Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5903/15.5T8LSB.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: DECISÃO SURPRESA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Não se verifica a existência de uma decisão surpresa quando na audiência prévia foi dada a palavra ao mandatário da autora para responder às excepções invocados pelo réu na contestação, nos termos do artigo 3º nº 4 do NCPC, tendo ainda sido facultado às partes a discussão de facto e de direito nos termos do artigo 591º nº 1 alíneas b) e c) daquele código.
-Sendo omitido na petição inicial qualquer acto ou facto jurídico que possa responsabilizar o réu, falta a causa de pedir, que é geradora de ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 2, alínea a) do NCPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


A autora M... intentou acção com processo comum contra R..., Ldª, J..., R... e M..., pedindo que os réus sejam condenados a pagar à autora uma indemnização nunca inferior a 2.000.000 de euros e ainda uma indemnização cujo cômputo se relega para liquidação posterior à prolação da sentença.

Em síntese, alegou que, pelo preço de 2.000.000 de euros, vendeu à sociedade B... SA o prédio urbano correspondente a um edifício de duas lojas, 3 andares e águas furtadas, destinado a comércio e habitação, sito na Rua Praia do Bom Sucesso, nº 92 a 106, em Lisboa, tendo o prédio adquirido sido destinado a revenda, ou para a edificação de um empreendimento imobiliário com a constituição de propriedade horizontal.

O negócio foi inviabilizado por uma actuação concertada entre os réus e que colocou em causa, de forma definitiva, o projecto imobiliário perspectivado para o local. A 1ª ré sempre boicotou o projecto imobiliário recusando-se a abandonar a parte do prédio que anteriormente ocupava como arrendatária comercial, sem uma choruda indemnização, mesmo perante ordens de desocupação. Além disso, a 1ª ré intentou contra a autora várias acções judiciais, tendo registo na descrição predial de uma acção de indemnização (Cfr artºs 32º e 33º da PI) levado à resolução judicial do negócio entre a autora e a B..., o que fez com que, mercê de tal resolução, o prédio reingressasse na esfera jurídica da autora.

O 2º réu é titular dos prédios urbanos, que confrontam com o da autora, sitos no Largo da Princesa nºs 15 e 16, em Lisboa. No meio do contencioso judicial existente entre a autora e a ré, o 2º réu procedeu à alteração da composição do seu prédio, incluindo na descrição predial e no artigo matricial um novo número de polícia -17-, que passou a integrar artificialmente, quer a descrição predial, quer a matriz, com a consequente alteração das respectivas áreas do seu prédio.

Tais alterações permitiram à 1ª ré opor-se à desocupação da parte do prédio da autora, acima identificado. A alteração operada pelo 2º réu permitiu à 1ª ré arrogar-se a falsa qualidade de locatária do nº 17 e, assim, passar a ser titular do respectivo direito de preferência na prometida venda e ainda possuidora de todo o prédio em causa, o que lhe serviu para, com a colaboração do 2º réu, requerer judicialmente a correspondente restituição de posse. O 2º réu chegou a emitir recibos de renda em nome da 1ª ré, sem que alguma vez tenha recebido qualquer renda. Foi por causa da actuação do 2º réu que a 1ª ré, arrogando-se uma qualidade que não tinha, alimentou o supra mencionado contencioso contra a autora, que acabou de pôr em causa, definitivamente, o negócio que a autora tinha celebrado com a sociedade B... SA.

A 1ª ré não exerce qualquer actividade no desenvolvimento do seu objecto social, não tem sede social ou instalações físicas e os 3º e 4ºs réus servem-se da 1ª ré em seu benefício próprio e exclusivo, usando-a instrumentalmente numa estratégia de fraude à lei e com intenção de prejudicar a autora, não se podendo dizer onde acaba a 1ª ré e onde começam os 3ºs e 4º réus, sócios desta.

Assim, mostram-se preenchidos os requisitos para que se possa responsabilizar e condenar os 3º e 4º réus, ao abrigo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pois toda a actuação da 1ª ré teve lugar num quadro de claro benefício próprio e exclusivo dos seus sócios, os 3º e 4º réus.

Com a sua conduta, os réus têm feito com que a autora se veja impossibilitada de rentabilizar o seu prédio e tenha sido confrontada com a resolução judicial do negócio que celebrou sobre o mesmo, cujo preço foi de 2.600.000 euros.

A actuação concertada dos réus impediu a autora de realizar obras determinadas pela Câmara Municipal de Lisboa, encontrando-se o prédio numa situação que ameaça derrocada e ruína, por causa da actuação concertada dos réus.

Contestou o 2º réu, J..., alegando, para além do mais, a ineptidão da petição inicial pois, em relação ao 2º réu, a autora não indica um único facto de onde possa resultar a sua demanda, pretendendo responsabilizá-lo por um negócio que se terá frustrado, celebrado entre a autora e a sociedade B... SA e acções instauradas pela 1ª ré, inquilina do prédio, contra a referida B..., sendo os 3º 4º réus demandados por pretensamente utilizarem a sociedade em seu benefício.

Em relação ao 2º réu, a autora limita-se a afirmar que ele teria efectuado uma correcção ao registo predial que “permitiu” à 1ª ré “ alimentar o contencioso em causa” (artº 97º da PI), não sendo invocada uma única disposição legal que permita compreender a razão pela qual o 2º réu é demandado. Seria difícil invocá-la, uma vez que não se compreende minimamente em que é que uma correcção ao registo predial de um prédio arrendado permite a um inquilino interpor acções de preferência contra o comprador de outro prédio e muito menos o que é que tem o réu a ver com o facto de o comprador de outro prédio ter pretensamente resolvido o contrato de compra e venda celebrado.

No caso presente não existe apenas uma situação de obscuridade, sendo mesmo totalmente omitido qualquer acto ou facto jurídico que pudesse responsabilizar o 2º réu, faltando, por isso, totalmente a causa de pedir.

Termina, pedindo a procedência da mencionada excepção, assim como da alegada ilegitimidade do 2º réu ou, julgar-se improcedente por não provada a acção e a condenação da autora como litigante de má fé.

A 1ª ré R... Ldª contestou, alegando, em síntese, que quem prejudicou os réus foi a autora, quando os despejou sem lhes pagar qualquer tipo de indemnização, provocando a inactividade da 1ª ré e dos 3º e 4º réus, pois era através da sociedade que subsistiam.

Os 3º e 4º réus apenas estavam convencidos terem direito a ser indemnizados pelo abrupto fim do contrato de arrendamento onde desenvolviam a sua actividade comercial, no caso, de restaurante e cervejaria.

Na audiência prévia consta que “ a Mma Juíza deu a palavra ao ilustre mandatário da A. para responder às excepções invocadas pelo R. J... na sua contestação, nos termos do artº 3º nº 4 do C.P.C, e, após, facultou às partes a discussão de facto e de direito nos termos do artigo 591º nº 1 alªs b) e c) do C.P.C.”.

Seguidamente, foi proferida DECISÃO que julgou a petição inepta e absolveu os réus da instância.

Não se conformando com tal decisão, dela recorreu a autora, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª-A recorrente assenta a sua discordância quanto à douta sentença recorrida nos seguintes pontos:
-decisão surpresa;
-obrigatoriedade prévia de convite ao aperfeiçoamento com fixação de prazo para o seu cumprimento e sujeição expressa a cominatório;
-falta de sustentação efectiva assente em todo o acervo processual (articulados e documentos);
-existência de factos mais do que suficientes para o prosseguimento dos autos.
2ª-A douta sentença dos autos constituiu uma surpresa para a recorrente (e seguramente também para os recorridos). Para mais se se tiver em conta o percurso que o Tribunal a quo adoptou para chegar ao resultado final.
3ª-Nem recorrente, nem recorridos, poderiam supor que os presentes autos viriam a ser decididos visando uma pretensão que não foi objecto de qualquer despacho prévio do tribunal e muito menos com cominação expressa.
4ª-É, pois, uma decisão surpresa, absoluta e imperativamente proibida por lei, como resulta também da inúmera e vasta jurisprudência supra-citada.
5ª-Em ponto algum dos autos, foi proferido despacho de aperfeiçoamento do alegado na petição inicial, como, de resto, o próprio tribunal admite no despacho recorrido, pelo que à recorrente foi vedada a oportunidade de se pronunciar sobre tal eventualidade.
6ª-Está violado, de forma irreversivelmente gravosa e até inconstitucional, o princípio do contraditório, com a inerente nulidade da douta sentença dos autos.
7ª-Compulsada a acta da audiência prévia dos autos, apenas consta, no que aqui importa, o seguinte despacho:
«Seguidamente, a Mma Juiz deu a palavra ao ilustre mandatário da A. para responder às excepções invocadas pelo R. J... na sua contestação, nos termos do artº 3º nº 4 do C.P.C., e após, facultou às partes a discussão de facto e de direito nos termos do artº 591º nº 1 als b) e c) do C.P.C.».
8ª-Nada mais fez o tribunal, ao contrário do que lhe competia face ao entendimento que, posteriormente e ao arrepio do anterior processado, acabou por verter no despacho recorrido.
9ª-A prolacção de um despacho que contenha um convite ao aperfeiçoamento passou a constituir um dever do tribunal, como resulta da leitura dos nºs 3 e 4 do artº 590º CPC, ou seja o juiz não pode deixar de convidar ao aperfeiçoamento e fixar prazo para esse efeito, o que não sucedeu nos autos.
10ª-A ineptidão não ocorre, nem pode ser decretada, quando os réus podem exercer o seu direito de defesa, apresentam contestação e nesse articulado demonstram ter entendido perfeitamente a questão controvertida e a pretensão da contraparte tal como ela foi configurada na petição inicial.

11ª-A este propósito, impõe-se referir que:
-os RR. R..., R... Lda, R... e M... apresentaram contestação por mera impugnação, nem sequer suscitando qualquer excepção ou ineptidão.
-o R. J... apresentou contestação como 21 páginas e 125 artigos,
O que desmente frontal e totalmente a ineptidão afirmada no despacho recorrido e comprova que todos os demandados entenderam perfeitamente a causa de pedir e os pedidos da recorrente.

12ª-A este respeito, importa referir, a título meramente exemplificativo (e sem subscrever a tese dos recorridos) que, na acção judicial que o R. Cavaleiro Ferreira identifica em nº 2 da sua contestação como sendo uma repetição da presente (acção), o tribunal não encontrou qualquer dificuldade em seleccionar o objecto do litígio e os temas da prova (vd.doc. nº 1), tendo analisado e estudado devidamente os articulados e os documentos que as partes juntaram àqueles autos, o que diz bem da falta de base real e efectiva da decisão recorrida.
13ª-O tribunal recorrido ultrapassou os limites da questão controvertida e, por sua própria iniciativa, definiu os limites da demanda totalmente fora dos limites traçados pelas próprias partes, violando-se assim o princípio do dispositivo e fazendo-se um uso excessivo e ilícito do princípio do inquisitório.

14ª-Não pode ainda a recorrente deixar de referir a forma, no mínimo, aligeirada como o tribunal analisou e decidiu os presentes autos e que acabou por afectar a decisão recorrida, que não encontra qualquer reflexo nos autos, como decorre das inusitadas e surpreendentes afirmações da juiz a quo supra-citadas e transcritas, o que permite concluir que:
-o tribunal não conhecia o teor dos documentos juntos aos autos com a petição inicial, nem sabia ao que os mesmos se referiam;
-o tribunal, sem qualquer diligência de prova efectuada, considerava antecipadamente que não podia ter sido feita a alteração do número de polícia na Conservatória do Registo Predial (que é o acto essencial a partir do qual a recorrente considera poder responsabilizar o recorrido J...),
-o tribunal desvalorizou e desprezou o teor dos acórdãos e sentenças juntos aos autos, não obstante o alegado em nºs 30, 31, 32, 33 e sgs da petição inicial que tornam essenciais tais documentos, o que diz bem da falta de fundamentação efectiva e consistente do despacho recorrido e da desconformidade da posição (prévia a qualquer diligência de prova) do tribunal recorrido em relação aos elementos e factos constantes do processo.

15ª-Como decorre das pormenorizadas e concretas contestações dos RR. (especialmente do R. C...), a petição inicial contém factos mais do que suficientes para que os autos prossigam até final, sendo a presente acção julgada de acordo com a prova que vier a ser produzida.
16ª-O tribunal recorrido confundiu alegação e prova, o que lhe é vedado fazer, devendo os autos ser decididos de acordo com a prova que vier a ter lugar.
17ª-A douta sentença recorrida viola, nomeadamente, o disposto nos arts 3º, 4º, 5º, 608º, 609º e 615º CPC.
Termina, pedindo que a sentença seja substituída por acórdão que determine o prosseguimento dos autos até final.
O réu J... contra-alegou, concluindo que o recurso não merece provimento, que a petição inicial é totalmente inepta conforme foi decidido na sentença recorrida, que é impossível entender que alguns dos réus interpretou convenientemente a petição inicial e ainda que as alegações são totalmente ininteligíveis.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-FUNDAMENTAÇÃO.

A)Fundamentação de facto
A matéria de facto a considerar é a resultante do relatório que antecede.
B)Fundamentação de direito
As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, consistem em saber se a decisão recorrida é uma decisão surpresa e se a petição inicial é inepta.

Cumpre decidir.
A DECISÃO RECORRIDA É UMA DECISÃO SURPRESA?
Alega a apelante que a decisão recorrida é uma decisão surpresa, pois não foi objecto de qualquer despacho prévio.

Cumpre decidir.
Na sua contestação o 2º réu J... excepcionou a ineptidão da petição inicial com os fundamentos acima expostos.

Notificada da contestação, a fls 425 e 426 a autora veio “exercer o contraditório” (sic), em relação ao pedido da sua condenação como litigante de má fé e impugnar os documentos apresentados.
O artigo 3º do Código de Processo Civil, prescreve, quanto à necessidade do pedido e da contradição:

1.“O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2.Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3.O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Como assinala Lebre de Freitas[1] “no plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes (...) Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem seja qual for a fase do processo em que tal ocorra ”.
No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.
Tratando-se de um fundamento de direito na disponibilidade exclusiva das partes, a possibilidade de discussão resulta naturalmente da sua invocação (necessária) pelo interessado e do direito de resposta da parte contrária. Mas a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a sua decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (artº 3º nº 3)[2].
O artigo 3º do Código de Processo Civil não retira ao tribunal a plena liberdade de dizer o direito com independência; o que trata é apenas de evitar, proibindo-as, as decisões-surpresa.
E o mesmo se passa com o actual Código de Processo Civil. Segundo Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[3]: “ O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objecto da causa (…). O juiz pode decidir uma questão com base numa norma não invocada pelas partes (artº 5º nº 3), mas não sem que antes estas tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre esse enquadramento jurídico (nº 3). Esta possibilidade só pode surgir depois de a potencial relevância da norma para a decisão resultar clara na acção. Para tanto, se necessário, o tribunal deverá proporcionar um contraditório específico sobre a questão. Isto vale para a decisão liminar, como vale para o despacho saneador, como vale para a sentença final. Para que o tribunal deva proceder à audição complementar das partes não basta, pois, que pretenda aplicar uma norma por estas não invocada. É necessário que o enquadramento legal realizado seja manifestamente diferente do sustentado pelos litigantes. Deverá ser uma subsunção notada pela sua originalidade, pelo seu carácter invulgar e singular, objectivamente considerado”.

Defendendo uma mais ampla proibição da decisão surpresa, no plano das questões de direito, ver Lebre de Freitas[4].

No caso dos autos, é óbvio que não foi proferida qualquer decisão surpresa sobre a excepção de ineptidão da petição inicial alegada pelo 2º réu e discutido em audiência prévia.

Efectivamente, na audiência prévia foi dada a palavra ao ilustre mandatário da A. para responder às excepções invocadas pelo R. J... na sua contestação, nos termos do artº 3º nº 4 do C.P.C, e, após, foi facultado às partes a discussão de facto e de direito nos termos do artigo 591º nº 1 alªs b) e c) do C.P.C.

Improcedem, pois, nesta parte, as conclusões das alegações da autora.

A INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL.

A decisão recorrida julgou inepta a petição inicial e absolveu os réus da instância.
Reagiu a autora, ora apelante, dizendo que a petição inicial não é inepta, pois os réus apresentaram contestação e nesse articulado demonstram ter entendido perfeitamente a questão controvertida e a pretensão da contraparte tal como ela foi configurada na petição inicial.

Cumpre decidir.
Como já se referiu, no despacho saneador foi julgada inepta a petição inicial, determinando a absolvição da instância dos réus, nos termos do artigo 278º nº 1 alª b) do C.P.C.
O fundamento substancial da julgada ineptidão da petição inicial consiste no facto de não terem sido alegados factos concretos que alicercem as conclusões da autora quanto a ter a 1ª ré encontrado no 2º réu, J..., “ o parceiro ideal para criar um cenário falso e fictício que lhe permitiu apresentar-se em Juízo com uma aparência de razão”.

Segundo o disposto no artigo 186º nº 2 do NCPC, diz-se inepta a petição:
a)Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b)Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm distinguido claramente a situação da petição inepta da daquela simplesmente irregular ou deficiente, no sentido de que só a falta ou a ininteligibilidade absolutas do pedido ou da causa de pedir acarretam a ineptidão.
Assim, já Alberto dos Reis defendia que “…Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga...”[5].

Por seu lado, também a jurisprudência se tem pronunciado em igual sentido, podendo citar-se, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18.02.1980, no qual se defendeu que “…Não é inepta, mas simplesmente irregular ou deficiente a petição em que o autor exprime correctamente o pedido e a causa de pedir mas omite factos positivos e concretos necessários para o reconhecimento do seu direito…”[6] e no Acórdão da Relação de Évora de 13.06.1991, no qual se pode ler “…O que acarreta a ineptidão da petição inicial é a falta de causa de pedir e não a insuficiência dos factos alegados para a integrar…”[7].

No Acórdão da Relação de Coimbra de 14.02.1995, em que se sufragou o entendimento de que “…As deficiências substanciais traduzidas na incompleta ou insuficiente articulação dos factos podem não obstar a que se conheça a causa de pedir (e, por isso, não dar lugar a ineptidão da petição inicial) mas terão antes como consequência a improcedência da acção…”[8].

Também é igual o entendimento contido no Acórdão do STJ de 19.11.2002, onde se pode ler “…A mera deficiência da causa de pedir, traduzida na omissão de facto necessário ao reconhecimento do direito do autor, não acarreta a ineptidão da petição inicial, conduzindo antes ao soçobro da acção…”[9] e o mesmo se diga do Acórdão do STJ de 15.01.2003, no qual se afirma que “…A ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir consiste na sua indicação em termos verdadeiramente obscenos ou ambíguos, por forma a não se saber, concreta e precisamente, o que pede o autor e com base em que é que o pede. É pelo conteúdo da petição inicial que se afere da sua ineptidão quanto ao pedido e causa de pedir (falta ou ininteligibilidade) e não pelo entendimento que o réu faz da sua viabilidade, nomeadamente do entendimento da validade jurídica que […] atribui ao pedido do autor e aos factos em que este o funda, por constituir defesa por impugnação e levar, se aceite, à improcedência do pedido…”[10], ou, ainda, o Acórdão da Relação de Évora de 29.04.2004, no qual se sublinhou que situações mais graves em que o vício da petição inicial corresponde a uma verdadeira ineptidão, é motivada por “…ausência de causa de pedir, pela sua ininteligibilidade, pela contradição ente causas de pedir ou entre a causa de pedir e o pedido…”[11].  

Estes ensinamentos ao abrigo do antigo Código de Processo Civil mantêm plena actualidade, pois o artigo 186º mantém o regime anteriormente previsto no CPC-95/96[12].

Ora, procedendo à análise da factualidade exposta pela autora na petição inicial, onde a mesma repete, em excesso de articulados, argumentos meramente conclusivos, verifica-se que a mesma não delineou perfeitamente o pedido e a causa de pedir, de tal modo que o 2º réu, ao arguir a ineptidão, não interpretou convenientemente a petição inicial – NCPC artigo 186º nº 3, a contrario -, nem mesmo, após a audição da autora na audiência prévia, se verificou a conveniente interpretação por parte da Mmª Juíza.

A contestação do 2º réu, J..., em matéria de impugnação debruça-se, essencialmente, no desconhecimento por que é que a autora resolveu que os réus têm um conluio que a prejudicou.

Como bem afirmou o réu J..., em relação a ele, “a autora limita-se a afirmar que ele teria efectuado uma correcção ao registo predial que “permitiu” à 1ª ré “ alimentar o contencioso em causa” (artº 97º da PI), não sendo invocada uma única disposição legal que permita compreender a razão pela qual o 2º réu é demandado. Seria difícil invocá-la, uma vez que não se compreende minimamente em que é que uma correcção ao registo predial de um prédio arrendado permite a um inquilino interpor acções de preferência contra o comprador de outro prédio e muito menos o que é que tem o réu a ver com o facto de o comprador de outro prédio ter pretensamente resolvido o contrato de compra e venda celebrado. No caso presente não existe apenas uma situação de obscuridade, sendo mesmo totalmente omitido qualquer acto ou facto jurídico que pudesse responsabilizar o 2º réu, faltando, por isso, totalmente a causa de pedir”.

Também a decisão recorrida alinha pelo mesmo pensamento, quando refere que “não foi só o R. J... que teve dificuldades em compreender a exposição da matéria de facto constante da petição inicial. O tribunal também teve. Será excessivo qualificar a petição inicial de inepta? Será a petição inicial apenas deficiente? Neste segundo caso, justificar-se-ia o convite ao aperfeiçoamento. Face a estas dúvidas, na audiência prévia, durante a discussão de facto e de direito, o tribunal deu a possibilidade à A. de esclarecer como é que a inclusão de um novo número de polícia na descrição do prédio do R. J... permitiu à R. sociedade propor acções contra a A. relacionadas com o prédio que esta havia vendido a B.... Contudo, a discussão de facto e de direito não foi esclarecedora. Apesar de não se dever confundir alegação com meio de prova, ónus de alegar com ónus de provar, o tribunal analisou as cópias das decisões judiciais juntas ao processo para tentar compreender a exposição da matéria de facto constante da petição inicial e não viu nelas qualquer referência ao número de polícia 17. Apenas no despacho de arquivamento de fls. 45 a 49 há referência a uma arrecadação que não integrava o espaço arrendado, admitindo-se que tal arrecadação tenha a ver com o prédio do R. J...”.

Mas tudo isto que acabámos de expor não será contrário ao actual espírito e filosofia do novo Código de Processo Civil?

Na verdade, importa mencionar que o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária.

De facto, a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no CPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo[13]

A resposta à pergunta anterior afigura-se-nos evidente. Na verdade, perante o circunstancialismo acima referido e que envolve a falta de causa de pedir da petição inicial, que é de tal forma inepta, nem sequer se coloca a questão do aperfeiçoamento a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 591º do NCPC, tal como pretende a autora, ora apelante.

Terminando, como na decisão recorrida, “a autora não alegou factos concretos que alicercem as suas conclusões quanto a ter a ré sociedade encontrado no ré J... “o parceiro ideal para criar um cenário falso e fictício que lhe permitiu apresentar-se em Juízo com uma aparência de razão”. Tal falta de alegação não constitui uma insuficiência na exposição da matéria de facto que possibilite ao tribunal convidar a autora a aperfeiçoar a petição. O que se verifica é que, na realidade, não há factos que possam alicerçar as conclusões da autora”.

E também, como bem refere o 2º réu J..., - repete-se – “não se compreende minimamente em que é que uma correcção ao registo predial de um prédio arrendado permite a um inquilino interpor acções de preferência contra o comprador de outro prédio e muito menos o que é que tem o réu a ver com o facto de o comprador de outro prédio ter pretensamente resolvido o contrato de compra e venda celebrado”.

Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerações, improcedem as conclusões das alegações de recurso.

EM CONCLUSÃO.
-Não se verifica a existência de uma decisão surpresa quando na audiência prévia foi dada a palavra ao mandatário da autora para responder às excepções invocados pelo réu na contestação, nos termos do artigo 3º nº 4 do NCPC, tendo ainda sido facultado às partes a discussão de facto e de direito nos termos do artigo 591º nº 1 alíneas b) e c) daquele código.
-Sendo omitido na petição inicial qualquer acto ou facto jurídico que possa responsabilizar o réu, falta a causa de pedir, que é geradora de ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 2, alínea a) do NCPC.

III-DECISÃO.
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa,15/12/2016

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais 
Octávia Viegas

[1]Código de Processo Civil Anotado, Volume I, pág. 9.
[2]Lebre de Freitas, ob cit. pág. 96-105.
[3]Ob cit, pág. 31 a 33.
[4]Introdução ao Processo Civl – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, Coimbra Editora, 2013, pág. 133 e segs.
[5]Comentário ao CPC, 2.º - 372.
[6]BMJ, 300.º - 439.
[7]BMJ, 408.º - 665.
[8]BMJ, 444.º - 718.
[9]Rel. Cons. Garcia Marques, disponível em www.dgsi.pt .
[10]AD, 502.º - 1537.
[11]Rel. Des. Bernardo Domingos, disponível em www.dgsi.pt.
[12]Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma”, 2014-2ª Edição, Volume I, pág 201.
[13]Nosso acórdão de 16-04-2015,  processo nº 4933-13.6TCLRS.L1-8, in www.dgsi.pt/jtrl
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