Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
816/13.8TVLSB.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: EMPRESA PÚBLICA
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (do relator).

I – A competência em razão da matéria afere-se pela forma como o autor configura a ação, nomeadamente face ao pedido formulado e à causa de pedir invocada como fundamento da ação.

II – É da competência material dos tribunais judiciais o conhecimento da ação de incumprimento de contrato, no qual foi estabelecida a compensação dos prejuízos no exercício da atividade comercial de sociedade, decorrentes de obras de ampliação da rede do metropolitano.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

A, instaurou, em 2 de maio de 2013, na então 5.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa (Instância Central, 1.ª Secção Cível), contra B, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 2 220 377,57, acrescida de juros legais.

Para tanto, alegou, em síntese, que, por efeito da quebra de vendas, desde 2005 a 27 de abril de 2011, decorrentes da menor afluência de clientes, em resultado da ocupação da Avenida ..., no troço situado entre a Avenida ... e a Avenida ...e consequente interrupção da circulação pelas obras de ampliação da rede do metropolitano de Lisboa; A. e R. ajustaram, por acordo de 20 de junho de 2005, a compensação dos prejuízos na atividade comercial da A., em consequência de tais obras, acordo que a R. deixou de cumprir.

Contestou a R., que, além do mais, arguiu a incompetência material do Tribunal, alegando ser uma pessoa coletiva de direito público, tendo por objeto manter e desenvolver, em regime exclusivo, o funcionamento regular do serviço público de transporte coletivo fundado no aproveitamento do subsolo, dispondo, para tal, de prorrogativas de autoridade; ter uma atividade de gestão pública, na satisfação das necessidades coletivas, integrando a função administrativa; e a empreitada ser de relevante interesse público.

Replicou a A., no sentido da improcedência da exceção, alegando que a relação material controvertida é de natureza exclusivamente civil.

Na audiência prévia, realizada no dia 28 de maio de 2014, foi proferido despacho saneador, nos termos do qual, declarando-se a incompetência absoluta do Tribunal, foi a Ré absolvida da instância.

Não se conformando com essa decisão, a Autora apelou e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) A Apelante e a Apelada não submeteram o contrato entre ambas a um regime de direito público.

b) A Apelante pretende assegurar o direito à indemnização convencionado no acordo.

c) A causa de pedir radica no incumprimento do acordo, celebrado em 20 de junho de 2005.

d) O acordo controvertido não se inclui no estatuído nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.

Pretende a Autora, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente respeita apenas à competência material do tribunal, nomeadamente saber se a competência, para o julgamento da ação, cabe aos tribunais comuns, onde a ação foi proposta, ou então aos tribunais administrativos.

Desde logo, e uma vez que a decisão recorrida foi proferida em 28 de maio de 2014, é aplicável, ao recurso, o regime previsto no Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (art. 7.º, n.º 1).

A decisão recorrida, baseando-se no disposto na alínea g) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, e no entendimento de que a ação versa sobre uma questão de responsabilidade extracontratual de pessoa coletiva de direito público, declarou o tribunal incompetente, em razão da matéria, considerando competente os tribunais da jurisdição administrativa.

É comum entender-se que a competência em razão da matéria se afere pela forma como o autor configura a ação, nomeadamente face ao pedido formulado e à causa de pedir invocada como fundamento da ação – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de abril de 2008, acessível em www.dgsi.pt (processo n.º 08B845).

No caso vertente, verifica-se que a Apelante, na ação, pediu a condenação da Apelada no pagamento da quantia € 2 220 377,57, com fundamento no incumprimento do contrato, entre as mesmas celebrado em 20 de junho de 2005, para compensação dos prejuízos no exercício da sua atividade comercial, decorrentes das obras de ampliação da rede do metropolitano de Lisboa.

Esse acordo, constante de fls. 21 a 26, consagrou o direito à indemnização a favor da Apelante, em consequência da execução das obras por parte da Apelada, fixando-se, desde logo, uma compensação provisória e prevendo-se o último pagamento para depois do apuramento definitivo e global dos prejuízos.

Ao formalizarem tal acordo, as declarações de vontade das partes convergiram no reconhecimento expresso de prejuízo sofrido pela Apelante, a justificar compensação (direito à indemnização), e na especificação do meio de liquidação e do modo de pagamento.

Se é certo a compensação dos prejuízos ter resultado, originariamente, da responsabilidade civil extracontratual imputável à Apelada, no entanto, depois do mencionado acordo, passou a derivar de contrato, daí emergindo a atual vinculação jurídica. Essa mudança, naturalmente, consubstanciou uma modificação da natureza jurídica da indemnização.

Deste modo, até pela forma como a petição inicial foi articulada, é compreensível que o pedido formulado na ação se baseia, expressamente, na efetivação da responsabilidade civil contratual, particularmente no contrato celebrado em 20 de junho de 2005.

Em termos gerais, os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (art. 1.º do ETAF).

Essa disposição geral surge, depois, concretizada no n.º 1 do art. 4.º do ETAF, onde se especifica, nomeadamente, que a competência para os litígios que tenham por objeto “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público” – alínea f).

O objeto do contrato celebrado entre as partes, estabelecendo a compensação dos prejuízos no exercício da atividade comercial da Apelante, decorrentes da execução das obras de ampliação da rede do metropolitano de Lisboa, não é passível de um ato administrativo, porquanto a indemnização pelos danos resultantes da execução das obras não pode ser definida, por ato de autoridade, sob pena de usurpação de poder – acórdão do Tribunal de Conflitos de 4 de novembro de 2009, acessível em www.dgsi.pt (processo n.º 013/09).

Por outro lado, o regime do mesmo contrato também não é regulado por normas de direito público, nem direta nem indiretamente, sendo certo ainda que se convencionou, para a resolução de todos as questões emergentes de tal acordo, “o foro da Comarca de Lisboa” (cláusula 8.ª), circunstância que reflete a natureza jurídica que os contraentes atribuíram ao acordo celebrado.

O presente litígio, por outro lado, não se desenvolve a partir de uma relação jurídica administrativa.

Com efeito, as partes regularam os termos da obrigação de indemnização, numa posição de aparente igualdade, como numa qualquer relação jurídico – privada, sem que relevasse quer o interesse público, quer a especial posição de uma das partes.

Além disso, não obstante uma das partes do contrato ser uma empresa pública, as mesmas não submeteram o acordo ao regime de direito público.

Assim, porque a ação não emerge de uma relação contratual de direito administrativo, a lei não atribui a competência material, para conhecer da ação, aos tribunais administrativos.

Essa competência material, com efeito, cabe aos tribunais judiciais, nos termos dos arts. 211.º, n.º 1, da Constituição ...Portuguesa, 18.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro (LOFTJ), ainda aplicável aos presentes autos, e 64.º do CPC.

Neste sentido, decidiu o referido acórdão do Tribunal de Conflitos, de 4 de novembro de 2009, assim como o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de dezembro de 2009 (Processo n.º 1 020/09.5TJLSB-A.L1), elaborado também pelo atual relator e envolvendo as mesmas partes (fls. 289).

Deste modo, a exceção de incompetência absoluta não podia ter sido julgada procedente, diversamente do que se entendeu na decisão recorrida, motivo pelo qual esta não pode manter-se, o que implica a sua revogação.

2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I – A competência em razão da matéria afere-se pela forma como o autor configura a ação, nomeadamente face ao pedido formulado e à causa de pedir invocada como fundamento da ação.

II – É da competência material dos tribunais judiciais o conhecimento da ação de incumprimento de contrato, no qual foi estabelecida a compensação dos prejuízos no exercício da atividade comercial de sociedade, decorrentes de obras de ampliação da rede do metropolitano.

2.3. A Apelada, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.

2) Condenar a Apelada (Ré) no pagamento das custas.

Lisboa, 11 de dezembro de 2014

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)