Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5257/16.2T9SNT.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Não tendo o Ministério Público deduzido acusação e não indicando o assistente, no requerimento para abertura da instrução, os factos que imputa aos denunciados, verifica-se que a instrução carece de objecto, o qual deveria ter sido definido pelo aludido requerimento, que não cumpriu essa função imposta pelos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, assim não sendo exequível.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 5257/16.2T9SNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Instrução Criminal de Sintra – Juiz 2, foi proferido, aos 02/11/2018, despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente A. .

2. O assistente não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que seja substituído por outro que declare a abertura da instrução.

2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. O assistente, ora recorrente, recorre do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado;
2. In casu, a questão a apurar é saber se estão preenchidos os requisitos legais previstos no n.º 2 do art. 287.º e als. b) e c) do 3 do art. 283.º do Código Processo Penal que deve observar o requerimento para abertura de instrução.
3. O despacho recorrido, salvo o devido respeito, não faz uma correta apreciação e valoração do que está suficientemente alegado no requerimento.
4. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente está estruturado como uma verdadeira acusação, onde o objeto do processo está definido pela narração dos concretos factos imputados aos denunciados.
5. Os factos narrados encontram-se também fundamentados e comprovados com prova documental junta aos autos.
6. Considera-se que estão alegados os motivos de discordância do despacho de arquivamento, são narrados de forma clara, direta e concisa os factos que fundamentam a aplicação de uma pena, são indicados expressamente os tipos de crimes imputados e respetivos preceitos legais.
7. Ao não admitir o requerimento de abertura de instrução, é retirar ao assistente, ora recorrente um direito que lhe assiste, uma injustiça que não está subjacente no espírito da legislação processual penal.
8. O requerimento de abertura de instrução cumpre os requisitos legais previstos nas disposições conjugadas dos arts. 287º. nº 2 e 283º do CPP.
9. Em nome dos princípios enformadores do processo penal, o tribunal a quo deveria ter recebido o requerimento de abertura de instrução formulado pelo recorrente.
10. O Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 287º, n.º 2 e 283º do CPP ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, e, por via dele, deverá o douto despacho que rejeitou o requerimento para a abertura de instrução ser revogado e substituído por outro que o receba, determinando a abertura de instrução.

3. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pela assistente.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Se o requerimento para abertura da instrução (doravante RAI) apresentado pelo assistente contém a narração sintética dos factos que fundamentariam a aplicação de uma pena aos denunciados.

Sendo a resposta negativa, se deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

2. A Decisão Recorrida

2.1 A decisão recorrida, na parte que releva, tem o seguinte teor (transcrição):

Da admissibilidade do requerimento de abertura de instrução
Os presentes autos tiveram início em denúncia de A. , contra desconhecidos por factos que considerou consubstanciarem a prática de crimes de falsificação de documentos, p e p pelo artigo 256.º do C.P., corrupção activa, p e p pelo artigo 373.º, tráfico de influências, p e p pelo artigo 374.º, apropriação ilegítima, p e p pelo artigo 234.º e administração danosa, p e p pelo artigo 255.º, todos do Código Penal.
Procedeu-se a inquérito findo o qual foi proferido despacho de arquivamento sem que houvesse lugar à constituição de arguidos.
Inconformado com o arquivamento veio o assistente requerer a abertura da fase de instrução contra "desconhecidos" pretendendo que, a final, seja proferido despacho de pronúncia «quanto aos arguidos indicados no requerimento pelos respetivos crimes aduzidos».
Cumpre, antes de mais, apreciar da verificação dos requisitos legais a que deve obedecer o requerimento de abertura da fase de instrução (doravante RAI).
A abertura da fase de instrução é o meio processual concedido ao assistente para reagir contra a decisão de arquivamento do inquérito quando estão em causa crimes de natureza pública ou semi-pública (artigo 287º n.º 1 al b) do CPP).
Diz o n.º 2 do artigo 287.º que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais mas "deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação" bem como, sendo caso, "a indicação dos actos de instrução que o requerente pretenda que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e dos factos que através de uns e outros se espera provar". A formulação legal é enganadora pois ao requerimento do assistente é ainda aplicável o disposto nos art. 283.º n.º 3 b) e c) do CPP; Ou seja, para além do que consta no n.º 2 do artigo 287.º do CPP, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter, ainda:
"b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada";
c) A indicação das disposições legais aplicáveis".
A inobservância destas formalidades determina, como resulta do referido preceito legal, a nulidade da acusação, neste caso, do requerimento de abertura de instrução (RAI).
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, nas palavras de Germano M. Silva (in em "Do processo penal preliminar" fls. 254) substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação decididos pelo M.ºP.º)", acusação que, "dada a divergência com a posição assumida pelo M.ºP.º - vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial". Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido.
Portanto, tal como a acusação que o Ministério Público tivesse deduzido, o RAI deve conter a identificação de quem fez, o quê, com quem, quando, onde, como e com que intenção.
Mais, a instrução não é um novo inquérito (ou um inquérito dirigido pelo juiz. A determinação dos agentes dum crime bem como a investigação da existência do mesmo opera-se através do inquérito não cabendo no âmbito e finalidades da instrução, tanto mais que aquele pode ser reaberto quando surjam novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo MºPº no despacho de arquivamento" (Ac. da R.E. de 5 de Maio de 1998, publicado na C.J. Ano XXIII, Tomo III, pág. 281).
Como facilmente se constata no caso vertente não foram observados os requisitos legais: Não são individualizadas as condutas de cada um dos indivíduos sobre os quais de lança a suspeita de conduta penalmente censurável, nem alegados os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de crime que se considera indiciados.
O juiz não pode substituir-se ao assistente superando eventuais deficiências de alegação perscrutando os autos em busca dos factos integradores dos elementos do tipo, ou tipos de crime em causa que não tenham sido alegados, ou não tenham sido convenientemente alegados, designadamente por recurso a expressões conclusivas ou matéria de direito, ou selecionando aqueles que são pertinentes para a decisão.
O Juiz de Instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou, no caso, que tenham sido descritos no requerimento dc abertura de instrução pelo assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação, por parte do Ministério Público, cominando o art.º 309º, do CPP com o vício da nulidade a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial daqueles outros descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.
A lei processual não prevê qualquer convite ao assistente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução, assim como não prevê qualquer convite ao Ministério Público para aperfeiçoar acusações manifestamente infundadas - neste sentido, entre outros, Ac. RL de 12 de Junho de 2003 disponível na base de dados jurídico-documentais do MJ.
Relativamente a esta matéria veio o douto Acórdão do STJ n.º 7/2005 (in DR I série-A n.º 212, de 4 de Novembro de 2005) a fixar jurisprudência obrigatória no sentido de que :"Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido".
De igual modo se pronunciou o Tribunal Constitucional ao não julgar inconstitucional a norma do artigo 283.º, n.º 3, alínea b) e c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente (artigo 287.º, n.º 2, CPP) os elementos mencionados nessas alíneas Acórdão n.º 358/2004 do Tribunal Constitucional);
Assim sendo, pelas razões enunciadas e ao abrigo do disposto no artº 287º nº 3 do Código do Processo Penal, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução.
Notifique.

Apreciemos.

O assistente, agora recorrente, requereu a abertura da instrução, após o Ministério Público ter determinado o arquivamento dos autos, por entender neles existirem elementos probatórios de que resultam indícios suficientes da prática pelos denunciados Ex-Direcção do Centro de Emprego e Formação Profissional de Sintra referente ao período de Setembro de 2013 a Fevereiro de 2015, CF (ex. Director do Centro de Emprego e Formação Profissional de Sintra), AF (coordenadora do IEFP), AB (“Coordenadora Ext.”), Armindo Lúcio (formador), PS (formador), RG (formador) e ML (directora de coordenação do Curso de Cozinha), “dos crimes de falsificação de documentos, p. e pelo art. 256º, de corrupção ativa, p. e p. no art. 373º, tráfico de influências, p. e p. no art. 374º, apropriação ilegítima, p. e p. no art. 234º e administração danosa, p. e p. no art. 255º todos do Código Penal.”

Conforme estabelecido no artigo 287º, nº 1, do CPP, o assistente tem a possibilidade legal de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semi-pública, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.

Os crimes imputados revestem natureza procedimental pública, pelo que podia o assistente requerer a abertura da instrução.

No que tange a este requerimento, consagra-se no nº 2, do artigo 287º, do CPP que, “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (...) não acusação do MP, bem como se for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º”.

Por força desta remissão, o RAI, quando apresentado pelo assistente, tem de conter também:

A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - alínea b).
A indicação das disposições legais aplicáveis - alínea c).

De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt “a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução”.

Face ao que, conclui o mesmo tribunal, “o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada”.

Acrescenta-se ainda nesse aresto, que “a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura da instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito”.

Ou, como se salienta no Acórdão do STJ de 07/05/2008, Proc. nº 07P4551, consultável em www.dgsi.pt, “sendo o requerimento para abertura da instrução a causa de pedir da actividade instrutória, o mesmo só fará sentido se contiver a descrição de substrato fáctico e a indicação dos elementos probatórios, com base nos quais será proferido o despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, podendo ainda no mesmo se ler que “substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real”.

Temos assim que, a importância da delimitação de um modo suficientemente rigoroso do objecto da instrução se prende directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação judicial (cfr. artigo 289º, nº 1, do CPP, na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa - artigo 32º, nºs 1 e 5, da Lei Fundamental.

Assente está, destarte, que findando o inquérito com uma decisão de arquivamento, o RAI apresentado pelo assistente consubstancia-se numa autêntica acusação, tendo de cumprir os requisitos estabelecidos para a mesma no nº 3, alíneas b) e c), do artigo 283º, do CPP, ou seja, impõe-se que contenha os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo (ou tipos) criminal que o assistente considere terem sido preenchidos.

Retornando ao caso concreto, considerou-se na decisão revidenda:

Como facilmente se constata no caso vertente não foram observados os requisitos legais: Não são individualizadas as condutas de cada um dos indivíduos sobre os quais de lança a suspeita de conduta penalmente censurável, nem alegados os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de crime que se considera indiciados.

Percorrendo o RAI apresentado pelo assistente, facilmente se chega à conclusão que não reveste as características de uma acusação, não observando as exigências de conteúdo impostas pelo aludido artigo 287º, nº 2 do CPP, porquanto nele não se procede à narração completa, sequencial, lógica e cronológica, dos factos concretos, objectivos, essenciais para a integração nos tipos de crime imputados.

Ora, impunha-se que descrevesse a materialidade das condutas integradoras daqueles ilícitos que considera terem sido por cada um dos arguidos praticados e/ou, em caso de entender terem agido em co-autoria, a narração dos factos que a consubstanciam. Quer dizer, os factos objectivos que preenchem os tipos legais de crime em causa e a modalidade da comparticipação criminosa.

Melhor explicitando, teria de narrar de forma precisa e clara essa factualidade, visto que não compete ao Juiz de Instrução perscrutar o RAI do assistente com o escopo de o mondar do que são meras considerações, especulações e opiniões, para recolher a matéria factual e fazer a enumeração e descrição sequencial dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelos arguidos, pois ao assim proceder estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação, desde logo, dos princípios constitucionais vigentes.

Mas, para além de descrever a materialidade das condutas integradoras daqueles ilícitos que considera terem sido pelos denunciados praticados (factos objectivos que preenchem cada tipo legal de crime, reafirma-se) tinha o assistente de narrar os factos integradores do respectivo dolo do tipo de ilícito, composto pelo conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do facto, como resulta do artigo 14º, do Código Penal.

Assim, para que o dolo do tipo esteja presente necessário se torna, desde logo, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo objectivo de ilícito (isto é, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do mesmo).

Com efeito, é necessário que ao actuar, o agente conheça “tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter de ilícito”, porquanto só quando os elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito – assim, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 351 - exigindo-se ainda que a prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização.

Daí que, como se refere no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/09/2017, Proc. nº 146/16.3 PCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual)”.

E, descritos também teriam de estar os factos integradores do dolo específico do crime de falsificação de documento, ou seja a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de prepara, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

Bem como, em relação a todos os crimes, impunha-se que descrevesse a consciência da ilicitude, momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito, mas do de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso) – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 350.

Pois, se na verdade a comprovação do dolo do tipo e do de culpa se podem inferir dos demais factos provados, com recurso a presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum, tal não implica que seja admissível prescindir da narração dos factos que os consubstanciam.
Como salienta Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo, 2000, pág. 367, “pode ser maior ou menor a exigência formal de prova da consciência da ilicitude, mas sempre será de exigir a prova dessa consciência, pelo que a consciência da ilicitude é necessariamente objecto de prova, no processo”.

E, no Ac. do STJ nº 1/2015, de 20/11/2014, DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, fixou-se a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.

Nele se podendo ler que “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.”

Acrescentando-se ainda: “conexionada com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP)” (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.”

E, com efeito, essa descrição factual, nos termos mencionados que exigíveis são para que o RAI se estruture como uma autêntica acusação, não consta da peça apresentada pelo assistente.

Acresce que, refere o assistente que se mostra preenchido o crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, do Código Penal, mas não concretiza qual exactamente a norma penal que entende ter sido violada, pois o artigo 256º integra, para além do nº 1 - que também tem seis alíneas, não se especificando qual a aplicável - o nº 3 e o nº 4, sendo certo que em qualquer destes se prevê uma actuação dolosa, pelo que se fica a desconhecer se entende ser de aplicar o nº 1 ou o nº 3 ou até mesmo também o nº 4 (e as penas respectivas abstractamente previstas são diferentes, anote-se) contra a exigência constante da alínea c), do nº 3, do artigo 283º, do CPP.

O mesmo se verificando quanto ao crime de tráfico de influência, p. e p. no artigo 335º, do Código Penal (que desacertadamente o assistente refere ser o artigo 374º) que contém o nº 1, com duas alíneas e o nº 2, consagrando-se normas com previsão e punição diferentes e o de corrupção activa (também erradamente referido como previsto no artigo 373º, quando o está no artigo 374º), integrado igualmente por dois números com previsão e penas dissemelhantes.

No que concerne ao crime de administração danosa, diz-se no RAI estar p. e p. no artigo 255º, do Código Penal, quando vero é que está ele efectivamente previsto (bem como a punição) no artigo 235º, desse Código.

Como se refere no Acórdão nº 358/2004 do Tribunal Constitucional, que pode ser lido no sítio respectivo, “a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.“
Termos em que, não podia efectivamente o Sr. Juiz de Instrução Criminal aceitar o RAI do assistente nos termos em que formulado se mostra.

Mas, considerou-se na decisão recorrida que se configurava situação de inadmissibilidade legal da instrução e, em consequência, impunha-se a sua rejeição.

A posição assumida pela 1ª instância é a veiculada de forma maioritária nas decisões dos nossos Tribunais Superiores e, designadamente, no Ac. do STJ de 07/05/2008, Proc. nº 07P4551, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que “no caso presente, não tendo o Ministério Público deduzido acusação e não indicando o assistente, no requerimento para abertura da instrução, os factos que imputa aos denunciados, verifica-se que a instrução carece de objecto, o qual deveria ter sido definido pelo aludido requerimento, que não cumpriu essa função imposta pelos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, assim não sendo exequível.

Consta do acórdão do STJ de 22-03-2006, proferido no processo n.º 357/05 - 3.ª, o seguinte: «Numa visão sistemática que apela a uma solução emergente de uma interpretação de conjunto dos preceitos, mas inteiramente compatível com eles, na controvérsia que se suscita em torno do sentido e alcance do conceito aberto “inadmissibilidade legal”, vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução, a falta de factos não pode deixar de ser conducente a um caso legal, porque prevista na lei a consequência daquela falta, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 286.º, 287.º, n.º 2, 283.º, n.ºs 2 e 3, al. b), 308.º, n.º 2, e 311.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, al. b), do CPP, de inadmissibilidade dessa natureza de um requerimento que substancie os factos imputados ao arguido pelo assistente».

Neste aresto, entendeu o nosso Mais Alto tribunal que é de rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a credibilidade delas, e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pela arguida, e do elemento subjectivo que lhe presidiu, para cometimento do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1, do Código Penal”.

Rematando-se que “no caso em apreciação, verificando que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente não contém a narração dos factos imputados a cada um dos denunciados, com a indicação do correspondente enquadramento jurídico, mostra-se correcta a decisão recorrida, ao rejeitar a instrução” – posição também assumida, entre muitos outros, pelos Ac. R. de Coimbra de 23/01/2008, Proc. nº 2557/06.3TALRA.C1; Ac. R. do Porto de 23/09/2009, Proc. nº 1585/07.0TASTS.P1; Ac. R. de Évora de 13/04/2010; Proc. nº 671/08.0PBVFX.E1 e Ac. R. de Lisboa de 27/05/2010, Proc. nº 1948/07.7PBAMD-A.L1-9, todos consultáveis no sítio já referenciado.

Perfilhamos também este entendimento e, posto que do RAI apresentado não consta a narração concretizada, ainda que sumária, da factualidade consubstanciadora dos elementos objectivos e subjectivos dos vários tipos legais de crime imputados, tal configura uma situação de inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, nº 3, do CPP - sendo esse requerimento nulo, por falta de requisitos legais mínimos, nos termos dos artigos 283º, nº 3 e 287º, nº 2, do mesmo diploma legal, o que conduz à sua rejeição.

Mas, poder-se-ia equacionar a questão da possibilidade de um convite ao assistente pelo Juiz de Instrução para o aperfeiçoamento do RAI.

Na verdade, esta solução não se apresenta como admissível, já que o Ac. do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR nº 212, I Série A, de 04/11/2005, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, a qual se adequa plenamente no caso sub judice.

Termos em que, face à improcedência dos fundamentos invocados pelo recorrente, há que concluir que a decisão revidenda não merece censura, tendo de ser negado provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso pelo assistente A. interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 12 de Março de 2019

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).

Artur Vargues
Jorge Gonçalves