Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
253/07.3TTFUN.L1-4
Relator: SEARA PAIXÃO
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO PROVOCADA
ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHO TEMPORÁRIO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. No âmbito de uma relação jurídica de trabalho temporário a entidade patronal do trabalhador temporário é a empresa de trabalho temporário com quem este celebra o contrato de trabalho temporário – art. 18º nº 2 Dec-Lei nº 358/89 de 17.10. E, apesar de durante a execução do contrato de trabalho temporário o trabalhador estar sujeito ao regime de trabalho aplicável ao utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança e medicina no trabalho, o certo é que entre o trabalhador temporário e o utilizador não se estabelece nenhum vínculo jurídico, podendo, por isso, dizer-se que o utilizador, relativamente ao trabalhador temporário, é um terceiro.
II. Ocorrendo um acidente de trabalho que atinja o trabalhador temporário causado pelo incumprimento ou violação de regras de segurança por parte do utilizador, deverá ser a empresa de trabalho temporário, enquanto entidade patronal, a indemnizar o trabalhador, nos termos agravados previstos na Lei dos Acidentes de Trabalho, podendo ela eventualmente exigir do utilizador as indemnizações que entender serem-lhe devidas.
(sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na secção social do Tribunal da Relação:

A... intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra:
- B... – EMPRESA DE TRABALHO TEMPORÁRIO, LDA., e
- COMPANHIA DE SEGUROS AÇOREANA, SA., alegando que no dia 24.10.2005 sofreu um acidente quando, enquanto trabalhador da empresa B..., Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, prestava serviço de Marteleiro para a empresa C..., numa obra sita na Câmara de Lobos Funchal, o qual consistiu em ter caído de uma plataforma móvel por se ter desprendido um dos cabos que a mantinha suspensa, provocando a queda do A. ao solo bem como da máquina de perfuração com que trabalhava.
Desse acidente resultaram traumatismos em várias partes do corpo, mas foi considerado curado sem incapacidade (exame médico legal de fls. 50). No entanto o sinistrado teve sempre queixas e dores na anca direita, tendo-lhe sido diagnosticada, em 14.04.2008, fractura através do terço superior e anterior da cabeça femural esquerda, vindo a ser submetido a artoplastia total da anca esquerda na clínica de Santa Catarina.
Na tentativa de conciliação a que se procedeu na fase administrativa não houve acordo.
Conclui pedindo o pagamento das indemnizações e pensões a que tiver direito, e requereu exame por junta médica.     

Ambas as Rés contestaram, mas a “Companhia de Seguros Açoreana, SA”, na sua contestação, requereu a intervenção principal provocada da C...“, alegando que a serem verdadeiros os factos alegados pelo Autor, o acidente em causa resultou do desrespeito das regras de segurança por parte da empresa utilizadora dos serviços laborais fornecidos pela entidade patronal ora 1ª Ré, pelo que a responsabilidade civil pelos riscos infortunístico-laboral será totalmente imputável àquela empresa, ora chamada.
O Autor e a Co-Ré nada disseram quanto a este pedido.
A Mª Juiz proferiu despacho fundamentado no qual indeferiu o requerido chamamento de intervenção provocada do lado passivo.

            A COMPANHIA DE SEGUROS AÇOREANA, S.A., notificada deste despacho que indeferiu o chamamento de intervenção provocada do lado passivo da sociedade C... não se conformando com o seu teor, interpôs o presente recurso de agravo, e termina as suas alegações formulando as seguintes conclusões:
(...)
Nos termos expostos (…), deve revogar-se o douto despacho recorrido, dando-se provimento ao presente agravo nos estritos termos supra requeridos.
            Não houve contra-alegações por parte dos recorridos.
            Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
A Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
            A questão a decidir consiste em saber se deve ser admitida a requerida intervenção principal provocada passiva da entidade utilizadora C...., a quem o sinistrado prestava trabalho no âmbito de uma relação jurídica de trabalho temporário, em que é entidade patronal do sinistrado a 1ª Ré B... Empresa de Trabalho temporário, Ldª.
Fundamentação de facto:
1. O sinistrado A... intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra:
- B... – EMPRESA DE TRABALHO TEMPORÁRIO, LDA., e
- COMPANHIA DE SEGUROS AÇOREANA, SA.
2. O acidente ocorreu no dia 24.10.2005 quando o sinistrado, trabalhador da empresa B..., Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, prestava serviço de Marteleiro para a empresa C..., Lda.,numa obra sita na Câmara de Lobos Funchal, o qual consistiu em ter caído de uma plataforma móvel por se ter desprendido um dos cabos que a mantinha suspensa, provocando a queda do A. ao solo bem como da máquina de perfuração com que trabalhava.
3. A 1ª Ré havia transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para a Ré pelo salário anual de €5,989,20, sendo certo que o sinistrado auferia € 8.305,10.

Fundamentação de direito
Neste recurso, está apenas em causa a questão de saber se deve ser admitida a intervenção principal provocada passiva da entidade utilizadora C..., requerida pela Agravante.
 Alega a Agravante, em resumo, que no âmbito do contrato de trabalho temporário, a empresa utilizadora é que detém os poderes de autoridade e direcção sobre o trabalhador temporário, o qual durante a execução do trabalho temporário fica sujeito ao regime de trabalho aplicável no utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança no trabalho, pelo que no caso do acidente de trabalho ser devido à violação de regras de segurança, deverá ser essa entidade a responsável pela pensão agravada, sendo a seguradora responsável subsidiaria pelas pensões normais, nos termos dos art. 18º nº 1 e 37º nº 2 da Lei 100/97 de 13.09. Assim, a ora agravante só responderá pela reparação do acidente no caso da impossibilidade material e absoluta da entidade utilizadora o fazer, mostrando-se, pois, fundamentado o requerimento de intervenção principal provocada passiva da entidade utilizadora C...
 Ora bem, a questão que subjaz ao entendimento expresso pela Recorrente consiste em saber se numa relação de trabalho temporário, o utilizador, para quem o trabalhador temporário presta serviços, é entidade patronal desse trabalhador para os efeitos previstos na Lei de Acidentes de Trabalho.
E, a nosso ver, a resposta é negativa. 
O contrato de trabalho temporário, regulamentado pelo Dec.- Lei nº 358/89 de 17.10, (com as alterações introduzidas pela Lei 146/99 de 1.09 ), é um contrato de trabalho sui generis, no qual a posição contratual da entidade patronal é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário (que contrata, remunera e exerce poder disciplinar) e o utilizador (que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra os seus quadros de pessoal, mas que ocupa sob a sua autoridade e direcção.
Esta particular forma de trabalho caracteriza-se pela cisão ou partilha entre duas entidades distintas - a ETT e o Utilizador - da posição jurídica usualmente na titularidade de um único sujeito.
O trabalho temporário caracteriza-se pela articulação entre um contrato de trabalho temporário celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador, pelo qual este se obriga, mediante retribuição daquela, a prestar temporariamente a sua actividade a utilizadores - arts 2.º, alínea d), e 18.º a 25.º - e um contrato de utilização de trabalho temporário, que é um contrato de prestação de serviços estabelecido entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário, pelo qual esta se obriga, mediante remuneração, a colocar à disposição daquela um ou mais trabalhadores temporários – arts. 2.º, alínea e), e 9.º a 16.º.
É certo que, nos termos do nº 1 do art. 20º do Dec-Lei nº 358/89 de 17.10, durante a execução do contrato de trabalho temporário, o trabalhador fica sujeito ao regime de trabalho aplicável ao utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança e medicina no trabalho e acesso aos equipamentos sociais. Mas, também é verdade que o mesmo diploma é bem claro ao esclarecer que a entidade patronal do trabalhador temporário é a empresa de trabalho temporário com quem o trabalhador celebra o contrato de trabalho temporário – art. 18º nº 2.
E, na verdade, entre o trabalhador temporário e o utilizador não existe nenhum vínculo laboral, uma vez que apenas existe uma relação contratual, de prestação de serviços, entre o utilizador e a empresa de trabalho temporário. Por isso se pode dizer que o utilizador, relativamente ao trabalhador temporário, é um terceiro, não sendo sua entidade patronal, uma vez que não estabelece com ele nenhuma relação contratual ([1]).
Acresce que a lei impõe expressamente à empresa de trabalho temporário a obrigação de garantir aos trabalhadores temporários seguro contra acidentes de trabalho – art. 22º nº 2 do referido diploma. A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho só será do utilizador se este não exigir da empresa de trabalho temporário a cópia da apólice de seguro de acidente de trabalho relativa ao trabalhador temporário no momento da celebração do contrato de utilização de trabalho temporário – art. 11º nº 2 do citado diploma.
Por outro lado, o art. 20º nº 2 do mesmo diploma estipula que o utilizador deve informar a empresa de trabalho temporário e o trabalhador temporário sobre os riscos para a segurança e saúde do trabalhador inerentes ao posto de trabalho a que será afecto. Daqui decorre a nosso ver a responsabilidade da empresa de trabalho temporário pela reparação do acidente mesmo quando este é devido à violação das regras de segurança por parte do utilizador, e, simultaneamente, o fundamento para esta ser indemnizada pela empresa utilizadora em caso de incumprimento por parte desta das regras de segurança.
Da conjugação destas normas resulta o nosso entendimento de que mesmo em caso de incumprimento das regras de segurança por parte da entidade utilizadora deverá ser a empresa de trabalho temporário a indemnizar o trabalhador, nos termos agravados previstos na Lei dos Acidentes de Trabalho, podendo ela eventualmente exigir do utilizador as indemnizações que entender serem-lhe devidas.
Este entendimento está em consonância com as especificidades da acção especial emergente de acidente de trabalho regulada pelo Código de Processo de Trabalho, aprovado pelo DL nº 480799 de 9.11, em vigor à data da instauração da presente acção e das regras de direito substantivo plasmadas na Lei 100/99 de 13.09 (LAT), em vigor à data da acidente.
            De facto, a acção especial de acidente de trabalho, regulada nos art. 99º a 154º do CPT (aprovado pelo DL 480/99 de 9.11) está estruturada por forma a que a relação jurídica de acidente de trabalho tenha do lado activo o trabalhador sinistrado ou seus beneficiários legais e do lado passivo a entidade patronal e/ou a sua seguradora (uma vez que o seguro de acidentes de trabalho é obrigatório).
A essa acção são chamados além do sinistrado ou dos seus beneficiários legais, as entidades patronais ou seguradoras, como expressamente resulta do art. 108º do CPT, excluindo-se, portanto, quaisquer outras entidades.
É certo que nos termos dos art. 127º e 129º al. b) do CPT, quando estiver em causa a determinação da entidade responsável, o juiz pode até ao encerramento da audiência mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável. Porém, essa possibilidade restringe-se à determinação das entidades que podem vir a ser responsabilizadas pelas obrigações prescritas na lei especial reparadora dos acidentes de trabalho, mas essas entidades são sempre as entidades patronais e ou as respectivas seguradoras.
Pretende-se com este processo especial proporcionar aos sinistrados ou aos respectivos beneficiários um modo célere e expedito e sem grandes dificuldades no apuramento da entidade responsável, de efectivação do direito às prestações fixadas na lei, libertando-se aqueles do ónus de averiguar e demonstrar qual o sujeito ou entidade que praticou, ou omitiu, o acto que em última instância esteve na base da ocorrência do acidente.
Por seu turno, a Lei dos Acidentes de Trabalho confere o direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho aos trabalhadores e seus familiares, fazendo impender essa obrigação sobre as entidades patronais relativamente aos trabalhadores ao seu serviço (art. 1º dessa lei). Daqui resulta que o vínculo obrigacional do qual resultam os direitos previstos na LAT se estabelece entre o sinistrado ou os seus beneficiários legais, por um lado, e a entidade patronal (ou a seguradora para quem esta transferiu a sua responsabilidade prevista na referida LAT), por outro.
Há que ponderar que a Lei de Acidentes de Trabalho (LAT) consagra uma responsabilidade objectiva do empregador, cujo âmbito indemnizatório, está delimitado através do conceito legal de acidente de trabalho e da tipificação dos danos ressarcíveis, que apenas abrangem as despesas respeitantes ao restabelecimento do estado de saúde e da recuperação da capacidade de trabalho do sinistrado e os danos resultantes da perda ou diminuição da capacidade de ganho, conforme refere Romano Martinez, Direito do Trabalho, II vol., 2º tomo, 3ª edição, Lisboa, pág. 185).
Deste modo, o regime estatuído para os acidentes de trabalho só pretende fixar as reparações expressamente nele previstas; não excluindo, todavia, a aplicação do regime comum da responsabilidade aquiliana, e não impedindo, portanto, que o trabalhador (ou qualquer outro lesado) recorra à acção cível para obter, no âmbito da responsabilidade extracontratual subjectiva, o ressarcimento de danos que se não encontram abrangidos pelo direito à reparação pelo acidente de trabalho (Romano Martinez, ob. cit., págs. 187 e segs., em especial, págs. 190, 192).
Podemos assim concluir que de acordo com o regime estabelecido na LAT é sempre a entidade patronal (ou a seguradora para quem aquela tenha transferido a sua responsabilidade), a responsável, em primeira linha, pelo pagamento das prestações nela previstas.
Havendo violação das regras de segurança causadoras do acidente por parte do empregador, será responsável pela sua reparação, perante o sinistrado ou seus beneficiários, a entidade patronal que responde em termos agravados, nos termos previstos no art. 18º, sendo a seguradora responsável subsidiariamente, nos termos do art. 37º nº 2 da LAT.
Concorda-se, assim, com a doutrina expandida no Ac. Do STJ de 11.05.2005, in www.dgsi.pt, quando refere que “nas situações de acidentes imputáveis a terceiros, sejam eles trabalhadores da empresa ou pessoas a ela estranhas, como sucede no caso em que os acidentes sejam simultaneamente acidentes de trabalho e de viação, o sinistrado possa directamente demandar o responsável nos termos gerais da responsabilidade civil extracontratual, tal como preceitua o artigo 31º, n.º 1, da LAT. Caso em que, pagando o terceiro responsável a indemnização devida pelos danos causados, será essa prestação descontada na reparação que incumbe ao empregador, que pagará apenas a diferença (artigo 31º, n.º 3). Por outro lado, se o trabalhador lesado não demandar o terceiro responsável, o que frequentemente poderá suceder, até por inércia, por o sinistrado ter sido entretanto ressarcido pelo empregador, no âmbito da acção de acidente de trabalho, nada obsta que a entidade patronal ou a seguradora que houverem pago a indemnização pelo acidente exerçam o direito de regresso, em acção cível, contra os terceiros responsáveis, tal como prevê o n.º 4 do artigo 31º “.
            Assim, nos termos do art. 31º da LAT nos casos em que o acidente é causado por terceiro, mantém-se o direito à reparação a cargo da entidade patronal ou da seguradora, sem prejuízo do direito de regresso que lhe assiste relativamente ao causador do acidente, nos termos da lei geral.

No caso vertente a Ré Seguradora requereu a intervenção principal provocada passiva, nesta acção especial de acidente de trabalho, da empresa C..., empresa utilizadora do sinistrado  no âmbito de um contrato de trabalho temporário celebrado entre este e a Ré B... – Empresa de Trabalho Temporário, Ldª, mas a chamada enquanto entidade utilizadora é, como se disse, um terceiro relativamente ao sinistrado, não sendo sua entidade patronal quer por não existir qualquer vínculo jurídico estabelecido directamente entre ambos, quer porque a própria lei optou por atribuir à empresa de trabalho temporário a qualidade de entidade patronal do trabalhador temporário para efeitos de acidentes de trabalho – art. 22º nº 2 do DL 358/89.
E sendo terceiro, logra aplicação o disposto no art. 31º da LAT, segundo o qual poderá existir direito de acção contra esse terceiro, nos termos da lei geral, mas não há fundamento legal para que esse mesmo terceiro intervenha no lado passivo da presente acção especial de acidente de trabalho, dadas as especificidades desta acção.
No sentido exposto, vejam-se os Ac. desta Relação de Lisboa, de 29.03.2006, de 10.01.2007, disponíveis em www.dgsi.pt.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso sendo de confirmar o despacho recorrido.

Decisão:
Nos termos expostos, nega-se provimento ao agravo, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da Recorrente.

Lisboa,  29 de Setembro de 2010

Seara Paixão
Ferreira Marques
Maria João Romba
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[1] “…o utilizador é um terceiro relativamente ao contrato de trabalho…” Maria Regina Gomes Redinha, em  A Relação Laboral Fragmentada, 1995, pág. 255, nota 545. Cfr. também Ac. do STJ de 03.03.1998, em BMJ, 475, pág. 394
Decisão Texto Integral: