regional n.º 10/2010/A de 16 de Março, veio então consignar, no n.º 3 do artigo 7.º, que “no caso do incentivo reembolsável ser disponibilizado pelo Governo Regional, os promotores obrigam-se a apresentar uma garantia bancária de valor idêntico ao montante de cada tranche liquidada em cada momento”.
Em face do teor desta última norma, afirma-se na decisão recorrida, o que acompanhamos, a única garantia admissível é a garantia bancária, que se traduz, em suma, no compromisso assumido por um banco de satisfazer determinada obrigação perante terceiro sempre que o cliente o não faça, por atraso ou em definitivo.
A garantia bancária materializa-se num documento emitido por um banco a pedido do seu cliente a favor de outrem (o beneficiário da garantia – in casu, o Credor Região Autónoma dos Açores) perante o qual o banco assume a obrigação de, nos termos do texto da garantia, satisfazer determinadas obrigações se estas não forem cumpridas pontual e integralmente pelo seu cliente (o ordenador da garantia - in casu, a Devedora).
Almeida Costa e Pinto Monteiro, em Garantias bancárias, O contrato de garantia bancária à primeira solicitação, na Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, Tomo 5, dizem-nos que a garantia bancária é uma garantia tão segura para o beneficiário como o depósito de dinheiro ou valores, mas sem o inconveniente da imobilização da riqueza, o que é tanto mais significativo quanto estão envolvidas somas pecuniárias avultadas, pois “tudo se passa (...) como se o banco, no momento que se obrigou perante o beneficiário tivesse depositado à ordem deste o montante estipulado na garantia”.
A estipulação de que para o incentivo dado pelo Governo Regional o promotor tem de apresentar “uma garantia bancária de valor idêntico ao montante de cada tranche liquidada em cada momento” é, naturalmente, o que decorre da singela leitura de tal normativo, para toda a execução do contrato e não apenas para a apresentação da candidatura, tal como defende, sem sentido, a nosso ver, a recorrente.
As próprias garantias foram emitidas pelo período de tempo correspondente ao prazo contratualmente estabelecido para a total liquidação do plano de reembolso do incentivo, a finalizar, na parte reembolsável, em Agosto/2025, responsabilizando-se os garantes pelo pagamento ao beneficiário de qualquer importância que lhes fosse solicitada, ao primeiro pedido escrito, com os limites ali estabelecidos, podendo a quantia garantida ser reduzida após apuramento final do incentivo reembolsável em função da execução do projeto, sendo progressivamente reduzida (mas não eliminada) à medida do reembolso das respectivas prestações, de acordo com o plano em vigor, e em função do prémio de realização a que haja lugar, em resultado da avaliação de desempenho do projecto.
E, deste modo, se por decreto se consagra como garantia do incentivo reembolsável a garantia bancária não pode através do plano a devedora pretender dar outro tipo de garantia, para libertar liquidez, pois que tal implicaria obter por acordo algo que a lei não autoriza.
Defende, no entanto, a recorrente que aquele decreto regional permite a renegociação do contrato em situações excepcionais, anormais e supervenientes, estando mesmo prevista tal possibilidade de renegociação no artigo 13º daquele decreto regulamentar.
Pois está, de facto está. Mas daí não decorre, a nosso ver, nem a interpretação de tal cláusula - considerando o regime de incentivos no seu todo - permite alcançar tal conclusão, de ser possível alterar o tipo de garantia exigida por lei para os incentivos reembolsáveis dados pelo Governo Regional, o que se compreende em face das razões subjacentes à política de incentivos e garantias decorrentes da garantia bancária imposta.
Ainda que no processo de revitalização impere o primado da vontade dos credores, compete ao Juiz sindicar o cumprimento das normas aplicáveis, e a violação da norma aqui em causa constitui uma “violação grave não negligenciável”, causa suficiente para que seja recusada a homologação do plano. O n.º 3 daquele artigo 7.º diz-nos que a garantia prevista na lei é a garantia bancária, ofendendo assim o princípio administrativo da legalidade, permitir através do plano a substituição da mesma por garantia real, isto é, por hipoteca voluntária sobre o imóvel objecto do incentivo.
No Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/12/2013, disponível em www.dgsi.pt relatado por Ana Resende, consignou-se que «1. O processo especial de revitalização (PER) traduz-se, num instrumento processual, sobretudo de cariz negocial, criado, e a desenvolver-se, num contexto económico difícil, passível de suportar a viabilização da empresa, assentando a estabelecida eficácia do acordo para além da esfera dos que nele intervieram, na aprovação por uma maioria qualificada, vinculando a generalidade dos credores. 2. É lícito, por parte dos envolvidos, adotarem quaisquer medidas, desde que não excluídas por lei, possam ser adequadas aos fins de recuperação. 3. O juiz pode recusar, oficiosamente, a homologação do plano de revitalização aprovado na assembleia de credores, no caso de ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, no entendimento das primeiras como sendo as que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo, enquanto as segundas se reportarão ao dispositivo do plano de revitalização, bem como aos princípios que lhe devam estar subjacentes. 4. Constituem vícios não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. (…)» (sublinhado nosso).
Donde, e até aqui, os argumentos aduzidos pela recorrente na motivação do seu recurso não convencem.
Adiante.
Diz ainda a recorrente, em conclusões recursivas, que em fase de negociações solicitou expressamente ao Governo Regional dos Açores a renegociação do contrato com vista à alteração das garantias e condições contratuais existentes, o que seria importante para a sua revitalização, sendo que o Governo Regional nunca colocou em causa a suficiência do valor do imóvel para garantir o reembolso do incentivo reembolsável, mas apenas entendeu que não podia substituir a garantia bancária.
Defende também que as três garantias bancárias que apresentou obtiveram como garantia do seu pagamento a hipoteca voluntária sobre o imóvel que constitui o Hotel (…)e que não está previsto no plano a possibilidade de cancelamento dessas garantias bancárias, prestadas pela Garval, Norgarante e Lisgarante a favor do Governo Regional dos Açores nem o cancelamento da hipoteca existente sobre o Hotel (…), que se encontra constituída a favor daquelas credoras mutualistas.
Mais defende que tendo o Governo Regional dos Açores procedido ao accionamento integral daquelas garantias bancárias, tendo as mutualistas assumido a dívida, as ditas garantias já não podiam ser substituídas, razão pela qual as mutualistas votaram a favor do plano e o Governo se absteve.
Assim, concluiu, o plano não encerra qualquer violação de norma aplicável ao plano que comporte uma violação de norma imperativa, nem coloca em causa o interesse público, o funcionamento da economia, e a satisfação dos interesses colectivos dos credores, impondo-se assim a sua homologação.
Não podemos concordar com tal argumentação.
Com efeito, ainda que solicitado pelo Governo Regional dos Açores a execução das garantias, certo é que o plano não respeita o normativo imposto, pois que prevê, efectivamente, e contrariamente ao agora alegado pela recorrente, a substituição daquelas garantias, de forma expressa, tendo sido dada possibilidade à devedora para alterar o plano, o que a mesma entendeu não fazer.
Do plano decorre que o valor em divida ao Governo, homologado que fosse o plano, seria liquidado em 132 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação, sendo substituídas as garantias existentes por uma hipoteca voluntária sobre prédio urbano.
Não há como interpretar de outra forma: no plano está prevista a manutenção das garantias dadas às mutualistas para o crédito das mesmas, comum e sob condição – ou seja, a manutenção da hipoteca constituída sobre o imóvel que constitui o Hotel (…) – mas está igualmente prevista, para o Governo Regional, a substituição das garantias existentes – as sobreditas garantias bancárias - por uma hipoteca voluntária a constituir sobre aquele prédio urbano.
É pois um contransenso o afirmado pela recorrente de que em momento algum se prevê no plano a possibilidade de cancelamento das garantias bancárias existentes, e, a não se entender assim, no mínimo, o plano padece de uma ambiguidade que a recorrente entendeu não ser de rectificar, quando o podia ter feito.
Não se olvide que o plano deve ser claro nas alterações que dele decorrem para as posições jurídicas dos credores.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda na obra acima citada, em anotação ao artigo 195º nº 2 do CIRE, aplicável por força da remissão que é feita no art.º 17.º-F, n.º 7, dizem-nos que «A parte final do corpo do n.º 2 deve ser entendida com algum cuidado. Em rigor, como sublinhámos logo na anotação ao art.º 1.º, o plano, constituindo um sucedâneo legítimo da liquidação universal dos bens do devedor, tem, ele próprio, como finalidade determinante, a prossecução e satisfação dos interesses dos credores (…). Daí que o significado da primeira parte do n.º 2 seja o da exigência de o plano clarificar aquilo que com ele é pretendido, enquanto instrumento de tutela dos interesses dos credores, sem prejuízo da consecução de outros objectivos cujo alcance simultaneamente viabilize. Uma, ligada à circunstância de o plano, estribado no princípio da liberdade de estipulação do conteúdo a que se fez referência, poder, realmente, orientar-se por vias substancialmente diversas entre si; outra, respeitante à necessidade de garantir o cabal esclarecimento dos que são chamados a decidir o destino do processo, de forma a poderem ponderar suficientemente as vantagens que estimam resultarem da aprovação de um plano(…)».
Em conformidade com o assim estipulado, e como defendem aqueles autores, é manifesto que a elaboração do plano deve ser a mais esclarecedora possível, de modo a permitir, por um lado, aos credores, aferirem da pertinência e vantagens das propostas apresentadas pelo devedor, por forma à obtenção da sua aprovação; por outro lado, ao juiz para, em momento ulterior, efectuar sobre o mesmo o seu pronunciamento positivo ou negativo.
Não é esse, de todo, o caso dos autos, em que a devedora afirma em recurso coisa diversa da que consignou no plano.
Ora, como vimos, o regime jurídico do incentivo SIDER não permite aquela substituição de garantias, sendo que o Governo Regional dos Açores tinha garantido o seu crédito, de acordo com o plano de reembolso contratualizado, com as garantias bancárias dadas pelas mutualistas, garantias que o plano quer substituir por uma hipoteca, pondo, naturalmente em causa, as finalidades previstas pelo normativo violado.
Acresce que, se perante o accionamento das garantias à primeira solicitação, ainda em fase das negociações, o crédito do Governo Regional dos Açores já estava integralmente garantido, como afirma a recorrente, não vemos qualquer razão para se manter espelhado no plano aquela dita substituição de garantias, nem nenhuma justificação é dada pela recorrente para tal acontecer, pois que, notificada então para se pronunciar sobre tal questão, limitou-se a dizer que o Governo Regional tinha o seu crédito totalmente garantido através das mutualistas, que estavam a pagar o dito crédito, à medida que o mesmo era solicitado, e que entendeu deliberadamente não alterar o plano por não concordar com os fundamentos deduzidos contra o mesmo pelo aludido credor, que não eram viáveis ao cumprimento do plano, sendo que necessitava de libertar liquidez.
Se em momento prévio ao plano depositado e colocado à votação - sendo que o mesmo apenas foi depositado nos autos, em versão final, em 19/02/2020 - as garantias já nem podiam ser substituídas, como defende a recorrente, nem a mesma podia já constituir hipoteca sobre o dito imóvel, então que razão existe para ficar a constar no plano a substituição das ditas garantias bancárias pela hipoteca voluntária, quando o plano podia ainda ser alterado, o que, como diz a recorrente, entendeu voluntariamente não o fazer?
Se no plano inicial junto com a petição era proposto ao Governo Regional a substituição das garantias bancárias por outras a acordar, e se aquele Governo recusou tal possibilidade, se a mesma, aquando do plano, já estava arredada das negociações, qual a razão pela qual foi levada ao plano?
Se no entendimento da devedora as objecções apresentadas pelo Governo Regional nos autos, à luz do nº 2 do artigo 17º F do CIRE, não faziam sentido àquela data, dado que, tendo a mesma accionado as garantias, estas não podiam já ser substituídas, então porque razão, em face do consagrado naquele mesmo preceito legal, não alterou a mesma o plano e ali manteve exarado aquela dita substituição?
Nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 17.º-F do CIRE - que consagram que «1 - Até ao último dia do prazo de negociações a empresa deposita no tribunal a versão final do plano de revitalização, acompanhada de todos os elementos previstos no artigo 195.º, aplicável com as devidas adaptações, sendo de imediato publicada no portal Citius a indicação do depósito. 2 - No prazo de cinco dias subsequente à publicação, qualquer credor pode alegar nos autos o que tiver por conveniente quanto ao plano depositado pela empresa, designadamente circunstâncias suscetíveis de levar à não homologação do mesmo, dispondo a empresa de cinco dias após o termo do primeiro prazo para, querendo, alterar o plano em conformidade, e, nesse caso, depositar a nova versão nos termos previstos no número anterior. (..)». (sublinhado nosso) – a devedora poderia ter alterado o plano, o que não fez.
Não há, pois, como contornar o que no plano está previsto - c) Substituição das garantias existentes por uma hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, localizado na (…)» - e, por ser assim, acompanhamos a decisão recorrida quando diz que essa substituição constitui a violação de uma norma imperativa, obtendo-se com o plano um resultado que a lei não autoriza.
Veja-se, ainda, no que concerne a essa pretensão, o que se diz, e bem, na decisão recorrida «O legislador não desconhecia, por certo, os riscos de mercado associados à hipoteca, na eventualidade de esta haver de executar-se, nem sequer a sua menor liquidez quando comparada à garantia bancária. Veja-se que no nosso caso, o actual valor patrimonial do imóvel é de €804.020,00 (cfr. caderneta predial junta com o requerimento inicial), montante que para além de inferior ao crédito reconhecido ao Credor Região Autónoma dos Açores, certamente sofrerá uma forte contracção considerando a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19. Resta referir que, quanto à decisão que se adivinha, esta resulta da vontade expressa da Devedora que, conforme se referiu, não alterou deliberadamente esse segmento do plano, alegadamente para libertar liquidez à Devedora, bem sabendo esta que a lei impõe, in casu, como única garantia possível, a garantia bancária».
Do teor das garantias bancárias autónomas prestadas, interpretando o texto das mesmas, resulta, como vimos, que as mutualistas se responsabilizaram pelo pagamento ao beneficiário/Governo Regional, de qualquer importância que lhes fosse solicitada, ao primeiro pedido escrito, no prazo de 20 dias úteis, sem apreciar da justiça ou direito de reclamação, se o ordenador, aqui apelante, não cumprisse qualquer uma das condições ou obrigações que resultassem do contrato ou de quaisquer compromissos assumidos em consequência do mesmo, com um limite global para cada uma delas, e prazo de validade, que iria sendo progressivamente reduzida à medida do reembolso das respectivas prestações, de acordo com o plano em vigor.
Neste circunstancialismo, ainda que accionadas as garantias, e suportando as mutualistas o valor solicitado à medida e em conformidade com o incumprimento da ordenante, tal não impediria, à partida, que, por acordo de todos, ordenante, beneficiário e garantes, as garantias fossem alteradas.
Veja-se que, como resulta dos autos, em face do incumprimento do plano de amortização do incentivo reembolsável, dado que até à reclamação de créditos apenas tinha sido regularizada pela devedora a 1.ª prestação, estando em dívida as relativas a Agosto de 2018, Fevereiro e Agosto de 2019, no valor agregado de € 204.601,11, colocando em dívida e garantido os € 1.023.005,27 então reconhecidos, em 10/02/2020, vencida mais uma prestação, foi efectivamente solicitado pelo Governo Regional dos Açores a execução das garantias, num total de € 272.801,48.
Como vemos, se à medida do incumprimento do plano de reembolso contratual do incentivo reembolsável, as mutualistas vão assumindo os pagamentos, nada impedia que, por acordo, tal fosse alterado, tanto mais que o P.E.R. encerra em sim mesmo um instrumento essencialmente de cariz negocial.
Na obra “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II vol., Coimbra, 2002, p. 281, Pedro Romano Martinez, diz-nos que «O contrato de garantia, como qualquer negócio jurídico, depois de ajustado pode modificar-se por mútuo consenso, mas esta alteração está condicionada pelos vínculos jurídicos estabelecidos entre o garante e o devedor garantido, por um lado, e entre o beneficiário da garantia e o devedor garantido, por outro. Sem pôr em causa estas duas relações jurídicas, em particular não fixando qualquer condição mais gravosa para o devedor garantido, o garante e o beneficiário da garantia podem livremente alterar o conteúdo do contrato de garantia. Em suma, as alterações que as partes pretendam introduzir no contrato de garantia, não obstante a sua autonomia, estão condicionadas pelas relações jurídicas existentes com o devedor garantido, cuja situação jurídica não pode ser modificada em razão de tais alterações».
Assim sendo, se por acordo se pudesse permitir a alteração do contrato de garantia, e se pelo plano aprovado pelos credores pudéssemos permitir uma substituição de garantias bancárias – para a parte ainda não liquidada, libertando assim a pretendida liquidez da devedora - estaríamos a permitir e a autorizar que fosse possível obter pelo plano algo que pela lei não era permitido (pois que, no sentido do plano apresentado, o valor ainda em divida àquele credor, homologado que fosse o plano, seria pago em prestações pela devedora e garantido por hipoteca a constituir, e já não directamente pelas garantes mutualistas, que veriam assim substituídas as garantias dadas).
É certo, e no mínimo estranho, que o Governo Regional, após manifestar-se nos autos sobre aquela inadmissibilidade legal, depois se abstivesse de votar.
Não obstante, não podendo ser escamoteado que o texto do plano de recuperação, em vez de ter sido construído para excluir, de modo claro e inequívoco, essa possibilidade, permite que se suscitem dúvidas acerca da eventualidade de, com a sua aprovação, as entidades que aceitaram subscrever as garantias à primeira interpelação prestadas a favor do Governo Regional dos Açores, poderem ficar desobrigadas do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida que assumiram para com esse credor ao assinar essas garantias.
Possibilidade que, aliás, dada a natureza jurídica das garantias de pagamento à primeira interpelação (on first demand), é inaceitável e legalmente inadmissível, até porque a continuidade dessas obrigações ficaria a aceitar como possível essa hipótese, sem suporte fáctico ou jurídico, atenta a posição da devedora.
Mas essa questão deveria ter sido clarificada, de modo expresso e inequívoco, no texto do plano de recuperação submetido à apreciação do tribunal.
E não o foi, apesar de a devedora apelante ter sido alertada para a impossibilidade legal de tal ser consagrado em plano, optando a mesma por manter o mesmo nos exactos termos apresentados.
Nestas condições, impunha-se e impõe-se necessariamente a não homologação desse plano, tal como o fez o tribunal recorrido.
As considerações tecidas levam-nos assim a rejeitar a argumentação apresentada pela apelante, e improcedendo as alegações recursivas da mesma, impõe-se a manutenção e confirmação da sentença recorrida.
*
IV. Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, mantendo assim a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 30/06/2020
Paula Cardoso
Eurico José Marques dos Reis
Ana Grácio