Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA BRANCO | ||
Descritores: | SIGILO PROFISSIONAL ADVOGADO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/23/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I – «Tanto o dever de sigilo que a lei substantiva prescreve como o direito ao sigilo que o direito processual reconhece, visam salvaguardar simultaneamente bens jurídicos de duas ordens distintas. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões.» II - Presentemente, é clara a prevalência da tutela da privacidade, bem jurídico pessoal, face ao bem jurídico supra-individual institucional, perante a previsão do art. 195.º do CP, sem prejuízo de os valores supra-individuais, que se «identificam com o prestígio e confiança em determinadas profissões e serviços, como condição do seu eficaz desempenho», aparecerem sempre incindivelmente associados à punição da violação do sigilo profissional, embora «com o estatuto de interesses (apenas) reflexa e mediatamente protegidos». III - Estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional, podendo advir da violação desse dever de reserva, para além de responsabilidade criminal e civil, também consequências no plano estatutário e no plano processual. IV – A eventual prática de ilícitos criminais por parte do próprio mandatário nunca poderá considerar-se compreendida no exercício das funções profissionais de um advogado, sendo violadora, para além do mais, do dever deontológico de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas. V - Não pode fazer-se apelo ao sigilo profissional para encobrir a eventual prática de actos ilícitos, de natureza criminal, por parte do mandatário, pois que, não constituindo acto próprio da advocacia, se mostra excluída da esfera de protecção da norma em causa (o art. 87.º da Lei n.º 15/2005, de 26-01, com as alterações do DL n.º 226/2008, de 20-11, e da Lei n.º 12/2010, de 25-06, e actualmente o art. 92.º da Lei n.º 145/2015, 09-09). (sumário elaborado pela relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa I. Relatório 1. Nos autos de Inquérito (Actos Jurisdicionais) que, com o n.º 1130/14.7TDLSB, correm termos na Comarca de Lisboa, Lisboa – Instância Central – 1.ª Secção Instrução Criminal – Juiz 2, em que é arguido J..., identificado nos autos, e outros, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar em 17-04-2016, o ora recorrente veio arguir a nulidade da denúncia efectuada e de toda a prova carreada para os autos através do depoimento da denunciante, porque proveniente de consulta jurídica e por isso violadora das regras de sigilo profissional. 2. Na sequência da referida diligência foi proferido despacho que aplicou medidas de coacção e relegou a apreciação das nulidades invocadas para momento posterior, após cumprimento do contraditório, vindo em 04-05-2016 (a fls. 246-256, fls. 4719-4729 dos autos principais) a ser proferido despacho que, para além do mais, indeferiu essa arguição de nulidade. 3. Inconformado com essa decisão, veio o arguido dela interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): «1.ª No processo penal vigora o princípio da legalidade dos meios de prova. O artigo 125.º do CPP com a epígrafe “Legalidade da prova” estabelece que “São admissíveis os meios de prova que não forem proibidos por lei”. 2.ª Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, na anotação XV ao artigo 32.º, pág. 524, “Os interesses do processo criminal encontram limites na dignidade humana (art. 1.º) e nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático (art. 2.º), não podendo, portanto, valer-se de actos que ofendam direitos fundamentais básicos. Daí a nulidade das provas obtidas sob tortura ou coacção (nulidade e não mera irregularidade. Cfr. AcTC n.º 528/03) obtidas com ofensa da integridade pessoal, da reserva da intimidade da vida privada, da inviolabilidade do domicílio e da correspondência ou das telecomunicações (n.º 8; cfr. arts. 25.º-1 e 34.º), não podendo tais elementos ser valorizados no processo”. 3.ª Invocando Gössel, Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, 1992, Coimbra Editora, 1.ª Edição (Reimpressão), Outubro de 2013, pág. 83, afirma que as proibições de prova são «barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo», adiantando que “o que define a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade. Normalmente formulada como proibição, a proibição de prova pode igualmente ser ditada através de uma imposição e, mesmo, de uma permissão”. 4.ª Como salienta o Costa Andrade, na pág. 75, “não parece que deva encarar-se o arguido como titular ou portador exclusivo dos direitos, interesses ou bens jurídicos cuja salvaguarda pode ditar, em concreto, balizas à descoberta da verdade. Pelo contrário, só uma arrumação e imputação policêntricas daqueles interesses abrirá a porta a uma adequada compreensão teleológica das proibições de prova. (…) As proibições de prova podem resultar do primado reconhecido a valores ou interesses de índole supra-individual como os subjacentes ao Segredo de funcionários e Segredo de Estado (arts. 136.º e 137.º do CPP)”. 5.ª Nesta linha, Susana Aires de Sousa, Agent procateur e meios enganosos de prova, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2013, págs. 1212/3, afirma: “Enquanto expressão de um Estado de Direito, o ius puniendi há-de aparecer perante o delinquente como um poder dotado de superioridade ética, como expressão das suas mãos limpas, como refere Radbruch. Neste sentido, a protecção dos direitos fundamentais manifestada no regime das proibições de prova, não tutela apenas o seu titular mas a própria credibilidade, reputação e imagem do Estado de Direito. Além dos direitos fundamentais, as proibições de prova podem resultar ainda da guarida concedida a outros valores ou interesses: o segredo de estado, o segredo profissional, até mesmo a descoberta da verdade (v. g. artigos 132.°, n.° 2 e 134.° do CPP)”. 6.ª As proibições de prova dão lugar a provas nulas - artigo 38.°, n.° 2, da CRP. 7.ª A lei portuguesa proíbe as provas fundadas na violação da integridade física e moral do agente e as provas que violem ilicitamente a privacidade. 8.ª À semelhança do que sucede com outras categorias profissionais, o Advogado está obrigado a guardar segredo relativamente a factos que lhe advenham através do exercício da sua actividade profissional, conforme imposição prevista pelo artigo 87.° do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.° 15/2005, de 26 de Janeiro (Diário da República, Série I-A, n.° 18, de 26 de Janeiro de 2005, alterada pelo Decreto-Lei n.° 226/2008, de 20 de Novembro e pela Lei n.° 12/2010, de 25 de Junho). 9.ª Os Advogados desempenham um relevante papel no exercício de uma função de soberania, a administração da justiça, como reconhece o artigo 208.° da Constituição, que estabelece sob a epígrafe “Patrocínio forense”: “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”. 10.ª Segundo Vitalino Canas, O Segredo Profissional dos Advogados, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Volume II, Almedina, 2005, págs. 791 a 803, o segredo profissional dos advogados não tem a mesma natureza e significado que o dever de segredo vigente para outras categorias profissionais ou entidades (banqueiros, jornalistas, funcionários de finanças, etc.). O segredo profissional não visa salvaguardar qualquer interesse, mais ou menos disponível, do próprio advogado, mas interesses de outrem (do cliente e de outros cidadãos, incluindo colegas) e os altos interesses da Justiça e do Estado de Direito. Considera que o direito-dever de segredo profissional dos advogados é um direito particular análogo aos direitos, liberdades e garantias. 11.ª De acordo com este Autor, como direito do advogado, o segredo profissional é uma forma de escudar o advogado de pressões tendentes à revelação de factos, com prejuízo do exercício independente da sua profissão. É outrossim um modo de salvaguardar o ambiente de confiança que deve rodear o exercício profissional da advocacia livre. Como dever, o respeito do advogado pelo segredo profissional tem como beneficiário principal e proeminente o cliente. 12.ª Nesta linha, segundo Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, Almedina, 8.ª edição, pág. 122, afirma: O segredo profissional, sendo radicialmente um dever para com o cliente, já que sem ele sempre seria impossível o estabelecimento da relação de confiança, resulta também de um compromisso da Advocacia com a sociedade. Na verdade, a função social desempenhada pelos Advogados implica, para além da independência e isenção, o reconhecimento do seu papel como confidentes necessários. 13.ª Estabelece o artigo 87.° Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe “Segredo profissional” (sublinhados nossos): 1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento. 5 - Os actos praticados pelo advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo. (...) 14.ª Como ressalta do exposto, o segredo profissional mostra-se inerente, não ao próprio advogado em si, mas à actividade desenvolvida por este profissional da Justiça, o que significa que nem todos os factos transmitidos ou conhecidos pelo advogado estão a coberto do dever de confidencialidade previsto pelo artigo 87 °, n.° 1, do EOA, mas simplesmente aqueles que sejam relativos ao exercício desta actividade profissional. 15.ª O segredo do advogado, à semelhança do sigilo previsto para outras categorias profissionais, visa tutelar, em primeira linha, as relações de confiança que se estabelecem com os clientes e com outros colegas de profissão, que não são postas em crise quando não estão em causa factos relacionadas com o estrito exercício da advocacia. 16.ª Dito por outras palavras: o advogado não está obrigado a guardar confidencialidade sobre tudo aquilo que lhe é transmitido ou sobre tudo aquilo de que toma conhecimento, mesmo no seu local de trabalho (maxime, escritório de advocacia), mas somente sobre o que diga respeito ao estrito exercício da sua actividade profissional, ou seja, o mandatário só deve guardar segredo sobre os factos e/ou sobre os documentos cuja transmissão (maxime, pelos clientes ou pelos outros colegas de profissão) ou cujo conhecimento digam respeito ao seu desempenho profissional, naturalmente se excluindo deste dever, desde logo pela própria natureza das coisas, os factos que já sejam de conhecimento público. 17.ª Já se vê que, mesmo que o advogado venha a infringir este dever de sigilo, revelando factualidade ou dando a conhecer documentos que se considerem estar a coberto do segredo profissional do advogado, o n.° 5 do mencionado artigo 87.° do EOA deixa expressamente consignado que os mesmos não podem fazer prova em juízo, podendo dar origem a uma proibição de prova, por intromissão na vida privada, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 126.° do CPP (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª Edição Actualizada, 2011, nota 21, pág. 199). 18.ª Importa então delimitar, para melhor compreender o dever de confidencialidade, o que são actos próprios do advogado, no que se traduz, em concreto, o exercício pelo advogado das suas funções, o que são factos conhecidos no âmbito do exercício profissional do mandatário. 19.ª Para o efeito, importa novamente lançar mão daquilo que é transmitido a este respeito pelo EOA, muito em particular pelos seus artigos 61.º a 63.º, em conjugação com a Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita. 20.ª Decorre destes normativos que, grosso modo, as funções do advogado respeitam a toda a actividade de representação do mandante, quer em tribunal (mandato forense), quer em negociações extrajudiciais com vista à constituição, à alteração ou à extinção de relações jurídicas, mas, de igual modo, podem traduzir-se na actividade de mera consulta jurídica, ou seja, de aconselhamento jurídico a solicitação de terceiro. 21.ª O mandato forense está delineado no artigo 2.º da Lei n.º 49/2004, conjugado com o artigo 62.º do EOA e a consulta jurídica no artigo 3.º daquela lei e artigo 63.º do EOA. 22.ª Por conseguinte, o advogado deve guardar segredo profissional quanto a todos os factos que se prendem com estas actividades, com o exercício destas funções de representação do mandante (em juízo ou em negociações) ou de aconselhamento jurídico, casos em que imperam as relações de confiança do advogado com o seu constituinte e de todos os advogados entre si, entenda-se dos advogados que venham a ter, de algum modo, ,intervenção no litígio ou na composição de interesses antagónicos, por forma a que seja mantida a confidencialidade de toda a factualidade que lhes foi confiada nesse âmbito. 23.ª Em suma: o segredo profissional respeita a factos que sejam atinentes aos actos próprios da advocacia, a saber: o exercício do mandato forense (o mandato é judicial quando se destina a ser exercido em qualquer tribunal); a consulta jurídica; a elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, à alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais; a negociação tendente à cobrança de créditos; o exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários; os actos que forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional e todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade, como resulta dos n.ºs 5, 6, 7 e 9 do artigo 1.° da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto e artigos 61.° a 63° do EOA. 24.ª Noutra perspectiva, o segredo profissional do advogado visa primordialmente a salvaguarda da relação de confiança que se estabelece, num primeiro plano, entre o advogado e o seu constituinte («guardar segredo profissional» é um dos «deveres do Advogado para com o cliente»), e, num segundo plano, entre todos os advogados que tenham, de algum modo, intervenção no litígio ou na composição de interesses de sinal contrário, por forma a que seja mantida a confidencialidade dos factos. 25.ª Tal não significa que o segredo profissional vise a tutela de interesses privados dos clientes, já que tem sobretudo em consideração interesses públicos, que se prendem com a boa administração da Justiça, ou mesmo ainda com o adequado desempenho profissional, que apenas poderão vir a ser atingidos caso permaneça intocada essa relação de confiança. 26.ª Como salienta António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, Coimbra Editora, 13.ª edição revista, Setembro 2011, “O segredo profissional abrange não apenas os factos revelados pelo cliente e pela outra parte, mas também pelos próprios colegas, verbalmente ou por escrito, e em tudo o que se relacione, directa ou indirectamente, como exercício da profissão”. 27.ª Já foi arguida, como questão prévia ao primeiro interrogatório do Arguido, a invalidade da prova em causa. 28.ª Ao contrário do que consta da decisão recorrida, cabe salientar que o arguido, Dr. J..., apenas invocou a invalidade da prova no que respeita à queixa e às declarações da Dr.ª V..., nunca tendo invocado a “teoria da árvore envenenada” que implicaria a nulidade de todo o processado, mas apenas o não aproveitamento/desentranhamento da queixa e das declarações da Dr.ª V.... 29.ª Foi apreendida uma cópia parcial do processo de abate de mercadoria registada contabilisticamente da empresa M.... 30.ª A pedido do Dr. A..., Advogado e amigo de longa data, o Arguido Dr. J... explicou como é que, do ponto de vista teórico e técnico, em termos gerais, se procede ao abate de mercadoria registada contabilisticamente, tendo em conta os seus profundos conhecimentos e especialização, enquanto Advogado em matéria fiscal. 31.ª Trata-se de matéria para especialista da área fiscal, e cuja aplicação, na prática, suscita dúvidas, pelo que é natural que um Advogado menos familiarizado com estas normas e práticas jurídicas peça ajuda profissional ao Arguido. 32.ª Este abate foi realizado e, depois disso, o Dr. A..., como forma de agradecimento pela ajuda recebida, entregou-lhe cópia do processo, após a sua conclusão. 33.ª O Arguido, reitera-se não tratou da questão concreta relativa ao abate contabilístico da empresa M.... 34. Tal assunto foi tratado pelo Dr. A..., que, a dado passo, perguntou ao Arguido Dr. J..., enquanto Advogado, como é que, em geral e em termos abstractos, como se processa um abate de mercadoria, para efeitos contabilísticos e fiscais. 35.ª O Arguido e Advogado Dr. J..., sabendo como tal abate deve ser feito, do ponto de vista legal, correspondeu ao pedido do Colega Advogado e explicou em termos técnicos e teóricos como se realiza este acto e não mais soube deste assunto, até receber uma cópia do processo, entregue pelo Advogado A..., após a conclusão deste assunto. 36.ª Em todo o caso, embora indirectamente, e sem qualquer relação com o Cliente, o Arguido teve conhecimento dos factos em causa no âmbito do exercício da sua profissão de Advogado, o que determina a submissão de tal matéria ao regime de protecção do sigilo profissional. 37.ª O mesmo se diga da Advogada V..., que conheceu tal factualidade no âmbito do seu exercício profissional e enquanto Colega de escritório do Arguido Dr. J.... 38.ª Relativamente, aos meios de prova constantes dos autos devemos, antes de mais, reiterar que, quer a queixa apresentada pela denunciante, Advogada V..., a fls. 1 a 6, quer o auto de inquirição, no qual a mesma prestou declarações a fls. 46 a 51 se mostram inquinados por invalidade, na medida que resultam de grave e manifesta violação do sigilo profissional, na qualidade de Advogada, por parte da denunciante e depoente. 39.ª Foi assim violado o n.° 1 al. a) e al. c) e no n.° 2 do artigo 87.° Estatuto da Ordem dos Advogados e, por essa via, tais meios de prova são proibidos, por resultarem de violação do disposto no artigo 126.° n.° 3 do CPP e do n.° 8 do artigo 32.° da CRP. 40.ª Tais meios de prova têm de ser desconsiderados nos presentes autos. 41.ª Por outro lado, tal como a matéria indiciária, está configurada, resulta que, a denunciante Dr.ª V... e o Arguido Dr. J..., enquanto colegas de escritório, foram consultados no âmbito do exercício das suas profissões, como Advogados, tendo recebido mandato para, enquanto causídicos, tomarem a seu cargo a resolução jurídica das questões que lhes foram apresentadas e que, agora se verifica, constituem o objecto do presente processo, no que que refere ao Arguido Dr. J.... 42.ª Tratava-se de processo relativo ao casal M...D...sobre uma divida à CGD, que foi tratado exclusivamente, do ponto de vista profissional, pela Dr.ª V..., como Advogada, já que a dívida estava a ser cobrada pela AT, pelo que o Arguido Dr. J... estava impedido de patrocinar este assunto, o que o Arguido respeitou. 43.ª Assim, apesar do Arguido acompanhar outros assuntos jurídicos que lhe foram confiados pelo referido casal, não teve qualquer intervenção no caso da dívida à CGD. 44.ª A Dr.ª V... recebeu os seus honorários pelos serviços que prestou, de modo exclusivo, tendo elaborado o requerimento, no qual foi invocada a prescrição da dívida, que veio a ser assinado pelos Clientes. 45.ª A procuração forense conferida conjuntamente ao Arguido Dr. J... e à sua Colega Dr.ª V..., ora Denunciante, conferiu mandato aos ditos Advogados para assuntos diversos, não tendo o Arguido tratado dos assuntos fiscais, como já se referiu. 46.ª Ou seja, tudo quanto é indiciariamente imputado ao Arguido Dr. J..., está abrangido pelo núcleo essencial dos factos que lhe foram transmitidos no âmbito do mandato forense, na sua relação Cliente-Advogado e relativamente aos quais o Advogado, ora Arguido deveria exercer em concreto a sua actividade profissional. 47.ª Estão em causa relatos de factos revelados por Cliente e que tinham sido transmitidos por Cliente/Consulente. 48.ª Estão em causa informações sigilosas recolhidas/transmitidas no pressuposto da confidencialidade. Sobre o que prestou depoimento, a Advogada V... era um confidente necessário. 49.ª Resulta claro do exposto que estes factos se relacionam com o exercício da advocacia, que se mostram atinentes ao exercício pelo Advogado das suas funções profissionais, que traduzem a prática de acto próprio do Advogado, pelo que constituem uma evidente violação do segredo profissional do Advogado. 50.ª Com o devido respeito, para além do local (escritório de Advogados) e dos intervenientes nos factos em apreciação (Advogados), todos os demais elementos se relacionam directa ou indirectamente com o exercício de funções profissionais do Advogado, muito em particular com o exercício de funções de representação do mandante (em juízo) ou de aconselhamento jurídico. 51.ª Existia, manifestamente, uma relação de confiança que se prendia precisamente com o exercício de funções de representação forense ou negocial. 52.ª Tudo isto num quadro em que estava em causa o intuito de defesa da boa administração da Justiça, de respeito pela liberdade profissional do Advogado e de efectiva tutela da honra e da fazenda do mandante. 53.ª O que estava em causa, e que merece e justifica a tutela do sigilo profissional do Advogado eram precisamente os factos principais e/ou acessórios atinentes ao concreto litígio judicial e/ou extrajudicial cujo acompanhamento e resolução foi profissionalmente conferido à Dr.° V..., na qualidade de Advogada. 54.ª A tutela da confiança, garantida pelo sigilo profissional, abarca a factualidade dos casos concretos, para a protecção dos bens jurídicos relativos à relação material controvertida, que foi precisamente aquilo que foi confiado mediante outorga de mandatos profissionais ao Arguido e à Dr° V..., ambos enquanto Advogados, embora quanto a assuntos não inteiramente coincidentes. 55.ª O Tribunal “a quo” reconheceu (a fls. 4722) que “nas declarações prestadas pela Advogada V., a fls. 46 e 51, ficou claro que o conhecimento dos factos que relatou relativamente às situações que se prendem com a empresa M... e M...D... lhe advieram da sua intervenção como mandatária e como tal, quanto a estes terá a mesma efectivo dever de reserva e sigilo”. 56.ª Logo, estamos, inegavelmente dentro do âmbito de protecção do sigilo profissional inerente ao exercício do patrocínio forense, pelo que, ao proceder à denúncia sem prévia dispensa do sigilo profissional por parte dos Clientes em causa, nem por parte da Ordem dos Advogados, a Dr.° V..., violou patentemente o dever de sigilo profissional, tal como salvaguardado nos termos dos actuais artigos 92.° n.° 5 do Estatuto da Ordem doa Advogados e, por essa via, tais meios de prova são proibidos, por resultarem de violação do disposto no artigo 126.° n.° 3 do CPP e do n.° 8 do artigo 32.° da CRP. 57.ª O Tribunal “a quo” ensaiou uma ténue tentativa de ponderação sobre a eventual preponderância de valores e interesses previstos no artigo 135.° do C.P.P. quando reconheceu que as declarações da Dr.° V... estariam sobre a alçada do sigilo profissional, e como tal, quanto a esses, recaia sobre aquela o dever de reserva e sigilo. 58.ª Contudo, ao considerar que não obstante se verificar, no presente caso, a obrigação de sigilo profissional e que o mesmo foi violado de forma patente pela Dr.° V..., tal não impedia que a sua queixa e declarações fossem consideradas e valoradas nos presentes autos, ao abrigo de uma invocada falta de legitimidade do Arguido Dr. J... para arguir aquela nulidade; 59.ª o Tribunal "a quo" decidiu sobre matéria sobre a qual não tinha competência, violando assim o artigo 119.° alínea e) do C.P.P. 60.ª Não tendo sido requerido pelo Ministério Público, deveria ser o próprio Tribunal “a quo” a requerer o levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Advogados e em caso de parecer negativo, suscitar o respectivo incidente junto do Tribunal da Relação de Lisboa, tribunal este competente para aquela decisão. 61.ª Não o tendo feito e decidindo o Tribunal “a quo” da forma como decidiu, violou de forma patente as regras da competência previstas no artigo 119.º alínea e) do C.P.P., para o que constitui uma nulidade insanável. 62.ª Sempre teria sido possível ao Tribunal “a quo” suscitar aquele incidente, já que esta questão foi invocada como questão prévia pelo Arguido Dr. J... logo no primeiro interrogatório a Arguido detido, ocorrido em 13 de abril de 2016, sendo a presente decisão ora recorrida proferida pelo Tribunal “a quo” em 4 de maio de 2016. 63.ª Tais meios de prova têm de ser desconsiderados nos presentes autos 64.ª Além de que: - Não foi dado o consentimento pelos Clientes titulares do direito ao sigilo profissional; - Não foi dada autorização pela Ordem dos Advogados para o levantamento do sigilo profissional, nem a pedido da Advogada V... nem por iniciativa do Tribunal. 65.ª O Arguido Dr. J... tem legitimidade para invocar a protecção do sigilo profissional relativamente aos factos que foram relatados pela Advogada V..., quer na denúncia quer nas declarações prestadas a fls. 46 a 51 dos autos. 66.ª A legitimidade do Arguido advém, desde logo, da circunstância do Dr. J... também estar abrangido pelo mesmo dever de sigilo profissional que impendia sobre a Dr.ª V..., no que se refere aos Clientes M...D..., que eram Clientes de ambos os Advogados, embora em matérias não coincidentes. 67.ª O Arguido Dr. J... também era Advogado dos mesmos Clientes, pelo que não era terceiro em relação ao mandato profissional que foi lhe foi conferido, bem como à Dr.ª V..., em simultâneo. 68.ª Já no que se refere à empresa M..., o sigilo profissional abrangia de igual modo e nas mesmas exactas circunstâncias e contornos o Arguido, na qualidade de Advogado, e a denunciante, como Advogada, na justa medida em que ambos tiveram conhecimento dos factos no âmbito do exercício das suas profissões de Advogados, embora não tivessem tal empresa entre os seus Clientes, mas apenas porque tais factos lhes foram transmitidos por outro Advogado, a quem a referida empresa havia contratado profissionalmente como Advogado. 69.ª Em nome do interesse público na boa administração da justiça, que integra o direito ao sigilo profissional o Advogado Dr. J... tinha o poder-dever de defender o sigilo profissional que sobre ele impendia e que se mostra violado e desvirtuado pela conduta ilícita da Dr.ª V.... 70.ª Em nome da defesa do interesse dos seus Clientes e do bom nome e da protecção da confiança que a advocacia legalmente merece, o Dr. J... tem legitimidade para impedir e obstaculizar a violação do sigilo profissional a que ele próprio se encontra sujeito e a limitar os danos advenientes da sua violação grosseira por parte da Dr.ª V.... 71.ª O Tribunal “a quo” de modo incompreensível, considerou que o Arguido Dr. J... seria um terceiro em relação ao mandato conferido à Dr.ª V... e invocou um eventual conflito de interesses entre o Advogado e os seus Clientes para sustentar a falta de legitimidade do Arguido para a arguição da nulidade. 72.ª Ora, não existe qualquer conflito de interesses entre o Advogado e Arguido Dr. J... e os Clientes em causa. 73.ª Pelo exposto, requer-se que seja julgada procedente a requerida arguição de nulidade, julgando-se ilícitos e nulos tais meios de prova, nomeadamente, a queixa-crime apresentada, de fls. 1 a 6, e respectiva documentação, bem como as declarações/depoimento da Dr.ª V... a fls. 46 a 51, e ainda todo e qualquer documento ou elemento destas, constante dos restantes volumes dos presentes autos, devendo em consequência serem desentranhados do processo. 74.ª Ao não decidir em consonância com as conclusões que antecedem, o Tribunal “a quo” violou o regime jurídico do sigilo profissional dos Advogados e, nessa sequência, não conformou a decisão sob recurso ao direito probatório material em vigor no processo penal português, admitindo e valorando provas em contraditoriedade com as proibições de prova constantes do artigo 126.° n.° 3 do C.P.P e do artigo 32.° n.° 8 da C.R.P., o que determina a absoluta necessidade da sua revogação e constitui o escopo do presente recurso, que merece inteiro provimento Assim se fazendo Justiça!» 4. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 336 (fls. 5108 dos autos principais). 5. Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnou pela improcedência do recurso, concluindo: «1. Em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, o recorrente requereu que a denúncia e depoimento prestados pela advogada e colega V... fossem declarados nulos, bem como os documentos por esta apresentados, porquanto prestados em violação do segredo que impende sobre estes profissionais forenses. 2. O sigilo profissional de advogado plasmado no actual art. 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, tutela, prima facie, ao relação advogado/cliente. 3. Os factos constantes da denúncia que deu origem aos presentes autos extrapolam o exercício da actividade de advocacia em toda a extensão. 4. Só seria necessária a previa autorização da OA se o depoimento recaísse sobre factos sujeitos a segredo, o que não se verifica. 5. Em causa está a denúncia da prática de ilícitos criminais de corrupção por um advogado. 6. Não é possível aceitar que o conhecimento de tais factos não pudesse ser transmitido às autoridades competentes, porquanto o seu autor é advogado, tal como a denunciante que deles (de parte deles) ficou a saber no (espaço físico do) escritório de advogados. 7. Apenas pode escusar-se a depor com fundamento no dever de sigilo profissional a testemunha obrigada a segredo, o que a advogada V... não fez, pelo que o incidente regulado no art. 135.º do Código de Processo Penal não pode ser invocao pelo arguido. 8. Não competia ao tribunal de primeira instância suscitar o incidente de quebra de segredo profissional regulado no art. 135.º do Código de Processo Penal. 9. A decisão recorrida não enferma dos vícios que o recorrente lhe aponta, estando, em face dos elementos constantes dos autos, conforme às normas processuais e constitucionais invocadas. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão nos seus precisos termos. Assim sendo V. Exas. farão Justiça!» 6. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 326, sufragando o teor da resposta produzida pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido. 7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente nada disse. 8. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir. * II. Fundamentação * De acordo com a ordem de precedência lógica das questões, importará apreciar antes de mais a questão da invocada nulidade insanável do despacho recorrido, por violação das regras de competência do Tribunal. Afirma o recorrente que o despacho recorrido padece de tal vício, previsto no art. 119.º, al. e), do CPP), uma vez que «ensaiou uma ténue tentativa de ponderação sobre a eventual preponderância de valores e interesses previstos no artigo 135.º do C.P.P. quando reconheceu que as declarações da Dr.ª V... estaria sob a alçada do sigilo profissional, e como tal, quanto a esses, recaia sobre aquela o dever de reserva e sigilo» e, contudo, considerou que «tal não impedia que a sua queixa e declarações fossem consideradas e valoradas nos presentes autos, ao abrigo de uma invocada falta de legitimidade do Arguido Dr. J... para arguir aquela nulidade.» Ao assim proceder, alega, o Tribunal decidiu sobre matéria para a qual não tinha competência, quando o que deveria era ter requerido o levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Advogados e, em caso de parecer negativo, suscitar o incidente previsto no art. 135.º do CPP junto do Tribunal da Relação de Lisboa, que é o Tribunal competente para aquela decisão. Vejamos.
O art. 135.º (Segredo profissional), inserido no Capítulo I (Da prova testemunhal) do Título II (Dos meios de prova) do Livro III (Da prova) do CPP, estabelece: «1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.»
De acordo com este preceito, nos casos em que uma testemunha se escusar a depor sobre determinados factos, por considerar que os mesmos se encontram abrangidos pelo segredo profissional a que está vinculada, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado terá de avaliar, após as necessárias averiguações, se a escusa é ou não legítima. Se concluir pela negativa, ordena, ou requer ao Tribunal que ordene, a prestação do depoimento. Se concluir pela legitimidade da escusa, o juiz deverá ordenar a subida dos autos ao Tribunal imediatamente superior para decisão sobre a questão da justificação da escusa (salvo se estiver em causa o segredo religioso).
No caso vertente, a denunciante, apesar da sua qualidade profissional de advogada, quando chamada a prestar depoimento como testemunha no inquérito não se escusou a depor. Não tendo a depoente invocado esse seu direito, não se verificava qualquer situação que convocasse a aplicação desta norma legal, pelo que não tem qualquer cabimento a afirmação do recorrente de que o Tribunal recorrido deveria ter, ele próprio, requerido o levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Advogados. E, como resulta evidente da leitura do despacho posto em crise, o Tribunal não «ensaiou» nenhuma «tentativa de ponderação» sobre a preponderância de valores e interesses previstos no art. 135.º do CPP». A “legitimidade” a que o despacho alude nada tem a ver com a “legitimidade” de uma eventual escusa a depor, nos termos previstos pelo art. 135.º do CPP (que – repete-se – não existiu e não exigia, por isso, qualquer ponderação sobre a sua legitimidade), mas sim com a questão de saber quem tem legitimidade para, em caso de inobservância do dever de sigilo profissional, arguir a invalidade de prova daí decorrente. Esta análise, a que o Tribunal procedeu e para a qual dúvidas não se colocam quanto à sua competência, é que relevava no caso concreto, por terem sido os arguidos, entre os quais o ora recorrente, a arguir a nulidade da denúncia e do depoimento prestado pela denunciante, precisamente com esse fundamento. O Tribunal recorrido não exorbitou da sua competência, não assistindo razão ao recorrente ao assacar-lhe o vício de nulidade insanável previsto no art. 119.º, al. e), do CPP. O recorrente alega, em síntese, que, no que respeita à matéria relacionada com o processo de abate contabilístico da empresa M..., tal assunto foi tratado pelo colega Dr. A…, ao qual o recorrente, dados os seus profundos conhecimentos em matéria fiscal, se limitou a explicar, em termos técnicos e teóricos, como se realiza o acto de abate, nada tendo tido a ver com a resolução da questão, tendo-lhe apenas aquele colega enviado uma cópia do processo após a sua conclusão. Em todo o caso, embora indirectamente e sem qualquer relação com o cliente, teve conhecimento dos factos em causa no âmbito do exercício da sua profissão de advogado, o que determina a submissão de tal matéria ao regime de protecção do sigilo profissional, o mesmo sucedendo com a denunciante, que dela teve conhecimento no âmbito desse exercício profissional e enquanto colega de escritório do recorrente. Relativamente ao processo atinente ao casal M...D...sobre uma dívida à CGD, tal matéria foi tratada exclusivamente pela denunciante, como advogada, uma vez que, estando a dívida a ser cobrada pela AT, o recorrente estava impedido de os patrocinar em tal assunto, embora lhes tivesse sido conferida procuração conjunta para assuntos diversos. Na sua perspectiva, tudo quanto lhe é indiciariamente imputado «está abrangido pelo núcleo essencial dos factos que lhe foram transmitidos no âmbito do mandato forense, na sua relação Cliente-Advogado e relativamente aos quais o Advogado, ora Arguido deveria exercer em concreto a sua actividade profissional», estão em causa factos revelados por clientes, no pressuposto da confidencialidade e, porque «se relacionam com o exercício da advocacia, que se mostram atinentes ao exercício pelo Advogado das suas funções profissionais, que traduzem a prática de acto próprio do Advogado», o seu relato constitui uma evidente violação do segredo profissional do advogado. Em qualquer dos casos, a factualidade em causa chegou ao conhecimento da denunciante no âmbito do seu exercício profissional e enquanto colega de escritório do recorrente, relacionando-se todos os elementos dos factos em apreciação, directa ou indirectamente, «com o exercício de funções profissionais do Avogado, muito em particular com o exercício de funções de representação do mandante (em juízo) ou de aconselhamento jurídico, pelo que ao proceder à denúncia sem prévia dispensa do sigilo profissional por parte dos clientes nem por parte da Ordem dos Advogados a denunciante violou o dever de sigilo profissional, sendo os aludidos meios de prova proibidos, por força do preceituado nos arts. 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, 126.º, n.º 3, do CPP e 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa.
Salvo o devido respeito, não nos parece que assim seja. Explica Costa Andrade[1] que o art. 135.º do CPP «outorga a um círculo de profissões, em nome do sigilo profissional, um direito de recusa de depoimento, isto é, um direito ao silêncio. Na medida em que este direito subsiste, a lei processual penal comete à disponibilidade dos membros das profissões a decisão sobre o sentido do seu exercício concreto. A livre decisão, por exemplo, do médico bastará para, só por si – independentemente de assentimento ou oposição do titular do segredo – para introduzir um meio de prova processualmente admissível. O quadro poderá ser outro do lado do direito penal substantivo», em que a falta de «consentimento» converterá a revelação do segredo em conduta típica, uma vez que a lei penal sanciona, no seu art. 195.º, «Quem, sem consentimento revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte.»
«Tanto o dever de sigilo que a lei substantiva prescreve como o direito ao sigilo que o direito processual reconhece, visam salvaguardar simultaneamente bens jurídicos de duas ordens distintas. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões.»[2] Presentemente, é clara a prevalência da tutela da privacidade, bem jurídico pessoal, face ao bem jurídico supra-individual institucional, perante a previsão do art. 195.º do CP, sem prejuízo de os valores supra-individuais, que se «identificam com o prestígio e confiança em determinadas profissões e serviços, como condição do seu eficaz desempenho», aparecerem sempre incindivelmente associados à punição da violação do sigilo profissional, embora «com o estatuto de interesses (apenas) reflexa e mediatamente protegidos»[3].
O dever de sigilo dos profissionais do foro, mais concretamente dos advogados, está conexamente consagrado como uma das dimensões constitucionais do patrocínio forense, considerado como «um elemento essencial à administração da justiça» (cf. art. 208.º da CRP), sendo que o direito fundamental e constitucional de acesso ao direito (cf. art. 20.º da CRP) implica, para além do mais, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes. O art. 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados que se encontrava em vigor à data da denúncia que deu origem aos presentes autos[4] estabelecia:
Deste preceito decorre, pois, que estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional, podendo advir da violação desse dever de reserva, para além de responsabilidade criminal e civil, também consequências no plano estatutário e no plano processual: no âmbito do primeiro, a ofensa do dever de sigilo faz incorrer o advogado infractor em responsabilidade disciplinar (cf. art. 110.º do EOA); no domínio processual, os actos praticados com violação daquele dever redundam numa proibição de prova (cf. art. 87.º, n.º 5, do citado EOA e 126.º, n.º 3 do CPP). Todavia, como se lê na decisão do STJ de 17-04-2015[5]: «(…) o segredo profissional mostra-se inerente, não ao próprio advogado em si, mas à actividade desenvolvida por este profissional da Justiça, o que significa que nem todos os factos transmitidos ou conhecidos pelo advogado estão a coberto do dever de confidencialidade previsto pelo artigo 87.º, n.º 1, do EOA, mas simplesmente aqueles que sejam relativos ao exercício desta actividade profissional. Deste modo, só estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional (ou, de acordo, com os termos da própria lei, “os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções”), o que leva a excluir do âmbito de protecção desta norma tudo aquilo que é comunicado ao advogado, mas que não respeite a actos próprios da advocacia, ou seja, todos os acontecimentos da vida real que não se prendam com este desempenho profissional, mesmo que cheguem ao conhecimento do advogado no seu local de trabalho. Por isso, não estão a coberto deste sigilo profissional, por absurdo, os factos que estejam relacionados com um acordo firmado entre dois ou mais advogados para a prática, por eles, de comportamentos criminosos, nem tão pouco os factos relativos a uma combinação entre o advogado e o seu cliente de escritório de advocacia, ainda que ocorrida nesse local, para a participação, em conjunto, num evento desportivo ou cultural. Isto significa que o local onde decorreram ou onde se teve conhecimento dos factos não se mostra decisivo ou determinante para se concluir que esses eventos se encontram cobertos pelo segredo profissional, assim como nem toda a actividade desenvolvida pelo advogado, ainda que no seu escritório, se mostra protegida pelo citado artigo 87.º do EOA. Mais uma vez se salienta que são os factos inerentes à própria actividade profissional em si, desenvolvida pelo advogado, que se mostram abrangidos pelo sigilo deste profissional da Justiça, o que vale por dizer, desde logo, que estão afastadas do âmbito de protecção desta norma todas as actividades levadas a cabo por advogado que não se prendam directa ou indirectamente com o exercício da advocacia (por exemplo, os actos da sua vida privada ou os actos que se prendam com o desempenho de outra(s) actividade(s) profissional(ais) ). Como melhor se verá, o segredo do advogado, à semelhança do sigilo previsto para outras categorias profissionais, visa tutelar, em primeira linha, as relações de confiança que se estabelecem com os clientes e com outros colegas de profissão, que não são postas em crise quando não estão em causa factos relacionadas com o estrito exercício da advocacia. Acresce que o local onde decorreram ou onde se teve conhecimento dos factos pode constituir singelo indício, que deve ser ponderado, em conjunto, com os demais elementos do caso, de que essa factualidade se encontra excluída ou incluída no segredo profissional do advogado: assim, por exemplo, factos que foram transmitidos ao advogado no seu próprio escritório, durante o normal horário de atendimento/consulta, por um seu cliente que aí se deslocou, intencionalmente, para tratar ou abordar uma questão ou um assunto de cunho jurídico ou jurisdicional, à partida estarão a coberto de segredo profissional, por presumivelmente respeitarem ao desempenho profissional do advogado. Conforme muito a propósito deixou assinalado Augusto Lopes Cardoso in “Do Segredo Profissional na Advocacia”, 1998, pág. 26, “Para haver legitimidade e obrigação para a manutenção do segredo forçoso é que, por um lado, se trate de factos conhecidos no exercício da profissão e que, por outro lado, eles sejam relativos a esse exercício.”.»
Ora, no caso em apreço, e contrariamente ao que o recorrente afirma, o objecto do processo não é qualquer matéria relacionada com as questões jurídicas cuja resolução tenha sido solicitada a si ou à denunciante, nem se reporta a factos praticados pelos clientes[6] ou que tenham sido transmitidos ou confiados ao recorrente ou à denunciante por esses clientes – que são os titulares do direito ao segredo a que a lei concede protecção – ou, ainda, por outros colegas no âmbito do seu exercício profissional. Os factos denunciados e em investigação dizem unicamente respeito à eventual prática de ilícitos criminais por parte do próprio mandatário, que – como é evidente – nunca poderá considerar-se compreendida no exercício das funções profissionais de um advogado, sendo violadora, para além do mais[7], do dever deontológico de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas (cf. o art. 92.º, n.º 2 do EOA acima citado, que contém os princípios gerais que regem as relações do advogado com o cliente)[8]. Não pode, por isso, neste âmbito, fazer-se apelo ao sigilo profissional para encobrir a eventual prática de actos ilícitos, de natureza criminal, por parte do mandatário, que não constituem acto próprio da advocacia e, consequentemente, se mostram excluídos da esfera de protecção da norma em causa. Como refere a Senhora advogada Catarina Luís Pires, in “O Advogado Enquanto Confidente Necessário: Entre o Dever de Sigilo e o “Dever de Justiça”[9], «Se o Advogado se presta a colaborar na prática de factos ilegais, especialmente de natureza criminosa, provavelmente haverá que ajuizar da participação do mesmo no crime, como co-autor ou cúmplice do seu cliente. Mas, se assim é, caem por terra os fundamentos de aplicação dos institutos deontológicos previstos no EOA, designadamente o do sigilo profissional. Não só por não ser este o propósito e o âmbito do dever funcional de sigilo, mas também porque a conduta do Advogado infringe muitos outros deveres deontológicos a que está vinculado (cfr. artigos 76º e 78º EOA).» (sublinhado nosso)
Em suma: Porque o sigilo profissional de advogado tutela, em primeira linha, a relação de confiança entre advogado e cliente relativamente ao exercício das funções próprias daquele e os factos que estão em causa nos autos não se integram, de modo algum, no exercício das funções profissionais de um advogado, não estão os mesmos compreendidos no âmbito do dever de sigilo profissional por parte da denunciante, nada obstando ao aproveitamento dos actos por ela praticados nos autos (denúncia, junção de documentos e prestação de depoimento) para a investigação e apuramento da eventual responsabilidade criminal do ora recorrente. A decisão recorrida, ao julgar improcedente a arguição de nulidade da denúncia efectuada e de toda a prova carreada para os autos através do depoimento da denunciante não violou qualquer regra legal ou princípio constitucional, improcedendo, por isso, o recurso. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, J..., confirmando a decisão recorrida. _______________________________________________________
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