Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4297/2007-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: CITAÇÃO POSTAL
VALIDADE
NULIDADE
DEFESA
FORMALIDADES
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Numa acção em que é demandado apenas um réu, o facto de a carta registada com aviso de recepção remetida para citação desse réu ter sido endereçada também em nome do marido, que não era demandado, não implica a nulidade da citação, por preterição de formalidade prescrita na lei (artigo 198.º/1 do Código de Processo Civil) verificando-se que a defesa da ré demandada não ficou prejudicada visto que ela recebeu a carta que lhe era dirigida e assinou o aviso de recepção.
II- De facto a ré teve oportunidade de tomar contacto com a petição inicial e, assim, poder defender-se, não sendo, portanto, aquele lapso causal relativamente à entretanto alegada ausência de conhecimento do acto de citação por, segundo a ré referiu, ter entregue a carta ao marido.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).


I – RELATÓRIO.
Intentou E.[…]SA, actualmente dissolvida, e substituída nos presentes autos pelo Ministério Público, em representação do Estado, a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra Maria […], pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 9.202.706$00, acrescida de juros vencidos, que até à data da instauração da acção calculou em 1.275.436$00, bem como naqueles que desde então se venceram e até integral pagamento.

Para o efeito alegou, em síntese, que a A., no exercício da sua actividade, forneceu ao marido da Ré, Ventura […], diversas mercadorias, descritas nas facturas juntas aos autos, pelo preço global de 9.202.706$00.

A A. e o marido da Ré acordaram que o não pagamento de facturas na data do vencimento determina a cobrança de juros de mora à taxa de 18% ao ano. Instado para pagar a referida quantia, o marido da Ré nada pagou.

A Ré é casada com Ventura […] no regime de comunhão de adquiridos, desde antes de 1996.

O marido da Ré é agricultor e contratou os fornecimentos aludidos com a autora no exercício da sua actividade. Tais fornecimentos destinaram-se a ser aplicados em diversas propriedades agrícolas que eram exploradas conjuntamente pela Ré e por seu marido.

Tanto a Ré como o seu marido beneficiaram dos resultados da exploração daquelas propriedades em que foram aplicadas os produtos fornecidos pela A.. Acresce que a Ré e o seu marido vivem em comunhão de cama, mesa e habitação, mantendo entre si economia comum relativamente às necessidades e despesas da sua vida familiar.

O agregado familiar constituído pela Ré e seu marido vive dos rendimentos por este obtido como agricultor. Esse agregado familiar e, consequentemente a Ré, beneficiou dos fornecimentos da autora e do resultado da aplicação pelo marido da Ré na satisfação de despesas normais da vida familiar de ambos

Sucede, assim, que a dívida contraída pelo marido da Ré perante a A. se destinou a ocorrer aos encargos da vida familiar de ambos e foi contraída no âmbito da administração de bens da Ré e seu marido e em proveito comum do casal.

Citada, a Ré não apresentou contestação, pelo que foi proferido despacho declarando confessados os factos articulados pela A., considerando não se verificarem quaisquer dos condicionalismos previstos no art. 485° do CPC, tratando-se duma relação jurídica disponível ( cfr. fls. 26 ).

Proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente, tendo a Ré sido condenada no pagamento da quantia de € 45.902,00 ( 9.202.206$00 ), acrescida de juros de mora à taxa legal desde o vencimento das respectivas facturas e até integral pagamento ( cfr. fls. 235 a 236 ).

Notificada de tal sentença, veio a Ré arguir a nulidade da sua citação e consequente declaração de nulidade de todo o processado posterior ( cfr. fls. 246 a 251 ).

O Mº Público emitiu parecer no sentido de ser considerada manifestamente improcedente a arguida nulidade ( cfr. fls. 265 a 266 ).

Foi proferido despacho que indeferiu a arguida nulidade ( cfr. fls. 267 a 268 ).

Inconformada, a Ré interpôs recurso, que foi admitido como de agravo ( cfr. fls. 310 ).
 
Juntas as competentes alegações a fls. 331 a 347, apresentou a agravante as seguintes conclusões :
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho que indeferiu a nulidade da citação arguida pela Ré.
2. Andou mal o Mm. Juiz do Tribunal a quo ao alegar que na citação efectuada a fls. 25 dos autos foram observadas as formalidades prescritas na lei e que se a ora agravante não teve conhecimento daquela, são situações que devem ser imputáveis apenas àquela, devendo, por isso, assumir as suas consequências.
3. A ora agravante cumpriu meticulosamente todos os trâmites legais.
4. As falhas foram dos serviços do Tribunal e não da agravante, como se pode facilmente constatar nos autos.
5. O tribunal citou o marido da agravante, Ventura […], quando esta era a única Ré no processo.
6. Tendo o Tribunal escrito a Ventura […] informando-o que ele tinha sido citado em terceira pessoa e não tendo havido nenhuma outra citação para além da referida, não podiam, nem um nem outro dos destinatários, deixar de concluir que afinal a citação era, tão só, para o marido da agravante.
7. Ao ter citado o marido da agravante, e considerando, mal, que a acção seria contra ambos os cônjuges, sempre teria a secretaria do tribunal que enviar uma carta de citação para cada um deles
8. Só assim seria exigível, à ora agravante, a apreensão da função da citação de fls. 25.
9. A funcionalidade da citação foi, nos presentes autos, totalmente frustrada, pelo que o acto da citação só formal e aparentemente se pode considerar verificado.
10. Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 161º, nº 6 do CPC, não pode a agravante ser prejudicada por um facto, que ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, é imputável à secretaria judicial do mesmo.
11. Ao ter indeferido a nulidade arguida pelo ora agravante, o Tribunal a quo, sonegou, entre outros, o aceso ao Direito e à Justiça da ora agravante, previsto no art. 20º da CRP e os princípios fundamentais do processo civil do contraditório e da igualdade processual das partes.
12. O Mm. Juiz do Tribunal a quo, violou, entre outros, o disposto nos arts. 3º, nº 1, 2ª parte e 3, 3º-A, 198º, nº 1 e 235º, todos do CPC e o disposto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa.

Conclui, assim, pela revogação do despacho recorrido e pela sua substituição por outro que defira a arguida nulidade de citação da Ré e proceda à sua absolvição das custas do incidente de fls. 268 dos autos.

O Mº Público contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

O Sr. Juiz de 1ª Instância sustentou a decisão proferida ( cfr. fls. 361 ).

Também inconformada com a sentença proferida, interpôs a Ré recurso que foi admitido como de apelação ( cfr. fls. 278 ).

Juntas as competentes alegações a fls. 288 a 309, apresentou a apelante as seguintes conclusões :
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. 235 e ss. que julgou parcialmente procedente a acção e, consequentemente, condenou a ora apelante no pagamento à A. da quantia de € 45.902,00 acrescida de juros de mora à taxa legal desde o vencimento das respectivas facturas e até integral pagamento.
2. Entendeu o Tribunal a quo que a Ré foi regularmente citada, e não contestou, pelo que considerou provados por confissão os factos articulados pela A.
3. Não só o processo seguiu os seus termos na total revelia da ora apelante ( questão a apreciar em recurso de agravo de despacho de fls. 267 a 269, com influência para a decisão da causa ), como mesmo que assim não se entenda – o que não se concede, mas se equaciona por mero dever de patrocínio – não podia a fala de contestação da ora apelante ter o efeito cominatório que o Tribunal a quo lhe conferiu.
4. A A. na p.i. apresentada não fez qualquer prova do sustentado, nem particularizou o alegado, tendo feito apenas a mera reprodução de conceitos jurídicos.
5. Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1691º, nº 3 do CC, o proveito comum do casal não se presume.
6. Resulta, ainda, do art.º 342º, nº 1, do CC que incumbe ao credor que pretenda responsabilizar ambos os cônjuges pela pagamento da dívida contraída apenas por um deles nos casos previstos no nº 1 do art. 1691º, articular e provar, factos de que possa efectivamente concluir-se a existência de proveito comum.
7. O que não foi feito.
8. Termos em que, não poderia o Tribunal a quo ter dado os factos alegados na p.i., como provados.
9. Acresce que, o peticionado pela A. configura uma manifesta manobra abusiva e de ostensiva má fé, que cumpre aqui ser apreciada.
10. A acção sub judice deu entrada, em 23/05/1997, após a entrega e conhecimento pela aqui recorrida do teor da réplica apresentada no Tribunal de Círculo de Barreiro, Secção C, na qual o aí A. e Reconvindo, Ventura […], marido da ora apelante, confessou que “lhe foram fornecidos os factores de produção constantes nas facturas autuadas” e aceitou a sua condenação no pagamento à ex-E.[…], SA, no montante dos factores de produção facturados, se esta fosse condenada a pagar-lhe a indemnização correspondente ao diferencial de valor entre uma colheita normal e a colheita em questão, conforme arts. 1.2 a 2.5 da réplica, apresentada em 06/05/1997.
11. Não obstante, a ex- E.[…] não se escusou em apresentar a acção aqui em causa, insistindo num pagamento que o aí A. e Reconvindo, já assumira pagar.
12. A ex-E.[…] ao intentar a acção que ora se aprecia actuou abusivamente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 334º do CC.
13. O que resultou num esquema ardilosamente preparado pela ex-E.[…], a qual, com os presentes autos, passou de devedora, na acção que correu termos no Tribunal Judicial de Montijo, a credora do A. (e mulher) geando, desta forma, um enriquecimento sem causa, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 473º e ss. do CC.
Conclui, assim, pedindo a revogação da sentença proferida e pela sua alteração por uma outra que julgue a acção improcedente.
O Mº Público contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença proferida.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provado nos autos que[1] :
1. A A., no exercício da sua actividade, forneceu ao marido da Ré, Ventura […], diversas mercadorias, descritas nas facturas juntas aos autos, pelo preço global de Pte. 9.202.706$00.
2. A A.e o marido da Ré acordaram que o não pagamento de facturas na data do vencimento determina a cobrança de juros de mora à taxa de 18% ao ano.
3. Instado para pagar a referida quantia, o marido da Ré nada pagou.
4. A Ré é casada com Ventura […] no regime de comunhão de adquiridos, desde antes de 1996.
5. O marido da Ré é agricultor e contratou os fornecimentos aludidos com a A. no exercício da sua actividade.
6. Tais fornecimentos destinaram-se a ser aplicados em diversas propriedades agrícolas que eram exploradas conjuntamente pela Ré e por seu marido.
7. Tanto a Ré como o seu marido beneficiaram dos resultados da exploração daquelas propriedades em que foram aplicadas os produtos fornecidos pela A.
8. A Ré e o seu marido vivem em comunhão de cama, mesa e habitação, mantendo entre si economia comum relativamente às necessidades e despesas da sua vida familiar.
9. O agregado familiar constituído pela Ré e seu marido vive dos rendimentos por este obtido como agricultor.
10. Esse agregado familiar e, consequentemente a Ré, beneficiou dos fornecimentos da A. e do resultado da aplicação pelo marido da Ré na satisfação de despesas normais da vida familiar de ambos.
 11. Por sentença transitada em julgado, Ventura […], marido da Ré, foi condenado a pagar à A. a quantia de Pte. 9.202.706$00, convertida na correspondente quantia em ouros, acrescida de juros de mora à taxa legal desde o vencimento das respectivas facturas e até integral pagamento.
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar :

1 – Da alegada nulidade da citação da Ré.
2- Da prova do proveito comum do casal enquanto fundamento da condenação da Ré.

Passemos à sua análise :
1 – Da alegada nulidade da citação da Ré.

Alega, essencialmente, a recorrente que :

O Tribunal citou o marido da agravante, Ventura […], quando esta era a única Ré no processo, tendo ainda escrito a Ventura […] informando-o que ele tinha sido citado em terceira pessoa.

Não tendo havido nenhuma outra citação para além da referida, não podiam, nem um nem outro dos destinatários, deixar de concluir que afinal a citação era, tão só, para o marido da agravante.

Ao ter citado o marido da agravante, e considerando, mal, que a acção seria contra ambos os cônjuges, sempre teria a secretaria do tribunal que enviar uma carta de citação para cada um deles, só assim sendo exigível, à ora agravante, a apreensão da função da citação de fls. 25.

A funcionalidade da citação foi, nos presentes autos, totalmente frustrada, pelo que o acto da citação só formal e aparentemente se pode considerar verificado.

Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 161º, nº 6 do CPC, não pode a agravante ser prejudicada por um facto, que ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, é imputável à secretaria judicial do mesmo.

 Ao ter indeferido a nulidade arguida pelo ora agravante, o Tribunal a quo, sonegou, entre outros, o aceso ao Direito e à Justiça da ora agravante, previsto no art. 20º da CRP e os princípios fundamentais do processo civil do contraditório e da igualdade processual das partes.

Apreciando :
Nos termos do art.º 198º, nº 1, do Cod. Proc. Civil :

“ Sem prejuízo do disposto no art.º 195º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades legais prescritas na lei. “.

Na situação sub judice, não está em causa a verificação de qualquer das situações enunciadas no art.º 195º, nº 1, do Cod. Proc. Civil[2].

A R. Maria […] é efectivamente a única demandada nestes autos.

Neste sentido, foi-lhe endereçada uma carta registada com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, contendo duplicado da petição inicial contra a mesma dirigida, acompanhada dos respectivos documentos, incluindo ainda a comunicação de que ficava citada para a acção a que o duplicado se referia, indicando-se o tribunal, juízo, vara e secção por onde corre o presente processo, bem como o prazo dentro do qual poderia oferecer a sua defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorria no caso de revelia, tudo em estreita observância do preceituado nos artsº 235º e 236º, do Cod. Proc. Civil[3].

A Ré Maria […] assinou o respectivo aviso de recepção, conforme consta do documento junto a fls. 25.

Foi, portanto, ela quem recebeu, pessoalmente, a carta que lhe foi expressamente dirigida, donde constava a identificação do respectivo remetente.

O facto da carta para a sua citação se encontrar, por lapso[4], endereçada também ao “ seu marido Ventura […] “[5] – que não é parte nestes autos –, não obsta à circunstância – indesmentível - da Ré haver efectivamente recebido tal missiva, sendo-lhe fornecidos, através desse acto processual, todos os elementos e condições para, actuando com a diligência média exigível ao cidadão comum, compreender do que se tratava.
Lendo a petição inicial que acompanhava tal carta[6], a Ré poder-se-ia naturalmente aperceber dos factos contra si articulados.

Também ficaria logo completamente esclarecida quanto a tratar-se da única pessoa contra a qual a acção era dirigida.

Assim sendo, todos os seus direitos de defesa encontravam-se perfeitamente assegurados, sendo-lhe exclusivamente imputável a não apresentação de qualquer contestação ao pedido contra si formulado.

É, neste domínio, absolutamente irrelevante a invocação da ( descabida ) notificação “ do Réu Ventura […], advertindo-o nos termos do art.º 241º, do C.P.C. “.

Sendo obviamente lamentáveis e censuráveis tais lapsos da secretaria – reveladores de menor diligência no cumprimento das respectivas funções –, os mesmos não afectam minimamente a validade da citação da Ré Maria […][7].
Com efeito, não se vislumbra qual a formalidade legal que foi omitida na sua citação.

A Ré recebeu a carta, que lhe era dirigida, assinando o respectivo aviso de recepção.

Teve, naturalmente, oportunidade de tomar contacto com a petição inicial que contra si era dirigida, ficar ciente do prazo de contestação e da cominação processual associada à sua revelia.

Por razões que só à Ré dizem respeito, não apresentou contestação.

Não se vê, perante tudo isto, qual o fundamento para não dar o devido cumprimento à lei do processo que, na situação sub judice, impõe que o juiz actue em conformidade com o que genericamente dispõe o art.º 484º, nº 1, do Cod. Proc. Civil.

De resto, lendo atentamente a arguição de nulidade apresentada a fls. 246 a 251, facilmente se descortina a verdadeira razão que, segundo a própria arguente, terá estado subjacente à falta de apresentação do articulado de contestação.

Esse mesmo motivo nada tem que ver com os erros de secretaria, os quais, como se disse, são insusceptíveis, in casu, de afectar o direito de defesa da Ré.

Consta desse mesmo requerimento que :
“ ( a Ré ) entregou a carta ao marido sem a abrir “ ( cfr. artº 6º ) ;
“ O marido da Ré informou-a de que o assunto era com ele e tinha a ver com o litígio que o envolvia com a EPAC “ ( artº 8º ).

Ora, admitindo que a Ré tivesse provado o que, a este propósito, alegou – o que não fez -, cumpre concluir que esta não terá tomado consciência da citação e dos factos narrados na petição inicial devido a circunstâncias que lhe são exclusivamente imputáveis, a saber : a entrega ao marido, sem ler, duma carta que lhe é pessoalmente dirigida ; a confiança que fez na palavra do seu cônjuge de que o assunto não lhe dizia respeito, o que é aliás contraditório com a circunstância da missiva vir em seu nome ( inclusive, em primeiro lugar na ordem dos respectivos destinatários ).

Os invocados erros de secretaria não são portanto causais[8] relativamente à alegada ausência de conhecimento do acto de citação.

Não foi em virtude destes erros[9] que a Ré deixou de poder ler a petição inicial e todo o expediente que recebeu em mãos, bem como de compreender o conteúdo do acto que lhe foi transmitido – com a importância conferida pela chancela consistente na sua assinatura, aposta no aviso de recepção relativo a uma carta vinda do Tribunal Cível de Lisboa.

Concordando-se inteiramente com o relevo fundamental que deverá ser, genericamente, concedido ao acto processual da citação e com o facto da parte não poder nunca ser prejudicada com os erros que venham a ser cometidos pela secretaria do Tribunal[10], o certo é que, na situação sub judice não existe uma réstia de dúvida de que, em relação à Ré, foram observadas todas as formalidades legais referentes à citação, tendo-lhe sido escrupulosamente garantida a possibilidade de conhecer o alcance e consequências desse acto e de exercer, em toda a sua plenitude, os seus intocáveis direitos de defesa.

O seu não exercício[11] explicar-se-á, porventura, com factos do foro pessoal e familiar da Ré, que só a esta e ao seu marido dizem naturalmente respeito.

Não se verifica, portanto, a nulidade pretendida, sendo a citação da Ré Maria […] perfeitamente válida e eficaz.

O agravo não merece provimento.

2- Da prova do proveito comum do casal enquanto fundamento da condenação da Ré.

Alegou essencialmente a apelante :
A A. na p.i. apresentada não fez qualquer prova do sustentado, nem particularizou o alegado, tendo feito apenas a mera reprodução de conceitos jurídicos.

Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1691º, nº 3 do CC, o proveito comum do casal não se presume.
 
Resulta, ainda, do art.º 342º, nº 1, do Código Civil, que incumbe ao credor que pretenda responsabilizar ambos os cônjuges pela pagamento da dívida contraída apenas por um deles nos casos previstos no nº 1 do art. 1691º, articular e provar, factos de que possa efectivamente concluir-se a existência de proveito comum, o que não foi feito.

Termos em que, não poderia o Tribunal a quo ter dado os factos alegados na petição inicial como provados.

O peticionado pela A. configura uma manifesta manobra abusiva e de ostensiva má fé, que cumpre aqui ser apreciada.

A acção sub judice deu entrada, em 23 de Maio de 1997, após a entrega e conhecimento pela aqui recorrida do teor da réplica apresentada no Tribunal de Círculo de Barreiro, Secção C, na qual o aí A. e Reconvindo, Ventura […], marido da ora apelante, confessou que “lhe foram fornecidos os factores de produção constantes nas facturas autuadas” e aceitou a sua condenação no pagamento à ex-o[…] SA, no montante dos factores de produção facturados, se esta fosse condenada a pagar-lhe a indemnização correspondente ao diferencial de valor entre uma colheita normal e a colheita em questão, conforme arts. 1.2 a 2.5 da réplica, apresentada em 6 de Maio de 1997.

Não obstante, a ex- E.[…] não se escusou em apresentar a acção aqui em causa, insistindo num pagamento que o aí A. e Reconvindo, já assumira pagar, actuando abusivamente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 334º do CC.

O que resultou num esquema ardilosamente preparado pela ex-E[…], a qual, com os presentes autos, passou de devedora, na acção que correu termos no Tribunal Judicial de Montijo, a credora do A. ( e mulher ) gerando, desta forma, um enriquecimento sem causa, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 473º e ss. do CC.

Apreciando :

Foram dados como provados, em consequência, da falta de contestação da Ré Maria […], os seguintes factos :

Ré é casada com Ventura […] no regime de comunhão de adquiridos, desde antes de 1996.

O marido da Ré é agricultor e contratou os fornecimentos aludidos com a A. no exercício da sua actividade.

Tais fornecimentos destinaram-se a ser aplicados em diversas propriedades agrícolas que eram exploradas conjuntamente pela Ré e por seu marido.

Tanto a Ré como o seu marido beneficiaram dos resultados da exploração daquelas propriedades em que foram aplicadas os produtos fornecidos pela A.

A Ré e o seu marido vivem em comunhão de cama, mesa e habitação, mantendo entre si economia comum relativamente às necessidades e despesas da sua vida familiar.

O agregado familiar constituído pela Ré e seu marido vive dos rendimentos por este obtido como agricultor.

Esse agregado familiar e, consequentemente a Ré, beneficiou dos fornecimentos da A. e do resultado da aplicação pelo marido da Ré na satisfação de despesas normais da vida familiar de ambos.

Vejamos :

O conceito de proveito comum do casal, revestindo natureza exclusivamente jurídica, exige a alegação e prova dos factos susceptíveis de o integrar.[12]
 
Só é possível concluir que pela comunicabilidade da dívida, nos termos do artº 1691º, nº 1, alínea d), do Cod. Civil, depois de se apurar qual a sua finalidade e o destino dado aos produtos vendidos pela A., bem como de que forma beneficiaram o património comum o casal.[13]

Sem a alegação de factos dessa natureza, não existem possibilidades técnicas de concluir pela existência de proveito comum do casal e, consequentemente, pela responsabilização do cônjuge do contraente, sendo certo que o proveito comum do casal se não presume, excepto nos casos em que a lei o declarar ( artº 1691º, nº 3, do Cod. Civil ).[14]

In casu,

A factualidade dada como provada permite concluir que a dívida em apreço foi efectivamente contraída pelo marido da Ré em proveito comum do casal formado pelos dois.

Contrariamente, ao alegado pela recorrente, a A. articulou factos que traduzem, claramente, a materialidade susceptível de integrar o conceito de “ dívida contraída em proveito comum do casal “.

Basta, para o efeito, ler os artsº 11º a 18º, da petição inicial, os quais são perfeitamente inequívocos e elucidativos a este respeito[15].

Não assiste, assim, qualquer razão à apelante.

Ao invés, não se encontram provados factos que permitam concluir que a A. actuou de forma abusiva “ e de ostensiva má fé “, ou que haja recorrido a qualquer “ esquema ardiloso “.

Através da presente acção, a A. limitou-se a responsabilizar a Ré pelo pagamento dum dívida, reconhecimento contraída pelo seu marido, e que, segundo a alegação do demandante - traduzida nos concretos factos que articulou -, se enquadra no conceito jurídico de proveito comum do casal.

Esta pretensão, na sua singeleza e vulgaridade, nada tem de abusivo ou fraudulento, nem constitui, à partida, qualquer situação de enriquecimento sem causa.

O desfecho da acção nº 258/1999, do Tribunal Judicial do Montijo, - e em especial a validade do crédito que aí foi reconhecido ao reconvinte Ventura […] sobre a A. – não é afectado pela decisão condenatória proferida no presente processo.

Por outro lado, seria sempre em sede de contestação - que ficou por apresentar -, que a Ré poderia ter aproveitado o ensejo para articular factos modificativos ou extintivo do efeito pretendido pela A..
Não o fez, tendo a decisão recorrida realizado o enquadramento jurídico correcto dos factos provados.
A apelação terá assim, fatalmente, que improceder.


IV - DECISÃO :

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar não provido o agravo e improcedente a apelação, confirmando-se inteiramente as decisões recorridas.
Custas pela apelante/agravante.

Lisboa, 12 de Julho de 2007.


( Luís Espírito Santo )( por vencimento da relatora )

( Isabel Salgado)

( Dina Monteiro. Com declaração de voto que segue:

            VOTO DE VENCIDA

     Entendo que outra seria a abordagem e solução a encontrar para a resolução do recurso de Agravo, como passo a descrever.

     Invoca a recorrente a nulidade da sua citação por inobservância das formalidades legais previstas no art. 198º do CPC uma vez que a carta enviada pelo Tribunal para efectivação da citação foi remetida em seu nome e no do seu marido, este último que não é parte no processo, tendo a recorrente se limitado a assinar o a/r respectivo e a proceder à entrega da carta em questão ao seu marido, sem ter tomado conta do seu conteúdo. Posteriormente, foi enviada carta simples dirigida ao seu marido, nos termos do art. 241º do CPC, dando-lhe conhecimento de ter sido citado em pessoa diversa. O seu marido limitou-se, então, a dizer-lhe que era um assunto dele que tinha que ver com o litígio que tinha com a EPAC.

     Com a alegação de todos estes factos, não indicou a ora recorrente quaisquer provas que pudessem comprovar a veracidade dos mesmos, sendo certo que se trata de matéria em relação à qual lhe incumbia o ónus de alegação e prova.

     Assim, para a apreciação da matéria em causa dispõe este Tribunal de recurso apenas da prova documental que consta do processo e que se passa a analisar.

     1. A fls. 25 dos autos consta um único a/r dirigido à ora recorrente e ao seu marido, que acompanhou também uma única carta registada para citação daqueles para os termos da presente acção, endereçada à ora recorrente e ao seu marido.

     2. O a/r acima mencionado foi objecto de assinatura, no local próprio, lavrada pela ora recorrente.

     Como muito bem se refere na decisão em apreciação, a recorrente não alegou sequer que tivessem sido omitidos quaisquer formalidades prescritas na lei para a efectivação da citação, nomeadamente a omissão dos elementos mencionados no art. 235º do CPC, o que refere é que a carta que lhe deveria ser pessoalmente dirigida para esse efeito, encontrava-se endereçada quer a si, quer ao seu marido, que não é parte na acção, consubstanciando-se nesse facto [existência de carta única para citação de duas pessoas] a própria nulidade invocada.

     Ora, a circunstância de o marido da recorrente não ser parte na acção é irrelevante para a apreciação da questão uma vez que estamos colocados num momento temporal (recepção da carta) em que esse facto (de o mesmo ser ou não réu na acção) é ainda desconhecido. O que importa analisar é se essa carta, dirigida em nome da ora recorrente e do seu marido, poderia ter sido expedida num só envelope, valendo como citação em relação a cada um deles (e isso independentemente da responsabilidade que advém para quem recebe a carta e a não entrega a quem a mesma é dirigida, sendo certo que no presente caso quem recebeu a carta, assinando o respectivo a/r foi a própria recorrente).

     Dispõe o art. 198º/1 do CPC que: “sem prejuízo do disposto no art. 195º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”, situação esta última que, como vimos, não foi invocada no presente recurso.

Também a situação prevista no art. 195º do CPC, que trata da falta de citação, equiparando à nulidade as situações ali elencadas, não tem aplicação à presente situação uma vez que trata apenas da análise de situações exteriores ou alheias à actuação do Tribunal. Assim, no nº 1, al. e) do citado preceito, temos que: “há falta de citação quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável”.

     Entende-se, no entanto, que também não é esta a situação dos autos uma vez que a carta para citação foi entregue directamente à recorrente, que a recebeu e assinou o respectivo a/r. Se a mesma entendeu, como o refere, que não deveria abrir a carta e entregá-la ao seu marido, é questão que extravasa a matéria em apreciação, quer porque nenhuma prova foi indicada nesse sentido quer porque tal comportamento não faz parte de qualquer dever imposto a um cônjuge em relação ao outro, decorrente da situação do contrato de casamento que os une, uma vez que no seu seio cada um dos cônjuges mantém os mesmos direitos e obrigações.

     No entanto, conforme já acima se deixou expresso, a questão que se coloca no presente recurso é prévia a todas estas considerações porque ocorreu em momento temporal que lhes é anterior – no acto de expedição da carta registada com a/r, por parte do Tribunal.

 Sendo a citação, como é, um acto pessoal, deve cada carta expedida para tal efeito, ser destinada a um único réu que, perante a respectiva recepção, poderá invocar as irregularidades e/ou nulidades que entenda para bem da sua defesa.

É perante a citação que o Réu estrutura a sua defesa e a tal acto estão-lhe associados várias decorrências, quer de ordem substantiva, quer adjectiva.

Doutrina e jurisprudência são unânimes em considerar que a citação é um acto fundamental do processo, razão pela qual o legislador a rodeou de várias formalidades a observar com vista à certeza da sua correcta efectivação. No que ao caso importa, uma vez que estamos perante a citação por via postal, importa ter presente o disposto nos arts. 235º e 236º do CPC e verificar que de todo o preceito ressalta a ideia de individualização da citação.

A carta que foi expedida pela secretaria do Tribunal tinha como destinatários duas pessoas: a recorrente e o seu marido e tal irregularidade é suficiente para obstar à correcta realização da citação. É certo que se desconhece a veracidade da posição assumida pela Ré (se a mesma teve ou não conhecimento do teor da carta, se a entregou ou não ao seu marido – uma vez que também lhe era dirigida) mas tal é irrelevante para a presente decisão. Com efeito, basta a dúvida quanto ao efectivo conhecimento da citação para obstar à sua cabal realização.

O princípio da defesa tem de prevalecer sobre quaisquer aproveitamentos que o Réu possa, eventualmente, realizar de tal facto, mormente quando a irregularidade é alheia ao seu comportamento.

Esta irregularidade da secretaria do Tribunal influi na decisão da causa e, como tal, gera a nulidade do acto praticado – art. 201º/1 do CPC.

Muito embora a argumentação apresentada pela recorrente seja distinta daquela que é tratada nesta decisão, tal facto não constitui qualquer obstáculo. Com efeito, trata-se no caso de qualificar juridicamente os factos trazidos a Tribunal, tarefa essa que está destinada ao juiz – art. 664º do CPC.

Entendo, assim, que a citação da recorrente não foi regularmente efectuada, face à irregularidade cometida pelos serviços da secretaria do Tribunal, impondo-se a sua correcta realização.

Como a procedência do recurso de Agravo importa a anulação de todos os actos praticados no processo, sem prejuízo da manutenção nos mesmos da certidão junta pelo Mº Público a fls. 181/233 dos autos, por questões de economia processual, documento esse que sempre acompanharia a citação a realizar à Ré, sempre seria de declarar o impedimento do Tribunal para conhecer do recurso de Apelação apresentado.

     Concluiria, pois, pelo provimento ao Agravo e, julgaria nula a citação da Ré, bem como declarava anulados todos os actos posteriores do processo, com excepção da certidão junta pelo Mº Público a fls. 181/233 dos autos, que ali se deveria manter e acompanhar a citação a realizar.

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[1] Em virtude da ausência de contestação da Ré, tendo sido dados por reproduzidos os factos articulados pela A., conforme sentença proferida a fls. 235 a 236.
[2] Fundamentos a que a agravante não recorreu com vista a colocar em crise o acto de citação.
[3] A Ré arguente não acusou a falta de qualquer destes elementos, essenciais para a validade da sua citação.
[4] Certamente induzido pelo grafismo que o rosto da petição inicial ostenta.
[5] Consta do aviso de recepção junto a fls. 25 : “ Destinatário ( Nome e Morada ) : MARIA […] e marido VENTURA […]“.
[6] Não será exigível a quem recebe uma carta, ainda por cima com aviso de recepção, que a leia ? Se o não faz – o que também constitui um direito seu – sibi imputate…
[7] Os invocados convencimentos - de natureza puramente subjectiva - de que a Ré, tendo em seu poder uma carta vinda dum Tribunal, a si expressamente dirigida, nada tinha que ver com o assunto, não foram objecto de qualquer tentativa ou arremedo de prova por parte desta.
[8] Constituem um simples pretexto para tentar evitar os efeitos duma sentença judicial desfavorável.
[9] Que, no fundo, só dizem respeito ao marido da Ré, Ventura […].
[10] O que pressupõe que esses erros tenham efectivamente determinado certa conduta ou omissão processual da parte ( do que não há rigorosamente qualquer prova na situação sub judice ).
[11] Que nada tem que ver, insista-se, com os ditos erros de secretaria.
[12] Sobre este ponto, vide Anselmo de Castro, in “ Direito Processual Civil Declaratório “,  Volume III, pag. 270 e 271.
[13] Sobre esta matéria e no sentido propugnado vide o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2005, publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano XIII, tomo II, pags. 118 a 122 ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Março de 2002, publicado in www.dgsi.pt, número de processo 02B516, número convencional JSTJ00042913 ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2004, publicado in www.dgsi.pt, número do processo 04A2730, número convencional SJ2000410190027301.
[14] Neste sentido, vide o esclarecedor acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2005, publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano XIII, tomo II, pags. 118 a 122.
[15] É evidente que, destinando-se a mercadoria vendida pela A. à propriedade agrícola explorada, em comum, pela R. e por seu marido ; vivendo o casal dos rendimentos obtidos dessa mesma actividade agrícola ; e beneficiando ambos daqueles fornecimentos, é inegável e indiscutível que a dívida em causa foi efectivamente contraído em proveito comum do casal, como não podia deixar de ser.